O ex-futuro hooligan ouve "Bola de meia, bola de gude"

Primeiro, uma conversa entre amigos; depois, a audição de Bola de Meia, Bola de Gude no rádio do carro e — pronto! –, voltei aos anos 60-70 e à infância passada na avenida João Pessoa, em Porto Alegre. Sempre acreditei ter vivido uma infância normal, porém, quando a comparo com a de outros, acho que a minha mais parece a história da formação de um delinquente. Eu morava numa grande avenida que cruza com outra, a Ipiranga. A Ipiranga tem um arroio no meio (o Arroio Dilúvio), hoje bastante poluído. Desde aquela época, havia inúmeras pontes que o cruzavam e “nossa ponte” era fundamental para nossas jovens vidas. Éramos um pequeno grupo de meninos de nomes duplos. Se bem me lembro, os mais criativos nas brincadeiras éramos o João Batista, o João Rogério e eu, que atendia por Milton Luiz.

“Nossa ponte” era e é a mais interessante de todas pois, curiosamente, tem palmeiras altíssimas sobre ela. Tínhamos o costume ir lá com a finalidade de jogar gatos vivos no leito do Dilúvio. Para nós, era uma coisa sublime ver os pobres bichos voarem lindamente e caírem no riacho. Os gatos se desesperavam, nos arranhavam, grudavam em nossas roupas e mordiam, mas não tinham a menor chance. Por bem ou por mal, nós queríamos vê-los voando, caindo e nadando apavorados de volta à margem. Sei tudo a respeito das possíveis defesas destes felinos. Aqueles que não eram de primeira viagem (ou primeiro vôo), transtornavam-se rapidamente depois de capturados e ficavam violentíssimos. Havia um branquinho que me dedicava ódio especial.

Mas isto é apenas uma descrição leve de minha delinquência. Minha principal habilidade era a construção de “bombas-relógio”. Tratava-se simplesmente de um rojão com um cigarro aceso enfiado no pavio. Era muito fácil de montar, mas sempre me chamavam para dar uma auditada na coisa. Eu era “O Especialista”. Dentro do meu colégio, fiz explodir vários vasos sanitários. Hoje, quando penso no perigo que aquilo representaria se alguém estivesse utilizando a privada no momento da explosão, começo a suar frio. Não sei como podia ser tão irresponsável, inconsequente, etc. Nunca descobriram o(s) autor(es) de tais barbaridades, porém acho que, se alguém se machucasse, eu me denunciaria e seria imediatamente expulso do colégio. Esquivo-me deste assunto quando estou com meus filhos, pois a infância deles é totalmente diferente, mas nem sempre é possível.

Então, em meio a uma conversa sobre crianças, a Bárbara e Bernardo começaram a suplicar para que eu lhes contasse algumas de minhas aventuras infantis. Como tenho alguma dificuldade para mentir, contei-lhes aquilo de que me esquivava. Ficaram pasmos, não é todo mundo que tem como pai um ex-hooligan.

(O que acho curioso é que dentro deste hooligan havia uma criança sensível, que amava sua irmã, chorava por qualquer coisa e deixava-se emocionar pelos filmes de bichinhos do Walt Disney…)

O que mudou durante o período que separa nossas infâncias? Creio que o principal foi a exacerbação do sentimento de insegurança da classe média, que nos empurrou para dentro de casa. Nossa geração vivia na rua, a deles não; nossos amigos eram encontrados por aí, já eles se visitam após convites, telefonemas e negociações; ficávamos afastados de pais e empregadas, enquanto que hoje estes superegos convivem com eles; nossa agressividade manifestava-se como descrevi acima, a deles é destilada em jogos de computador proibidos, onde recebem pontuação especial para matarem velhinhas indefesas. Será que a mudança foi realmente causada pela insegurança ou estou sendo superficial? Sei que este é um problema limitado àqueles que não são suficientemente ricos para se refugiarem num condomínio fechado, nem suficientemente pobres para não terem outras preocupações além da subsistência.

Ah! A canção “Bola de Meia, Bola de Gude” é um dos mais felizes casamentos entre tema, música e letra que conheço. Trata-se da mais alegre das melodias: é bonita, vivaz e ousada. A letra é a mais adequada: ingênua, fácil e descompromissada. E o tema é o do adulto que fala do menino dentro de si. Quando todos os elementos convergem na mesma direção, expressando a mesma ideia, não podemos pedir mais.

Bola de Meia, Bola de Gude

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão
Há um passado
No meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito, caráter,
Bondade, alegria e amor
Pois não posso, não devo, não quero
Viver como toda essa gente insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia Bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem prá me dar a mão

(Milton Nascimento/Fernando Brant)

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Permanência

A Sérgio Gonçalves

Aos que permanecem sobram as culpas,
esquecem que
todas as decisões são solitárias.

Solitária é
a decisão de pousar as mãos
e não escrever.

Solitária é
a decisão de erguer-se todos os dias
e trabalhar.

Solitária é
a decisão do que ouve
de não ouvir.

(Solidária é
a decisão de ensinar
e aprender.)

Solitária é
a decisão de chegar ao clímax
e descansar.

Solitário é o fim.

Solitários,
decidimos que o formigueiro,
pisoteado e destruído,

seja reconstruído.
Por cada um de nós,
solitariamente.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A convivência com a maldade e com o luto

E lá vou eu contar para minha filha que, na sua ausência, alguém deu uma salsicha envenenada para sua cachorra. Como se diz isso? E como se explica e consola depois?

Gosto muito de cães, sou o que se costuma chamar no sul de “cachorreiro”, mas não sou de verter lágrimas por bichos. Talvez tenha ouvido muito o Geraldo Vandré cantar “Disparada”, então acho que bichos são bichos, e com maior ou menor sofrimento são passíveis do marca, tange, ferra, engorda e mata…, mas com gente é diferente. Quando vi nossa Maria Callas — a Callas filhote pastor alemão de 5 meses que estava sendo ensinada pela Bárbara — agonizando debaixo da churrasqueira; quando minha mulher e eu, ambos de pijamas, a levamos para um plantão veterinário; quando ouvi que estava morta; quando soubemos que havia vomitado “salsichas”… que salsichas?, só dávamos-lhe ração; fui menos tomado de pena e luto do que pelo ódio de estar no lugar em que sempre quis estar, porém acompanhado de anônimos que, talvez desejando entrar depois na casa sem a indesejável presença de um cachorro, escolhe matá-lo, avisando-nos com toda a clareza suas intenções.

Minha mulher ouviu um ganido tão alto e desesperado que acordou. Assustada, me chamou. Começamos a chamar pela Callas. Nada. Chamamos o segurança da rua. O homem veio. Já estava achando que fora roubada quando a vi sob a churrasqueira, bem da maneira que os cães escolhem para morrer, escondidos. Não vejo motivo para que minha filha passe um longo luto e já providenciamos a compra de um filhote de 34 dias. Com seu amor pelos bichos, ela logo vai preocupar-se com o crescimento do substituto. Não quero não dar muito espaço para sua dor. O que mais posso fazer?

Dentro das circunstâncias, tudo muito razoável. Mas e as circunstâncias? Já sabemos que não podemos deixar o cachorro ir até a grade da frente da casa. Teremos que impedi-la disto, seu limite agora será a porta da garagem. E assim vamos nos adaptando às exigências de uma vida cada vez mais estreita e estranha. A grade já foi anormal, as muitas trancas também, os cães tornaram-se parte da segurança e alarme, há seguranças na rua e agora só podemos permitir que nosso cão fique numa grade atrás da grade, vendo a rua de longe. Tudo bem.

Preocupo-me mais em evitar um luto doloroso a minha filha. Desde que ela aprendeu a expressar seus desejos e até hoje, garante que será veterinária. Nossa única sorte que é neste fim de semana ela esteve com a mãe e apenas retorna ao meio-dia. O que dizer a ela? Falar que luto é como quando perdi o pai que me criou e de quem eu gostava demais? É quando um filho morre? É quando o vôo da TAM cai levando nossa irmã? É quando um terremoto mata milhares de pessoas? Digo que gente é diferente? Que é errado dar tanto amor aos bichos? E é mesmo? Ah, sei lá.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

99 anos hoje

Ao Daniel, ao Douglas e ao J.R.,
um post escrito rapidamente porém de forma emocionada.

Não tive a menor chance. Meu pai e meu primo João Reinaldo não deixaram espaço para dúvidas ou negociação: eu seria colorado e ponto final. Meu primeiro jogo foi ironicamente no Estádio Olímpico – assim batizado certamente em honra às Olimpíadas de Porto Alegre -, um Inter 1 x 0 São Paulo pelo Robertão de 1967, gol de Lambari. Não pensem que não lembro do gol. Como todo torcedor de futebol tenho um imenso acervo de gols na memória e lembro sim. Meus primeiros anos foram complicados, o Grêmio foi heptacampeão gaúcho entre 1962 e 1968 e, no colégio, havia enorme pressão para que eu mudasse de time, mas eu temia ser desprezado por minha família se mudasse e aquele primeiro jogo, aquele primeiro gol, foi fundamental para que meu amor ficasse definitivamente com o time de camisas vermelhas que chegou a dois vices no Robertão, mas que parecia ser incapaz de enfrentar o Grêmio. O primeiro gol que comemoramos é como o primeiro sutiã da propaganda. É tão inesquecível que, depois dele, não se muda mais.

Em 1969, houve a inauguração do Beira-Rio; eu tinha 11 anos e meu pai repetia que, com o dinheiro do clube sendo revertido agora para o futebol, nós patrolaríamos o Grêmio. Mas o que tinha o dinheiro a ver com o futebol?, pensava eu. Fui na célebre inauguração do estádio, vi o gol de Claudiomiro contra o Benfica e não entendi nada quando Gainete deixou a falta batida por Eusébio entrar em nosso gol (Gainete alegou que era falta de dois toques e deixou a bola entrar quando poderia tê-la agarrado facilmente. O juiz deu o gol. Minutos depois, Gílson Porto livrou a cara de nosso goleiro.) Durante o mesmo “Festival” de inauguração – havia datas livres naquela época – vi o famoso Grenal da Pauleira: um zero a zero muito promissor para quem perdia sempre. O Grêmio foi amassado, mas era ainda um grande time e evitou a derrota. Ao final, 21 jogadores brigaram a socos e pontapés. As emissoras de TV passaram centenas de vezes os lamentáveis acontecimentos e comecei a desconfiar que jornalistas gostavam de coisas lamentáveis. Só Dorinho ficou de fora, olhando. Fiquei com raiva dele, tinha que ter brigado em vez de dar uma de bom moço! Urruzmendi e Gainete bateram nos gremistas de uma maneira que comprovava o fato de estarem no esporte errado. As televisões repetiam e repetiam especialmente uma voadora de Gainete, depois víamos os jornalistas balançarem negativamente a cabeça, afirmando que aquilo era uma selvageria e víamos as agressões mais trinta vezes durante os debates. No mesmo 1969, fomos campeões gaúchos. No Grenal decisivo, minha mãe (!) foi conosco e, quando não encontrava a bola em campo, procurava-a temerosa dentro de nosso gol. Tomava sustos. Resultado: 0 x 0 quando o Grêmio precisava vencer. Fomos finalmente campeões, coisa que repetiríamos até 1976, quando Figueroa e Minelli abandonaram o time. Mas antes, em 1975 e 76, fomos campeões brasileiros e vi o maior time do Inter jogar semanalmente. O campeonato gaúcho de 1974 foi algo nunca visto: um enorme campeonato em que ganhamos todos os jogos. Devia ser desanimador ou monótono para os adversários, mas nós achávamos normal. Em 1979, fomos novamente irrepetíveis ao vencer um Brasileiro de forma invicta.

Não vou escrever sobre as glórias do Inter até porque estou chegando ao grave período conhecido por Império Otomano, onde certamente o clube enriqueceu muita gente que pouco tinha a ver com futebol e porque o Grêmio virou o jogo e a coisa ficou sem graça. É incrível como me torno indiferente e intelectual nestes períodos; leio muito e consigo autenticamente ficar alheio. Quando o time melhora, coisa estranha, meu interesse recrudesce.

No centenário, gostaria de escrever uma série sobre a história do Inter, mas, para não fazer apenas imitação do Idelber, desejaria escrever sobre a enorme sedução que meu time exerce sobre mim, sobre o tempo que perdi-ganhei com ele, sobre o amor-desamor que me liga-desliga de meu clube de eleição (eleição, João Reinaldo?). Vou ao Beira-Rio 30 vezes ao ano, sei que os gremistas são meros equivocados, que nos divertimos muito mais e tenho absolutíssima razão ao dizer – muito antes que o Cacalo ficasse repetindo minha frase em programas de rádio – que o futebol é a mais importante das coisas desimportantes, que o futebol pode ser encarado como metáfora e representação da vida e como tal é uma arte que pode ser amada ou desprezada como alguns desprezam o teatro, por exemplo.

Eu estava preparando o final do post, mas lembrei da pergunta que um jovem, Daniel Cassol, do Impedimento, fez-me certamente em honra à minha idade: como foi ver o gol de Falcão contra o Atlético-MG nas semifinais de 1976?

Daniel, foi assim, exatamente assim:

“Estava no Beira-rio. O Atlético triturou nosso supertime da época no primeiro tempo. Não tivemos a menor chance e o 0 x 1 fora saudado como um bom negócio. Paulo Isidoro detonava nossa defesa. Só que o segundo tempo mostrou como um jogo pode mudar totalmente. O Inter passou a pressionar o Atlético de tal forma que era impossível que nosso gol não acontecesse. Só que ninguém avisou Ortiz – goleiro do Atlético-MG – desta impossibilidade. Aquele argentino não apenas pegava tudo, como atirava-se ao gramado, vítima de crudelíssimas e imaginárias lesões, que ocorriam a cada toque do adversário em sua delicadíssima constituição ou a cada momento em que era atingido pela brisa. O ódio que senti daquele argentino certamente deixou-me seqüelas irrecuperáveis que se estenderam por toda minha vida futebolística… O final da partida aproximava-se e Ortiz negava-se a admitir que os gols deviam acontecer. Chegamos então àquele momento em que, se a coisa não vai por bem, vai por mal. Batista arriscou um chute violentíssimo de longe, logo ele que era péssimo nisto, e acertou o ângulo de Ortiz. Gol. Foi uma vibração com som diferente, pois ao mesmo tempo em que comemorávamos, dizíamos horrores ao goleiro adversário. 1 x 1. Foi então que a magia tomou conta do estádio. Não há explicação para aquele gol. Quem viu o gol de Falcão, aos 45 minutos do segundo tempo, sabe: foi magia pura. A bola saiu do pé de Figueroa para Dario. Desde Figueroa, a bola não mais tocou o chão até bater no joelho de Ortiz e ir para as redes. Do pé direito de Dario, foi para a cabeça de Escurinho, da de Escurinho para Falcão e da de Falcão de volta a Escurinho. Então, o negão viu que Falcão entrava no meio da zaga atleticana para receber a bola de volta e fez o passe. Tudo de cabeça. Então a magia desfez-se mas, como todos estavam abobalhados vendo aquilo, o gol saiu assim mesmo. Falcão errou o chute, apenas raspou na bola. Só que Ortiz, hipnotizado por aquela bola que nunca tocava o chão, deixou-a bater em seu joelho e entrar. Não foi um frango, mas era um chute defensável. Luís Artime, grande artilheiro argentino, ensinava: 30% dos gols saem por “erro” do atacante… Foi o caso. Falcão enganou involuntariamente o odioso Ortiz.

“Quando Falcão marcou este gol – o mais bonito que vi em estádio até hoje -, eu não soube como comemorar. Não era gol para pular, pois não se pula, nem se soqueia o ar e grita na frente de um quadro de Vermeer. Desci uns três degraus das arquibancadas das sociais, subi de volta a meu lugar e sentei. Lembro que pensei, enquanto era quase pisoteado pelo resto da torcida: eu nunca mais vou esquecer este gol. Era tudo – emoção, estética, felicidade oceânica, adrenalina e surpresa pela vitória inesperada àquela altura -, foi tudo. E quem pulava a meu lado e me procurava para um abraço enquanto quase me pisoteava? Meu pai, é claro.”

E aqui, o gol:

Imagem de Amostra do You Tube

Agora, para finalizar, leiam este comentário de um atleticano, escrito em 17/05/2005:

Amigo Milton:

Realmente um dia teremos que reunir-nos para recordar juntos. Tenho memórias dos dois jogos, apesar de ser 11 anos mais novo que você.

Na final de 1975, eu ainda não tinha preferência clubística, mas lembro-me muito bem de ter os olhos na televisão, fixos, angustiado porque era o dia da formatura no pré-primário e eu era o orador da turma! Tive que sair de casa antes do gol de Figueroa, xingando, amaldiçoando os rituais. Desde então formei-me no primário, ginásio, 2o grau, licenciatura, mestrado e doutorado mas com muito orgulho nunca mais pisei numa formatura. Se há uma formatura à qual eu deva comparecer, faço questão de procurar um estádio de futebol, em memória de Manga, Figueroa e daquele primeiro inesquecível título.

De 1976, nem falar. Já atleticano, vivê-lo foi de partir o coração. Aquela tabelinha de cabeça foi uma das coisas mais inacreditáveis que já vi no futebol. Quando lembramos que aconteceu aos 44 do 2o de uma semifinal empatada, realmente dá para se ter uma idéia do que representou.

Belas, belas lembranças.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Ela

Que saudade de quando tudo era mais simples, quando foi que mudou?
Frase que minha filha usa para descrever a si mesma no Orkut.

Foram quase quatro anos de espera. Começou numa manhã gelada de setembro de 2004, era antes das 7 da manhã e eu ia levá-la para o colégio; foi a primeira vez que disse aquilo que repetiria nos anos seguintes com todas as variações possíveis. Pai, quero morar contigo. Fiquei surpreso. Afinal, eu e minha segunda mulher morávamos num nada atraente apartamento de dois quartos onde não cabiam nem nossos prováveis dois mil livros. Além disso, sabia que minha ex, apesar de tratar-me como um cão, era boa mãe. A única justificava da Bárbara era sua vontade. Mas, meus amigos, que vontade! Nos primeiros dias, eu lhe respondia que ela devia ficar com sua mãe; afinal, lá havia pátio, cachorro, espaço, quarto individual, tudo o que eu não podia lhe dar naquele momento. Mas ela repetia que nada disso interessava. Expliquei-lhe que eu passava o dia trabalhando, que sua vida comigo não seria um enorme fim-de-semana. Ela respondia que já tinha pensado nisto e tudo bem. Propus-lhe seis meses para que refletisse melhor; se ela mantivesse sua decisão, eu falaria com a mãe dela. Confesso que enrolei um pouco mais, foram nove meses sem maiores comentários. Então ela voltou à carga com uma insistência multiplicada por nove. Tanto fez que fui falar um tanto desajeitadamente com a mãe.

Depois de alguma hesitação, ela lhe negou a permissão. Enquanto isso, eu e a Claudia fazíamos planos e contraíamos empréstimos para construir uma casa. Com ou sem minha filha, precisávamos de mais espaço. Então, houve dois fatos: um interno e outro externo. O fato interno é que concluí o óbvio: se não fizesse tudo para obter a guarda de minha filha, ela se magoaria para sempre. Imaginei-me pedindo o mesmo a meu pai, imaginei o ressentimento irremovível que teria se ele não agisse. Contei o fato para uma amiga psicóloga, ela me respondeu que os filhos deveriam sempre ficar com a mãe, a não ser que esta abusasse deles. Fiquei tão furibundo com esta opinião que rompi com ela. Uma psicóloga deveria saber que pães como eu (pãe é uma mistura de pai e mãe) transformam-se em feras quando vêem alguém afastar injustificadamente sua cria, mesmo que teoricamente. Entendi que deveria ir à Justiça. Abri processo em julho de 2006.

O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:

– Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.

A Justiça não serve para quase nada e, com sorte, só teria a guarda de minha filha quando ela completasse vinte e oito anos. Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa. No início deste ano, após ser massacrado por mais pedidos e perguntas de minha filha, após encher o saco de minha advogada, a qual solicitou inúmeras vezes pressa ao juiz sob os mais diversos argumentos, após pagar R$ 2.000,00 por duas sessões para que um perito psiquiatra garantisse que eu não era louco e nem para neurótico servia, vi ser nomeado um assistente social e um psicólogo para avaliarem os pais e a já adolescente. Tudo bem, é necessário, mas a lentidão de tudo isso…

Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito de sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar.

Não desejava mais incomodação e estresse; pedi, como último recurso, que minha advogada falasse com os advogados da outra parte a fim de evitar mais tensão. Queria um acordo.

Hoje, minha atual mulher mandou este e-mail para um pequeno grupo de amigos:

Caríssimos amigos,

entre sexta-feira e segunda, o Milton e eu vivemos talvez os dias mais desgastantes de nossas vidas.
Foram muitos e-mails enviados, muitos telefonemas e uma enormidade de angústia.
Na segunda pela manhã, depois de uma noite em claro – simplesmente não conseguimos dormir -, estávamos destruídos.
O Milton estava no limite e a desesperança se instalava enquanto estávamos sentados no escritório, mudos, às vezes nos olhando meio perdidos.
Eu mexia mecanicamente nos bilhetes soltos sobre a mesa dele e, de repente, deparei-me com um incrível bilhetinho.

Um lado do quadrado de papel estava inteiramente pintado com caneta esferográfica preta e no outro lia-se o seguinte:

Nunca perca a determinação.
Artista e escritora: Bárbara (filha).

Então, o Milton me olhou, sorriu e contou que ela tinha feito aquilo num dia em que esperava a hora de ir para a  equitação. Ela tinha explicado que aquilo era uma obra de arte que expressava a determinação que precisaria ter. A justificativa para a “pintura” residia no fato de que era exigida muita persistência para cobrir inteiramente um lado do papel, sem deixar nenhum espacinho em branco.

Ontem à tarde, parece que fechamos um acordo sobre a guarda da Babi. O termo, escrito por nossa querida advogada Rúbia Poletto, já foi revisado por todos. O Milton e a Rúbia já assinaram e remeteram aos advogados dela para que seja assinada. Será uma guarda compartilhada, mas ela vai morar conosco.

Se nada novo acontecer acho que a “determinação” da Babi venceu! Eu, que coadjuvo a história e há quatro anos torço por um final feliz, só queria compartilhar isso com os amigos.

Beijos a todos.

O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra:

– Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.

Bárbara e Maria Callas (a nariguda de cabelos pretos)

Obs.: Os parágrafos apenas grifados são ou da Bárbara ou de Diante da Lei, de Franz Kafka.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!