A Noite das Mulheres Cantoras, de Lídia Jorge

A Noite das Mulheres Cantoras, de Lídia Jorge
O volume da LeyaA Noite das Mulheres Cantoras
O volume da LeYa de A Noite das Mulheres Cantoras, de Lídia Jorge

Há poucas semanas, li com agradável surpresa o livrinho de contos de Lídia Jorge Praça de Londres. A excelente impressão que tive da escritora portuguesa ampliou-se nesta narrativa longa, o belo romance A Noite das Mulheres Cantoras (LeYa, 320 páginas). O livro inicia com o reencontro das mulheres que formavam um grupo musical dos anos 80, o Apocalipse. Durante o evento, surge João Lucena, que voa em direção a Solange Matos, narradora do romance. “Lembras de mim?”.

Toda a narrativa, contada em primeira pessoa pela letrista do grupo — a citada Solange — dedica-se a explicar e detalhar o significado deste reencontro, coisa que não faremos aqui. Além disso, mostra a trajetória do quinteto vocal lisboeta em busca de espaço no mundo pop português. O grupo tinha como projeto o estilo dançante de Donna Summers e aquilo que chamavam de “música para ver”, ou seja, mulheres que cantavam, dançavam e encantavam com suas coreografias e músicas. Para tanto, era necessária muita disciplina e a líder do grupo, Gisela Batista, chegava ao ponto de tentar impedir os namoros de suas pupilas e de trazer balanças para que elas se pesassem diariamente. Nada de engordar, meninas! Às vezes, havia clara revolta: “Música para ver, pintura para ouvir, comida para ler, roupa para cheiras, dança para roer…” — ironizou uma das cantoras –, mas o maior perigo vinha sempre silenciosamente e de lugares afastados das fofocas das moças e do controle de Gisela.

A narrativa de Lídia Jorge é estupenda do ponto de vista da criação de cada um dos clímax. Com pleno domínio de vários meios narrativos, a autora alterna trechos decididamente cronísticos com outros de grande densidade de significados. Os traumas gerados pela busca incessante da fama e dos holofotes, independentemente do preço, são graves e irreversíveis para as meninas do Apocalipse. Tal como nos livros de Jane Austen, uma série de detalhes de aparência fútil servem para mostrar um pesado pano de fundo social, em parte vindo continente africano.

A Noite das Mulheres Cantoras traz uma excelente construção de personagens, como as das cinco mulheres, a do coreógrafo João de Lucena e do estudante Murilo Cardoso — espécie de consciência da obra. Além da alternância de estilos, Lídia Jorge trabalha com esmero e bons resultados o fato de o presente estar sempre lá, lançando seu olhar perplexo sobre os anos 80. O movimento de fazer emergir fatos do passado para o presente raras vezes foi tão bem articulado.

Indico!

Livro comprado na Bamboletras.

Lidia Jorge
Lídia Jorge

Literatura e sensibilidade feminina

Literatura e sensibilidade feminina

Publicado em 26 de janeiro de 2014 no Sul21

Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.

O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.

Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.

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Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina
Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina

Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.

O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.

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Praça de Londres, de Lídia Jorge

Praça de Londres, de Lídia Jorge
O volume das Publicações Dom Quixote
O volume das Publicações Dom Quixote

Comecei vários livros nos últimos meses. Terminei poucos. Diagnóstico: baixo nível de concentração e falta de um livro que me fizesse saltar no carrossel novamente. Estava atrás de algo apaixonante, de algo que, uma vez abandonado, deixasse rapidamente saudade. Por vários motivos, este pequeno volume de contos de Lídia Jorge, comprado na livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa — segundo o Guiness a livraria mais antiga do mundo, em atividade desde 1732 — fez retornar minha vontade de ler.

Praça de Londres tem como subtítulo “Cinco Contos Situados”, fazendo referência ao fato de cada um dos contos narrar fatos ocorridos em diferentes cidades. Porém, se há esta distinção, a atmosfera de imprecisão e de dúvida está por todo o lugar. Os focos narrativos de Lídia Jorge são os mais originais possíveis. O conto mais longo do livro, Perfume, por exemplo, tem narração longínqua e entrecortada, combinando inteiramente com a sonhadora rarefação proposta pelo texto da autora.

O primeiro conto, Praça de Londres mostra o crescente glissando emocional de uma uma mulher que vê uma cena de rua que não tem nada a ver com sua vida e que lhe provoca ciúme e curiosidade. O diálogo imaginário com a zeladora de um prédio é o ponto alto de uma história inusual.

Rue de Rhône é uma narrativa muito íntima da culpa de uma mulher que compra uma bolsa politicamente incorreta, pois é feita da pele de jacarés da Louisiana. Não há diálogos e a vendedora não entende o triplo constrangimento da compradora.

Branca de Neve é o estupendo relato de um roubo inesperado ou concedido.

Em Viagem para Dois, Lídia Jorge leva ao máximo a originalidade do foco narrativo. É uma curiosa história contada por um homem à mulher que a escreverá mais tarde. Ele lhe conta tudo, dando instruções detalhadas sobre como ela há de fazê-lo. Em estado bruto, estão lá a ideia e algumas possíveis execuções.

Perfume baseia-se no filme Yol, de Yilmaz Guney, a quem é dedicado, tem foco narrativo hesitante — fica entre a criança que vê e a babá meio paranoica. Impossível não se apaixonar por este distante relato do fim de um casamento.

Indico mesmo!

Das conversas com Lídia Jorge na Feira do Livro de Porto Alegre

Das conversas com Lídia Jorge na Feira do Livro de Porto Alegre

Publicado no Sul21 em 12 de novembro de 2011

O Sul21 acompanhou a escritora portuguesa Lídia Jorge na Feira do Livro de Porto Alegre. Ela é uma das principais romancistas portuguesas em atividade e veio à cidade lançar seu livro O Vento Assobiando nas Gruas. Ela nasceu em 1946, no Algarve, em Portugal. Licenciada em Filologia Românica e professora do ensino secundário, ensinou em Angola e Moçambique antes de se fixar em Lisboa. Lídia tem dez romances publicados, além de ensaios, volumes de contos, de literatura infantil e peças de teatro. Sua obra alcança grande êxito junto à critica e ao grande público. Temas rurais, africanos e sobre a solidão da mulher são preocupações centrais na obra de Lídia Jorge. Seus principais romances são O Dia dos Prodígios (1980), Notícia da Cidade Silvestre (1984), A Costa dos Murmúrios (1988), O Vento Assobiando nas Gruas (2002) e A Noite das Mulheres Cantoras (2011). A escritora recebeu o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (2003), o prêmio Correntes d’Escritas (2004), o Prêmio de Literatura da Fundação Günter Grass (2005), na Alemanha, o Prêmio do Público (2005) no Salão de Literatura Europeia, em Cognac, na França, e o Prêmio Jean Monnet da Literatura Europeia. Abaixo, alguns trechos de conversas com Lídia Jorge.

A escritora portuguesa Lídia Jorge | Foto: Divulgação

A literatura entrou muito cedo na minha vida. Minha família era formada de pessoas pobres que, em princípio, não deveria ter uma pequena biblioteca, mas havia uma pequena biblioteca em minha família. E esta ficou dentro de uma caixa por muitos anos. Quando eu era criança, tive a sorte de encontrar bons livros dentro daquela caixa que foi de um bisavô meu, a quem eu devo tudo e que, apesar de ser um homem pobre, era um homem culto e que deixou esses livros. E eu os lia. Eram livros, sobretudo, de conteúdo romântico. Livros de Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco. E eu via que aquelas historias sempre terminavam de uma forma terrível, porque eram histórias de abandono, de prostituição, de homens que seduziam as mulheres e depois as abandonavam com crianças, filhos que vinham para assassinar os pais, pessoas que morriam dentro de masmorras… Quer dizer, era tudo uma coisa de tal dramatismo… E eu lia para minha família em voz alta, porque eles pediam de noite para eu ler. Eu lia aquelas histórias e depois não dormia, porque pensava que o mundo dos adultos era horrível. Eu não queria crescer; confundia tudo, o plano da realidade com o plano da ficção. Sentia que o mundo era uma traição. E o que fazia em resposta? Começava, para me entreter, a reescrever aquelas historias, mas ao contrário. Pegava algumas pequenas coisas das historias e dava finais felizes àquelas figuras. Sobretudo cuidava para que os pais reencontrassem seus filhos. Acho que escrevi dezenas e dezenas de historias de noites de natal, em que aparecia uma pessoa à porta, alguém de barba, uma pessoa disfarçada, um velho que depois tirava a barba e era o pai das crianças. Quer dizer, eu queria no fundo encontrar uma harmonia, eu queria dar pais aos filhos, filhos aos pais, amantes às mulheres… Eu queria, na minha inocência, organizar o mundo. E eu comecei assim. Depois, pela vida afora, eu pensei em diversos finais felizes. Mas nos bons livros poucas vezes há finais com harmonia. Mas nunca deixei de, para além da última pagina, reclamar uma harmonia para o mundo. Eu faço aquilo que gosto de ler. Gosto que as últimas páginas — mesmo dentro da maior desgraça — me digam que há uma vida para recomeçar de outra forma. Então, eu escrevo com essa intenção. Às vezes tenho um pouco de vergonha de dizer isso, porque essa é uma idéia que está completamente fora de moda. Acho que  por mais malvados que os escritores sejam, a verdade é que todos escrevem para reescrever o mundo, para reclamar uma outra ordem. E eu assumo isso diretamente, mas com um pouco de vergonha.

Jane Tutikian e Lídia Jorge em palestra na feira do Livro | Bruno Alencastro / Divulgação

A identidade portuguesa perpassa todos os meus livros. Eu não faço isso de propósito. Quem teve uma juventude como tiveram as pessoas da minha geração, sob uma ditadura, fica com uma ideia de mudança. E nestes anos, Portugal ganhou imensas coisas e perdeu outras tantas. Perdeu uma coisa que foi a ilusão do império, que era uma coisa estúpida, mas que foi construtora de uma identidade. Pensávamos que éramos imensamente grandes no mundo. Éramos pequeníssimos. É confortador ao pobre pensar-se como grande. Então o que nos foi tirado recentemente foi muito difícil de suportar. Há pouco tempo o Eduardo Lourenço falava que nós sentíamos aquilo que seria a “dor do membro fantasma”. Quer dizer, o membro foi cortado e nós sentíamos a dor no membro. Os portugueses não sabiam se orientar e só conseguimos nos orientar encontrando uma outra identidade na companhia da Europa. Parecia haver uma nova grandeza nisso. E então entramos no continente como os pobres da Europa. Os portugueses, ao contrário do que se diz, são pessoas com grande sentido de dignidade e isso nos machucou muito. Transformamo-nos num local onde os avós eram analfabetos e os netos eram doutores. Ainda hoje muita mãe analfabeta que vê o seu filho ser licenciado. Foi um salto brutal. De repente, caímos num mundo completamente diferente. Houve conflito social, houve conflito familiar, houve conflito de valores, houve conflito religioso, houve conflito de toda natureza. Estamos num tempo extremamente desafiador. Se há alguma coisa que eu possa fazer, é ser testemunha do meu tempo. Eu escrevo sobre o percurso que testemunho. Penso que se eu puder deixar um livro do qual os mais velhos possam dizer: “Olha, foi com esse livro que eu senti o que era a minha vida” e para os novos dizerem: “Olha, esse tempo foi assim”, estarei realizada. O que eu quero, é me tornar uma colunista do meu tempo. Porque é nesse tempo que eu nasci e é isso que eu sei.

Bruno Alencastro / Divulgação

Virgílio Ferreira dizia: “O título é a primeira coisa que se escolhe, mas a última que se adota”. E eu acho que essa fórmula é verdadeira. Nós não começamos a escrever um livro sem ter um título. O que sabemos é que ele é provisório, ou pelo menos cremos que ele seja provisório e começamos a pensar: “Uma hora eu vou mudar”. Ora, acontece que quando escrevi a última parte de O Vento Assobiando nas Gruas, sabia que o personagem principal era o condutor da linguagem daqueles homens que estão na casinha das gruas. Hoje, sou perita em gruas. Fui a vários estaleiros, passei dias inteiros conversando com homens que conduziam gruas para saber se o que eu tinha inventado era certo. Porque sabemos muito mais do que julgamos saber. E os escritores normalmente escrevem só com o que sabem e depois vão ver se está correto. E muitas vezes está, quase sempre está. Eu não modifiquei nada no livro após ter andado dentro das fundações da construção civil. O que aconteceu foi que verifiquei que essa é uma profissão extremamente perigosa, que exige um manejo e uma perícia extraordinária para conduzir a grua. E então, a certa hora, esse homem que conduz a grua percebe o que fizeram a ele e ele sente-se tão ofendido que deseja morrer e pensa numa espécie de suicidio. Percebe o vento lá em cima. O que normalmente faria um condutor de gruas? Desceria, mas ele não desce. Fica lá à espera de ser derrubado. E os amigos lá embaixo começam a notar que ele não quer descer, que ele quer acabar com a sua vida. Esta é uma das cenas. Eu escrevi o livro todo o tempo pensando em substituir o título no fim. Meu editor dizia que era mau e eu tinha dúvidas. E então comecei a procurar outras possibilidades, tive várias ideias, mas nada parecia bom. A certa altura, abri uma revista, que na passagem do ano de 1999 para o ano 2000 lançara uma pergunta a vários escritores e artistas de todo o mundo, sobre como seria o futuro. Como seria a mudança de um milênio para outro? E então fui vendo aqueles da minha geração, os que nasceram no mesmo período e pude descobrir que Bernie Guilford, um americano que vive em Paris, tinha respondido de maneira muito interessante. Ele tinha escrito um pequeno poema que se chamava “Carta chinesa a um amigo longínquo”. E o poema dele era sobre gruas. E a ideia era mais ou menos essa: “Gruas que lentamente caminham ao longo de um lago / onde se espalham as nuvens. / Nem amigo, nem pássaro, nem clima, nem amor, / poderá mudar / seja o que for”. Isto é, um homem da minha geração, que nasceu numa cidade bem diferente da minha, escreve uma carta a um amigo longínquo, que vive em Paris, que tem exatamente a mesma ideia. E que diz, de fato, que por mais que eu queira, por mais lucidez que eu tenha, nem pássaro, nem amigo, nem o clima, nem o amor, poderá mudar seja o que for. Há pessoas que passam uma vida inteira escrevendo uma obra pra dizer “não pode ser assim”, mas a gente percebe que as forças todas vão contra aquilo que a gente pensa. Então eu pensei: “Se esse homem pensa isso, por que motivo vou mudar meu título que tem a ver, primeiro com o tema das gruas que estão modificando a terra, às vezes para o bem, às vezes para o mal. E se é um título que me diz tanto a respeito, por que não iria mantê-lo?”. E iniciei uma longa batalha. Primeiro com o editor, depois com os os jornalistas que me disseram: “Que título estranho, que coisa mais esquisita. Lídia escreveu um livro sobre construção civil”.

Bruno Alencastro / Divulgação

Costumam me perguntar: “Como você se sente escrevendo como mulher?”. E eu digo sempre que escrevo como mulher, mas que desejo, quando escrevo, ser homem, criança, velho, velha, jovem, adolescente, uma pessoa virtuosa, uma monja, uma prostituta, um ladrão, um homem sério, um homem do século XX, um homem do século XII. E talvez queira ser a porta de uma casa, um objeto, um armário de uma casa que foi do século XVIII. Eu quero ser o armário. Quero ser talvez um cão que passa a correr na rua e que cheira coisas que a gente nem sabe o quê. Eu quero ser um lobo, quero saber como o lobo faz, como ele fareja. Eu quero ser tudo. Até mesmo um animal diferente. Eu quero saber como é ser um animal diferente. Eu acho que é isso que a literatura faz. Nós queremos ser tudo em todas as coisas, nós queremos ver o que há em todos os seres.

Opus Dei: os livros proibidos pela instituição

Estes são dois fragmentos — os mais literários — de uma série publicada pelo Diário de Notícias de Portugal. O autor é o jornalista Rui Pedro Antunes.

‘Index’ proíbe 79 livros de autores portugueses

Autores e especialistas portugueses mostram-se indignados por o Opus Dei ter uma lista de livros que proíbe os seus membros de ler. José Saramago é um dos escritores mais castigados ao nível mundial, sendo um dos recordistas no número de livros proibidos. Também ‘censurada’, Lídia Jorge diz que o Opus Dei deveria ter “vergonha” de ter este tipo de listagem, igualmente arrasada pela Sociedade Portuguesa de Autores. A lista é, porém, ‘legal’.

José Saramago e Eça de Queirós são os escritores portugueses mais castigados pela “lista negra” de livros do Opus Dei. A organização da Igreja Católica tem uma listagem de livros proibidos, com diferentes níveis de gravidade (ver topo da página), na qual põe restrições a 33 573 livros. Nos três níveis mais elevados de proibição encontram-se 79 obras de escritores portugueses. Autores portugueses contactados pelo DN mostram-se indignados com o que classificam de “Index” e “livros da fogueira”.

O Opus Dei sempre teve um Guia Bibliográfico, onde incluía os livros proibidos, com uma classificação de 1 a 6 (o nível mais elevado). Há quatro anos, aquilo que era uma lista de Excel que circulava pelos membros da obra, ganhou forma na Internet (http://almudi.org) e passou a estar aberto à contribuição dos membros. Como explica o Opus Dei Portugal, passou a existir um site “tipo crowdsourcing, aberto à contribuição de interessados, moderado por dois editores: Carlos Cremades e Jorge Verdià [membros da obra]”. Mudaram-se as designações, dividiram-se os livros em duas partes (literatura e não ficção), mas mantiveram-se os níveis de proibição. E há uma novidade: uma lista de filmes “desaconselhados”.

“Deus é um filho da puta”, escreveu Saramago num dos livros proibidos (Caim). Porém, não é preciso haver um nível tão direto de confronto à Igreja para que o livro seja proibido. Só nos três mais elevados níveis de interdição, Saramago tem 12 livros. Caim, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, o Manual de Pintura e Caligrafia e o Memorial do Convento são definidos como os mais perigosos (6; LC-3).

A presidente da Fundação Saramago e viúva do escritor, Pilar del Río, classifica em entrevista ao DN (ver página 33) este índice de “grosseiro e repugnante”, deixando várias críticas à obra: “É uma organização a que chamamos seita porque somos educados. Por acaso, eles não são.” Pilar revela ainda que Saramago nunca escreveu sobre o Opus Dei porque considerava a organização “uma formiga” e mostra-se ainda chocada pelo facto de “neste nível de pensamento cartesiano e da razão haja quem se submeta à irracionalidade das seitas”.

A escritora Lídia Jorge – que também tem dois livros no mais elevado nível de proibição (Costa dos Murmúrios e O Dia dos Prodígios) – confessou-se “chocada” quando confrontada pelo DN com a existência da lista. Lídia Jorge disse mesmo que os membros do Opus Dei deviam ter “vergonha” e classifica quem fez a listagem de “gente retrógrada e abstrusa”. “São pessoas que desprezo porque se armam em mentores, em guardas morais, quando, no fundo, revelam uma ignorância absoluta sobre o papel da literatura.” Quanto às duas obras proibidas, Lídia Jorge explica que têm “uma linguagem e uma atitude mais libertária perante a vida” e que, talvez por isso, tenham sido censuradas. O que a repugna.

Freud e Marx, os mais censurados na não ficção

Tudo o que são clássicos e grandes obras da literatura mundial passaram pelo crivo dos delegados de estudos do Opus Dei. Por isso é difícil encontrar um grande escritor que não tenha sido ‘censurado’ pela obra. Dos últimos 15 prémios Nobel da Literatura só um não tem livros proibidos. Os restantes 14 têm 72 obras ‘proibidas’. Na não ficção, que inclui obras de grande importância científica, Marx, Freud ou Nietzsche estão entre os que não escaparam ao ‘lápis azul’ da organização.

As aventuras de Leopold Bloom a fazer a sua odisseia por Dublin (em Ulisses, de James Joyce), a chegada de Cândido a Lisboa após o terramoto de 1755 (em Cândido, de Voltaire) ou as dúvidas existenciais de Zuckerman (obras de Philip Roth) são histórias que os membros do Opus Dei não podem desfrutar. Grandes nomes da literatura e das ciências sociais mundiais fazem parte da lista de 33 573 livros proibidos pela obra.

Olhando, por exemplo, para os últimos 15 prémios Nobel da Literatura, apenas um (Le Clézio) escapou à lista negra de livros do Opus Dei. Só nos três mais elevados níveis de proibição (ver infografia na página 31) existem 72 obras. O peruano Mario Vargas Llosa (Nobel em 2010) conta com 17 obras nestes níveis de proibição. É imediatamente seguido pelo português José Saramago, com 12 títulos (ver páginas 30 e 31). Mas a lista não para por aqui: Doris Lessing (nove livros), John Coetzee (oito), Günter Grass (sete) e Elfriede Jelinek (quatro) são outros dos mais castigados. Orhan Pamuk apenas foi brindado com um livro proibido e os dois últimos nóbeis (Mo Yan e Tomas Tranströmer) têm livros classificados com níveis de interdição mais baixos.

E a lista de grandes autores proibidos está longe de se esgotar nos últimos laureados pelo maior prémio da literatura. O romance Ulisses, de James Joyce – um marco do modernismo literário -, tem o mais elevado nível de proibição (6; L-C3). O mesmo acontece com livros de autores como Albert Camus, Gabriel García Márquez, Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre (também eles Nobéis), Voltaire, Aldous Huxley, Henry Miller, Truman Capote, Philip Roth ou Vladimir Nabokov.

Também “censurados”, mas com níveis de proibição mais baixos, surgem os nomes de Ernest Hemingway, Orwell, Jorge Luis Borges, Dostoievski, Kafka ou F. Scott Fitzgerald.

O líder do Opus Dei Portugal, José Rafael Espírito Santo, explica que esta lista é “no fundo estar a procurar um conselho para defender a fé”, lembrando que “o Papa João Paulo II antes de ler um livro consultava e perguntava se era um livro adequado”. O vigário regional do Opus Dei utiliza ainda uma metáfora para justificar a lista: “Há medicamentos que só se vendem com receita médica. Por quê? Porque uma pessoa que não saiba, em vez de fazer bem à saúde, pode fazer mal. A fé não se apoia na razão. E, portanto, pode haver modos de empregar a razão que sejam nocivos para o próprio ser humano porque a verdade é só uma.”