11 de dezembro de 2008

Hoje, o compositor americano Elliott Carter completa 100 anos de vida. Escrevo este texto às 21h30 da noite de 10 de dezembro de 2008. Há 15 anos, mais ou menos neste horário, encontrei meu pai no Supermercado Zaffari da Av. Ipiranga, em Porto Alegre. Fiz o que sempre fazia com ele e ele comigo: dei-lhe um encontrão por trás e…

— Desculpe, senhor… Nossa! Pai! Tu aqui?

Conversamos sobre os CDs que ele comprara e que ouviríamos — um minuto por faixa, a toda velocidade — no dia seguinte, durante o almoço. Sempre almoçava lá aos sábados.

Às seis da madrugada daquele sábado, minha mãe ligou. Não gritava, apenas falava rápido parecendo que queria me acalmar. Disse que encontrara meu pai deitado no banheiro; não disse caído, disse deitado porque ele estava reto de costas, com a mão no peito, como se tivesse lentamente sentado no chão e depois deitado, esperando que a dor do enfarto passasse.

Quando cheguei em casa a equipe da Unimed, minha mãe e irmã cercavam o corpo. Ou não, acho que minha irmã chegou depois. O cara da Unimed me fez um sinal com o polegar para baixo. A mãe dizia que não o tinha visto sair da cama e que fizera tudo o que sabia: respiração boca a boca, pressão no peito, etc. Tratei de consolá-la. Fim.

Tive receio que Carter não chegasse ao fatídico 11 de dezembro, mas chegou. 100 anos! É incrível que esteja produzindo. Estreou 10 novas obras entre 2006 a 2008, dos 98 aos 100… Fantástico. No dia 8 de agosto passado, terminou uma peça para grande orquestra chamada Wind Rose. Suas obras são dificílimas, quase inviáveis. P.Q.P. Bach publicou seu Concerto para Piano e o Concerto para Orquestra. Talvez haja alguma homenagem hoje. Não consigo imaginar música mais complicada.

Espero um 11 de dezembro tranqüilo. Haverá concertos em Nova Iorque (onde Carter reside), Washington, Montreal, Amsterdam, Berlim, Helsinki, Viena, etc. e gostaria de saber se alguma publicação brasileira fará referência ao aniversário de Carter. Duvido muito. A conferir.

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Notas sobre um novo esporte, o Hipismo Canino

O Hipismo Canino é esporte muito praticado na Zona Sul de Porto Alegre. O material utilizado é simples. Basta você desalojar todos os vasos ornamentais da casa — eles nunca reclamam –, colocando seus suportes em fila. Observe na figura abaixo:

Notem que os obstáculos do Hipismo Canino podem ser colocados lado a lado como na figura acima, ajustados como duplos ou triplos — tipo em fila com espaços no meio para o cachorro tomar impulso, entende? –, ou serem amontoados uns sobre os outros — tipo montanha –, como na ilustração que segue. É muito divertido!

Fundamental é o preparo psicológico adequado do animal. Ele pode ficar nervoso, ainda mais em se tratando de filhotes fêmeas de 5 meses de pastor alemão, como é o caso de nossas ilustrações. A propósito, na figura abaixo, vemos a treinadora de Hipismo Canino mantendo o animal calmo e sob seu inteiro controle.

E aqui, o pai da treinadora faz o mesmo enquanto o animal lambe-se de prazer. Viram? Demonstrações de carinho fazem com que o cão submeta-se às maiores torturas provas!

A(o) treinadora(or) acompanha o cão com seu uniforme obrigatório: uma calça velha, uma pantufa recém dada pela boadrasta e já devidamente destruída pelo cão — para ter aquele cheirinho de afeto — e um blusão novo, do colégio, a fim de que lhe seja dado logo outro, porra. Na mão direita, como estímulo, é fundamental que a(o) treinador(a) tenha uma coxa de galinha congelada, mordida e recém aquecida no forno de microondas — não sabemos se no caso a coxa foi mordida, depois congelada e descongelada ou se a ordem dos fatos foi outra — e, na esquerda, o maior objeto de amor do animal: uma bola de futebol do irmão furada pelos dentes do cão. Observem bem, sem perder o detalhe do tamanho da língua do cão, a qual permanece externa à boca, prova de seu bom preparo psicológico:

O esporte é simples. Basta gritar “Vem, Juno!” e movimentar-se. Os olhos da filhote faminta ficarão mesmerizados pela coxa de galinha e pela bola furada ou por uma das duas. (Pensamos que o duplo estímulo funcione melhor). Em seu caminho haverá os obstáculos. Muitas vezes a cadela os contornará — coisa intolerável! Neste caso, nada de coxa ou bola para a cachorra feia, apenas pesadas admoestações, sempre em língua alemã. Mas quando ela salta é maravilhoso.

O prazer da treinadora e do irmão fotógrafo é algo indescritível!

Observem como, mesmo antes de cair, o animal apenas olha, salivando, a desejada coxa e a bola — seu objeto transacional (importantíssimo a qualquer criança, segundo os psicólogos) — sem preocupar-se com o chão.

É o esporte ideal para pátios internos e principalmente para condomínios que aceitem a presença de cães. Tire seu filho das drogas através do Hipismo Canino.

Fotos do meu filho Bernardo.

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O precursor foi o vinte (e cinco) de setembro (*)

O dia 25 de setembro tem alguma relevância, sabem? Foi num 25 de setembro de 1513 que o explorador espanhol Vasco de Balboa descobriu o Oceano Pacífico. Grande coisa! Como se ele não estivesse lá há milhões de anos e não fosse do conhecimento, por exemplo, dos chineses. Mais de quatro séculos depois, mais exatamente em 1897, a mãe de William Faulkner escolheu um outro desses 25 de setembros para apresentar os primeiros eflúvios de álcool ao filho. Nove anos depois, nascia no mesmo dia Dmitri Shostakovich, dando enorme peso à data. A coisa quase degringola em 1944, quando o velho Kirk e sua mulher puseram no mundo seu filho tarado Michael Douglas em 25 de setembro. Oito anos depois, veio à luz Christopher Reeve, ator norte-americano que fez Super-homem. Já em 1964, os moçambicanos escolheram o dia para iniciar sua luta pela independência. Após exatos 4 anos, nascia Will Smith e, 365 dias depois, nascia a mulher daquele Michael Douglas nascido 24 anos antes. Sim, hoje também é o aniversário de Catherine Zeta-Jones. O casal faz aniversário no mesmo dia, que meigo! Porém, há as mortes. O baterista do Led Zeppelin, John Bonham, escolheu inadvertidamente, ou não, um 25 de setembro, o de 1980, para morrer aos 32 anos. E… bem, Klaus Barbie fez o mesmo em 1991. Viveu demais. Em 1993, Portugal lançou no mesmo dia seu primeiro satélite, o Posat I, cuja inteligência deve ser toda artificial, e, em 2005, faleceu o imortal, ao menos para minha geração, Don Adams, o Agente 86 original, aos 82 anos.

Mas nada disso interessa muito, pois meu grande 25 de setembro foi o de 1994. Era um domingo bastante quente no qual passeamos num parque durante a manhã. Os suecos e Bergman dizem que as crianças de domingo são as mais felizes e especiais e ela chegou às 19h40. Chegou transtornada a este mundo, berrava demais e naquele dia não demonstrou nenhuma doçura, só se aquietando quando emborcou um seio, provocando breve grito na mãe, tal era a decisão. Decisão semelhante a fez escolher todas as fotos deste post e as do próximo Porque Hoje é Sábado, mas essa é outra história. Outra decisão a faz dizer que será Veterinária desde que soube o que era isso, o que me impedirá de repetir esta cena, acontecida na casa de Paulinho da Viola:

Tinha eu catorze anos de idade
Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar Filosofia
Medicina ou Engenharia
Tinha eu que ser doutor

Bárbara, 14 anos! Nada tenho de melhor a fazer do que transcrever o final deste post de Branco Leone, pois meu amor por ela teve o mesmo efeito:

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Sinto em mim o que escreve o Branco: cada vez mais dona de si e do mundo, torna menores todo o entorno e o inexorável e distante. Ou não.

Ah, as fotos!


Foto do último sábado, após vencer uma competição de hipismo. O do meio é o tratador do cavalo. É, segundo ela, um cara muito filosófico.


Pensativa, deve estar refletindo sobre que porcaria vai comer agora.


Cara de louca assassina Nº 43. Eu e ela fazemos competições de caretas, mas sou muito melhor.


Observando a movimentação da vizinhança.


Na cama com Olga.


Esta foto é meu wallpaper. Foi ela quem colocou, claro. O legal da foto é que ela já olha para o próximo obstáculo, o que é impossível ver nesta versão reduzida.


As meninas da geração de minha filha não apenas vão juntas ao banheiro como botam a máquina na janela e tiram fotos automáticas. Deve ser muuuuuito legal…


Ou é porque lá fora aparecem uns chatos para encher o saco?

(*) Só os gaúchos entenderão o título…

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Medo de Dentista

Hoje, às 18h, eu vou à dentista. Eu tenho horror a dentistas.

Não tenho medo de cirurgias, de altura, de avião, do Grêmio, de ratos, de insônia, da velhice. Tenho medo é de dentistas.

Às 18h. São 13h30 e só penso no que me fará a Dra. Simone daqui 4 horas e 30 minutos. Uma enorme obturação — quase 100% do dente — quebrou e hoje ela será refeita. Fui lá na semana passada e ela me disse hum, vai dar canal. Então me botou aquela coisa gélida no dente e quase me atirei pela janela. Sorte que pude pensar antes, o consultório é no 22º andar. Surpresa com a dor que eu tinha sentido, ela respondeu então não vai dar canal. Canal? Ficou louca? Nunca fiz tratamento de canal e só ouvir uma expressão dessas já me provoca pânico e desarranjo.

Meus pais eram ambos dentistas e sempre preferi fazer os tratamentos com meu pai (cirurgião-dentista), já falecido. Ele parecia me compreender melhor. O trauma começou lá na minha infância, quando minha mãe – que era…, bem, odontopediatra -, começou a eliminar minhas cáries. Hoje sabemos que uma mãe NÃO DEVE ser a dentista de seu filho, mas, nos anos 60, essa noção não era tão clara. A criança que eu era nunca entendeu porque a pessoa que mais amava neste mundo insistia com aquelas torturas. Era ela quem ligava aquela coisa giratória e de som insuportável em mim. Mas o pior era a emissão secundária de um ventinho frio, úmido e dolorido que me penetrava boca adentro e que me fazia automaticamente gritar, chorar e mexer as pernas. Hoje não faço mais fiascos, mas internamente choro e não entendo porque não me amam.

Morei muitos anos com meus pais em uma grande casa de dois andares. A família morava no andar de cima e o térreo servia para as atividades de nosso DOI-CODI. Com uma mãe odontopediatra, podia ouvir durante o dia os gritos, o choro e a indignação das criancinhas seviciadas. Não sei como ia tanta gente lá, eles estavam sempre com o consultório lotado! Ficava surpreso com a cordialidade com que os adultos mutilados se despediam de meu pai, quando acharia mais natural que praguejassem violentamente e buscassem reparação ou vingança. Mais surpreendente ainda era a reação cordial das mães das crianças às ações de minha mãe.

Hoje estarei na cadeira com a suave Dra. Simone. Ela é bonita e, apesar de perigosíssima, não parece. É um tipo mignon; tal como minha mãe, é magra e mede 1,55m, no máximo. Gostaria de suplicar-lhe cuidados maiores que o normal. Quando lhe falei sobre meus medos, ela riu muito e fiquei imaginado que crueldades poderiam estar escondidas sob cada ha que ouvia. Ha, ha, ha. Qual é a graça? Acordei pensando nela, louco para desmarcar a hora, ainda mais quando abri o jornal e ele dizia, inequivocamente: 13 de agosto. Disse isso para minha mulher que, após a tradicional inspeção feminina sobre quem seria a tal Dra. Simone e porque eu justamente a escolhera, ironizou falando alguma coisa sobre homens medrosos que ficam 10 anos sem ir ao dentista e que, com 50 anos, só vão uma vez fazer o tal exame de próstata, enquanto as mulheres, etc., chega! Despediu-se perguntando se eu não desejava que ela fosse junto para segurar minha mão…

Decididamente, as pessoas não são sérias.

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Diários de Motocicleta

Vi o filme de Walter Salles no último domingo. Foi um dia chuvoso que acabou lindo, ensolarado. Fui ao cinema com meu filho Bernardo, de 13 anos, e acabei encontrando lá, por coincidência, minha irmã acompanhada de minha mãe. O Bernardo é um novíssimo apreciador de cinema que já me confidenciou mudanças radicais em sua forma de ver filmes. A maior prova disto foi a surpreendente declaração de que, hoje, vê mais méritos em Cidade de Deus que em O Senhor dos Anéis. (Nas entrelinhas, vocês devem ler minha baba.)

Para quem não sabe do que se trata, o longa-metragem mostra a viagem de motocicleta realizada em 1952 pelo jovem estudante de medicina Ernesto “Che” Guevara de la Serna (Gael García Bernal), de 23 anos, junto com o amigo bioquímico Alberto Granados (Rodrigo de la Serna), de 29. O roteiro é baseado nos livros escritos respectivamente pelos dois: De Moto pela América do Sul e Con el Che por Sudamérica.

Gostei muito do filme. É um road-movie muito bem dirigido, com imagens belíssimas e atores em desempenhos impecáveis. Roberto Maxwell escreveu em seu blog que Walter Salles revela-se um humanista. Concordo inteiramente. O olhar interessado que Salles lança sobre todos os seus personagens dá ao filme surpreendente grandiosidade. É um diretor sensível e raro. Raro ao impor-se a dificuldade de fazer um “filme de formação”, isto é, de documentar artisticamente a tomada de consciência e o crescimento das convicções dos personagens principais. A forma mais simples seria a de partir para as pedradas panfletárias, mas WS é muito inteligente e esteta para cair nesta tentação. Quando o filme começou, até temi que viessem diálogos que parecessem saídos de alguma antologia de aforismos socialistas. Mas isto não ocorreu; Ken Loach estava longe daqui. A atuação e o entendimento da dupla Gael García Bernal e Rodrigo de la Serna é perfeita. Em cena, eles sempre se mostram dignos de seus personagens, adotando a esperada postura de jovens idealistas e inteligentes, acrescidos daquela acidez de humor tão comum entre nossos amigos argentinos e uruguaios.

Em minha opinião, o melhor filme de Walter Salles ainda é o pouco visto O Primeiro Dia, realizado logo após o super visto Central do Brasil, mas agora Diários de Motocicleta vai para o segundo lugar. No final do filme, minha irmã estava muito emocionada, com os olhos meio marejados. Eu também. O final do filme é para isto mesmo, mas meu motivo era o de ver 3 gerações de nossa família saindo calma e casualmente do cinema, ouvindo o Bernardo dizer que queria aprender espanhol. E o motivo dela, qual seria?

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A Maria Luiza e a anárquica Tina

Minha mãe completou 81 anos no dia 5 de julho. Seus 81 foram melhores que os 80 e os 79. Em seu último período no hospital, pensei (pensamos) muitas vezes que ela não voltaria mais para casa. Só que, após o isolamento em que ficou devido a uma infecção respiratória, os médicos puderam reavaliar a medicação que tomava e esta foi super-reduzida. E descobrimos que grande parte de sua prostração ocorria pelo excesso de remédios; ou seja, ela estava dopada.

Não culpo os médicos; afinal, em fevereiro de 2007, ela passou dois meses internada e, cada vez que os calmantes eram reduzidos, tornava-se agressiva e gritava a ponto dos outros pacientes ficarem irritados… Certamente os que a atenderam desta vez –- Dr. Sérgio Loss, Dr. Barbieux e um certo Adriano que nunca vi -–, usaram de bom senso ao aproveitar este longo período de hospitalização para repensar todo o coquetel. O resultado é que ela está sorridente, calma e vígil, apesar da absoluta confusão mental. Aqueles que a viram com a cabeça caída sobre o peito e com o olhar vago, vão se surpreender com a nova primavera da Dra. Maria Luiza, a querida bobinha feliz que muitas vezes não me reconhece, apesar de sempre repetir que fico melhor de cabelo curto.

Ele retornou para minha casa no dia de seu aniversário. Pois, logo após a volta da Dra. Maria Luiza, recebi a notícia do falecimento da Tina Oiticica Harris, do blog Universo Anárquico, habitual comentarista deste blog e com quem tinha trocas de e-mails bastante agitadas e… anárquicas. Faria 56 anos no dia 9 e sempre convidava a mim e à Claudia para irmos aos EUA visitá-la e a sua família. Prometia deixar seus gatos num hotel para que não me incomodassem… Uma vez, ela se referiu ao fato de que as trocas de letras em seus textos eram devidas a uma hidrocefalia, mas o assunto parou por aí porque tínhamos piadas a inventar um para o outro. Não sei qual foi a causa da morte, ocorrida dia 7, dois dias antes de seu aniversário. A notícia veio através de um post escrito por seu marido. Ele, o americano Nicolas, tentava manter o bom humor enquanto nos narrava a notícia num português arrevesado. O texto começa assim:

Um aniversário bem anárquico, por Nicolas Rouquette

Não consegui dormir a três horas da manha hoje, o dia de o aniversário de 56 anos de mi Tinazinha gostozinha; Infelizmente, a grande Madame no besteirol esta indisponível para resolver para a gente nesse anacronismo bem anárquico do aniversário dela.

Que aconteceu?

E então narra os acontecimentos, finalizando assim:

Já tem com muito saudade de o único amante da minha vida. Agora entende melhor que a vida da Tina estava anárquica em muito aspetos. Si você tem uma historia que você pode escrever, me gostaria muito ler disso. Por favor, em memória dela, da uma consideração para escrever qualquer memórias gostosa da Tina como um “guest” nesse blogo.

Ora, Nicolas, todas as memórias que tenho da Tina são tão alegres, pontuadas de “blasfêmias” -– palavra que ela sempre usava para caracterizar a forma como eu me referia a quase tudo –- e de tudo que fosse politicamente incorreto que não saberia por onde começar. A Madame do Besteirol me chamava de o seu Bad Boy e a melhor lembrança dela foram os inúmeros comentários que aquele Curriculum Vitae recebeu. Nos e-mails, ela me contou que os traduzia para ti, Nicolas, e que vocês riam dos absurdos. Guardo uma bela lembrança dela.

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O estado de espírito do dono do blog

Claro, este blog é a mistura de tudo o que passa por minha cabeça e de algumas coisas que ela recebe, mas quando passo por um período tenso a tendência é a de ele se torne mais e mais confessional. Só que desta vez a coisa tem doído um pouco mais e até deitar pensar os problemas no blog tem sido mais complicado que consolador. Estou com lógicos e péssimos pressentimentos sobre o futuro de minha mãe. Doente há muito tempo e cada vez mais vivendo em seu mundo, piorou muito nos últimos dias, mesmo tendo saído da UTI para uma zona chamada “Intermediária”.

Tenho a impressão de não estar nem irritado, nem deprimido, nem tenso, mas isto é falso, pois sei que poderia explodir à menor contrariedade. Fico meio abobalhado, olhando sem interesse as milhares de fotos que tenho no micro. Não há surpresa na situação; afinal, era o esperado para quem tem uma doença prima-irmã do Alzheimer (*), só que a constatação de que as doenças degenerativas são exatamente aquilo que as pessoas mais realistas me descreveram e que chegam a pontos solidamente injustos e desnecessários… Olha, é foda. Para que tanto sofrimento? Porém, ao passar por esta foto aqui…

Sean Connery Zardoz

… é impossível não rir e desviar o pensamento, desejando saber o que Sean Connery diria dela hoje. Amanhã, mais hospital. Dr. Cláudio Costa ligou amiga e gentilmente de Belo Horizonte e eu lhe disse com a maior calma do mundo que, se realmente tivermos que somar à inconsciência da doença outras impossibilidades, melhor seria a eutanásia. Dia cansativo. Agradeço a meu psiquiatra preferido por ter me ligado. Foi um bom momento que só vi repetido agora, ao chegar em casa.

(*) Algum tipo de demência resultante de uma queda ocorrida há quase dois anos. Não há sentido em fazer uma biópsia a fim de descobrir o nome correto da doença, pois o pequeno leque de possibilidades que não mudaria o tratamento.

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30 horas

As últimas 30 horas do fim de semana foram algo como um carrossel de emoções (como dizia a Bia).

1. Visita a minha mãe na UTI: ela sofre do Mal de Alzheimer ou de algo perto disso; foi fazer uns exames e, fraca, acabou na UTI. Sedada, deitada e intubada (*), era uma visão deprimente.

2. Inter 2 x 1 Botafogo: meu filho queria porque queria ir ao jogo. Não sei se queria mesmo ou se sua intenção era a de me afastar do trabalho e do hospital. Ganhamos o jogo. Surpreendentemente, a estréia do Tite foi boa.

3. Esplêndido convite: liga a Astrid, mulher do meu amigo Augusto, perguntando se temos programa para o sábado à noite. Não tínhamos. Então, ela perguntou quantos nós éramos, pediu que arrumássemos a mesa com pratos fundos, colher, garfo e faca, além de copos para água e vinho. Precisaríamos produzir uma sobremesa para esperá-los? Que vinho escolheríamos? Não, nada disso, ela e o Augusto trariam absolutamente tudo, da comida à sobremesa, passando pelo vinho. Noite inesquecível, companhia e música perfeitas. Só o meu cansaço destoava.

4. UTI: nova visita a minha mãe no domingo pela manhã. A mesma coisa. Inconsciente como quase sempre está.

5. Longe dela: talvez pelo contexto, quis ver o filme em que Julie Christie faz uma personagem que sofre de Alzheimer. Um filme muito bom que, se não nos dá a extensão do trabalho e do horror, dá o tamanho psicológico da perda.

6. Control: em seguida, mais um filme. Putz, e era mais deprimente ainda. Trata da curta vida de Ian Curtis, vocalista da banda Joy Division. A atuação dos atores é digna dos mais rasgados elogios. Notável.

7. Dunga: fico sabendo da derrota brasileira e penso na crônica que escreverei para o Impedimento. Explicarei meus motivos para comemorar este tipo de resultado.

(*) ENTUBAR – Entubar ou Intubar?
Entós (grego)= posição interior. Documenta-se em vocábulos introduzidos na linguagem científica a partir do século XIX.
Intus (latim)= para dentro.
Como tubo(cânula endotraqueal) vem do latim tubus, a palavra correta é intubar.

Retirado do Dicionário das Agressões Médicas à Língua Portuguesa.

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O ex-futuro hooligan ouve "Bola de meia, bola de gude"

Primeiro, uma conversa entre amigos; depois, a audição de Bola de Meia, Bola de Gude no rádio do carro e — pronto! –, voltei aos anos 60-70 e à infância passada na avenida João Pessoa, em Porto Alegre. Sempre acreditei ter vivido uma infância normal, porém, quando a comparo com a de outros, acho que a minha mais parece a história da formação de um delinquente. Eu morava numa grande avenida que cruza com outra, a Ipiranga. A Ipiranga tem um arroio no meio (o Arroio Dilúvio), hoje bastante poluído. Desde aquela época, havia inúmeras pontes que o cruzavam e “nossa ponte” era fundamental para nossas jovens vidas. Éramos um pequeno grupo de meninos de nomes duplos. Se bem me lembro, os mais criativos nas brincadeiras éramos o João Batista, o João Rogério e eu, que atendia por Milton Luiz.

“Nossa ponte” era e é a mais interessante de todas pois, curiosamente, tem palmeiras altíssimas sobre ela. Tínhamos o costume ir lá com a finalidade de jogar gatos vivos no leito do Dilúvio. Para nós, era uma coisa sublime ver os pobres bichos voarem lindamente e caírem no riacho. Os gatos se desesperavam, nos arranhavam, grudavam em nossas roupas e mordiam, mas não tinham a menor chance. Por bem ou por mal, nós queríamos vê-los voando, caindo e nadando apavorados de volta à margem. Sei tudo a respeito das possíveis defesas destes felinos. Aqueles que não eram de primeira viagem (ou primeiro vôo), transtornavam-se rapidamente depois de capturados e ficavam violentíssimos. Havia um branquinho que me dedicava ódio especial.

Mas isto é apenas uma descrição leve de minha delinquência. Minha principal habilidade era a construção de “bombas-relógio”. Tratava-se simplesmente de um rojão com um cigarro aceso enfiado no pavio. Era muito fácil de montar, mas sempre me chamavam para dar uma auditada na coisa. Eu era “O Especialista”. Dentro do meu colégio, fiz explodir vários vasos sanitários. Hoje, quando penso no perigo que aquilo representaria se alguém estivesse utilizando a privada no momento da explosão, começo a suar frio. Não sei como podia ser tão irresponsável, inconsequente, etc. Nunca descobriram o(s) autor(es) de tais barbaridades, porém acho que, se alguém se machucasse, eu me denunciaria e seria imediatamente expulso do colégio. Esquivo-me deste assunto quando estou com meus filhos, pois a infância deles é totalmente diferente, mas nem sempre é possível.

Então, em meio a uma conversa sobre crianças, a Bárbara e Bernardo começaram a suplicar para que eu lhes contasse algumas de minhas aventuras infantis. Como tenho alguma dificuldade para mentir, contei-lhes aquilo de que me esquivava. Ficaram pasmos, não é todo mundo que tem como pai um ex-hooligan.

(O que acho curioso é que dentro deste hooligan havia uma criança sensível, que amava sua irmã, chorava por qualquer coisa e deixava-se emocionar pelos filmes de bichinhos do Walt Disney…)

O que mudou durante o período que separa nossas infâncias? Creio que o principal foi a exacerbação do sentimento de insegurança da classe média, que nos empurrou para dentro de casa. Nossa geração vivia na rua, a deles não; nossos amigos eram encontrados por aí, já eles se visitam após convites, telefonemas e negociações; ficávamos afastados de pais e empregadas, enquanto que hoje estes superegos convivem com eles; nossa agressividade manifestava-se como descrevi acima, a deles é destilada em jogos de computador proibidos, onde recebem pontuação especial para matarem velhinhas indefesas. Será que a mudança foi realmente causada pela insegurança ou estou sendo superficial? Sei que este é um problema limitado àqueles que não são suficientemente ricos para se refugiarem num condomínio fechado, nem suficientemente pobres para não terem outras preocupações além da subsistência.

Ah! A canção “Bola de Meia, Bola de Gude” é um dos mais felizes casamentos entre tema, música e letra que conheço. Trata-se da mais alegre das melodias: é bonita, vivaz e ousada. A letra é a mais adequada: ingênua, fácil e descompromissada. E o tema é o do adulto que fala do menino dentro de si. Quando todos os elementos convergem na mesma direção, expressando a mesma ideia, não podemos pedir mais.

Bola de Meia, Bola de Gude

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão
Há um passado
No meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito, caráter,
Bondade, alegria e amor
Pois não posso, não devo, não quero
Viver como toda essa gente insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia Bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem prá me dar a mão

(Milton Nascimento/Fernando Brant)

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Permanência

A Sérgio Gonçalves

Aos que permanecem sobram as culpas,
esquecem que
todas as decisões são solitárias.

Solitária é
a decisão de pousar as mãos
e não escrever.

Solitária é
a decisão de erguer-se todos os dias
e trabalhar.

Solitária é
a decisão do que ouve
de não ouvir.

(Solidária é
a decisão de ensinar
e aprender.)

Solitária é
a decisão de chegar ao clímax
e descansar.

Solitário é o fim.

Solitários,
decidimos que o formigueiro,
pisoteado e destruído,

seja reconstruído.
Por cada um de nós,
solitariamente.

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A convivência com a maldade e com o luto

E lá vou eu contar para minha filha que, na sua ausência, alguém deu uma salsicha envenenada para sua cachorra. Como se diz isso? E como se explica e consola depois?

Gosto muito de cães, sou o que se costuma chamar no sul de “cachorreiro”, mas não sou de verter lágrimas por bichos. Talvez tenha ouvido muito o Geraldo Vandré cantar “Disparada”, então acho que bichos são bichos, e com maior ou menor sofrimento são passíveis do marca, tange, ferra, engorda e mata…, mas com gente é diferente. Quando vi nossa Maria Callas — a Callas filhote pastor alemão de 5 meses que estava sendo ensinada pela Bárbara — agonizando debaixo da churrasqueira; quando minha mulher e eu, ambos de pijamas, a levamos para um plantão veterinário; quando ouvi que estava morta; quando soubemos que havia vomitado “salsichas”… que salsichas?, só dávamos-lhe ração; fui menos tomado de pena e luto do que pelo ódio de estar no lugar em que sempre quis estar, porém acompanhado de anônimos que, talvez desejando entrar depois na casa sem a indesejável presença de um cachorro, escolhe matá-lo, avisando-nos com toda a clareza suas intenções.

Minha mulher ouviu um ganido tão alto e desesperado que acordou. Assustada, me chamou. Começamos a chamar pela Callas. Nada. Chamamos o segurança da rua. O homem veio. Já estava achando que fora roubada quando a vi sob a churrasqueira, bem da maneira que os cães escolhem para morrer, escondidos. Não vejo motivo para que minha filha passe um longo luto e já providenciamos a compra de um filhote de 34 dias. Com seu amor pelos bichos, ela logo vai preocupar-se com o crescimento do substituto. Não quero não dar muito espaço para sua dor. O que mais posso fazer?

Dentro das circunstâncias, tudo muito razoável. Mas e as circunstâncias? Já sabemos que não podemos deixar o cachorro ir até a grade da frente da casa. Teremos que impedi-la disto, seu limite agora será a porta da garagem. E assim vamos nos adaptando às exigências de uma vida cada vez mais estreita e estranha. A grade já foi anormal, as muitas trancas também, os cães tornaram-se parte da segurança e alarme, há seguranças na rua e agora só podemos permitir que nosso cão fique numa grade atrás da grade, vendo a rua de longe. Tudo bem.

Preocupo-me mais em evitar um luto doloroso a minha filha. Desde que ela aprendeu a expressar seus desejos e até hoje, garante que será veterinária. Nossa única sorte que é neste fim de semana ela esteve com a mãe e apenas retorna ao meio-dia. O que dizer a ela? Falar que luto é como quando perdi o pai que me criou e de quem eu gostava demais? É quando um filho morre? É quando o vôo da TAM cai levando nossa irmã? É quando um terremoto mata milhares de pessoas? Digo que gente é diferente? Que é errado dar tanto amor aos bichos? E é mesmo? Ah, sei lá.

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99 anos hoje

Ao Daniel, ao Douglas e ao J.R.,
um post escrito rapidamente porém de forma emocionada.

Não tive a menor chance. Meu pai e meu primo João Reinaldo não deixaram espaço para dúvidas ou negociação: eu seria colorado e ponto final. Meu primeiro jogo foi ironicamente no Estádio Olímpico – assim batizado certamente em honra às Olimpíadas de Porto Alegre -, um Inter 1 x 0 São Paulo pelo Robertão de 1967, gol de Lambari. Não pensem que não lembro do gol. Como todo torcedor de futebol tenho um imenso acervo de gols na memória e lembro sim. Meus primeiros anos foram complicados, o Grêmio foi heptacampeão gaúcho entre 1962 e 1968 e, no colégio, havia enorme pressão para que eu mudasse de time, mas eu temia ser desprezado por minha família se mudasse e aquele primeiro jogo, aquele primeiro gol, foi fundamental para que meu amor ficasse definitivamente com o time de camisas vermelhas que chegou a dois vices no Robertão, mas que parecia ser incapaz de enfrentar o Grêmio. O primeiro gol que comemoramos é como o primeiro sutiã da propaganda. É tão inesquecível que, depois dele, não se muda mais.

Em 1969, houve a inauguração do Beira-Rio; eu tinha 11 anos e meu pai repetia que, com o dinheiro do clube sendo revertido agora para o futebol, nós patrolaríamos o Grêmio. Mas o que tinha o dinheiro a ver com o futebol?, pensava eu. Fui na célebre inauguração do estádio, vi o gol de Claudiomiro contra o Benfica e não entendi nada quando Gainete deixou a falta batida por Eusébio entrar em nosso gol (Gainete alegou que era falta de dois toques e deixou a bola entrar quando poderia tê-la agarrado facilmente. O juiz deu o gol. Minutos depois, Gílson Porto livrou a cara de nosso goleiro.) Durante o mesmo “Festival” de inauguração – havia datas livres naquela época – vi o famoso Grenal da Pauleira: um zero a zero muito promissor para quem perdia sempre. O Grêmio foi amassado, mas era ainda um grande time e evitou a derrota. Ao final, 21 jogadores brigaram a socos e pontapés. As emissoras de TV passaram centenas de vezes os lamentáveis acontecimentos e comecei a desconfiar que jornalistas gostavam de coisas lamentáveis. Só Dorinho ficou de fora, olhando. Fiquei com raiva dele, tinha que ter brigado em vez de dar uma de bom moço! Urruzmendi e Gainete bateram nos gremistas de uma maneira que comprovava o fato de estarem no esporte errado. As televisões repetiam e repetiam especialmente uma voadora de Gainete, depois víamos os jornalistas balançarem negativamente a cabeça, afirmando que aquilo era uma selvageria e víamos as agressões mais trinta vezes durante os debates. No mesmo 1969, fomos campeões gaúchos. No Grenal decisivo, minha mãe (!) foi conosco e, quando não encontrava a bola em campo, procurava-a temerosa dentro de nosso gol. Tomava sustos. Resultado: 0 x 0 quando o Grêmio precisava vencer. Fomos finalmente campeões, coisa que repetiríamos até 1976, quando Figueroa e Minelli abandonaram o time. Mas antes, em 1975 e 76, fomos campeões brasileiros e vi o maior time do Inter jogar semanalmente. O campeonato gaúcho de 1974 foi algo nunca visto: um enorme campeonato em que ganhamos todos os jogos. Devia ser desanimador ou monótono para os adversários, mas nós achávamos normal. Em 1979, fomos novamente irrepetíveis ao vencer um Brasileiro de forma invicta.

Não vou escrever sobre as glórias do Inter até porque estou chegando ao grave período conhecido por Império Otomano, onde certamente o clube enriqueceu muita gente que pouco tinha a ver com futebol e porque o Grêmio virou o jogo e a coisa ficou sem graça. É incrível como me torno indiferente e intelectual nestes períodos; leio muito e consigo autenticamente ficar alheio. Quando o time melhora, coisa estranha, meu interesse recrudesce.

No centenário, gostaria de escrever uma série sobre a história do Inter, mas, para não fazer apenas imitação do Idelber, desejaria escrever sobre a enorme sedução que meu time exerce sobre mim, sobre o tempo que perdi-ganhei com ele, sobre o amor-desamor que me liga-desliga de meu clube de eleição (eleição, João Reinaldo?). Vou ao Beira-Rio 30 vezes ao ano, sei que os gremistas são meros equivocados, que nos divertimos muito mais e tenho absolutíssima razão ao dizer – muito antes que o Cacalo ficasse repetindo minha frase em programas de rádio – que o futebol é a mais importante das coisas desimportantes, que o futebol pode ser encarado como metáfora e representação da vida e como tal é uma arte que pode ser amada ou desprezada como alguns desprezam o teatro, por exemplo.

Eu estava preparando o final do post, mas lembrei da pergunta que um jovem, Daniel Cassol, do Impedimento, fez-me certamente em honra à minha idade: como foi ver o gol de Falcão contra o Atlético-MG nas semifinais de 1976?

Daniel, foi assim, exatamente assim:

“Estava no Beira-rio. O Atlético triturou nosso supertime da época no primeiro tempo. Não tivemos a menor chance e o 0 x 1 fora saudado como um bom negócio. Paulo Isidoro detonava nossa defesa. Só que o segundo tempo mostrou como um jogo pode mudar totalmente. O Inter passou a pressionar o Atlético de tal forma que era impossível que nosso gol não acontecesse. Só que ninguém avisou Ortiz – goleiro do Atlético-MG – desta impossibilidade. Aquele argentino não apenas pegava tudo, como atirava-se ao gramado, vítima de crudelíssimas e imaginárias lesões, que ocorriam a cada toque do adversário em sua delicadíssima constituição ou a cada momento em que era atingido pela brisa. O ódio que senti daquele argentino certamente deixou-me seqüelas irrecuperáveis que se estenderam por toda minha vida futebolística… O final da partida aproximava-se e Ortiz negava-se a admitir que os gols deviam acontecer. Chegamos então àquele momento em que, se a coisa não vai por bem, vai por mal. Batista arriscou um chute violentíssimo de longe, logo ele que era péssimo nisto, e acertou o ângulo de Ortiz. Gol. Foi uma vibração com som diferente, pois ao mesmo tempo em que comemorávamos, dizíamos horrores ao goleiro adversário. 1 x 1. Foi então que a magia tomou conta do estádio. Não há explicação para aquele gol. Quem viu o gol de Falcão, aos 45 minutos do segundo tempo, sabe: foi magia pura. A bola saiu do pé de Figueroa para Dario. Desde Figueroa, a bola não mais tocou o chão até bater no joelho de Ortiz e ir para as redes. Do pé direito de Dario, foi para a cabeça de Escurinho, da de Escurinho para Falcão e da de Falcão de volta a Escurinho. Então, o negão viu que Falcão entrava no meio da zaga atleticana para receber a bola de volta e fez o passe. Tudo de cabeça. Então a magia desfez-se mas, como todos estavam abobalhados vendo aquilo, o gol saiu assim mesmo. Falcão errou o chute, apenas raspou na bola. Só que Ortiz, hipnotizado por aquela bola que nunca tocava o chão, deixou-a bater em seu joelho e entrar. Não foi um frango, mas era um chute defensável. Luís Artime, grande artilheiro argentino, ensinava: 30% dos gols saem por “erro” do atacante… Foi o caso. Falcão enganou involuntariamente o odioso Ortiz.

“Quando Falcão marcou este gol – o mais bonito que vi em estádio até hoje -, eu não soube como comemorar. Não era gol para pular, pois não se pula, nem se soqueia o ar e grita na frente de um quadro de Vermeer. Desci uns três degraus das arquibancadas das sociais, subi de volta a meu lugar e sentei. Lembro que pensei, enquanto era quase pisoteado pelo resto da torcida: eu nunca mais vou esquecer este gol. Era tudo – emoção, estética, felicidade oceânica, adrenalina e surpresa pela vitória inesperada àquela altura -, foi tudo. E quem pulava a meu lado e me procurava para um abraço enquanto quase me pisoteava? Meu pai, é claro.”

E aqui, o gol:

Imagem de Amostra do You Tube

Agora, para finalizar, leiam este comentário de um atleticano, escrito em 17/05/2005:

Amigo Milton:

Realmente um dia teremos que reunir-nos para recordar juntos. Tenho memórias dos dois jogos, apesar de ser 11 anos mais novo que você.

Na final de 1975, eu ainda não tinha preferência clubística, mas lembro-me muito bem de ter os olhos na televisão, fixos, angustiado porque era o dia da formatura no pré-primário e eu era o orador da turma! Tive que sair de casa antes do gol de Figueroa, xingando, amaldiçoando os rituais. Desde então formei-me no primário, ginásio, 2o grau, licenciatura, mestrado e doutorado mas com muito orgulho nunca mais pisei numa formatura. Se há uma formatura à qual eu deva comparecer, faço questão de procurar um estádio de futebol, em memória de Manga, Figueroa e daquele primeiro inesquecível título.

De 1976, nem falar. Já atleticano, vivê-lo foi de partir o coração. Aquela tabelinha de cabeça foi uma das coisas mais inacreditáveis que já vi no futebol. Quando lembramos que aconteceu aos 44 do 2o de uma semifinal empatada, realmente dá para se ter uma idéia do que representou.

Belas, belas lembranças.

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Ela

Que saudade de quando tudo era mais simples, quando foi que mudou?
Frase que minha filha usa para descrever a si mesma no Orkut.

Foram quase quatro anos de espera. Começou numa manhã gelada de setembro de 2004, era antes das 7 da manhã e eu ia levá-la para o colégio; foi a primeira vez que disse aquilo que repetiria nos anos seguintes com todas as variações possíveis. Pai, quero morar contigo. Fiquei surpreso. Afinal, eu e minha segunda mulher morávamos num nada atraente apartamento de dois quartos onde não cabiam nem nossos prováveis dois mil livros. Além disso, sabia que minha ex, apesar de tratar-me como um cão, era boa mãe. A única justificava da Bárbara era sua vontade. Mas, meus amigos, que vontade! Nos primeiros dias, eu lhe respondia que ela devia ficar com sua mãe; afinal, lá havia pátio, cachorro, espaço, quarto individual, tudo o que eu não podia lhe dar naquele momento. Mas ela repetia que nada disso interessava. Expliquei-lhe que eu passava o dia trabalhando, que sua vida comigo não seria um enorme fim-de-semana. Ela respondia que já tinha pensado nisto e tudo bem. Propus-lhe seis meses para que refletisse melhor; se ela mantivesse sua decisão, eu falaria com a mãe dela. Confesso que enrolei um pouco mais, foram nove meses sem maiores comentários. Então ela voltou à carga com uma insistência multiplicada por nove. Tanto fez que fui falar um tanto desajeitadamente com a mãe.

Depois de alguma hesitação, ela lhe negou a permissão. Enquanto isso, eu e a Claudia fazíamos planos e contraíamos empréstimos para construir uma casa. Com ou sem minha filha, precisávamos de mais espaço. Então, houve dois fatos: um interno e outro externo. O fato interno é que concluí o óbvio: se não fizesse tudo para obter a guarda de minha filha, ela se magoaria para sempre. Imaginei-me pedindo o mesmo a meu pai, imaginei o ressentimento irremovível que teria se ele não agisse. Contei o fato para uma amiga psicóloga, ela me respondeu que os filhos deveriam sempre ficar com a mãe, a não ser que esta abusasse deles. Fiquei tão furibundo com esta opinião que rompi com ela. Uma psicóloga deveria saber que pães como eu (pãe é uma mistura de pai e mãe) transformam-se em feras quando vêem alguém afastar injustificadamente sua cria, mesmo que teoricamente. Entendi que deveria ir à Justiça. Abri processo em julho de 2006.

O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:

– Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.

A Justiça não serve para quase nada e, com sorte, só teria a guarda de minha filha quando ela completasse vinte e oito anos. Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa. No início deste ano, após ser massacrado por mais pedidos e perguntas de minha filha, após encher o saco de minha advogada, a qual solicitou inúmeras vezes pressa ao juiz sob os mais diversos argumentos, após pagar R$ 2.000,00 por duas sessões para que um perito psiquiatra garantisse que eu não era louco e nem para neurótico servia, vi ser nomeado um assistente social e um psicólogo para avaliarem os pais e a já adolescente. Tudo bem, é necessário, mas a lentidão de tudo isso…

Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito de sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar.

Não desejava mais incomodação e estresse; pedi, como último recurso, que minha advogada falasse com os advogados da outra parte a fim de evitar mais tensão. Queria um acordo.

Hoje, minha atual mulher mandou este e-mail para um pequeno grupo de amigos:

Caríssimos amigos,

entre sexta-feira e segunda, o Milton e eu vivemos talvez os dias mais desgastantes de nossas vidas.
Foram muitos e-mails enviados, muitos telefonemas e uma enormidade de angústia.
Na segunda pela manhã, depois de uma noite em claro – simplesmente não conseguimos dormir -, estávamos destruídos.
O Milton estava no limite e a desesperança se instalava enquanto estávamos sentados no escritório, mudos, às vezes nos olhando meio perdidos.
Eu mexia mecanicamente nos bilhetes soltos sobre a mesa dele e, de repente, deparei-me com um incrível bilhetinho.

Um lado do quadrado de papel estava inteiramente pintado com caneta esferográfica preta e no outro lia-se o seguinte:

Nunca perca a determinação.
Artista e escritora: Bárbara (filha).

Então, o Milton me olhou, sorriu e contou que ela tinha feito aquilo num dia em que esperava a hora de ir para a  equitação. Ela tinha explicado que aquilo era uma obra de arte que expressava a determinação que precisaria ter. A justificativa para a “pintura” residia no fato de que era exigida muita persistência para cobrir inteiramente um lado do papel, sem deixar nenhum espacinho em branco.

Ontem à tarde, parece que fechamos um acordo sobre a guarda da Babi. O termo, escrito por nossa querida advogada Rúbia Poletto, já foi revisado por todos. O Milton e a Rúbia já assinaram e remeteram aos advogados dela para que seja assinada. Será uma guarda compartilhada, mas ela vai morar conosco.

Se nada novo acontecer acho que a “determinação” da Babi venceu! Eu, que coadjuvo a história e há quatro anos torço por um final feliz, só queria compartilhar isso com os amigos.

Beijos a todos.

O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra:

– Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.

Bárbara e Maria Callas (a nariguda de cabelos pretos)

Obs.: Os parágrafos apenas grifados são ou da Bárbara ou de Diante da Lei, de Franz Kafka.

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