Dostoiévski ou Tolstói?

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Ontem, um comentarista, que se identificou apenas como Pedro, me provocou com esta pergunta clássica. Começo respondendo que não acho lógica uma comparação entre seres humanos e romancistas tão diferentes entre si — seja nas posturas, seja nas vivências de cada um — , ao mesmo tempo que sei que nada é mais lógico do que comparar dois contemporâneos importantíssimos, como hoje fazemos com Saramago e Lobo Antunes, por exemplo. Outra mania que desejo evitar é o elogio de um para desvalorizar o outro. Este gênero de mau elogio fica melhor em jornais de província. Eu posso gostar de Drummond e João Cabral e, se elogiar este, não estarei menoscabando aquele. Talvez as pessoas gostem de comparar os dois russos pelo amor de ambos aos grandes painéis. Seus romances eram tudo: psicológicos, sociais, filosóficos, picarescos, metafísicos (no caso de Dostô) e tão grandes que empurraram as fronteiras dos gêneros para poderem se acomodar dentro delas.

Gosto de ambos por motivos muito diferentes. Tolstói talvez seja o maior de todos os narradores clássicos — por que não recebeu o Nobel se faleceu em 1910, hein? Seus romances são perfeitos, têm ritmo, excelente prosa, envolvem. Se o tivesse de comparar com alguém, seria com Turguênev ou com certa parte da obra de Tchékhov. A Morte de Ivan Illich não seria uma antecipação de Thomas Mann? Em minha opinião, sua grande obra é Anna Kariênina, além dos contos e novelas. Guerra e Paz é uma obra-prima, mas aquele epílogo semi-ensaístico é um saco, atrapalha todo o livro. Porém, enquanto Tolstói chegava ao ápice da forma clássica, Dostoiévki já sinalizava que aquilo estava ultrapassado.

Sim, notem a diferença fundamental de foco narrativo utilizado pelo dois canônicos russos. Tolstói era o típico narrador onisciente que, apesar de detalhista, não era capaz de abandonar sua posição aristocrática, o senso comum de sua época e o certo e errado da concepção cristã do mundo. Já Dostô, quando comparado a Tolstói, parece um alucinado. O narrador de Dostoiévski localizava-se sob a pele dos personagens, saltando de um para outro, deixando-se reger de tal forma por suas lógicas (ou loucuras) que fazia sumir o narrador-julgador. Não se sabe muito bem quem representa Dostoiévski em seus livros. Ele é cada personagem e o livro parece andar por si.

Tolstói tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados. O acabamento era fundamental para clássicos como ele e Mann. E Tolstói não tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados, pois livros como Crime e Castigo e O Idiota são sôfregos, nervosos e tão viscerais que, sob o filtro de Tolstói, se transformariam em outra coisa. Quem pensa em acabamento quando quer descobrir quem matou o velho Fiódor? E quem criticaria o acabamento absolutamente impecável da Parábola do Grande Inquisidor — apenas para me referir a dois temas de Os Irmãos Karamázov? Ora, Dostoiévski não estava preocupado com o acabamento porque as regras vigentes da beleza literária o atrapalhavam; porém, quando precisou, fez uso delas brilhantemente. Na verdade, uma das últimas preocupações que temos ao ler Dostoiévski é com o acabamento. Os personagens de Tolstói sofrem com dignidade, os de Dostô berram e se escabelam. Não obstante, o horror metafísico que cresce de O Idiota não fica nada a dever ao de Ivan Illich, até pelo contrário.

Enquanto Guerra e Paz é um panorama, Os Irmãos Karamázov aponta para o fim de uma era, como Dostô já fizera em Os Demônios. Tolstói é um burguês, Dostô pensa num apocalipse. Céus, são muito diferentes. E muito bons.

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34 comments / Add your comment below

  1. Só uma palavra: sensacional!

    Se eu soubesse, Milton, que um comentário meu renderia um texto tão bom, teria-o feito há mais tempo, muito mais do que acompanho o blog.

    Mas confesso que, a bem dizer, a pergunta não foi exatamente uma provocação; era antes uma forma de saber a visão de quem realmente leu os dois, porque, honestamente, sinto-me farto dessa gente que leu-os por tabela e fica palpitando com falsos aportes. Ora, eu mal acabei os três citados do Tolstói e os dois principais do Dostô, tirante “O Idiota”, mas, mesmo assim, não poderia emitir um juízo tão claro e exato, já que estava metabolizando-os; ainda que tivesse formado várias ideias sobre eles, pela experiência em leitura.

    Mas suas palavras foram – sem demagogia – um exato resumo do que eu havia percebido, grosso modo. O classicismo de Tolstói não tem a ver com a antecipação da modernidade (narrativa, filosófica, psicológica) de Dostô. Como diria o velho Chico, nem toda loucura é genial assim como nenhuma lucidez é velha. Ainda bem que os dois existem!

    E, mais uma vez, sensacional.

    1. Obrigado, Pedro.

      Não creio que tenha sido tão sensacional… Escrevi às pressas ontem à noite. É que são autores muito, mas muito importantes e um cara de meia idade já pensou aqui e ali bastante a respeito. É óbvio que agora me ocorrem um monte de ideias, mas estou sem tempo!

      Disse “provocação” porque me senti, digamos, “instado” e escrever algo a respeito.

      Abraço.

  2. Eu compreendo perfeitamente o que você quer dizer com “o narrador de Dostoievski localiza-se sob a pele dos personagens”. Na realidade, gostaria de inverter a frase e dizer que Dostoievski era um narrador que virava-se do avesso, mostrando sua carne na pele de seus personagens. Enquanto Tolstói, num conto incrível chamado “O Diabo”, narra em 3a pessoa, sobriamente, sua grande paixão de juventude, Dostoievski vive “Sonho de um Homem Ridículo” deprimido e delirante, em 1a pessoa. Embora domine a narrativa e a construa majestosamente, Tolstói parece não compreender os mecanismos psicológicos de seus personagens. Dostoievski os explora e exibe, quase que à exaustão, atrás de seu significado mais íntimo. A Tolstói muitas vezes escapam os significados, mas Dostoievski, depois de abraçar o diabo com muito mais vontade do que Tolstói, os compreende à perfeição. Para mim, a leitura do último sempre foi mais penosa, demandou mais esforço e concentração, enquanto que o primeiro tenha um ritmo mais natural. Talvez resida no fato de que a viagem ao personagem, com Dostoievski, seja uma montanha-russa mental, enquanto que com Tolstói seja a visita a um grande mural.

    1. Talvez Tolstói seja tolhido por sua própria concepção literária, não? Há coisas deselengantes de se dizer… Mas Dostô as dizia — e se debatia.

      Ontem, quando escrevi “sob a pele”, queria dizer “under the skin”, numa referência atravessada a Cole Porter, que nada tem a ver com isso… Então, tratei de esconder um pouco a fonte da expressão.

      Enfim, infelizmente tenho que trabalhar…

  3. Só para estender: não creio que Tolstói não tenha percebido os significados de seus personagens. “A Felicidade Conjugal” é um exemplo disso. Acho que, no fundo, além de ser questão de estilo, uma escolha, diz respeito também à sua própria formação, pois vale lembrar que ele era descendente da aristocracia russa. Seu espírito era clássico, moldado nos moldes da literatura francesa e alemã, diferente de Dostô, que, toscamente falando, passou muito mais dificuldades na vida. (A própria história da criação de “Crime e Castigo” mostra isso). É um discurso meio demagogo, eu sei, mas que não pode deixar de ser pensado.

    Os dois formam um pêndulo perfeito: tradição x modernidade, ainda que essas características possam se misturar nos dois. Mas acredito que ambos eram conscientes de seu ofício. Nada foi de graça.

  4. Li mais Dostô do que Tolstoi. O cristianismo do último me deu uma certa preguiça (sim, eu sou preconceituosa), por isso nunca tive curiosidade de partir pras grandes obras dele, como Guerra e Paz.

  5. milton, dou-me a licença de te perguntar – antes de ler esse post de título mais do q chamativo – se viste O segredo dos seus olhos, ali no guion de poltronas novas. q filme! q filme! espero post!

    [agora vou ler esse aqui]

  6. li só o Dostô. Ana Karênina (q eu sempre li anna kareNIna) é, ainda e infelizmente, só um nome q não sai da minha cabeça desde A insustentável leveza do ser, o primeiro livro q realmente me chamou atenção.

  7. Procurei na pilha de “EntreLivros” que tenho aqui em casa, mas não achei uma nota miúda que um dos editores escreveu sugerindo a tradução urgente de um livro cujo título, ou é o do post, ou deriva pouquíssimamente.

    Dostoiévski é melhor. Era difícil dizer isso até pouco tempo, mas a releitura de “Os Demônios” que estou realizando (se me permite, Milton, para a composição do post que há dias você me ofereceu), e a memória de um ensaio sobre o assunto escrito por Joseph Bródski, me convenceu disto. Então, me parece claro essa resposta, assim como, depois de anos de recusas, sofrimentos e embates, também posso responder a outras questões da mesma estirpe: McCartney melhor que Lennon; Beethoven melhor que Mozart; Lobo Antunes melhor que Saramago (ao menos até antes dele se lançar nestes terríveis romances de parágrafos desalinhados); Feline melhor que Bergman; Morenas melhores que loiras, e, a mais difícil, pão de queijo melhor que bolo de queijo (se comido na hora que sai do forno, acompanhado de café forte e amargo).

    Nabokov, ao organizar uma coletânea de trechos de autores russos, foi barbaramente criticado por não inserir nada de Dostoiévski. Respondeu que não há nenhuma página do grande russo que possa ser memorável. Apesar de não suportar o ego que Nabokov mostrava nas entrevistas, concordo com ele. Dostoiévski consegue um feito raro, só igualado, em níveis diferentes, por Charles Dickens: a de ser um excelente escritor cuja pena sofre de capenguice estética, e cuja força está na impressão espiritual empregnada na escrita. Niestche respeitava Dostoiévski, e numa passagem do Zaratrusta, escreve: “Só merecem ser lidos os livros escritos com sangue”. A cada página do russo fontes de sangue, dor, ternura, contestação, inquietação, ausência contumaz da Ultima palavra…Por isso a obra de Dosto é indivisível; uso sublinhar os livros que leio; Dostoiévski deve ser sublinhado da primeira á última página.

    Brodsky faz uma distinção extremamente arguta sobre a influência de Tolstoi e Dostoiévski no século XX. Tolstoi foi inteiramente absorvido como modelo absoluto pelos escritores soviéticos. Era o homem perfeito, gigante que se apartou da sociedade para promover sua forma pessoal de comunismo (um anarquismo cristão), o maior esteta da literatura russa, equilibrado, límpido; como todos os grandes pensadores tomados como insígnia por um sistema político, suas ricas e complexas nuances espirituais foram descartadas para tornar assimilável apenas a simploriedade aparente que servia ao partido, e seu equilíbrio ebuliente foi propagandeado como exemplo de submissão. Cholokov, o escritor soviético de primeiro time (é realmente admirável o seu romance “O Don Silencioso”), é o protótipo do novo Tolstoi: resolvido interiormente, em paz com seus fantasmas, escrevendo sobre o passado pré-revolucionário recente com a missão de marcar as diferenças dramáticas abolidas com o advento redentor do socialismo.

    Dostoiévski foi prontamente negligenciado pelo modelo soviético. Era o oposto do eremita bíblico. Um homem tão conturbado não poderia servir de aspiração de apaziguamento público aos milhões de russos famélicos, cuja lembrança persistente na memória dos intelectuais stalinistas era a tomada do palácio de Nicolau II e a destruição literal do czarismo. Dostoiévski era o símbolo pressagiador do homem moderno. Era incapaz de aguentar eufemismos, quanto mais a maquiagem de que seguia-se para um futuro onde a guerra total não era o que estava à espera no infarto das grandes bolhas insustentáveis dos anos 1800 (colonialismo, liberalismo, a desenfreada evolução belicista, o crescimento dos ideais eugenistas…).

    Um epiléptico não poderia figurar nos grandes cartázes do padrão físico do homen soviético, altivo, de braços fortes. Ainda mais alguém que mostrara com todas as letras o fracasso existente por trás de todo sistema absolutista, como no magnânimo “Os Demônios”.

    Por isso, no estudo de Bródski (no livro lançado pela Cia das Letras,”Menos Que Um”), a literatura russa do século XX foi anêmica, enquanto a produzida no ocidente, principalmente a dos EUA, foi distintamente superior, esta sob a sombra de Dostoiévski.

      1. Num parágrafo só, Charles resolveu grande parte das questões que atormentam a humanidade. Ousado. E quero ver alguém provar o contrário.

        (O pão de queijo tem que ser aquele crocante por fora e molinho e grudendo pro dentro)

    1. Mesmo com todo o respeito às opiniões, não posso deixar de fazer uma objeção ao Charlles. Não quero impor verdades; até porque isso ninguém deve fazer, mas apenas oferecer um ponto de vista contrário para não ficar uma visão absoluta pairando no ar.

      Dizer que McCartney é melhor que Lennon é um discurso pessoal e sem embasamento histórico e teórico. McCartney é mais rentável, principalmente, por conta das circunstâncias da individualidade do Lennon pós-Sgt. Peppers, em que o primeiro se tornou o prisma da banda. A maioria dos biógrafos dos Beatles e do Lennon têm esse consenso. Os Beatles sempre giraram em torno da genialidade de Lennon, que era seu peso intelectual. Depois, pela primeira vez na história da música moderna, muito mais que Dylan, Lennon defendeu seu idealismo e individualismo e virou o símbolo de uma América cujo sonho tinha acabado. (Basta apenas citar o título da Times quando Lennon foi assassinado: “O dia em que a música morreu”, em referência a um verso de Don Maclean, autor de “American Pie”, uma das músicas-emblemas daquele país).

      Não vou me alongar muito; só deixo como fim as palavras de um dos melhores textos sobre Lennon, feito por um beatle-maníaco que acompanhou a época e sabe tudo de tudo:

      “‘Se John estivesse vivo as coisas seriam diferentes’, dizia um tuíte hoje. Não, não seriam. Guerras, poluição, desigualdade, miséria, crianças famintas, epidemias em países pobres: a música pode pouco diante disso tudo, mesmo que venha de alguém como John Winston Lennon, o maior talento da história do rock, um cara tão talentoso quanto Mozart e Beethoven, um menino desesperado de Liverpool que, ao longo do caminho, com sua arte ganhou o mundo, a eternidade e um monte de tiros”.

    1. O que importa, Pedro, é a notificação de que existem pessoas como vc e o Arbo, para quem assuntos assim possuem pleno interesse. Lennon foi o integrante intocável da banda que suprimia meu senso crítico por muito tempo. Autor da música pop digerível mas desconcertantemente sofisticada como “Lucy in the sky whit diamond”, e outras peças estranhas e belas como “Happines is a warm gun” e “She Said”. Artista corajoso, manteve seu lirismo nu e suas confissões profundas em obras como “Mother” e “God”. Arguto driblador das mazelas da mídia excessiva, tinha respostas afiadas para desestabilizar a exigência que lhe faziam de fórmulas de sucesso (“como os beatles chegaram aos EUA?”, um repórter lhe perguntou; “Fomos até o Canal da Mancha, daí dobramos à direita”, respondeu). Contudo, a maturidade me proporciona a melhor das minhas fases. Minha esposa mesmo reconhece isto, os benefícios que a maioridade traz aos homens de meia idade. Quando vc chegar lá, Pedro (imagino que seja bem mais jovem), vai descobrir isso: como a indústria do culto exacerbado da adolescência é falho em dizer que esta porroloquice chata e petulantemente oca é o ápice da vida. Se não fosse tão apaixonado por minha família, e tão psitaciformemente fiél! Quantas mulheres, de todas as idades, são receptivas a meu ar conhecedor de proezas secretas e ternura verdadeira. Nessa idade, também, reavalio antigas birras contra o Maca, aquele burguesinho bebezóide de biquinho maroto. Percebo que foi ele que tentou a reaproximação com Lennon, e é impossível não admitir que ele era o músico completo, capaz de compor tanto silly songs quanto bombas adrenérgicas como “Helter Skelter”, “Birthday” e “Sargent…(reprise)”.

      1. Charlles,

        Sua elegância intelectual é comovente. Pelas réplicas que já travei com outras pessoas internet afora, no simples intuito de expandir os assuntos, sempre fui tomado como chato, arrogante e etc., mas não é nada disso. Como diria o controverso Paulo Francis, o brasileiro parece não saber o que é dialogar. Mas você, meu caro, é um gentleman.

        Principalmente por (que maravilha!) defender a bandeira da maioridade, da maturidade e do casamento, pois também faço parte deste time. Tenho 24 anos e estou a caminho do altar e, a bem dizer, nos últimos 5 anos, praticamente passei, entre outros, de Orwell a Montaigne como escritor predileto e isso talvez diga alguma coisa.

        Minha réplica anterior foi só para fomentar o assunto, pois sabia que irias responder. Como deve ter ficado subentendido nos meus comentários, tanto em relação a você quanto ao Milton, sou defensor da arte acima de tudo e esses “duelos” são, no fundo, apenas questão de curiosidade e gosto pessoal; mas tendo a olhar as coisas pelo viés histórico.

        McCartney é um dos maiores musicistas de todos os tempos, isso é fato. Mas, dentro de todo o contexto do século XX, Lennon configura uma coisa maior, um individualismo nostálgico, quase bucólico, que acaba passando despercebido pelas suas bandeiras pela paz, pela falta de hipocrisia no amor e etc. O que mais me impressiona, nele, é a coragem com que travou toda sua carreira, principalmente na sua relação com Yoko, gritando ao mundo que a mulher era “o negro do mundo”. (O Humberto Gessinger uma vez disse: “A maior obra-prima de Lennon foi a relação com Yoko”. Também acho isso). Só este fato, dentro de todo o contexto que ele viveu, já diria muita coisa. Mas, afora isto, entra também toda a sua luta pela paz, pela falta de hipocrisia amorosa e, principalmente, pela clareza na cidadania americana (vejo Lennon como um Michael Moore musical, que não se rendia ao silêncio, como é de praxe nos EUA). Tanto é que foi perseguido pela CIA por um bom tempo. Mas toda essa história tu deves saber.

        Em suma, é nesse sentido que defendi a figura do Lennon no embate com Paul; pelo seu poder de representar algo maior do que a arte dentro do tempo em que ele estava inserido. O talento de Paul, mesmo não sendo verdadeiramente o cerne de toda a obra dos Beatles, tornou-se algo tão forte quanto Mozart para o imaginário ocidental, mas ficou restrito à música. Lennon foi por tabela e alcançou um estágio maior, ainda que toda a sua luta e sua obra hoje tenha um fragor nostálgico. Mas, mesmo assim, não deixa de ser incrível tudo o que ele fez, tendo a fama que tinha e sendo quem era. Num mundo de bad trips, rockeiros fajutos e beat generation, o maior nome da música mundial se isola para buscar a si mesmo e remexer valores que, nas palavras de Anatole France, são como corvos: nascem das ruínas.

        Mas, como disse, é só para deixar registrado diferentes pontos de vista. O que importa é que existem os dois. (Detesto essa ideia de exclusão). Tanto juntos, quanto solos, não param de tocar em minha casa. Mas nenhum dos dois conseguiu algo como “My Sweet Lord”, então, não deviam nem duelar.

        Um abraço proustiano pra você.

        1. Pedro, meu caro! que prazer poder falar com um cara como vc! Obrigado pelos elogios.

          Você me lembra a jovialidade e a inteligência de um antigo comentador que aparecia por aqui de vez em quando, o Victor Hugo.

          Como dividimos a preferência por Montaigne, você sabe que, em momento algum, deve-se ter vergonha das próprias ideias, de se exprimir e falar SOBRE SI, de apontar o dedo e dizer, com desenvoltura e vaidade(e a devida humildade): eu sei sobre isso!

          Na certa_ ou talvez nem tanto, já que um dos benefícios que tive conhecendo este blog foi a descoberta de Thomas Bernhard_, você já leu “Origem”, do Bernhard. Um livro bem superior a quase tudo que foi escrito nos últimos trinta anos. A maior influência de Bernhard, assumida nesta comovente compilação autobiográfica, foi o grande francês, e Bernhard reafirma a convicção filosófica do mestre de que o indivíduo é o ponto de referência para sua incursão no mundo; ele está só, e o indício de sua maior evolução é mostrar a si mesmo que pode avaliar com independência a experiência através do filtro de sua unicidade. É a única forma de se manter íntegro e não participativo das miríades de distorção e corrupção do dia a dia. Como num poema de Salvatore Quasimodo: “Todo homem está só no coração da Terra, trespassado por um raio de luz; e de improviso é noite.” Ou, em outras palavras, a fé em si mesmo e a absoluta abertura efetiva para a aceitação de que talvez você esteja aqui como experimento, com as responsabilidades e consequências de um piloto a quem foi confiada o arbítrio de uma máquina ultra-sensível, pode nos dar algo mais próximo a uma genuína acepção religiosa.

          Mas não estou pregando, nem me achando apto a dar o caminho da luz.Eu já cometi enormes besteiras e injustiças, já fui leviano, soberbo e alegremente auto-destrutivo. Como Whitman confessou: “o porco, a serpente e o corvo também já habitaram em mim.” Não que me tornei imune ao mal e plenamente verdadeiro, mas a tal maturidade vem contribuindo para que eu fique menos tolerante às ideias e sentimentos fáceis, identificando-os em mim e abolindo-os antes que algo potenciamente perigoso aconteça (calejado o suficiente para saber que o perigo maior é aquele após o qual vem um silêncio tranquilo de que nada aconteceu).

          Muito contribui para isso minha esposa e meu filho (e o próximo filho que ontem eu o vi em sua borra cósmica, retirado de uma caos desconhecido e lançado em seu complexo estágio de organização na forma de um filete com alguns pontos de luz, revelando sua vida de dois meses), e meu cão, não menos importante.

          Mas, sem tempo…

          Espero te ver mais por aqui.

          Abraços!

  8. Sempre lembro de uma passagem de Os Demônios, em que Chatov anda meio delirante pela rua dizendo: “Todos somos culpados!” (não deve ser exatamente assim, já não me lembro muito bem). Culpados de que? Dos sofrimentos do mundo? Então, além do bem e do mal, todos temos nossa parcela de culpa na miséria?

    Através de situações como essa de Chatov, meio toscas podemos dizer, que Dostoiévski nos proporciona suas melhores reflexões. Mas não deixa de ser algo absolutamente maravilhoso.

    É muito difícil dizer quem eu prefiro. No fundo, sei que é Dostoiévski, mas só de pensar nisso fico com um pouco de consciência pesada por Tolstói. Como disse o Milton, temos a mania de achar que preferir um é diminuir o outro.

  9. Belo texto. Sintetizou bem sua opinião sobre um período que exige alguns volumes para a gente começar a entender o que se passou por ali, de onde afinal saiu boa parte do que vivemos hoje, tanto na lteratura quanto na política.

    Mas gostei bastante também da forma que nasceu o texto e vou aproveitar. Como quero ler outros posts no mesmo nível, lá vai:

    Picasso ou Matisse?

    Schumann ou Chopin?

    Popper ou Wittgenstein?

    Por enquanto são esses. Depois a gente pensa em mais.

  10. Eu gostaria de fazer dois apartes.

    Tolstói, claro, dominava as próprias personagens e sabia exatamente o propósito de cada um na história. O que eu disse é que Tolstói parecia não compreender os mecanismos psicológicos de seus personagens. Se os compreendesse, então concentraria-se na forma, e não os exporia a todos. Como exemplo trago mais um conto, “Três Mortes”, em que três histórias diferentes tem como ponto comum a morte. A descrição dos eventos que levam ao clímax de cada uma das histórias é majestosa. As personagens são, no entanto, construídas muito mais pelo que deixam de dizer do que pelo que dizem. O julgamento moral, que é presente e corre como pano de fundo de toda história, é somente subentendido por paralelismos entre as três personagens principais. O trabalho psicológico, por assim dizer, é mais de quem lê do que de quem escreve.

    É interessante que a “Felicidade Conjugal” tenha sido usada como exemplo. Tolstói, mais uma vez, foi autobiográfico nessa obra. Talvez por isso não desejasse expor-se tanto, do mesmo modo que Dostoievski.

    Em relação ao comentário de que Dostoievski não tenha produzido uma página memorável, acho que Nabokov foi mais uma vez radical e estrela de si próprio. Nabokov escrevia russo em inglês. Lindamente, mas qualquer um que o lê percebe em cinco minutos que o homem está escrevendo em russo. Dostoievski escrevia russo em russo. A leitura de Dostoievski é difícil não só por ele ser bastante denso em seus perfis psicológicos, e um pouco prolixo. A linguagem ali é dá voltas sobre si mesmo. Só para ficar num exemplo – existem vários – ele usa amplamente os particípios para iniciar sentenças subordinadas, o que é gramaticalmente correto, mas não é corrente.

    1. Quanto ao Três Mortes, você deve observar, a mulher da primeira parte, está doente e fugindo da morte, na segunda parte o cocheiro aceita a morte mas, preocupado com o que será de seu corpo.
      Então entenda, ali a qualidade estilística e ficcional é perfeita. Indiscutível. As ações das personagens movem a trama, embora não possam fugir da morte. O aspecto psicológico não fica subentendido é dito, só não é justificado pelo narrador.
      Faltou alguma coisa. Ha é analisar a árvore.
      Desculpa, piadinha para o texto não ficar chato.

  11. Charlles

    (Não apareceu “reply” ali em cima, então, vai por aqui mesmo):

    Eu é que agradeço tuas palavras. Num mundo de “rebolations” e afins, elas soam quase que um tratado, um pergaminho, uma Alexandria nascida das cinzas ou um poema de Kaváfis.

    O caso do Thomas em relação à Montaigne é a prova perfeita de como o bardo ensaísta parece ser o eixo filosófico mais maduro e coerente dessa Europa produzida pelo resquício da caritas do cristianismo e do logos grego. Esse legado humanista (cuja verve ética elimina qualquer sofisma) é um dos melhores momentos do pensamento ocidental e, lendo tuas palavras, só me vieram à mente as palavras de Hélio Pellegrino a Fernando Sabino, na carta utilizada como intróito de Encontro Marcado, lembras? Aquilo é o decreto de uma fraternidade cujo parto só se dá por uma palavra: sensibilidade.

    Nos veremos muito por aqui ainda!

  12. Olá Milton,
    Não leio muito, na verdade quase nada. Mas tenho insônia e as 7 da manhã me deu vontade de dar uma olhadela em comentários sobre um escritor que mal conheço mas posso dizer que adoro. Li apenas dois livros, sendo que um não sei o final, e o outro não entendi algumas páginas rs muitos nomes rs Acho que o “Dostô” me veio a cabeça por eu estar interessada, inconscientemente (anteriormente obviamente), em conversar sobre assuntos “psicológicos, sociais, filosóficos, picarescos, metafísicos” rs Gosto de ler o que as pessoas pensam sobre outras pessoas (confuso? rs) pois não sou muito boa na arte da expressão, além de me fazer pensar em detalhes não observados. E um certo dia um amigo ficou interessado depois de eu tentar, fracassadamente, explicar o que eu achava do livro que tinha acabado de quase terminar a leitura (esqueci no bar hunf) e dizer que eu não precisava saber o final da historia*. Outro dia em minha casa ele descreveu perfeitamente o que senti ao lê-lo… “Dostoiéviski fala de coisas que nós pensamos e não temos coragem de assumir nem pra nós mesmos”… enfim…coisas de quem nao consegue dormir rs… curiosa about Tolstói… bom dia a todos! Interessantes comentários!

  13. esqueci de um título para meu post rsrsrs

    “improvisação da insônia”

    rsrsrsrsrs

    coisa,indiscutivelmente, de quem não consegue dormir rsrsrs

  14. Olá Milton, já fazem 10 anos que você escreveu essa postagem, não sei o que você estava pensando no momento, mas de fato, eu em 2020 te agradeço, pois não pude deixar de rir da forma como você compara os dois autores, afinal, é exatamente assim que estou identificando os dois no momento (estou lendo crime e castigo, e acabei de ler metade da morte de ivan ilitch).
    Quando você diz que “Dostô, quando comparado a Tolstói, parece um alucinado.”, sinceramente, não poderia ter sido dito de melhor forma, muito bom

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