Relato de uma Viagem à Itália (I)

Vou viajar amanhã no final da tarde e retorno quarta-feira, logo após o Carnaval. Tenho muitos trabalhos pendentes — vocês podem notar isto pela forma como NÃO tenho respondido aos comentários, apesar de lê-los, viu Charlles? Então, usarei estes dias para republicar uma série de posts muito agradáveis a mim. Tudo se passou em 2005 e quem leu a série na época achou legal. Até me propuseram um livro, mas não levei a sério.

Mas começamos por Madrid. Chegamos à cidade na manhã do dia 25 de novembro. Descobriríamos depois o quanto o aeroporto de Barajas poderia ser caótico, mas às 6h da manhã ele ainda estava tranqüilo. Emergimos do metrô no centro de Madrid, perto do Museu do Prado. Foi uma visão desconhecida e meio fantasmagórica: era noite ainda, estava um frio de rachar e pudemos ver a cidade amanhecer enquanto passeávamos pelas ruas próximas ao Museu. Já manhã clara, entramos num simpático café onde consumimos sem arrependimento 11,20 euros numa refeição cuidadosamente imitada aos madrilheños presentes. A Claudia faz sempre questão de mimetizar-se com os habitantes da cidade, de ir aos lugares onde eles vão, de pegar os ônibus e metrôs deles e de conversar. Sábia, ela.

O Museu abre às 9h e pegamos uma fila cheia de japoneses. O ingresso custava 6 euros e tínhamos insuficientes 2h30 para percorrê-lo, já que às 11h30 nos encontraríamos com Nora Borges na porta norte do Prado. Não me decepcionei com os esperados Velasquez e Goyas, porém minha surpresa maior foi a de ter encontrado lá importantes quadros de Bosch, Brueghel e Dürer. Minha estupenda ignorância não os imaginava ali. Se houve um momento mágico, foi quando olhei para um canto e vi O Triunfo da Morte de Brueghel.

Detalhe

Foi um soco no peito. Aquela visão inesperada poderia me deter por horas naquela sala, mas segui adiante e — nova surpresa — dei de cara com o tríptico O Jardim das Delícias de Bosch (ou El Bosco, como indicava a ficha).

Detalhe

Uma maravilha para se examinar longamente, sentado no banco que há para esta finalidade frente ao quadro. É um quadro (ou são três?) de dimensões muito menores do que eu imaginava, apesar das centenas de detalhes. Esperava Goya e Velasquez, mas meus primeiros pasmos foram para “estrangeiros”. Sobre Goya: apesar de tudo, nesta curta visita, minhas preferidas foram as salas dedicadas a ele. Sabia que isto iria acontecer. Ele sempre conta histórias que me interessam. É um narrador e Alejo Carpentier tinha razão quando dizia que, para inspirar-se, bastava olhar para um trabalho de Goya e imaginar o que aquelas pessoas pensavam, como viviam, como se divertiam e o quanto sofriam.

Detalhe

Às 11h30 em ponto estávamos na tal porta norte. Reconheci a Nora de longe. Veio sorridente, abanando para nós. Estava na companhia de seu marido Pepe e logo deu para ver o quanto ela NÃO é fotogênica. Ao vivo, é uma mulher muitíssimo mais bonita; é alta, alegre, viva, daquelas nas quais os movimentos só vêm aumentar os atrativos. Minha irmã já tinha me falado a respeito e pensei que o Pepe, quando a viu no Recife, deve ter planejado imediatamente sua imigração. Ele queria saber como ela tinha me reconhecido com tanta facilidade e ela respondeu:

— Ora, ele é a Iracema de barba!

Tá bom, Nora.

Passamos inteiramente às mãos — ou aos pés — do Pepe. Depois de termos conseguido um calçado adequado à Claudia, ele comandou uma pedestre e espetacular visita relâmpago à Madrid, inteiramente voltada aos monumentos históricos e, principalmente, à gastronomia. Começamos num bar cuja visão exterior era esta:

Estou ali no meio, acho

Bebemos vinho e comemos tapas. Pepe explicou-nos a história das tapas espanholas. O Rei Afonso X, El Sabio, sabia mesmo das coisas. Tinha mais a ver com a Claudia do que com nosso Afonso. (Nada como uma agressão gratuita para manter a forma…) Ele, o Sábio, simplesmente proibiu que o vinho fosse servido desacompanhado de alguma coisa para comer. O motivo? Ora, evitar as brigas de bêbados diluindo álcool à proteína e ao amido. Então, por lei, o vinho passou a ser servido juntamente com pães, batatas, berinjelas, croquetes, calamares, outros frutos do mar, etc., que se tornaram parte da arte gastronômica espanhola e que eram entregues ao cliente num prato que cobria o copo, tapando-o. Daí, o nome tapas.

… el Rey Sabio dispuso que en los mesones de Castilla no se despachara vino si no era acompañado de algo de comida, regia providencia que podemos considerar oportuna y sabia para evitar que los vapores alcohólicos ocasionaran desmanes orgánicos en aquellos que bebían….

Depois, continuamos as caminhadas com estratégicos e oportunos pit stops gastronômicos. Um para a cerveja, onde a Nora tirou esta bela foto de nós três (o Pepe fora),

Eu, Claudia e a Nora (refletida)

o seguinte para comer numa das Cuevas Luís Candelas – El Mesón de la Cava -, onde a comida e o vinho eram tão fantásticos que comi com gosto até umas imensas azeitonas – detesto azeitonas, ninguém é perfeito. Detalhe: eu não lembro do que comemos. (A Claudia esclarece: morcilla – com incrustrações de arroz! -, cogumelos, pimientos, azeitonas, jamón, pães – aqueles grissinis gordinhos e compridos – e sabe-se lá mais o quê). Lembro apenas que estava maravilhoso e só posso transcrever a frase do Gejfin: “Amigos, tudo”. O vinho auxiliou-nos a recortar e a pôr sobre a mesa alguns retalhos do sempre renovável tecido da delicadeza. Conversamos muito, falamos sério e rimos como velhos amigos, contamos histórias, dissemos um monte de besteiras e saímos dali para a Nora comprar o presente do Tiagón e presentear a Claudia com um livro de receitas de tapas. Literalmente, amor à primeira vista de todos para com todos.

Voltando as cuevas: elas são locais belíssimos e misteriosos, tudo – paredes, chão e teto – é feito de pedra e está assim desde… durante los años 1825 a 1837, por su constitución y sus múltiples salidas al exterior, sirvieron de guarida y cobijo a los célebres bandidos capitaneados por Luís Candelas. En la actualidad se conservan en gran parte tal y como fueron usadas por aquel bandido.

A Entrada das Cuevas

Antes de nos deixarem em Barajas, ainda tomamos café num bar e conhecemos o bar, a mesa e a cadeira da vinoteca em que minha irmã… (censurado) …tornando-se uma das principais atrações e local de peregrinação da capital espanhola.

Despedimo-nos lá pelas 18h e, na fila do check-in para Roma, conversamos sobre a certeza de que veríamos aqueles dois novamente. A existência simplesmente não pode ser algo tão injusto que permita ter sido este nosso primeiro e último encontro.

O pentelho sempre dá um jeito de entrar num sebo

5 comments / Add your comment below

  1. Comentários quando da primeira publicação:

    Milton viajandão Putz, gostaria imensamente de comentar cada detalhezinho de sua viagem, na verdade compartilhar impressões e sensações, pq visitar o Velho Continente é algo transcedental e por isso merece uma conversa olho no olho, amostra de fotos e souvenires de viagem… deixo isso para quando vc vier a SP (ou eu for para POA) Só passei por aqui pra te dar um abraço, e aproveito a oportunidade para também tirar, de uma vez por todas, a má- impressão que você teve de mim em nosso primeiro encontro(que afinal, dizem que é a que fica…que lástima!): EU GOSTO DE BERGMAN… (eu só dormi em Morangos Silvestres, mas Gritos e Sussurros e o Sétimo Selo estão entre os meus filmes prediletos ever!) Hahahahaha…beijocassssssssss
    Gabs Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 17 2005

    Ei milton!! sem querer ser chato mas ja sendo, vim cobrar o comentario do ”messias” de handel q voce ficou de fazer!! Faz muito tempo que não vejo o blog comentando de música!!Ou voce ja escreveu sobre?
    André Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 11 2005

    Ah, Madrid, Madrid. A civilização. Deixando a pretensão e a frescura de lado, enfim: PUTA TESÃO DE CIDADE, CARALHO. Pronto, passou. Mas eu quero ir pra lá de novo. Logo. E conhecer a Nora e o Pepe Legal.
    Renato K. Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 9 2005

    Não, não será MIlton. No próximo encontro, estaremos todos juntos. Quer apostar. Delícia de viagem e vc pelo visto, nunca engorda nada. Beijão e saudades.
    Mônica Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 9 2005

    olha, esqueci: tem uma pré-resenha do Blog de Papel lá no http://www.condominiobrasil.com Estive no lançamento do Rio, amei e o livro está uma tetéia.
    adelaide Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 8 2005

    Milton, oh, Milton, você me deixou com água na boca, a do corpo e a da alma. Lembrei de quase tudo, morri de saudade, vontade danada de voltar lá, agora conhecendo a Nora. Nunca dá tempo de ver o Prado inteiro. Estivemos lá duas vezes e sobrou muita coisa que merecia mais contemplação. Mas numa coisa você tem toda razão: J. Bosch é divino, surpreendente e inigualável. Pensa no tempo em que ele pintou aquilo tudo, que por si só já é um prodígio. Deixei lá no Umbigo uma explicação sobre o prêmio de Glória. Dá uma olhadinha. Beijos e obrigada pelo post.
    adelaide Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 8 2005

    No penúltimo parágrafo você poderia de escrito alguma citação bíblica, como na época da Ditadura Militar. Há muitos anos, na primeira chegada ao aeroporto de Madri, o que me espantou foi procurar a alfândega e dar de cara com a rua. Noutros aeroportos, como no de Lisboa, cheguei a ter a bagagem resvistada duas vezes! O Prado é a maior pinacoteca existente. Eu incluiria El Greco entre as maravilhas citadas por você, contudo, em termos de pinturas, nada me impressionou tanto quanto Saturno.
    Manoel Carlos Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 8 2005

    Oi, Milton. É uma delícia viajar contigo, através de teus escritos e ilustrações: cultura! Adorei. Bjinhos e sejas feliz, sempre!
    Violet witch Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 8 2005

    Se te serve como elogio, senti-me como lendo um dos posts da Nora, que nos fazem viajar juntos. Há um livro, “O Mal no Pensamento Moderno”, da filósofa alemã Susan Neiman, que desmistifica a imagem de que Afonso X tenha sido merecedor da alcunha de “O Sábio”. Tanto que seu filho Sancho descumpriu os desejos expressos por seu pai, em testamento, de que seu coração fosse enterrado no Monte Calvário, e o deixou “para apodrecer em Sevilha junto com seus outros restos”. “… muitos historiadores posteriores afirmaram que as obras por ele patrocinadas foram responsáveis pela ignorância e pela barbárie que alegavam ter-se espalhado pela Espanha”. O cara foi, na verdade, terrível. Acusado de heresia por imputar a Deus a maldade do mundo, foi devidamente “destruído”, anos mais tarde, por Leibniz. De qualquer forma, não fora ele, eu não seria D. Afonso XX, já que para ser XX deve haver um X, hehehehe. abs
    D. Afonso XX o Chato Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

    Milton, por enquanto estou acompanhando as tuas aventuras e adorando o relato. Mas confesso que estou meio preocupado com o que vem por aí. Lembre-se meu amigo que eu posso ter romanceado tua história, mas não contei tudo tudo tudo. Mas voltando ao post. O que voce passa é o que também penso a respeito do prazer do encontro. Nessa curta vida o importante é estar junto de quem entendemos e que nos entende. Basta estar junto e a chama se acende. Como já disse no meu post, espero que voces voltem. Um abraço.
    Flavio Prada Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

    Milton! Adorei o “post”!Posso imaginar estas duas horas e meia de puro encantamento dentro do museu do Prado. Vale muito a pena ir até lá. Vale mais ainda estar com estes dois queridos amigos que conheci através do teu blog. Deve ter sido uma dia inesquecível! Agradeço pela delicadeza e discrição dos … Hoje não vou me incomodar pois estou em estado de graça depois de assitir o Madredeus. Ah! eu tive a mesma sensação de que um dia reencontrarei estas pessoas tão especiais que são Nora e Pepe. Beijos Iracema
    iracema Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

    Milton, você escreveu de dar água na boca. Mas Madrid é assim mesmo, cheio dessas surpreendentes alegrias, pelos cantos e esquinas, seja das ruas ou dos museus, das Cuevas ou das Plazas. Estar com vocês foi bárbaro. Obrigada pelos elogios (rosinhas flores!) e esperamos mesmo que vocês voltem logo com mais tempo pra gente poder aproveitar muito mais. Um grande beijo para ambos!
    nora borges Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

    Sabia, por Nora. de poucas coisas. Mas te ler Milton só faz aumentar a vontade de ver Nora, de te ler sempre. Sou sumida mas volto, sempre volto. Diacho que Silvia me disse – tu veio pra cá lançar livro… e eu que nem soube… droga, droga, droga!!!! MAs aidna caço Ese seu livro, Diga onde tem que por aqui ainda não vi. Beijos de saudades grandes Odila PS: Reli… alias tua felicidade sempre saem, transbordam pelas tuas letras
    Maria Odila Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

    Milton, os bons posts de viagem são aqueles que nos dão vontade de estar lá junto com vocês… E o seu é desse tipo, sem dúvida alguma. A Nora pode não ser fotogênica, mas pelo blog dá para sentir que ela é uma pessoa fascinante. bjs,
    Leila Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

    Olá Milton, Achei seu blog porque estou lendo Fausto do thomas Mann, e vc escreveu sobre ele em 2004. O livro é apaixonante, e já vou lá pela cena com o diabo. No entanto, a falta de teoria musical me fez muita falta – principalmente com as aulas do começo – e me dispertaram enorme curiosidade. Alguma chance de, em rápida leitura, eu entender um pouco mais sobre musica? Muito agradecido, e adorei o ‘post’ como se diz.
    Raoni Relato de uma Viagem à Itália (I) Dec 7 2005

  2. Leve um ramo de arruda, uma pata de coelho, uma pitada de sal pra tacar por sobre o ombro, e vista a cueca da sorte para se livrar da INVEJA…Pô, tô no plantão neste feriado e trabalharei que nem uma mula de carga.

    Abraços!

Deixe uma resposta