O Imprescindível na Música Erudita – Parte II

Continuando esta empreitada maluca e superior a mim

1722: O Cravo Bem Temperado (Vol.1) – BWV 846-869, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Um verdadeiro golpe de estado na música. O que Scarlatti fizera apenas instintivamente, Bach sistematizou. O império da separação rigorosa de tons maiores e menores começa aqui. A pureza de cada uma das tonalidades e a faculdade de se utilizar, em qualquer composição, todas as 24 tonalidades possíveis encontra aqui sua Bíblia. É uma profissão de fé a favor das tonalidades (ou temperamentos) iguais. A primeira das duas coletâneas de 24 prelúdios e fugas sob o estranho nome de “Cravo Bem Temperado” é um marco na história da linguagem musical. Trata-se de um manifesto sonoro. É a conclusão, o resultado de um século e meio de pesquisas, por meio das quais a música passou, progressiva e empiricamente, do sistema modal e de temperamento desigual, à estrutura sonora que foi utilizada desde o classicismo e romantismo até a época moderna. Só isso. Como se não bastasse, os 24 prelúdios e fugas deste volume 1 tornaram-se parte do repertório dos pianistas e cravistas por seus méritos musicais, além dos teóricos. Mesmo durante a época em que tantas outras obras-primas de Bach caíram no esquecimento, O Cravo Bem Temperado continuou a ser estudado e trabalhado por pianistas. Até hoje é assim. São modelos perfeitos de escritura polifônica para teclado. Muitíssimas gravações. Destaco as grandes e clássicas gravações de Wanda Landowska (cravo) e de Glenn Gould (piano), mas atualmente fico com a gravação maravilhosa e cheia de detalhes surpreendentes de Daniel Chorzempa (Philips, 4 CDs 446 690-2). Maurizio Pollini acaba se aventurar no volume 1 com excelente resultado.

1723: Magnificat – BWV 243, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Por que não dizer que são é a versão vocal dos Concertos de Brandenburgo, de tal forma esta música está impregnada de alegria e otimismo? Emoldurados por dois corais (inicial e final), seus movimentos são breves e de características emocionais bem definidas. É grande música; suave e etérea. Talvez tenha que pensar muito para encontrar outra música de tamanha simplicidade e exuberância. Em 1730, Bach revisou esta obra em latim, que é muito utilizada no Natal e na Páscoa pelas igrejas. Nos outros dias do ano, costuma ser ouvida em muitos templos profanos… como nossos apartamentos. A gravação da Naxos (8.550763) é barata e boa.

1723: Os Concertos para Violino – BWV 1041-1043 e 1052, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Minha mulher não deve ler isto, mas a verdade é que aqui está o melhor Vivaldi que se tem notícia. Bach passou anos estudando, transcrevendo para o órgão e arranjando os concertos de Vivaldi, Marcello e Corelli — compositores italianos que amava. Só que um dia o inevitável ocorreu: ele mesmo resolveu compor concertos italianos e os fez muito melhor que seus modelos. Há muitíssimas gravações excelentes desta música tão popular. Novamente indico a Naxos com seus CDs de bom preço. O Vol.2 dos Complete Orchestral Works (8.554603) é uma jóia. A regência é de Helmut Müller-Brühl e a orquestra é a Cologne Chamber Orchestra.

1729: A Paixão Segundo São Mateus – BWV 244, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior obra de Bach? Talvez. É tão dramática quanto os Oratórios de Handel, sobretudo nos coros do povo, curtos e incisivos; é da mais profunda e sincera emoção religiosa, “capaz de converter um ateu”. Seria preciso escrever muitos posts para dar idéia do terreno em que acabo de entrar. Trata-se de uma obra colossal, síntese incomparável da mística gótica, da devoção luterana e da inspiração dramática do barroco. E é, acima de tudo, acima mesmo de qualquer determinação estilística ligada a este ou àquele período histórico, como uma mensagem que nos chega de um outro mundo que por misericórdia se digna a falar nossa língua. É a Revelação , no sentido bíblico. E aqui escreve um ateu. Dois coros (mais um de crianças), duas orquestras, dois órgãos que se respondem de partes distantes da igreja – herança dos venezianos, novamente – solistas vocais e instrumentais. As árias desta música… Se começo a descrever não paro mais. Aqui serei mais firme: penso que a melhor gravação seja a que John Eliot Gardiner fez para a Archiv com The Monteverdi Choir, The London Oratory Junior Choir e The English Baroque Soloists (427648-2). É cara.

1730: Sonatas para cravo, de Domenico Scarlatti (1685-1757).

Quando alguém fala em Scarlatti, está se referindo ao pai, Alessandro, e não a Domenico, o filho. Este homem tímido escreveu 555 pequenas sonatas de um movimento para cravo e não precisou de mais nada. Durante os dez anos em que esteve ligado à corte portuguesa como mestre de capela e professor de música da jovem princesa Maria Bárbara, D. Scarlatti compôs quase toda sua obra. Há indícios de um “caso psicológico” aqui. Enquanto seu pai era vivo, Domenico escreveu óperas sem importância; depois da morte de Alessandro, enveredou por caminhos totalmente diversos e tornou-se um grande compositor. Maria Bárbara — que depois tornou-se rainha — salvou seu professor do anonimato, fazendo publicar, para seu uso pessoal, os 13 volumes das famosas sonatas, que hoje estão fora de moda. Por quê? Não sei. Entre os anos 70 e 80 gravava-se D. Scarlatti aos borbotões. É música de primeira linha, alegre, onde soam as expressões mais íntimas ao lado dos sons das festas populares ibéricas. As gravações que Ralph Kirkpatrick e Gustav Leonhardt fizeram das sonatas são extraordinárias. Difícilmente alguém encontrará melhor introdução à música erudita do que as belas sonatas no esquecido Scarlatti.

1731: Cantatas BWV 80 e 140, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Poderíamos passar horas discutindo sobre a melhor das Cantatas de Bach. Há para todos os gostos, mas, além da que já destaquei, tenho que citar estas duas. A espetacular BWV 140 trata da parábola das virgens prudentes e imprudentes, mas ouça antes de rir… O coral central (o famoso Coral dos Tenores) é esplêndido. À melodia do hino que é entoada pelos tenores junta-se uma melodia completamente diferente vinda dos violinos. É de uma doçura raramente encontrada nas cantatas de Bach: aí se descreve a graciosa procissão das donzelas saindo ao encontro de Jesus, o noivo celeste. Já disse, ouça a música antes que seu sorriso se congele. É uma obra-prima! A BWV 80 é uma festa e foi escrita para isso mesmo. Foi ouvida pela primeira vez no Festival da Reforma de 1724 e revisada depois. É música absurdamente bela, cheia de contrastes em que os temas de Bach cantam poemas do próprio Lutero. Um espanto! Só ouvindo. O primeiro coral e a primeira ária (dueto) são inesquecíveis. São cantatas facílimas de achar. A Naxos tem uma grande gravação da BWV 80, mas não sei se ela gravou a BWV 140.

1736: Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).

Morreu aos 26 anos. Dizem que era muito bonito e um conquistador inescapável. Uma lenda conta que um marido ciumento o envenenou. Mas outros o descrevem como feio e aleijado. Não dá para saber. Seu Stabat Mater é muito gravado e executado. Também é de pouca profundidade emocional e NUNCA deve ser ouvido após qualquer obra de Bach. Mas é tocantemente lírico e tem muitos admiradores, inclusive eu. É bonito. A polifonia passa longe de Pergolesi — ele é um melodista e, talvez, um compositor de óperas nato –; os críticos hostis gostam de lembrar que sua grande obra seria a ópera-cômica La Serva Padrona, mas isto só a Claudia, minha mulher, pode avaliar. A ópera é terreno dela. Estou fora. A gravação de 1985 de Claudio Abbado com a London Symphony Orchestra é impecável.

1738: Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior. A campeã. Ler aqui.

Paro ao examinar quais seriam as próximas músicas. São duas obras que mereceriam posts exclusivos, assim como a Missa em Si Menor acima: o Messias, de Handel, e as Variações Goldberg, de Bach.

Bibliografia além da memória:
– Encartes de milhares de CDs e vinis.
– História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin. Editora Nova Fronteira, 1997, 1256 págs.
– Johann Sebastian Bach, de Karl Geiringer. Jorge Zahar Editor, 1985, 366 págs.
– Uma Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Alhambra, 1977, 356 págs.

16 comments / Add your comment below

  1. Eu assim longe de casa nem sei comentar. Que o JS Bach gostava de Vivaldi, parece que sim, e bastante (aliás fez transcrições dele e tudo), e é irónico que Vivaldi só tenha sido ‘descoberto’ em pleno século XX — e só agora se começa a descobrir o Vivaldi compositor de ópera e outras obras vocais, magníficas. Do Cravo Bem Temperado só conheço a versão do Glenn Gould e é de facto uma maravilha. O Cravo Bem Temperado é também uma demonstração de que é possível tocar peças em qualquer tonalidade num instrumento de tecla. Houve alguém nessa época que inventou o ‘temperamento’ — uma maneira de afinar um cravo, p.ex., de modo a que com essa afinação fosse possível tocar qualquer peça. Antes disso o cravo era afinado para cada tonalidade em particular — p.ex. se a peça era em dó maior era afinado duma maneira, se era em ré sustenido menor doutra, etc. Isto porque os 12 intervalos da escala não são rigorosamente iguais — um dó bemol não é bem a mesma coisa que um si sustenido. Enfim, pormenores técnicos à parte, o JS Bach quis mostrar que não era preciso estar sempre a afinar o cravo. Do Stabat Mater de Pergolesi tenho a versão do André Jacobs, que tem a particularidade de o soprano ser feito por uma criança em vez de uma mulher. O resultado é surpreendente. As obras vocais do JS Bach, confesso que não tenho ouvido, fora as tais cantatas profanas de que já falámos. Tenho lá em casa muitas mas nem sei os BWVs. Quanto às sonatas de Scarlatti, tenho uma história. Há 3 anos tive o privilégio de ouvir ao vivo o Pierre Hantaï, uma espécie de superstar do cravo actual,e foi muito engraçado porque ele comporta-se como uma estrela de rock, uma espécie de guitar-hero. O Scarlatti compôs centenas dessas sonatas, penso que perto de mil. O Hantaï nunca anuncia o programa: chega com um monte de folhas, tira uma ao acaso, olha, pega outra,olha, e desata a tocar, e assim sucessivamente. O concerto não tem duração definida, é conforme a vibração que ele tem com o público, pode ser horas. Bem, e ouvindo as gravações que ele tem feito para a Mirare fica-se com uma ideia — acho que nunca ouvi nada assim, no som, no virtuosismo, na expressividade. Parece-me que a geração de músicos barrocos que se seguiu à do Leonhardt é extraodinária, sem tirar o devido mérito ao mestre e precursor.

  2. Perdão, devem ser as tais 555 sonatas se não apareceu mais alguma entretanto. E já agora acrescento que o Domenico teve como discípulo o mais famoso compositor barroco português, Carlos Seixas, também cravista.

  3. Meu caro: Postagem maravilhosa. Concordo com a sua análise geral, sempre pertinente. Aliás, de minha parte, preciso retomar ‘Os clássicos da música clássica’. Em se tratando d’O cravo, não conheço a gravação de Daniel Chorzempa. Mas sou apaixonado pelas versões de Gustav Leonhardt e Kenneth Gilbert. Também gosto bastante da interpretação de Landowska. Gosto menos das versões pianísticas de Glenn Gould. Quanto às Cantatas, minhas preferências no momento recaem na 140 e na 106. Mas todo o conjunto é primoroso, não? Não conheço as gravações da Naxos. De resto, parabéns pela série. Um grande abraço.

  4. Aula de culinária

    – Como vimos, não basta diluir o curry na manteiga; é imprescindível, antes, temperar o frango com sal e pimenta do reino moída na hora; picar o coentro, o hortelã e a salsinha para polvilhar no final, mas antes isso acrescenta-se o cravo, deixando o fogo baixo, para o cozimento por mais dez minutos.
    A aula é apenas teórica, ilustrada por imagens de PowerPoint; a professora acena para a tela, faz gestos com a mão como se estivesse cortando ou picando ingredientes.
    – Não usamos cebola e alho?
    – Podemos usar ambos, mas esta receita prescinde desses elementos mais usuais na culinária portuguesa. Para o frango assado com tempero oriental não recomendamos mixar elementos de outras culinárias, embora isso possa ser feito no contexto de uma preparação mais… contemporânea.
    Para mitigar o silêncio e preencher os momentos mortos, de duas caixas de som postas nos cantos superiores da parede que sustenta a tela ouvem-se acordes de uma música indistinta. Mas um aluno distraído ouve esse fundo sonoro com atenção, até descobrir o que está tocando: mais uma vez, jazz, essa música para embalar tédio burguês! Ele faz um esgar de nojo que os demais alunos confundem, pensando tratar-se de rejeição ao prato. Pensando bem, esse prato é muito do ordinário. Combina com a música.
    A professora passa para nova ilustração, de outro clássico da culinária, dessa vez alemã. Quando vê as pálidas batas descascadas, o aluno distraído mentalmente evoca um cesto cheio de cajus.

    1. Pois é, este é um post do blog anterior que revisei. Puxei alguns comentários que achei legais com tudo (site, e-mail, o diabo), mas ele insiste em dizer que sou eu.

      O pior é que tem parte de razão, só que não escrevi nada do que está acima.

      Deixa ele.

    2. Sr Marcos Nunes,
      estou aqui com alguns pinhões de Cabo Verde, que comprei em maio passado.
      Será que o senhor teria alguma receita para salvá-los?
      Prezado mestre-cuco,
      quero doá-los para alguém que, digamos, necessito eliminar do planeta.
      Sem mais para o momento,
      desde já agradeço sua dileta
      atenção.

      Cebolinha Conceição

      1. “Lave os pinhões em água corrente e coloque-os numa panela de pressão. Cubra-os com água até que passe uns 4 dedos da altura dos pinhões, tampe a panela e leve ao fogo. Depois que a panela começar a chiar é só marcar uns 40 ou 45 minutos e desligar o fogo. Espere esfriar e escorra os pinhões, uma vez escorridos é hora de descascá-los. Pode jogar as cascas fora.

        Bata as castanhas do pinhão no processador para triturá-las. Derreta a manteiga em fogo baixo com uma panela não muito grande e misture o pinhão triturado. É só misturar mesmo, se você deixar fritar o pinhão fica duro. Tempere com sal e noz moscada.

        Está pronto o recheio do seu pastel. Agora é só caprichar na hora de rechear a massa e fritar!

        Dica: Misture um pouco de queijo prato ralado na metade do pinhão”

        P.S.: Se o caso é de assassinato, misture arsênico em dose regular para atingir o efeito final; não esquecer de envier os pastéis por via aérea.

  5. Salve, Milton! Há tempos não apareço aqui nos comentários, mas sempre acompanho o tanto de coisa boa que você publica por aqui. E pelo tema não resisti em comentar o que você levantou, já que citou várias obras necessárias para entender e sentir o barroco em sua essência. Sobre a Paixão Segundo São Mateus, permita-me discordar sobre a melhor gravação: em minha humilde opinião, considero o recente álbum do Philippe Herreweghe a mais bonita versão (e bem ilustrada também, pois vem com um cd multimídia). Destaco nela a ária “Buß und Reu” da primeira parte, cantada pelo fantástico contratenor Andreas Scholl. O sinuoso contraponto das flautas dialogando com sua voz soa tão sensual, apesar da letra ser uma flagelação do início ao fim. Curioso que quando a assisti ao vivo pela primeira vez, ela foi interpretada por uma cantora mulher. Funcionou, embora prefira bem mais a tessitura ambigua da original. Não tem mesmo melhor referência de Domenico Scarlatti do que as gravações de Leonhardt, responsável não só pela sua difusão nos repertórios de música de câmara, mas também de outros compositores incríveis desse gênero, como os franceses Couperin e Rameau. Sei que nunca irá superar o timbre original do cravo, mas minha aproximação com a obra de Scarlatti se deu graças às transcrições para violão feitas dos anos 70 para cá. para duo de violões, várias das sonatas funcionam muito bem. Minha sugestão são a gravação do duo formado pelos irmãos cariocas Sérigo e Eduardo Abreu, feita na Inglaterra. Além da originalidade da releitura, o que impressiona é o perfeccionismo sobrenatural desses irmãos que são considerados até hoje o melhor duo de violões que já existiu. Grande abraço e obrigado pelo post, Milton!

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