Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIX – Auto-de-fé, de Elias Canetti

canetti auto-de-féElias Canetti foi um judeu búlgaro de nome italiano e origem espanhola que viveu na Inglaterra e escrevia em alemão. Recebeu o Nobel em 1981, tendo iniciado sua carreira literária com seu único romance, este Auto-de-fé (atualmente na Cosac Naify, 631 paginas). Depois, produziu ensaios e algumas peças teatrais.

Aqui, a tradução é de Herbert Caro, o que tem claro significado. Meu velho amigo não costumava entrar em fria. Um dia, em nossas reuniões na King`s Discos com a finalidade de falar de música, o Dr. Herbert Caro disse que a Nova Fronteira estava publicando mais um calhamaço traduzido por ele. Disse que não ficava nada a dever a Doutor Fausto, nem a A Montanha Mágica e nem às outras traduções que ele já fizera. Parece que, naquela altura da vida, ele só traduzia o que queria, e sempre eram grandes obras. Assim que foi lançado, comprei (ou roubei, pois na época era um meliante literário) o livro.

Peter Klein é um eminente filólogo que só existe em função de sua biblioteca. Ele é um misantropo que vê o mundo através de seus milhares de livros, mantendo-se afastado da vida. Um dia, por impulso, este ser enormemente individualista resolve casar com a governanta — afinal, ela era tão competente, arrumava tudo tão direitinho… — , convencido de que esta lhe auxiliaria a manter-se afastado do mundo exterior. Casam-se. Porém, rapidamente o casal se incompatibiliza e Klein é posto no olho da rua. Forçado à vida, o professor parte para conhecê-la, entrando numa espiral auto-destrutiva.

Canetti_EliasLendo assim, parece simples; lendo o livro cruzamos com uma montanha de personagens estranhos. O livro é de 1935, segundo ano do nacional-socialismo de Hitler, e seu entendimento do livro deve ser buscado não apenas naquela Europa, mas também lá longe, na China de dois mil anos atrás. Não esqueçam que Peter Klein é um sinólogo e, há dois milênios, o império chinês foi dominado por um certo Qin Shi Huang. Huang foi quem pacificou os vários reinos em guerra que vieram a formar a China. Também divulgou o confucionismo e construiu um belo exército de terracota para proteger seu túmulo. Qin Shi Huang tinha algo de Hitler no sangue e determinou que todos os livros que discordassem de sua linha filosófica deviam ser queimados. Para o servidor que demonstrasse negligência ou piedade ao punir os portadores de livros proibidos, estava prevista a pena de morte. Depois, Huang achou que as fogueiras de livros não bastavam e decidiu enterrar vivos os aproximadamente 500 intelectuais e alquimistas do reino, só para deixar claro seu apreço pela opinião alheia e pelo debate franco e aberto de ideias.

Huang e Hitler, Hitler e Huang. Como escreveu Felipe de Amorim em seu extenso e pessoalíssimo comentário sobre Auto-de-fé, o tema de Canetti é o embate entre o totalitarismo e a liberdade intelectual, descrita numa linguagem colorida e com farpas para todos os lados. Os personagens deste estranho livro interagem, mas não dialogam efetivamente, pois cada um deles está fechado em seu próprio mundo e em suas metas individualistas. Falam e não se ouvem uns aos outros. Eles não conseguem, em momento algum, estabelecer uma compreensão concreta do outro, nem do mundo.

Canetti era um apaixonado pelo tema da formação de grupos populares e da comunicação entre seres humanos. Sua maior obra de ensaios, Massa e Poder, deseja compreender como pessoas pretensamente racionais podiam subitamente se transformar em uma coletividade enfurecida cheia de paranoia, medo e voracidade. Quem manda e quem obedece, quem deve ser exterminado e quem deve sobreviver? Enfim, como se obtém e se perde o poder. “A massa traz sempre vivo em si um pressentimento de desintegração que ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento”, diz em Massa e Poder. E tudo o que está claramente presente neste ensaio de 1960, aparece de forma alegórica em Auto-de-fé.

Em Auto-de-fé, o ingresso do homem no grupo, na massa, não o torna mais tolerante. Na massa, ele ganha permissão para radicalizar suas opiniões e atos. É este o processo que move as ações dos personagens do romance em sua jornada aniquiladora.