Há controvérsias sobre o ano em que o Bloomsday começou a ser comemorado. Alguns indicam 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulysses, o célebre 16 de junho de 1904.
O Instituto Ling, claro, não poderia ficar de fora.
Neste ano, temos aqui presentes Donaldo Schüler premiado escritor e também tradutor de livros como Finnegans Wake, de James Joyce, e da Odisseia, de Homero. Donlado é doutor em Letras e Livre-Docente pela UFRGS e pela PUCRS. Patrick Holloway é escritor e tradutor, possuindo doutorado em Escrita Criativa pela PUCRS e mestrado pela Universidade de Glasgow. Seus contos e poemas foram publicados no Brasil, EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e Irlanda.
Temos também a presença do ator Charles Dall’Agnol no papel de Leopold Bloom e da Banda Irish Fellas, quarteto de música tradicional irlandesa, formado pelos músicos Caetano Maschio Santos (violino, banjo, flautas e voz), Alexandre Alles (teclado), Renato Muller (gaita-ponto e voz) e Kelvin Venturin (bódhran e voz).
Contrastando com tudo isso, no papel de patinho feio, há eu, Milton Ribeiro, jornalista, critico literário e proprietário da Livraria Bamboletras.
Mas iniciaremos passando a palavra ao representante do Consulado da Irlanda em Porto Alegre. Por favor, Mr. Jill Henneberry.
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Bem, como jornalista, tenho o vício de contextualizar tudo.
O que é o Bloomsday?
Bloomsday é o dia instituído na Irlanda para homenagear o personagem Leopold Bloom, protagonista de Ulysses, de James Joyce. Em todo o mundo, é o único dia dedicado a um personagem de um livro.
O Bloomsday é comemorado no mundo inteiro, em várias línguas. É comum que pessoas — de atores profissionais a amadores — vistam-se a rigor e refaçam cenas vividas pelos personagens de Ulysses por Dublin.
Como ele foi traduzido no Brasil?
No Brasil, temos três traduções do livro. A de Antônio Houaiss, de 1966, a de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, e a de Caetano Galindo, de 2012. De forma complementar, o mesmo Galindo escreveu Sim, eu quero sim — Uma Visita Guiada ao Ulysses de Joyce.
O guia de Galindo se justifica. Ulysses é um livro difícil, que assusta e afasta muita gente.
Mas o que há nestas mais de mil páginas?
Como disse, tudo se passa num só dia, das 8h da manhã às 2h da madrugada do dia 17.
São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação.
Cada um escrito em uma técnica narrativa diferente.
Cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero.
(Há correspondência entre personagens da Odisseia e de Ulysses — Leopold Bloom seria Ulysses; Molly Bloom, Penélope; Stephen Dedalus, Telêmaco).
Cada capítulo faz referência a uma ciência ou ramo do conhecimento.
Em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo.
Em todos os capítulos há uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o professor de literatura Idelber Avelar.
Nestas 18 horas, Leopold Bloom tem aventuras mais ou menos análogas às do herói Ulysses: ele encontra sereias, ciclopes, feiticeiras, enfrenta a ira dos deuses e consegue retornar ileso para casa. Mas em Ulysses as figuras mitológicas são substituídas por pessoas de Dublin. As batalhas épicas acabam acontecendo dentro de fatos e diálogos de um dia comum em Dublin.
A primeira versão integral foi editada na França, em 1922, depois que editoras americanas e britânicas evitaram a publicação por considerar o original pornográfico. A Justiça dos EUA só permitiu a publicação integral em 1933. A Inglaterra, só em 1936. A razão é que os personagens falam como pessoas comuns, há fluxo de consciência, então a vida interior deles está exposta, com franqueza e muitos palavrões.
E quem é Bloom?
Quando conhecemos Leopold Bloom, ele está fazendo café da manhã para sua esposa e falando carinhosamente com um gato. Se você passasse por ele na rua, talvez nem o notasse. Sua vida exterior é circunscrita pelas ruas de Dublin e pelas exigências de uma carreira modesta. Apesar da falta de perspectivas, ele parece estar à vontade com suas próprias sombras e contradições. Ele aceita o mundo e sente prazer nas menores coisas. Conheceu a tragédia — o suicídio de seu pai, a morte de seu filho recém-nascido — e conheceu a alegria, como marido de Molly e pai de Milly. Ele ama animais, abomina a violência e aceita o fato de que sua esposa está transando com outro. Esta última parte lhe causa dor, mas ele aprendeu há muito tempo que o mundo é maior do que sua dor e a posse não faz parte de sua compreensão do amor.
Bloom também é filho de um imigrante judeu e, portanto, Joyce fugiu da escolha óbvia de criar um herói típico. Bloom é Dublin, seus amigos gostam muito dele, mas ele é um mistério. Em suas mentes, ele é passivo e “feminino”. E todos sabem que sua esposa está tendo um caso. O que está errado com ele? Que tipo de homem é esse?
Ulysses é um livro quase sem enredo e Joyce ufanava-se disso. Naquele dia, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, não muito atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto seu amigo Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell, encontra-se com Dedalus, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim. Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia.
Ou erotismo. Pois talvez a pornografia seja apenas o erotismo dos outros, não? Enfim.
Por que o livro foi proibido e censurado à princípio?
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita aqui. Enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos.
Há coisas bem estranhas no Ulysses, principalmente para os contemporâneos de 1922.
Por exemplo, a Penélope de Joyce é Molly Bloom. Se a personagem de Homero esperava o retorno de seu Ulysses fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque –, Molly não aguarda. Bloom, apesar de saber das traições de Molly com Blazes Boylan, não pretende lavar sua honra com sangue.
“Assassinato nunca, visto que dois erros não se tornam um acerto.”
A propósito, o adultério de Molly nada tem a ver com o de Capitu. Não pairam dúvidas a respeito. Bloom sabe e a própria Molly, em seu longo monólogo final de 8o páginas sem pontuação, rememora com algum detalhe os acontecimentos eróticos da tarde.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
“Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar nela, enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo e o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.”
Bloom não se comporta tipicamente como um homem da virada do século como o casal Molly e Leopold, está inteiramente fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada. Bloom é muitas vezes chamado de homem feminil. Molly é decidida e toma todas as iniciativas, inclusive foi ela quem o beijou pela primeira vez.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que esta possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Enquanto Ulysses lutava para voltar para sua Penélope, Bloom enrola e faz tempo na rua para não cruzar com Boylan em sua casa.
Como disse, Bloom prepara o café para Molly, arruma a cama, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com situação da filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz.
Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, comprovação — para seus amigos — que ele não é bem um homem. Pior: s amigos dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”.
Para finalizar, digo-lhes que Ulysses é puro colorido, vivacidade e energia verbal. As pessoas não são sutis ou elegantes. Não há nada mais lindo do que Bloom se masturbando na frente de Gerty MacDowell e Molly explodindo em sua insônia, nada mais frágil do que o não-machista Bloom comprando fraldas. Nada lembro de nada literariamente mais brilhante do que Joyce fazendo pouco dos padres. Não há pose, pompa, grandiosidade, apenas um enorme amor pelo humano. Na minha opinião, é uma alegria que tal livro seja o único que mereceu um feriado até hoje. Isto fala bem de nós.
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Este foi o esboço do meu roteiro. Na verdade, eu entremeei os parágrafos com várias perguntas ao Donaldo e ao Patrick, assim como com chamadas à excelente banda Irish Fellas. Tivemos belos momentos durante o Bloomsday do Instituto Ling. Concordamos, discordamos, ouvimos música irlandesa e tivemos a presença ‘in loco’ do próprio Leopold Bloom.
Com a minha autoestima tão retardada quanto meu cérebro, só hoje, pensando retrospectivamente, concluí que fizemos um belo trabalho juntos. Comandados pela Maira Ritter, o grupo que falou, cantou e atuou foi formado por mestre Donaldo Schüler, Charles Dall’Agnol, Patch Holloway, Irish Fellas, pela representante do Consulado da Irlanda Jill Henneberry e por mim. Ah, jamais esquecer das participações da Aurora, filha do Patrick (Patch Holloway), que aprendeu a caminhar faz uma semana e que parece estar gostando muito disso.
Com Gustavo Ventura Gomes, a Livraria Bamboletras também se fez presente com edições de ‘Ulysses’ e de ‘Sim, eu digo sim’ de Caetano W. Galindo.
E viva Joyce! Viva Ulysses! Vivam Molly e Leopold Bloom!
Todo ano é a mesma coisa. Ainda bem. Desde o final da década de 20 do século passado, sempre no dia 16 de junho, um número crescente de leitores e admiradores de James Joyce reúnem-se para celebrar o autor de Ulysses (1922), obra que se passa no dia 16 de junho de 1904. Naquelas quase mil páginas, há sexo por todo lado e, em uma palestra que dei para o Bloomsday de 2012, tratei desse assunto. Claro, não é uma palestra acadêmica e dei risadas com a primeira pergunta que surgiu após a mesma: “Já assisti mais de dez palestras em Bloomsdays, porque só me diverti nesta aqui?”.
Abaixo, está todo o texto de preparação que escrevi para aquele dia.
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A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Como escreve Idelber, naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
A imagem ao lado pode ser eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não omemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. A segunda tradução foi a da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
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Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heroico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
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Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
NORA BARNACLE
Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast, não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.
Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus:
Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.
O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.
Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D. H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.
Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Poderíamos definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Ulysses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”.
É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo, há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.
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Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana..
Depois de tudo que escrevi sobre Ulysses em 2012 (ver lista de links abaixo), meus sete leitores poderiam prever facilmente sua reaparição nesta lista, não?
Bloom acorda. Prepara o café da manhã para sua mulher, Molly. Assiste a um enterro. Visita um editor de um jornal. Almoça. Olha um anúncio de jornal na biblioteca. Responde a uma carta recebida. Janta. Encontra o amigo Dedalus. Vagueia pela praia. Masturba-se olhando uma moça. Reencontra Dedalus. Vão a um puteiro. Encaminham-se para a casa de Bloom. Entabulam uma conversa filosófica. Dedalus vai embora e Bloom retorna ao leito conjugal, onde dormirá enquanto sua mulher tem fantasias quentíssimas.
Tudo isso em apenas um dia, 16 de junho de 1904. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo escrito de forma totalmente diferente, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica, cujo naturalismo não se percebe no nível mais superficial da narrativa. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. O que mais me fascina são os 18 estilos diferentes, os 18 escritores chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX.
Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações.
O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. havia outra cópia menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código… Algo vital para o inimigo, certamente…
Suas características satíricas, viscerais e brutalmente depreciadoras do real, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, louca musicalidade e certamente pela descontrolada e incerta potencialidade semântica.
O mais extravagante, divertido e sujo dos livros.
Mais Ulysses: tem muito mais neste blog, mas pode ser aqui, aquie aqui, pra começar. Para o resto, é só pesquisar.
A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
Não lembro quem utilizou esta imagem, mas ela é bastante eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não comemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. Foi com ela que conheci o extraordinário romance. Até hoje, foram 21 edições e este Ulysses ainda está no catálogo da editora ao preço de R$ 80. Li o livro aos 22 anos, quando muita gente dizia que era um livro para ser lido apenas aos 40, com maior vivência, maturidade, etc. Para mim, naquela idade, seria absolutamente incompreensível. Não foi, mas o mérito não foi meu. Ulysses não um livro fácil, mas sua inacessibilidade é um mito. Foi com a tal maior vivência que li a segunda tradução, da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. A edição é da Objetiva e custa dez centavos a menos que a da Civilização Brasileira. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. O preço é simpático, apenas R$ 47. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
Abaixo, a primeira tradução francesa do romance com autógrafo do autor. Aliás, esta tradução foi revisada por Joyce. O livro me foi emprestado por seu dono, o poeta e romancista Fernando Monteiro.
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Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heróico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
Epígrafe para o próximo texto:
Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
Além das datas religiosas, não creio haver outro feriado nacional dedicado a um personagem de ficção. O Bloomsday é um feriado comemorado no dia de hoje, na Irlanda, em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce. Atualmente, a amplitude do Bloomsday ultrapassa em muito à esfera de Ulisses. É, em verdade uma data em que se homenageia toda a literatura. Só os joyceanos absolutos — dentre os quais humildemente me incluo — relembram os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses por dezenove ruas da cidade de Dublin e dezesseis horas no dia 16 de junho de 1904. Para os leitores restantes de todo o mundo, é a data em que se comemora toda a literatura.
Há controvérsias sobre quando o Bloomsday começou. Alguns especialistas indicam 1925, três anos após o lançamento do livro; outros dizem que foi na década de 1940, depois da morte de James Joyce. A hipótese mais aceita indica é que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulisses.
Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado em sua obra porque foi nesse dia que ele teria mantido relações sexuais com sua futura companheira Nora Barnacle, na época uma jovem virgem de vinte anos. Estudiosos afirmam que, na verdade, o casal apenas “caminhou junto” pela primeira vez neste dia. O que sabemos é que, quando da primeira relação sexual, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou “com os olhos de uma santa”, como Joyce relatou em carta.
Ao lado dos devotos de Joyce, criou-se uma curiosa seita de tementes (ou hostis) a Joyce. É como se sentissem obrigados àquilo — a tentar entendê-lo totalmente ou repeti-lo. É uma tolice bastante difundida. Ulisses é tão irrepetível quanto a Arte da Fuga de Bach e sua leitura, para o leitor comum, é tão necessária quanto a audição de A Arte para o ouvinte de iPods. Apenas fico desconfiado quando um autor nega-se a conhecer a obra. Porém, como há historiadores que preferem desconhecer largos períodos…
Mas tergiverso. Assim como falta-nos tudo para que nossa cultura recrie um Bach, assim como algumas obras deste são tão impenetráveis e intricadas que alguns dizem terem sido escritas mais para a leitura de eruditos do que para a audição, o livro de Joyce é um complicadíssimo monumento cultural do qual temos a impressão de nos afastar a cada dia. Mas não me digam que não pode ser lido. Tanto quanto ouço A Arte Da Fuga, li o livro de Joyce desde minha pobre perspectiva e diverti-me muito.
Pois o romance é perfeitamente compreensível. Há pontos de inserção para mortais. As minúcias e a complexa teia de referências são importantes, mas podem permanecer semi-entendidas sem esfacelamento de sua essência. Prova de que o ludus nem sempre está associado à compreensão cabal. (Como disse Karen Blixen, não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético).
A história do livro é simples. Trata-se da vida de pessoas comuns da amada/odiada Dublin de Joyce: o professor secundarista Stephen Dedalus; seu amigo Buck Mulligan; o vendedor Leopoldo Bloom — angustiado com a possível traição de Molly, sua mulher — ; conversas sobre Shakespeare numa biblioteca; a surra que Bloom toma de um antissemita; sua mastubação observando duas mulheres; a mijada no jardim com Stephen; e a chegada em casa, onde deita-se com Molly, a qual finaliza maravilhosamente o romance num monólogo interior prenhe de pornografia. E é isso.
Cada um dos capítulos cobrem aproximadamente uma hora do dia e guarda debochada relação com a Odisséia, de Homero. E aqui tenho de referir os milhares de torcadilhos, paródias — que parece ser a maior arma da arte moderna — , neologismos e arcaísmos.
Eu coloquei nele tantos enigmas e quebra-cabeças que ele manterá os professores ocupados durante séculos, disse Joyce.
Então, hoje é o dia de comemorar a existência do duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito livro de Joyce. Lembremos de Leopold Bloom, de sua mulher Molly, de Stephen Dedalus e de Buck Mulligan!
Obs.: As fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses e outro livro são da autoria de Eve Arnold e são de 1955.