Bartók e Martinů por Sara e Rauss em Montevidéu

Bartók e Martinů por Sara e Rauss em Montevidéu
Orquestra Filarmônica de Montevidéu com Nicolas Rauss e Sara
Orquestra Filarmônica de Montevidéu com Nicolas Rauss e Sara Davis Buechner

Há uma semana, logo após Martha Argerich e Daniel Barenboim reunirem-se no Colón em Buenos Aires, ocorria um concerto de primeira linha em Montevidéu, onde me encontrava. O programa era espetacular, totalmente fora do habitual:

Bélá Bartok: Concerto para Piano N°2
Bohuslav Martinů: Sinfonia N° 4

Nicolas Rauss
Sara Davis Buechner, piano

Além da presença do excelente maestro Nicolas Rauss, havia a solista Sara Davis Buechner. O convite a ela era um ato de justiça artística, pois trata-se de uma pianista de espetacular técnica e grande sensibilidade. Acontece que ela passou por uma cirurgia de mudança de sexo em 2002. Ela era David Buechner. Sara não gosta do termo “transexual”, e diz ficar “levemente irritada” quando referida como tal, afirmando que viver como mulher era a única maneira honesta de viver sua vida. Talvez em função do preconceito, tenha se dedicado mais ao ensino e às gravações do que aos palcos. Ela dá aulas na University of British Columbia, no Manhattan School of Music e na New York University e tem 16 CDs em sua discografia.. Sara escreveu sobre suas experiências em um artigo de 2013 no New York Times.

Sua presença no Concerto de Bartók foi luminosa e talvez seja importante dizer que eu nem sabia ainda da questão trans. Como o concerto é muito — muitíssimo — percussivo, Sara mandou bala fazendo os gestos largos e algo teatrais dos percussionistas (ver foto). Seus braços subiam e desciam em amplos movimentos, trovejando os acordes do sensacional concerto. Para interpretá-lo, Rauss mudou todas as posições da orquestra. No lugar dos primeiros violinos estavam as flautas com os clarinetes logo atrás. Do outro lado, no lugar onde estão normalmente os violoncelos, estavam os dois trompetistas com os trombones logo atrás.

Perguntei ao maestro — que regeu as duas obras de cor — sobre este posicionamento. Ele me disse que Ádám Fischer montou a Budapest Festival Orchestra desta forma para executar este concerto de Bartók, no que foi imitado por Simon Rattle em um concerto em Rotterdam. O motivo é simples, explicou Rauss: neste concerto os sopros dialogam com o piano e as cordas têm participação muito pequena. O resultado artístico foi grandioso. O acústico também foi interessante, com as cordas surgindo de forma fantasmagórica no movimento central.

Como bis, Sara Buechner interpretou de forma belíssima uma obra para piano do uruguaio Eduardo Fabini, que arrancou, literalmente, suspiros da plateia.

Divulgar Bohuslav Martinů é um apostolado de Nicolas Rauss. Antes de atacar a sinfonia Nº 4, o regente contou uma pequena história. Uma vez, perguntaram a um de seus professores na Suíça do que alguém precisaria ser dotado para ser músico. Precisaria ser dotado de ouvido? De ritmo? De grande habilidade? Não, segundo o professor, precisaria apenas ser dotado de prazer. E Rauss voltou-se para a orquestra e tratou de mostrar o que era esse tal de prazer. E mostrou! Sinfonista nato, o checo Martinů é realmente um compositor subestimado.

A sinfonia é muito interessante, prazerosa e bonita. Com os quatro movimentos clássicos, foi composta em Nova Iorque em abril de 1945, quase ao final da Segunda Guerra. É feliz e cresce a partir de um único motivo. O primeiro movimento flui natural e liricamente, apresentando variações. O segundo movimento é um Scherzo, marcado pelo perfume da Boêmia presente em algumas obras de Dvořák. O terceiro movimento, lento, é dominado pelas cordas e o finale é uma enérgica reformulação do material anterior. Dito assim, não dá a ideia da fluência e da beleza da sinfonia, né?

Assistir este concerto foi um dos melhores momentos de nossas férias de dez dias. Infelizmente, não conseguimos falar com Rauss antes do concerto devido a uma dor lombar que o maestro sentiu após o ensaio de sexta-feira e que o manteve no hotel durante o fim de semana. Não deve ter sido prazeroso, mas Bartók e Martinů deixaram-no rapidamente curado.

O exagero gastronômico de Montevidéu

O exagero gastronômico de Montevidéu
Parrilla para dois
Parrilla para dois

Aqui, nós sempre erramos o tamanho do prato. Ou vem uma coisa diminuta — fato bem mais raro — ou vem o mundo. Isso ocorre sempre, com exceções que podem ser contadas nos dedos de uma mão, com sobras. Por mais que conversemos com os garçons, ficam faltando uma ou duas perguntas. Hoje, voltamos a um pequeno restaurante ao lado do Parque Rodó, o La Cocina del Parque. Pedimos uma Parrilla para dos. Impossível comer tudo, mal chegamos à metade mesmo tendo antes atravessando a cidade desde o Palácio Legislativo. Talvez seja este o mistério de tantos cães e cocôs pelas ruas da cidade. Sobra muita comida boa nos restaurantes.

Agora chove, são 16h15 de terça-feira e vamos às 19h30 ao Solís ver a Orquestra Filarmônica de Montevideo com o saudoso e excelente maestro Nicolas Rauss, que a Ospa deixou de convidar em função da tal oxigenação. O programa é foda:

Bélá Bartok: Concierto para Piano N°2
Bohuslav Martinu: Sinfonía N° 4

Nicolás Rauss
Sara Davis Buechner, piano

Certamente será ótimo. O problema será depois, quando formos a um restaurante. Bem, ao menos o tamanho do café será o esperado.

E, amanhã, em grave descumprimento laboral — pois em meio às férias — entrevistarei o Reitor da Udelar, Universidad de La República del Uruguay, meu amigo Roberto Markarian. Tenho um roteiro pronto e acho que o Sul21 ganhará uma bela “entrevista de férias”. Já visitamos os Markarian e está tudo em ordem.