As canonizações seculares

No centro de uma quadra de Londres, há uma das coisas mais simples e bonitas que vi até hoje: o Memorial to Heroic Self Sacrifice. Trata-se de uma grande ideia: ele serve para lembrar pessoas comuns que, em atos heroicos, morreram para salvar vidas. O objetivo é o de não serem esquecidas. O Memorial aparece com destaque no filme Closer, pois a personagem de Natalie Portman assume o nome fictício de Alice Ayres, uma das pessoas lembradas no Memorial.

Foto: Milton Ribeiro

É um local pequeno e aprazível, não chega a ser uma atração turística para a maioria das pessoas, mas revelou-se muito sedutor.

O memorial foi inaugurado em 1900 e abriga 120 placas de cerâmica. Quando da inauguração, havia apenas 4. Hoje, há um espaço auxilar ao telhadinho original.

A ideia foi de um religioso, o vigário George Frederic Watts. O governo britânico dava tradicionalmente pouca atenção aos pobres, mas na esteira da Revolução Industrial, as atenção para com as classes mais baixas foram mudando. Estranhamente a nossos olhos do século XXI, Watts via o propósito de seu Memorial como exemplos para a educação das classes mais baixas.

É uma espécie de canonização de pessoas que não fizeram milagres ou que os realizaram dentro dos limites permitidos a nós, seres humanos. Um monumento humano e — por que não pensar assim? — ateu. Gosto muito.

As pessoas vão ali e deixam flores para seres humanos reais e vão embora. Permanecemos por uma hora no local e não vimos ninguém rezar. Um monumento de incrível bom gosto, pois.

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  1. Isso é pós-Cristianismo. A diferença entre o espírito secular de manifestações como essa e a chatice do ateísmo beligerante Dawkinsiano vai de mil léguas. O problema desse novo ateísmo com sotaque de nobre inglês está na breguice da sua virulência. Não seria nada mal informá-lo (esse ateísmo, bem dito) que o Gospel que ele tanto grita dos telhados da Neurociência já estava devassado em um livrinho simples como o Radical Theology and the Death of God do Thomas J. Altizer.

  2. Curioso também o caráter de forum privado das postagens suas sobre ateísmo, Milton.
    É raro qualquer tipo de réplica ou aquiescência de que o que se escreveu é matéria de se debater, replicar, etc. Tal qual o religioso que não debate a fé.
    Sei que você acha mesquinhas essas comparações. Mas não deixa de ter um mínimo de curioso nisso.
    O ateísmo da moda se reveste dos mesmos mimos de privatismo do converso. A defesa da liberdade pessoal, o emocionalismo, a reserva de cavar um espaço para além do debate para a escolha íntima, etc, etc, etc.
    William James não titubearia em nomear esse negócio aí de religião também.

  3. Milton,
    na igreja anglicana da Cantuária (canterbury) há uma homenagem às pessoas que morreram pela sua fé (Sir Thomas Becket morreu nela).
    Na realidade, pessoas que morreram por ousar discordar da fé majoritária. O interessante é que inclui o Becket, canonizado, citado atrás, católicos na própria Inglaterra e um ateu no Irã.
    impressionou-me o respeito pelo que o outro pensava, independente do que fosse
    Branco

  4. Luiz, posso passar alguns dias contigo utilizando os mesmos argumentos usados pelos deístas para te mostrar de que há um monstro de 3 cabeças governando um exército de zumbis ciborgues no núcleo da terra, um anão rabugento vivendo em Marte e um leão chamado Aslam legislando sobre o universo.

    Teísmo é uma chatisse moralizante e antiquada. Ninguém perderia tempo discutindo com uma criança de 12 anos que afirma terem existido elfos e ogros. Os ateístas que se dispõem a discutir com religiosos é que são mártires, dispõem-se a discutir com crentes de meia idade que acreditam em seres imaginários, tarefa difícil de aguentar.

    PS: Falta muito para esse “negócio” ser chamado de religião. Por exemplo, falta levarmos nossos filhos em templos, falta doutriná-los com um livro intrinsecamente preconceituoso, falta pagarmos semanalmente uma taxa para uma figura local guardiã da “fé” atéia… a lista vai longe.

    1. Pois é, Cássio. Achar este post religioso é um absurdo tão grande, uma distância tão imensa que nem respondo. Aliás, os deístas adoram chamar os ateus de religiosos, não conseguem sair de sua noção de mundo…

      Vou orar por Aslam antes de ir para o trabalho. É garantia de um bom dia, dizem.

      :¬))

      1. Confesso que pesei a mão na retórica e que escolhi mal o post para escrever a réplica. De fato, o post nem era tão carinha do tag ateísmo do Milton e reconheço o desmenssurado entre o que escrevi e o que o Milton escreveu.
        Mas olha só, quem disse que sou deísta? Cara, isso não é um pouco, er, tape os ouvidos, maniqueísta não?
        Meu ponto era bem outro, mas acho interessante ter sido perfilado já por você do outro lado do grande embate entre o filhos do grande Aufklarung e os adoradores de Santa Claus.
        Vou tentar colocar a coisa de forma mais didática e dentro das proporções. Acho o ateísmo que cresce ao passo de cavalgadas (para você a inexorável marcha do progresso) cafona e mal-informado. Minha primeira reação a ele e ao que você escreveu é estética mesmo.
        O exagero retórico da minha resposta está na minha (implícita) equivalência entre religião e ateísmo. De fato um não é o outro e o outro não é o um. Mas os mimos de privatismo e a sensibilidade de fórum privado que o assunto toma para vocês é sim interessante (pelo menos a mim que se aproxima da religião com interesses que superam a jihad atéia entre esclarecidos e medievos). (BTW, William James foi um cara que outrora definiu religião como um negócio próprio do fórum privado, intimista, relacionado portanto às escolhas morais e psicológicas do “espírito”. Hoje tá claro que ele tava errado, que religião vai muito além do mundo privado, que ela por exemplo engloba todo um mundo de ritos e performances e que se interfere seguidamente na esfera pública. Portanto é descabida a equivalência entre ateísmo e religião).

        Esclareço outro ponto. Apesar da minha sensibilidade ser sim um pouco agredida em alguns dos posts do Milton sobre ateísmo, naqueles nos quais me vejo às vezes lançado, beyond me, no meio dos cultuadores de elfos, é a cara feinha mesmo desse ateísmo que me causa restrições. Um ateísmo de carinha feinha tal qual um Bertrand Russell. Para mim me é incompatível que esse feiotinho vem do mesmo cara com tanto senso estético para literatura, música erudita e cinema como o Milton.
        Esse ateísmo aí, que saúda um mundo secular que na realidade não veio, que chama a todo mundo que não capitula à metafísica do “amaldiçoa ao seu Deus e morra” de deísta, que ignora toda uma tradição de secularismo cristão, que teima em colocar os termos dessa discussão como se, via de regra, se estivesse ou discutindo com um criacionista ou com um interlocutor imaginário dos diálogos do David Hume, ateísmo que é por fim nada mais que um libelo contra o judeu-cristianismo. O equivalente ocidental a fazer beicinho para o animal totêmico, outrora cultuado e então assassinado, rangado.
        Esses mesmos ateus, pródigos em abusar de imagens e metáforas que vão desde evolução e amadurecimento, bem que podiam crescer um pouquinho.
        Um começo de amadurecimento viria, sem sombra de dúvida, em se parando de simplificar os interlocutores desse debate. Mas há muito mais…

        1. Não me escapa à atenção que há distinção entre o deísmo propriamente dito, e o teísmo (a despeito da confusão na minha resposta). Referi-me ao teísmo throughout aí em cima.

      2. Milton, você vê aí em suas estatísticas do blog o quanto eu frequento seu blog e o quanto o respeito como formador de opiniões litrárias e etc, daí vai me perdoar por minha sinceridade: eu não leio seus post sobre religião e ateísmo; já participei nas discussões inócuas suscitadas por alguns deles mas me cansei dessa coisa definitivamente. Você se comporta de forma muito pior e mais chata que um devoto das Testemunhas de Jeová, quando escreve sobre religião. Não há Razão, Ciência, ou qualquer propósito nestes textos, apenas a afronta leve típica dos futebolismos. Entre esses dois infernos da tolice, eu preferiria comprar a revistinha Sentinela. E vai se fuder se vir com não-me-toques por eu dizer isso.

        1. A comparação com o futebolismo não me parece exagerada. Religião para o religioso, o Internacional para o torcedor Colorado, e a negação mesma da crença do ateísmo (aqui) (aí o grande curioso para mim), se encontram para além da esfera do debate, da réplica, da dialética, em suma, na esfera intimista das escolhas últimas. Sem nenhuma sacanagem. Isso pra mim é MUITO curioso.

          1. E o pior, Luiz, é que todo esse seu lúcido comentário é visto apenas como uma reação típica de um “deísta”. Mas não vou além disso, aqui, se não já estarei em debate, coisa que afirmei não mais fazer. Se algum dia, o Milton sair dos simplicismo dos quadrinhos e do duvidoso humor de boteco sobre o tema, e se predispor a analisar o lado social, filosófico, político, esotérico e o escambau do ateísmo e da concepção do sagrado, e… dignar-se a LER os comentários contrários, aí eu teria alguns ensaios de pensamento a acrescentar. No mais, chatice, chatice, chatice…

  5. Se não são teístas, desculpem-me. Suas críticas parecem despender enormemente de energia em criticar a postagem em sua forma e deixam em vazio a crítica de seu conteúdo. Mandar ler algum livro não é o suficiente, muito menos dizer que “ela por exemplo engloba todo um mundo de ritos e performances e que se interfere seguidamente na esfera pública”. Ora, portanto, não apenas o ateísmo, como tudo que é social é religião.

    Aguardo ansiosamente por argumentos.

      1. Cássio,
        Mais. Não entendi ainda bem que espécie de argumentos você aguarda. Minha resposta nada tinha a ver com a refutação filosófica do ateísmo (embora isso seja não apenas plausível como exequível).
        Que a equivalência entre religião e ateísmo foi arroubo retórico, isso eu já confirmei.
        Refutação estética do ateísmo (enquanto me é apresentado), talvez seja isso o que me coça a fazer. Escancarar-lhe a feiurinha, o anacronismo de algumas de suas asserções e principalmente sua atitude de Bela-Adormecida, de comatoso que acorda 40 anos depois e passa falar, gesticular e entender o mundo tal qual um filho do Positivismo.

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