Bloomsday 2019 no Ling

Bloomsday 2019 no Ling

Boa tarde a todas e a todos!

Todo ano é a mesma coisa. Ainda bem.

Há controvérsias sobre o ano em que o Bloomsday começou a ser comemorado. Alguns indicam 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulysses, o célebre 16 de junho de 1904.

O Instituto Ling, claro, não poderia ficar de fora.

Neste ano, temos aqui presentes Donaldo Schüler premiado escritor e também tradutor de livros como Finnegans Wake, de James Joyce, e da Odisseia, de Homero. Donlado é doutor em Letras e Livre-Docente pela UFRGS e pela PUCRS. Patrick Holloway é escritor e tradutor, possuindo doutorado em Escrita Criativa pela PUCRS e mestrado pela Universidade de Glasgow. Seus contos e poemas foram publicados no Brasil, EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e Irlanda.

Temos também a presença do ator Charles Dall’Agnol no papel de Leopold Bloom e da Banda Irish Fellas, quarteto de música tradicional irlandesa, formado pelos músicos Caetano Maschio Santos (violino, banjo, flautas e voz), Alexandre Alles (teclado), Renato Muller (gaita-ponto e voz) e Kelvin Venturin (bódhran e voz).

Contrastando com tudo isso, no papel de patinho feio, há eu, Milton Ribeiro, jornalista, critico literário e proprietário da Livraria Bamboletras.

Mas iniciaremos passando a palavra ao representante do Consulado da Irlanda em Porto Alegre. Por favor, Mr. Jill Henneberry.

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Bem, como jornalista, tenho o vício de contextualizar tudo.

O que é o Bloomsday?

Bloomsday é o dia instituído na Irlanda para homenagear o personagem Leopold Bloom, protagonista de Ulysses, de James Joyce. Em todo o mundo, é o único dia dedicado a um personagem de um livro.

O Bloomsday é comemorado no mundo inteiro, em várias línguas. É comum que pessoas — de atores profissionais a amadores — vistam-se a rigor e refaçam cenas vividas pelos personagens de Ulysses por Dublin.

Como ele foi traduzido no Brasil?

No Brasil, temos três traduções do livro. A de Antônio Houaiss, de 1966, a de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, e a de Caetano Galindo, de 2012. De forma complementar, o mesmo Galindo escreveu Sim, eu quero sim — Uma Visita Guiada ao Ulysses de Joyce.

O guia de Galindo se justifica. Ulysses é um livro difícil, que assusta e afasta muita gente.

Mas o que há nestas mais de mil páginas?

Como disse, tudo se passa num só dia, das 8h da manhã às 2h da madrugada do dia 17.

São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação.

Cada um escrito em uma técnica narrativa diferente.

Cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero.

(Há correspondência entre personagens da Odisseia e de Ulysses — Leopold Bloom seria Ulysses; Molly Bloom, Penélope; Stephen Dedalus, Telêmaco).

Cada capítulo faz referência a uma ciência ou ramo do conhecimento.

Em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo.

Em todos os capítulos há uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o professor de literatura Idelber Avelar.

Nestas 18 horas, Leopold Bloom tem aventuras mais ou menos análogas às do herói Ulysses: ele encontra sereias, ciclopes, feiticeiras, enfrenta a ira dos deuses e consegue retornar ileso para casa. Mas em Ulysses as figuras mitológicas são substituídas por pessoas de Dublin. As batalhas épicas acabam acontecendo dentro de fatos e diálogos de um dia comum em Dublin.

A primeira versão integral foi editada na França, em 1922, depois que editoras americanas e britânicas evitaram a publicação por considerar o original pornográfico. A Justiça dos EUA só permitiu a publicação integral em 1933. A Inglaterra, só em 1936. A razão é que os personagens falam como pessoas comuns, há fluxo de consciência, então a vida interior deles está exposta, com franqueza e muitos palavrões.

E quem é Bloom?

Quando conhecemos Leopold Bloom, ele está fazendo café da manhã para sua esposa e falando carinhosamente com um gato. Se você passasse por ele na rua, talvez nem o notasse. Sua vida exterior é circunscrita pelas ruas de Dublin e pelas exigências de uma carreira modesta. Apesar da falta de perspectivas, ele parece estar à vontade com suas próprias sombras e contradições. Ele aceita o mundo e sente prazer nas menores coisas. Conheceu a tragédia — o suicídio de seu pai, a morte de seu filho recém-nascido — e conheceu a alegria, como marido de Molly e pai de Milly. Ele ama animais, abomina a violência e aceita o fato de que sua esposa está transando com outro. Esta última parte lhe causa dor, mas ele aprendeu há muito tempo que o mundo é maior do que sua dor e a posse não faz parte de sua compreensão do amor.

Bloom também é filho de um imigrante judeu e, portanto, Joyce fugiu da escolha óbvia de criar um herói típico. Bloom é Dublin, seus amigos gostam muito dele, mas ele é um mistério. Em suas mentes, ele é passivo e “feminino”. E todos sabem que sua esposa está tendo um caso. O que está errado com ele? Que tipo de homem é esse?

Ulysses é um livro quase sem enredo e Joyce ufanava-se disso. Naquele dia, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, não muito atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto seu amigo Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell, encontra-se com Dedalus, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim. Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia.

Ou erotismo. Pois talvez a pornografia seja apenas o erotismo dos outros, não? Enfim.

Por que o livro foi proibido e censurado à princípio?

Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita aqui. Enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos.

Há coisas bem estranhas no Ulysses, principalmente para os contemporâneos de 1922.

Por exemplo, a Penélope de Joyce é Molly Bloom. Se a personagem de Homero esperava o retorno de seu Ulysses fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque –, Molly não aguarda. Bloom, apesar de saber das traições de Molly com Blazes Boylan, não pretende lavar sua honra com sangue.

Assassinato nunca, visto que dois erros não se tornam um acerto.”

A propósito, o adultério de Molly nada tem a ver com o de Capitu. Não pairam dúvidas a respeito. Bloom sabe e a própria Molly, em seu longo monólogo final de 8o páginas sem pontuação, rememora com algum detalhe os acontecimentos eróticos da tarde.

Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):

“Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar nela, enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo e o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.”

Bloom não se comporta tipicamente como um homem da virada do século como o  casal Molly e Leopold, está inteiramente fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada. Bloom é muitas vezes chamado de homem feminil. Molly é decidida e toma todas as iniciativas, inclusive foi ela quem o beijou pela primeira vez.

Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que esta possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.

Enquanto Ulysses lutava para voltar para sua Penélope, Bloom enrola e faz tempo na rua para não cruzar com Boylan em sua casa.

Como disse, Bloom prepara o café para Molly, arruma a cama, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com situação da filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz.

Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, comprovação — para seus amigos — que ele não é bem um homem. Pior: s amigos dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”.

Para finalizar, digo-lhes que Ulysses é puro colorido, vivacidade e energia verbal. As pessoas não são sutis ou elegantes. Não há nada mais lindo do que Bloom se masturbando na frente de Gerty MacDowell e Molly explodindo em sua insônia, nada mais frágil do que o não-machista Bloom comprando fraldas. Nada lembro de nada literariamente mais brilhante do que Joyce fazendo pouco dos padres. Não há pose, pompa, grandiosidade, apenas um enorme amor pelo humano. Na minha opinião, é uma alegria que tal livro seja o único que mereceu um feriado até hoje. Isto fala bem de nós.

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Este foi o esboço do meu roteiro. Na verdade, eu entremeei os parágrafos com várias perguntas ao Donaldo e ao Patrick, assim como com chamadas à excelente banda Irish Fellas. Tivemos belos momentos durante o Bloomsday do Instituto Ling. Concordamos, discordamos, ouvimos música irlandesa e tivemos a presença ‘in loco’ do próprio Leopold Bloom.

Com a minha autoestima tão retardada quanto meu cérebro, só hoje, pensando retrospectivamente, concluí que fizemos um belo trabalho juntos. Comandados pela Maira Ritter, o grupo que falou, cantou e atuou foi formado por mestre Donaldo Schüler, Charles Dall’Agnol, Patch Holloway, Irish Fellas, pela representante do Consulado da Irlanda Jill Henneberry e por mim. Ah, jamais esquecer das participações da Aurora, filha do Patrick (Patch Holloway), que aprendeu a caminhar faz uma semana e que parece estar gostando muito disso.

Com Gustavo Ventura Gomes, a Livraria Bamboletras também se fez presente com edições de ‘Ulysses’ e de ‘Sim, eu digo sim’ de Caetano W. Galindo.

E viva Joyce! Viva Ulysses! Vivam Molly e Leopold Bloom!

Fotos: Elena Romanov.