O estado de espírito deste que pouco vos escreve

Minha mãe morou por uns três anos numa edícula que há em minha casa. Ali, ficava com um fantástico time de “cuidadoras de idosos” (1). Porém, no último primeiro de maio, a levamos para uma casa geriátrica. Lá, haveria mais revisões médicas, além de fisioterapeutas, nutricionistas, etc., pois o estágio em que está a doença da Dra. Maria Luiza não permite que ela comunique nenhum problema, dor, sede ou fome. Pensa-se que ela sofra de uma doença parkinsoniana (como o Mal de Alzheimer) chamada Demência por Corpos de Lewy (ou Lewis). É quase a mesma coisa que o Alz.

Foi estranha sua saída daqui. Eu pouco ía ali atrás, mas ouvia tudo. Por um interessante fenômeno físico, o som sobe mais facilmente do que desce e eu ouvia cada grito durante o banho, cada reclamação e cada telefonema dado pelas cuidadoras. Estabelecia um controle não presencial e, para demonstrar minha ubiquidade, perguntava sacanamante sobre os assuntos que as cuidadoras discutiam durante seus telefonemas pessoais.

— E daí, e o caso da fulaninha, como ficou?

Tudo pela mãe da gente… Isto demonstrava que eu sabia de tudo, como se fosse o Grande Irmão de Orwell.

Ontem, 5 de julho, minha mãe completou 83 anos e, por uma dessas coisas inexplicáveis, ela estava interagindo com as pessoas. Cheguei lá às 14h30 e ela não apenas me reconheceu e chamou pelo nome, como disse que havia uma mulher chata que não parava de berrar no quarto ao lado. Este é um gênero de fato que faz os filhos pensarem numa impossível recuperação. Infelizmente, desejo não significa possibilidade. Sabemos que tais episódios de lucidez são como se ela tivesse encontrado algum canto limpo num parabrisa irremediavelmente sujo que logo receberá mais pó. Mas a gente gosta de se enganar e dizer que ela está melhor. E ontem estava muito melhor. Então a gente sai de lá animado, sem conseguir ou querer pensar que está sendo ilógico. Aproveitei para perguntar se ela estava bem, se sentia alguma dor.

— Não, Milton, estou muito bem.

Fazia meses que eu não interagia com ela. Em minhas visitas à clínica, ficávamos apenas de mãos dadas e eu dava-lhe uns beijos. Esta linguagem sempre foi bem compreendida. Pode estar no mais distante dos mundos, na maior das alucinações, mas, se sente um rosto próximo, faz um biquinho e beija. Porém, ontem ela bateu papo e deu risadas. Quando arrotou, por exemplo. Após reclamar que estava comendo um doce muito doce, pediu água e arrotou. Caiu na risada, prova de que seu vislumbre incluía alguma noção de conveniência. Quando propus-lhe passear na rua de cadeira de rodas, sua resposta veio no perfeito português que sempre utilizou:

— Não julgo conveniente.

OK, Maria Luiza.

Canso quando vou lá. Não parece me atingir — será isso o que chamam de “coragem”?… e o que seria não ter a tal coragem? — e apenas me dou conta quando volto para casa. Parece que corri 10 Km. Me dá vontade de dormir. Perco a fome. Meus desejos ficam simples e nem quero ver meus inimigos pendurados nas árvores (2). Me bastaria um final de vida sem dor para minha bobinha feliz… Acho que ela poderia ficar igualzinha a quem vê muita TV, né?

-=-=-=-

(1) Uma delas, A MELHOR DE TODAS, está desempregada. Quem precisar que aproveite. Tenho o telefone dela.

(2) Citação de famoso trecho de Heine, que não tem nada a ver com a circunstância descrita:

Eu tenho uma mentalidade pacífica. Meus desejos são simples: uma cabana modesta, telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite e manteiga; em frente à janela, flores; em frente à porta, algumas belas árvores. E, se o bom Deus quiser me fazer completamente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos nelas pendurados. De coração comovido eu haverei, antes de suas mortes, de perdoar todas as iniqüidades que em vida me infligiram — sim, temos de perdoar nossos inimigos, jamais antes, porém, de eles serem enforcados.

Trad. de Marcelo Backes.

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Também amor, penso

Elogio (da inteireza)

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

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A Autocensura

Post publicado em 24 de maio de 2007 e republicado agora com adaptações e cortes. É que ontem soube de mais um processo de separação que utiliza como provas o conteúdo de um blog. Desta vez de uma mulher. Quando publiquei este post, recebi dois comentários que achei notáveis e os publico ao final do post.

A moda está pegando. Como todos os posts confessionais dizem a verdade (?); então qualquer advogado lê um texto que escrevemos e o utiliza num processo familiar. Mas não é bem assim. Acreditar em nós é perigoso por várias razões.

A primeira razão é a mais humana: num texto confessional e mesmo naqueles de aparência visceral, o blogueiro ou escritor está publicando o que decidiu publicar. Os posts são seletivos como nossa memória, que arquiva os acontecimentos com alterações que podem deixá-los no formato de livros com belas capas para serem colocados na estante — podendo descer dela a qualquer momento — , ou ficam impressos com sangue, lágrimas ou lama para reaparecerem quando do Grande Ressentimento ou da Grande Irritação. Há infinitas formas de arquivamento, tudo depende do caso contado e da personalidade e honestidade de quem conta. E vêm misturados com sentimentos. Não são como os antigos diários, são diários ou textos ou ficções ou resenhas ou crônicas para serem expostas e, portanto, recebem tintas de exagero, contenção, poesia, educação, correção, escatologia, putaria, etc. Respondam: são prova de alguma coisa? Não há outro modo de se produzir provas?

Uma vez, estava no telefone conversando com o Carpinejar e lamentei sinceramente alguns graves problemas que o poeta tinha relatado em seu blog. Ele me respondeu:

— Problemas? Que problemas?
— Pô, cara. Aqueles lá com a tua mulher.

Ele ficou hesitante e, inesperadamente, estourou numa gargalhada. Depois, respondeu:

— Então, tu acreditaste naquilo? — disse ainda rindo.
— Mas…
— Milton, é tudo mentira. Teve gente que me ligou, ligaram até para a minha mãe perguntando. É normal, já aconteceu muitas vezes. Eu uso pessoas da vida real, só que as histórias são inventadas.

Se houver difamação é outro problema — e isso o Fabrício não fez. Estamos aqui discutindo a veracidade de textos que estão entrando em processos judiciais. Por quê?

Anteontem, uma amiga que descreve seus casos amorosos num blog foi acusada de puta e vagabunda num processo. O pai de seu filho quer a guarda da criança. As provas? Ora, os poemas e textos publicados em seu blog, que narram “experiências diárias”. Piada, né? Suas experiências diárias ocorrem na frente do computador, sozinha, insone, enquanto o filho dorme. Senão não passaria tantas horas no twitter…

De minha parte, já falei o que considerava as maiores verdades, procurando ser frio, claro e racional, mas também já casei com Juliette Binoche (nosso caso era puro sexo e durou anos, nunca tivemos problemas, apesar de eu não falar francês), já mantive diálogos com outros Miltons que eram eu mesmo, só que uns anos antes ou depois e ,ah, no meu aniversário do ano passado estava namorando Sophie Marceau, lembram? (Sempre o problema do francês, merde!) É claro que estou utilizando exemplos extremos nos quais só um idiota acreditaria, porém como ficam os casos intermediários, aqueles em que as confissões são romanceadas com jeito e cheiro de verdade, mas que talvez sejam apenas desejadas?

Minha ex fez isso num processo. Lá, havia trechos escolhidos deste blog. Em um deles, o mais importante, meu filho protege sua mãe de mim. Estou a sós com ele. Duas frases são trocadas num post sobre rock. Eu começo a falar mal de Pâmela (ou Suélen, não lembro) e ele interrompe dizendo que aqueles são problemas nossos. Só. Era uma forma de mostrar que o Bernardo sabia das coisas. Ele sabe mesmo e minha intenção apareceu nos comentários dos leitores: disseram que ele tinha mais bom senso do que eu. Porém, no processo, foi uma atitude de mau pai… Claro, tive de responder com o blog inteiro, com todos os posts. Na metade do ano passado eram mais de mil páginas. Muita gente sabe de minhas opiniões sobre Suélen (ou seria Pâmela?), mas não sou louco de preencher a vida de meus filhos com reclamações contra sua mãe. Eles me detestariam. (A propósito, as mulheres do “Porque Hoje é Sábado” foram para o juiz? O doutor achou essa aqui gostosinha?)

Bem, mas há mais: o fato de manter um blog “bem montado” – expressão de sua advogada – seria prova de que passo muito tempo trabalhando nele e, se acrescentarmos a isto algumas viagens que faço, pronto!, chegamos à conclusão de que tenho largo tempo livre e um estilo de vida, digamos, confortável. Lendo aquilo, senti-me como um malandro da velha guarda carioca.

Cervantes reclamava que não lhe davam muito dinheiro, mas admite que, se lhe dessem, iria se divertir mais e escrever menos. Queixava-se que seus mecenas sabiam disso e o mantinham à mingua. Interessante. (Oh, sei. Comparar Milton Ribeiro e Miguel de Cervantes é caso de internação.)

Neste ínterim, tenho exercitado a autocensura. O blog piorou, também sei. Entre alterar meu texto em função de um advogado e não publicá-lo, tenho escolhido a segunda opção. Então substituo o post previsto por algo sobre futebol ou tiro sarro da Igreja Católica. Afinal, o Papa não pára de dizer besteiras nem o Inter de fazê-las. Permanecerão no micro até não sei quando. Ou será que tudo isto é mentira e não tenho textos por publicar nem ex-esPosa? (Pronunciem esPosa com pê cuspido, por favor.)

E agora, publico este ou não? Assim mesmo, cheio de parênteses?

Comentário do Dr. Claudio Costa:

Já aprendi – com Lacan, veja só! – que o significado do que se diz é dado por quem escuta e não por quem fala. Freud, muito antes, já descobrira que a chave da interpretação está com o analisando, não com o analista. Este, quando não atrapalha, oferece a escuta e… aí o analisando diz e exclama: -“Eu sabia!”. Assim vivemos: num mundo imaginário onde até mesmo a imagem de si mesmo é constructo imaginário, putz! Por isso acredito piamente em TUDO que você escreve – o que é a mesma coisa que dizer: “não acredito em NADA” disso.

Comentário de Maria Elisa Guimarães, a Meg:

MILTON, Olha, não entendo de muita coisa, mas algumas, as de que vou falar aqui, pelo menos, ENTENDO e não é POUCO, entendo muitíssimo. 1- Muito embora, hoje em dia, um email seja aceito com prova num processo e qualquer bom advogado já saiba disso – felizmente, ainda não mudou absolutamente NADA, a respeito da questão da VEROSSIMILHANÇA, conceito este que não significa e à vezes é muito diferente da VERDADE ou pelo menos da *relação* desta com a realidade.. 2- Textos literários ou poéticos trabalham com o simulacro, (e muita gente desconhece o real sentido dessa palavra) e não com fatos. O *simulacro* , grosseiramente simplificando, é a MÍMESE, uma espécie de representação livre do que se viu ou se vê na realidade. Nesse caso, seria muito bom que todo mundo lesse as tragédias gregas. Há muito o que aprender lá. Por outro lado, uma crônica, um conto, um romance, ou um texto que se pretenda literário, tanto que se publica, não é notícia , é literatura!! Boa ou má, mas sempre literatura e não jornalismo investigativo. Nem depoimento. 3- E mais uma coisa, e disso entendo mais ainda: o “mundo não é dos inocentes”, e definitivamente, “justiça é balela, é conto de fadas”. Parece, só parece, pelo que tenho visto, na História antiga ou recente, que sai-se melhor SEMPRE quem está ou ao lado dos poderosos ou ao lado de quem lhe oferece mai$$$. Ou dos que parecem poder oferecer. Espero que te saias muito bem nesse caso que já se arrasta (e estou falando na condição de leitora e portanto quem lê teu blog sabe algo sobre esse caso, pelo menos o que permitiste que soubéssemos). Um dia as chateações todas acabam! Um dia tudo acaba. E de preferência, antes que nos tornemos ressentidos ou amargos. Solidarizo-me contigo: eu sei o que é a injustiça: dá vontade de morrer. Um beijo M.

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Dia das Mães e das Madrastas

Madrasta, na linguagem do preconceito, é uma mulher má. No dicionário, é como se chama o parentesco de uma mulher casada em relação aos filhos que o marido teve em um matrimônio anterior. Legalmente, é parente em 1º grau por afinidade, seja pela aparência social, seja pela convivência familiar duradoura. Os filhos do pai fazem parte da família da madrasta pelos parentescos socioafetivos e, hoje, tanto estes quanto os biológicos são reconhecidos. São conceitos diferentes, mas não se excluem, ainda mais aqui em casa.

Para os que se prendem a cânones arcaicos, a madrasta é uma figura que passa a existir apenas se a mãe biológica morre. Porém, no cotidiano, é quem conquista com paciência e afeto uma relação delicada, suporta as incompreensões, arca desapegadamente com responsabilidades sobre os enteados e ainda sente orgulho deles.

Creiam, os enteados podem gostar dela sem desgostar da mãe, não é uma competição.

É necessário aceitar que o mundo deu voltas e há novas acepções do conceito de família assim como novas formas de relações sociais. As pessoas se vinculam tanto pelo casamento quanto pela convivência, tanto pela filiação biológica quanto pela socioafetiva, e há que entender que o termo “família” não somente apresenta novas conceituações como são estruturas perfeitamente miscíveis no entendimento dos filhos, que ganham com isto.

Quando há insegurança emocional da mãe biológica, a madrasta deve suportar o desgaste e apoiar os enteados, às vezes repetidamente submetidos a lamúrias que transformam momentos de bom convívio num jogo de culpas desnecessário e destrutivo. E a madrasta, neste caso, faz o quê? Compensa tratando ainda melhor seus enteados e segue doando-se. Os enteados sabem.

A madrasta que mora conosco é assim e, por isso, seria uma violência esquecer dela no dia de hoje. Ela não precisa de um Dia da Madrasta, o das Mães lhe serve perfeitamente mesmo que ela não seja uma. Ou quem sabe é?

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Dr. Milton + Heine sobre o Quixote + Heine

Escrito e não publicado em 17 de feveireiro de 2010. O resto é de hoje.

Datas são datas e é inevitável que as repitamos a cada 365 dias. Basta viver um ano e lá estou eu até o pescoço com um novo 17 de fevereiro, aniversário de meu pai, que hoje faria 83 anos. O Dr. Milton Cardoso Ribeiro morreu em 1993 e, desde 1994, o dia 17 é um mau dia. Ir ao cemitério? Não faz diferença ir ou não, já é ruim o bastante saber que não vou vê-lo e que não haverá festa hoje. O fato é que me faz mal ir ao cemitério. O que há atrás do mármore — ossos escuros dentro de uma pequena caixa de madeira, pois, pelas regras da instituição, o caixão é retirado após determinado prazo para haver espaço para as novas mortes da família — tem muito pouco a ver com minhas lembranças. Trata-se apenas de um mármore com seu nome e foto colados. Se lembro de meu pai com voz, tato e música, então para que manter contato com uma representação fria e insuficiente dele, uma redução com flores na frente? Não vou lá, mesmo que digam que herdei seu humor, ironia e amor a muitas coisas. Devo ter herdado também alguma coisa de sua iconoclastia…

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Uma tradução alemã do Quixote, editada em 1837, vinha acompanhada de um prefácio escrito por Heine. Encontrei parte do mesmo dentro de um pequeno ensaio de Otto Maria Carpeaux. Anotei uma interessante observação do poeta alemão:

A obra de Cervantes é o primeiro verdadeiro romance da literatura universal, o mais antigo romance que continua lido até hoje. É uma obra em prosa, e esse fato é da maior importância. Antes da data fatídica de 1605, todos os grandes poetas escreveram suas obras em versos; ora, o mais prestigioso gênero literário em versos, sempre fora considerada a epopéia. Cervantes, porém, é o primeiro grande escritor da literatura universal que preferiu a epopéia em prosa: o romance. Desses fatos tirou Heine a conclusão de que o verdadeiro tema do Dom Quixote é a derrota da poesia pela prosa. Dom Quixote é o último ou um último representante da poesia de tempos idos. Mas é derrotado pela implacável prosa da realidade. A poesia, com todas as suas imaginações fantásticas, é derrubada assim como Dom Quixote, O cavaleiro da Triste Figura, caiu do seu cavalo Roncinante, caricatura do cavalo alado Pégaso. O caso nos faz rir, mas não sem deixar, atrás de si, uma melancolia nostálgica. E essa harmonia do ridículo e do melancólico é o humor cervantino.

-=-=-=-=-

E agora, para finalizar, a prova de que, além de super-humorista, super-poeta, super-dramaturgo e super-novelista Heinrich Heine era um amor de pessoa:

Eu tenho uma mentalidade pacífica. Meus desejos são: uma cabana modesta, telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite e manteiga; em frente à janela, flores; em frente à porta, algumas belas árvores. E, se o bom Deus quiser me fazer completamente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos nelas pendurados. De coração comovido eu haverei, antes de suas mortes, de perdoar todas as iniquidades que em vida me infligiram – sim, temos de perdoar nossos inimigos, jamais antes, porém, de eles serem enforcados.

(Tradução de Marcelo Backes.)

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Livros melhores que filmes — A Reação! — e um conto de PQP Bach…

A Caminhante, certa vez escreveu um post falando sobre a sistemática superioridade dos livros sobre os filmes análogos. Penso que ela tenha razão em grande parte e deixei o assunto em suspenso, mas ontem, ao comentar o fato com meu filho Bernardo, ele teve uma reação inesperada. Primeiro uma risada. E depois o argumento:

— Pai, empresta para ela A Laranja Mecânica do Burgess, Jules e Jim do Roche, O Conformista (1) e A Estratégia da Aranha (2), feitos pelo Bertolucci, todos os livros em que o Kubrick se baseou e todos os que usou o Hitch! Nada a ver! Vá se …

Dear Walker, perdoa os 19 anos do menino.

(1) De Alberto Moravia
(2) De Jorge Luis Borges

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A Décima de Beethoven (*)

— E daí, gatinha, tenho uma coisa pra te mostrar.

— Xiii…, eu não curo reumatismo, viu?

— Nada disso, princesa, quero te mostrar aqueles motivos curtos e repetitivos.

— Repetitivos está OK, mas curtos…?

— Sim, e afirmativos.

— Em riste?

— Certamente! Vamos para aquele cantinho ali? Me parece mais adequado.

Os dois vão e sentam, a mulher prepara-se para os amassos quando o homem tira um fone de ouvidos do bolso e um celular. Arruma tudo e enfia no ouvido da gata.

— É a 10ª de Beethoven.

A mulher faz uma cara de decepção e responde.

— Um, eu não estou aqui para ouvir eruditos, quero testosterona, meu! E, dois, Beethoven jamais chegou à décima, assim como tu jamais chegarias à 2ª, quiçá à 1ª!

— Minha cara, nada disso. Acabam de remontar o primeiro movimento da décima.

— Quem?

— Um Wyn qualquer coisa.

— Vin? A propósito, podias ser um cavalheiro e pedir um vinho pra aquecer.

— Garçon!

— Então podemos retirar Beethoven da “Maldição da Décima”?

— O que é isso?

— Véio, tu não sabes que Bruckner, Mahler, Dvorargh, Beethoven e Spohr escreveram nove sinfonias e aí veio um raio e fulminou com todos? Isto é, com um de cada vez… Não sabia?

— Mas Mahler fez o Adagio da Décima.

— Sim, mas era um adagio, não tinha muita ação. Aquilo lá devia estar moribundo como o teu Ludwig van.

— Então a décima é perigosa? Pode matar?

— Sim, haja disposição para chegar lá…

— Eu tenho.

Ele bem que tentou, mas acabou por deixar a terceira inacabada. Ainda hoje se encontram. Ela, feliz, faz o papel de furacão maduro, ele, não menos, o de pau amigo.

(*) PQP Bach não deu título à sua narrativa. Desto modo, batizei-o eu.

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O vulcão Eyjafjallajokull aqui em casa

A Bárbara faria sua primeira viagem à Europa. Acompanharia sua mãe num Congresso em Praga e depois iria à Paris. Viajariam no dia 21. Mas tudo foi cancelado. Ontem à noite, ela estava chorando no quarto, uma pena.

A única notícia boa do vulcão seria um possível esfriamento do planeta, porém as últimas notícias dizem que nem isso ocorrerá: ele só é suficiente para provocar caos. Leio que há passageiros em pânico. As companhias aéreas deixarão de pagar hoje suas estadas nos hotéis — seria uma espécie de “Prazo Esgotado — Agora vire-se por si mesmo” — , e eles, em final de viagem, estão sem grana e com os cartões estourados.

A grande nuvem agora ameaça ir para o Canadá. Nos séculos passados, isto seria apenas uma erupção, nem sonharíamos com as consequências. Hoje, a gente é informado, fica paranoico, previne e dá palpites sobre o que desconhece… Melhor hoje.

Abaixo, uma foto do aeroporto de Hamburgo hoje pela manhã. Ninguém avisou o sujeito?

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Minha filha e o Sea Shepherd

Um pouco de paranoia nesta segunda-feira. Minha filha Bárbara, 15, enviou uma correspondência ao Sea Shepherd. Quer participar de uma expedição dentro de 3 anos e deseja saber como pode qualificar-se a fim de ser aceita. Eu não duvido de nada. Sua teimosia e insistência tem se mostrado vencedora nos projetos onde se mete. Conseguiu um cavalo para praticar hipismo na base de pedir sempre dinheiro em vez de presentes — chegou ao valor após três anos de poupança furiosa. No ano passado, decidiu melhorar em algumas matérias (cobrança furiosa de estudos e leituras de minha parte…): chegou com sobras a seus objetivos, a custo de muito estudo e perda de festas — decisão dela, não sou de proibir nada. Na semana retrasada, decidiu que ia votar nas próximas eleições de qualquer maneira, mesmo completando 16 anos apenas uma semana antes de 3 de outubro — fez tudo sozinha até obter o título (motivo da moblização: alguns de seus colegas anunciaram que votariam no Serra e ela desejava compensar a estupidez de ao menos um deles). No mês passado, escreveu um plano de carreira: vai prestar vestibular para Veterinária na UFRGS, só na UFRGS; depois de um ano, trancará a matricula para ir numa expedição da Sea Shepherd; voltará; se formará; fará uma pós na Europa, se especializará em equinos e retornará para criar cavalos…

A vida, a juventude e a aventura são dela. É maravilhoso ter 15 anos. Eu também fazia planos com esta idade, só que os trocava diariamente. Conhecendo a obstinação da Babi, eu não duvido de nada, ainda mais que ontem um membro da Sea Shepherd respondeu simpaticamente a ela e já estão de papo. Para o e-mail introdutório, tivemos que conseguir um bom tradutor, pois ela se decidira por um texto em inglês impecável, que demonstrasse humildade e peremptória vontade de trabalhar e participar, mesmo em condições extremas.

Acho que tenho uma guerrilheira ecológica em casa. Mas sou pai, caralho. Ontem, perguntei se ela toparia queimar uns eucaliptos por aí… Seus olhos brilharam! Falando assim, parece que a Bárbara é pouco feminina ou vaidosa. Nada disso, é muito feminina, delicada, carinhosa e uma mula de teimosa… Toparia sim uma invasão à Aracruz e certamente aceitará tanto fazer filmagens quanto lavar o convés do capitão Paul Watson. Tenho certeza de que o terrorismo ecológico crescerá muito nos próximos anos e é óbvio que preciso me informar a respeito. Ainda mais que, em janeiro deste ano, os japoneses caçadores de baleias do Shonan Maru 2 abalroaram o catamarã da Sea Shepherd, Ady Gil, partindo-o em dois. Prevejo que a relação dos ecologistas com os matadores de baleias, golfinhos e outros animais marítimos ficará cada vez mais violenta e preferia que a Bárbara não estivesse na linha de confronto, mas a gente não cria nossos filhos e consciências para gente, o que pode ser correto, mas também é uma pena.

Se você não imagina do que estou falando, ligue no Animal`s Planet nas quartas-feiras às 22 horas e veja o documentário em capítulos Whale Wars. O gordinho de cabelos brancos do link ao lado é Paul Watson.

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A sósia da Bárbara

Ela se chama Tal Wilkenfeld, nasceu em Sydney, em 1986, é uma virtuose do baixo e é a cara da minha filha Bárbara, de 15 anos. Quinta-feira, seu irmão Bernardo entrou aqui em casa e disse que tinha que me mostrar um vídeo. Fiquei besta. Parecia a irmã dele. Deixo com vocês dois vídeos da moça, sempre muito bem acompanhada por Jeff Beck. O primeiro vídeo começa com o célebre tema Good-bye Pork Pie Hat, visceral homenagem de Charlie Mingus à Lester Young, e depois envereda para Brush With The Blues. O segundo é uma brincadeira entre Wilkenfeld e Beck, que tocam o mesmo baixo ao mesmo tempo. E, finalizando, duas fotinhos da minha Babi. Esclarecimento importante: ela é quem aparece do lado direito…

Fotos: Bernardo Ribeiro

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Minhas Lígias

Eu nunca sonhei com você
Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba
Não vou a Ipanema
Não gosto de chuva
Nem gosto de sol

LÍGIA, Tom Jobim

Minhas lígias têm pouco da musa de Tom Jobim. Nenhuma delas dá aula para minha filha — bem, uma delas É minha filha e a outra muitas vezes ensina alguma coisa à primeira — mas o que as tornam lígias são suas posturas na praia. Sim, passamos o fim-de-semana na casa de minha irmã, em Xangri-lá. Estava tudo ótimo: havia sol, calor, boas acomodações, bons amigos, cozinha extraordinária, vento aceitável e a casa de minha irmã e de seu marido é excelente. Eu e a primeira lígia tínhamos uma suíte! Só que minhas lígias… Bem, a mais morena delas ficou meia hora deitada no sol, ao lado da casa, e retornou de sua aventura com queimaduras apavorantes. Impossível tocá-la depois daquilo. A loira só aceitou viajar à praia sob a condição de acordar quando bem entendesse e de que não fosse forçada a ir àquele lugar terrível, o mar. Não obstante minhas peculiares lígias, estava muito bom.

Nós enquanto praia. A primeira acorda às seis da manhã e vai ler em algum lugar, normalmente sobre o gramado que circunda a casa; a segunda acorda às 12h30. Eu acordo às 9h30 e ouço a conversa da primeira com minha irmã. Elas me oferecem café. Fico sabendo que meu cunhado já saiu para correr e vou dar uma olhada na segunda lígia; ela dorme numa posição verdadeiramente estranha — as pernas estão na posição de quem corre, mas, curiosamente, está deitada de costas. O torso dorme serenamente voltado para o teto, as pernas fogem para algum lugar. É como se ele fosse uma figura egípcia da cintura para baixo. Os braços estão erguidos, os punhos acima da cabeça, como se comemorasse um gol. Os cabelos loiros cacheados do papai estão em todo lugar. Apesar da posição bastante original, faz uma bela figura. Devia fotografar, mas cadê a máquina?

Ninguém sai de casa. O cunhado volta e começa a trabalhar. É um médico de multitalentos. Explicando melhor, é um médico que poderia ter abraçado qualquer — ou todas — as profissões. Então, nas horas vagas, é pedreiro, carpinteiro, eletricista, pintor e jardineiro. Passará o dia inteiro trabalhando em sua casa absoluta e cada vez mais pronta. Parece feliz e não se importar muito com nosso sedentarismo. Gasto uma hora decidindo se corro ou leio. Corri um dia, li nos outros. Minha irmã não gosta de praia, mas gosta de sol e vai assar um pouco. Pontualmente às 12h30, a segunda lígia aparece em versão não egípcia, toma café e se atira sobre As Virgens Suicidas, de Jeffrey Eugenides. Não é o momento de entabular conversações com ela. Está mal-humorada, há que esperar meia hora para ficar pronta. O que vamos comer? A primeira lígia resolve isto com a minha irmã, isto se o cunhado não resolver pôr a churrasqueira em funcionamento. Surge uma batida de cachaça com abacaxi, feita pela primeira. Eu, o cunhado e sua mulher bebemos bastante. As lígias não gostam de nada, nem de beber.

O almoço é arrasador e a tarde é passada tranquilamente. Eu ligo o notebook e o deixo nuns mp3. Corrijo uns arquivos e depois durmo um pouco. As lígias leem ou veem TV ou jogam cartas. Vão a uma videolocadora e pedem o DVD de As Virgens Suicidas. A atendente só fica olhando, duvidando das duas. Será que é um erótico? Chega a hora em que gosto de ir à praia, 17h30. Me animo e faço convites. A adesão é mínima. Uma preenche palavras cruzadas, a outra revira os olhos só de pensar na possibilidade de areia e mar. Me pergunta se há cavalos por lá. Vou caminhar um pouco. O que vamos comer?

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As mulheres

Abaixo, uma conversa que eu e minha mulher, Claudia Antonini, tivemos no MSN esta manhã.

Acho que demorei a adolescer. Deixem eu recomeçar: sei que demorei a adolescer. Lembro que meus amigos faziam coisas que eu, uma criança, temia. Não fiquei muito traumatizado, mas só eu conhecia a inferioridade que sentia e escondia. Depois, equiparei-me a eles, mas a noção de atraso ou lentidão deslocou-se para as mulheres. Posso ter meus méritos aqui e ali, mas há algo no gênero de inteligência delas que me escapa definitivamente. Tenho-lhes inveja. Às vezes me irrito com as confusões nas quais as mulheres são especialistas, porém foram incontáveis as vezes em que fui salvo, aconselhado ou conduzido por elas. Só eu sei que a minha piada no MSN, apesar de fraca, foi tão verdadeira como as boas piadas são. Pois só eu conheço a inferioridade que sinto e escondo.

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Traição

Acordei hoje com considerável dor de cabeça, algo que era habitual até meus vinte anos, mas que não me ocorre mais. Dizem que eu sofria de enxaqueca, principalmente porque a luz piorava tudo. Logo descobri que o melhor era ficar num quarto sem muita luminosidade, lendo ou ouvindo música. Em algumas horas, voltava ao normal. Há pouco tomei um paracetamol. Ele resolveu o que nenhum remédio resolvia antes.

Por que será que a gente encafifa com assuntos passados sem nenhuma relação com o presente? Pois hoje, sei lá por quê, enleei-me num episódio cômico ma non troppo de uns dez anos atrás. Sorria enquanto tomava café. Meu casamento estava charfurdando na crise que o matou, eu ainda vivia com minha ex, mas não havia nenhum interesse nem dela, nem meu. A gente ficava junto por inércia e por não ser ruim o suficiente para sair batendo a porta. Éramos apenas amiguinhos. Não obstante, eu mantinha a fama real de não trair. E não traía mesmo.

Como sói acontecer, o local mais espetacular que frequentava era a academia. O resto era assexuado: trabalho, crianças, até amigos e amigas. Eu era uma espécie de piadista oficial da academia ou, sendo mais veraz, diria que era um dos vários focos de geradores de assuntos e atenção. Aquilo me deixava feliz, vaidoso. Alongava, cumpria todo o treino com afinco (verdade, adoro!), corria meus trinta minutos, alongava de novo e conversava muito durante os intervalos e no final. Contribuíam para isso o café, o chimarrão e a cozinha sempre aberta da enorme ex-residência onde se esbelecera a academia. Raramente faltava a meus dois os três compromissos semanais lá.

Claro, um dos sintomas que quem está a fim de trair é o de reservar amigos para si e a turma da academia era só minha. Lá, a presença de minha ex — chamada Suélen ou Pâmela, nunca lembro –, seria imprópria e, verdade seja dita, ela nunca quis juntar-se a nós, sinal inequívoco de que o que havia aqui, talvez houvesse lá. Então, não eram necessárias grandes preocupações nem cavar ou pedir um espaço para mim. Este me era dado de presente. Havia, ora se não, minhas instrutoras preferidas e aquela com a qual mais gostava de fazer meus alongamentos e receber orientações era a dona da academia. Muito competente, tinha uns dez anos a menos do que eu (deve ter ainda, parece que isto não costuma alterar-se…) e não costumava deixar sem respostas nenhuma das minhas perguntas sobre encurtamentos e nódulos musculares. Principalmente os do pescoço. Algumas vezes pedia-lhe que dissolvesse aqueles nódulos com massagens, o que ela fazia com miraculosa habilidade.

Alongamentos, encurtamentos, etc. e não lembro como a conversa esquentou, mas posso garantir que foi subitamente, sem obedecer a nenhum planejamento. Com o papo indo por aquele caminho que faz uma parte de nosso corpo de menino estremecer, ela resolveu me alongar deitando-se sobre minhas costas, coisa que já fizera outras vezes de forma absolutamente profissional. Não tenho inteira certeza da posição em que ficava, mas acho que rezava voltado para minha meca particular quando ela resolveu me empurrar mais para o chão. Aquilo era agradável, nem parecia que estava alongando alguma coisa. Devo ter dito alguma bobagem como “Hum… peso bom!”. Ela não riu, o que tinha significado óbvio. Afinal, mulheres adoram que as façamos rir, mas quando param é melhor analisar. Pode ser irritação, ora.

Bem, depois são detalhes. No mesmo dia, ocorreu um agarramento dentro da cozinha da academia, cuja porta foi fechada com certa violência por minha professora, houve algumas festas de fim de ano e, vocês sabem, futebol é bola na rede. Aqui, chego próximo ao ponto no qual pensava durante minha dor de cabeça matinal. Se algum de meus sete leitores pensam que passei a me esconder, a atender sobressaltado o celular, se pensam que a confusão me procurava, estão enganados. Eu não contava para Pâmela (ou Suélen, nunca sei), mas também não mudava nada em meu comportamento. Só saía mais de casa. Exatamente como também ela passou a fazer. Ficávamos alternadamente em casa. A única coisa que me atrapalhava a consciência era vê-la muito quieta. Sempre achava que ela estava pensando em meu caso. Mas nunca conversamos a respeito de nada que rondasse a palavra “traição”. Não fazia sentido, dado o desinteresse mútuo.

Aqui, bem aqui, chego ao ponto exato que me fez rir hoje de manhã enquanto escovava os dentes. Já estávamos frequentando uma “terapeuta de casal” que serviria para definir a questão dos filhos. Um dia, bem lá no final do “tratamento”, durante uma sessão, Suélen (ou seria Pâmela?) me disse que eu tinha sido visto no cinema pelo chefe dela. Preparei-me para ser acusado, devo até ter me ajeitado na cadeira, quando a ouvi dizer, toda sorridente, que eu estava sozinho. Virei santo.

Quis saber que filme era. Era Malena. Então foi minha vez de sorrir. Naquela noite, fora ao um velório da mãe de meu melhor amigo de infância, jantara com minha amiga F., mas, antes do filme, deixara-a em casa com uma crise de rinite. Ela não gostava muito dos filmes que eu escolhia. Preferia ver DVDs de blockbusters americanos em casa. Um saco. Curiosamente, aquilo passou a ser a prova inequívoca de minha… sei lá… idoneidade, honestidade? Muitas vezes tal prova foi citada quando se conjeturava a possibilidade de reconstruirmos a relação. Deixei assim.

Quando por fim nos separamos, também me separei de minha amiga e da academia. Meus sete leitores devem saber que depressão a gente curte privadamente, não em praça pública, fazendo piadas.

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Amizades

Ontem, a Caminhante publicou um post sobre a finitude das amizades. Essa coisa de amizade eterna, guarida permanente, resistente a chuvas, trovoadas, empréstimos, traições e discordâncias funciona muitas vezes entre homens, casais de todo gênero ou mulheres, porém sua natureza é semelhante à dos casamentos – ou seja, podem acabar, com maior ou menor dor, maior ou menor convicção. Dentre as frases que Caetano Veloso escreveu, muitas delas ficaram em nossa memória por sua poesia e outras ficam apenas na memória de Dona Canô… Uma do primeiro grupo é esta de Língua:

E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E quem há de negar que esta lhe é superior
.

Pois é. A amizade talvez seja superior por sua pureza. Ela não é uma empresa como o casamento. Não costuma envolver patrimônio ou filhos, as traições são contornáveis, os ciúmes são raros ou menores, mas a amizade é uma forma de amor e acaba sim. E bem acabada.

No último dia 26, fez aniversário uma ex-grande amiga minha. Conheci-a por ela ter repentinamente surgido como namorada de um de meus melhores amigos, amizade esta preservada até hoje. Eles casaram, separaram-se e convivi mais com ela do que com ele no período após a separação. Nós, na verdade, tornamo-nos inseparáveis desde o primeiro momento. Penso que tenha contribuído para a amizade o nenhum interesse físico que nutríamos um pelo outro. Ela, uma baixinha que fazia questão de homens altos; eu, um nanico (1,71 m) sempre gostei de mulheres do meu tamanho. Ela, loiríssima de olhos azuis, era muito branca para meus padrões; e eu certamente não a atraía de modo nenhum. Não obstante a falta mútua de tesão, ambos tínhamos, separadamente, movimentada vida amorosa, tanto que, em mais de 20 anos de convivência, nunca pudemos sequer pensar em algo entre nós, pois quando um estava desocupado, o outro não estava, o que nos impedia de abrir o tal bar.

(Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar.

W. H. Auden.)

Sabíamos tudo um do outro, fazíamos visitas telefônicas a cada acontecimento importante, a cada bom filme, livro ou música. Os jantares a quatro eram semanais. Eu acompanhava o desenvolvimento de sua tese sobre linguagem e dava palpites. O mesmo acontecia em sentido contrário. Tínhamos liberdade para tocar em qualquer assunto, pessoal ou não, discutíamos o que convencionalmente não se fala, como as melhores posições sexuais na opinião de cada um, etc. Tive dois filhos, me separei, casei, ela teve uma filha com o novo marido e tudo ia muito bem entre jantares e telefonemas até que a houve a surpresa. Minha filha quis morar comigo e contei a novidade para ela. A recepção que ela deu à notícia foi inexplicável, ainda mais tratando-se de uma psicóloga ultraliberal (pero no mucho). Disse que os filhos eram da mãe e fim. Como sabia que seu novo casamento já estava aos cacos e que sua posição talvez estivesse sendo “ditada pela dor”, ouvi toda a absurda argumentação quieto, por mais que me ofendesse ouvir aquilo. Passados alguns dias, tudo voltou ao normal, mas a nuvem não sairia dali; demorou um pouco, mas logo começou a despejar seus raios.

Eu voltei ao assunto e ela pediu que eu não falasse naquilo. Só que eu estava monotemático. Pensava que, se não admitisse a vontade da Bárbara e lutasse por ela, estaria causando um mal indelével à nossa relação de pai e filha. Além do mais, aquilo era mais fácil de prever do que a vitória do Flamengo sobre o Grêmio no fim de semana. Tinha que agir, mesmo que tivesse pedido seis meses para que nós dois pensássemos. O resto foi o resto. Ganhei a guarda da Bárbara e tenho certeza de que foi bom para nós; porém, neste ínterim, o afastamento para com minha amiga foi aumentando de tal forma que hoje nem nos falamos.

Soube que hoje está separada do pai de sua filha, minha afilhada. Deve ter outra pessoa. Mas não sei quem é e hoje não há mais jeito. Foi demais. Ou seja, a amizade acaba. Acho que um casamento não acaba por pequenas diferenças, as pequenas diferenças são contornáveis, ele acaba por diferenças que tornam impossível o convívio. O mesmo ocorre com as amizades. As pessoas mudam e as linhas paralelas que deixavam com que os amigos pudessem sorrir um para o outro de forma reconhecível, às vezes afastam-se, fazendo com que se desconheçam.

Amizade para sempre é bobagem. Concordo com a Caminhante quando ela diz: “Quando as amizades chegam ao fim, não vejo como fracasso ou culpa”.

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Um certo livro infantil

Em minha curta experiência na Biblioteca do Instituto Santa Luzia, sempre perguntava quais eram os livros mais retirados e amados pelos alunos. O primeiro da lista era uma unanimidade entre as bibliotecárias: o belíssimo A Casa Sonolenta, de Audrey Wood (desenhos de Don Wood). Este livro foi lido e mostrado por mim e por minha ex para meus filhos incontáveis vezes. Trata-se de um dia chuvoso e chato em que todas as pessoas da casa só desejam dormir. Todos, desde a avó, vão se empilhando sobre uma cama periclitante até que uma pulga resolve morder o gato que está no alto da pilha. Este dá um salto e o resultado é mais do que acordar todo mundo. O bom é observar o susto de cada um, todos de pijamas, em trajes mais ou menos íntimos.

O que a criançada mais gosta são dos contos de repetição. Há uma situação — boa ou ruim — que se repete. Tal situação ou está ameaçada ou afirma-se inevitavelmente, sob as circunstâncias mais improváveis. Também contribui para o sucesso o fato de que tais histórias simples permitem certa “atuação” ao adulto que as relata. É divertido. As crianças amam as repetições e pedem para que a gente as conte trocentas vezes. Lembro de muitas outras que obviamemente acabei decorando. Uma das melhores é também do casal Wood: a deliciosa O Rei Bigodeira e sua Banheira. Ambas estavam entre os livros que mais recontava para meus filhos, mas havia um que acabei fazendo sumir lá de casa.

Um belo dia, provavelmente em 25 de setembro de 2001, vi que a Bárbara ganhara (de quem?, não lembro) um livro anormalmente bonito chamado O Homem que amava caixas, de Stephen Michael King. O livro foi dado a ela fora da festa, talvez por um colega de aula, pois lembro que ela chegara inesperadamente com a novidade e, ato contínuo, pediu para que eu lesse a história. Olha, não sei como cheguei ao fim. Não sou de chorar em filmes nem na vida. No final de As Pontes de Madison, por exemplo, olhei divertido o festival de homens e mulheres fungantes de olhos vermelhos, mas o livro que a Bárbara ganhara me fazia desmanchar a ponto de eu acabar por retirá-lo de circulação. Por quê? Ora, um certo pudor me dizia que era melhor não demonstrar uma comoção além da conta. Não faço a mínima ideia de onde o escondi, talvez tenha sumido na casa de minha mãe. Durante o feriado andei por aí atrás dele. Nada.

Fui à Internet e descobri que tem status de clássico. Muitos adultos escreveram a respeito, é a história preferida de vários, seu texto está reproduzido por todo lado e ele é mostrado e contado no YouTube. Acredito que esta história ocupe uma posição diversa do habitual. Pois ela fala demais ao adulto. Tenho certeza de que minha emoção vinha mais da minha relação com meu pai, já morto em 2001, e menos do relacionamento com meus filhos. Ou talvez fosse mais correto dizer que misture tudo.

Então hoje é o dia de submeter meus sete leitores a uma “contação de histórias” (isto se eles conseguiram chegar até este ponto do post). Uma certa Kika gravou um vídeo em que ela mostra o livro e lê O homem que amava caixas. Primeiro vai o vídeo e após o texto. Sim, mesmo que a tia Kika nos conte bem devagarinho e mexa o livro deixando o foco quase maluco, ainda fico comovido… Fazer o quê? Não, não choro mais, só faço ela contar de novo…

O homem que amava caixas

Era uma vez um homem
O homem tinha um filho
O filho amava o homem
e o homem amava caixas.

Caixas grandes
caixas redondas
caixas pequenas
caixas altas
todos os tipos de caixas!

O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava;
então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.
Ele era perito em fazer castelos
e seus aviões sempre voavam…
a não ser, claro, que chovesse.

As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam…
e brincavam…
e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho.
Os velhos apontavam para ele.
As velhas olhavam zangadas para ele.
Seus vizinhos riam dele pelas costas.

Mas nada disso preocupava o homem,
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem…
o amor de um pelo outro.

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Nós Que Nos Amamos Tanto

X. e eu (ela começa):
— Hummm, resolveste pôr um perfume? Que perfume é este?
— É um que tá aí faz tempo.
— “Faz tempo” significa “antes da minha gestão”?
— Sim.
— Cheiro horrível.

Minha mãe, em dia de alguma lucidez, e eu:
— Mãe, desculpe, mas tu estás ficando surda. A gente tem que gritar prá tu entender.
— Olha, fui no otorrino e ele disse que estou muito bem.
— Me diz o nome deste otorrino.
— A tua irmã me disse mas eu não ouvi direito.

X. e eu:
— Lendo as notícias do Grêmio, querido?
— Sim, adoro a decadência. Isto aqui é melhor que Os Buddenbrook.

Casal ao qual não pedi autorização para identificar:
Ele: Um amigo me disse que existem quatro tipos de mulher. A primeira é do tipo que faz você se sentir um completo idiota… Eu não lembro das outras duas…
Ela: Mas dá 3!
Ele: Às vezes tu podias ser menos loira…
Ela: E às vezes sinto saudades do tempo em que tu não tomava antidepressivos…

Dias depois, a mesma dupla:
Ela: Tu sabe que meu cabelo é castanho claro…
Ele: Tu é loira, dizer que é castanho claro é um casuísmo que usas na hora das piadas. É loiro escuro, pronto. Tu me atraíste por ser loira.
Ela: Pelo que sinto, certamente não foi por minha capacidade, claro…
Ele: Há coisas que não são miscíveis, amor.

X. e eu, na cama:
— Quando eu ficar impotente, tomo Viagra.
— E para os neurônios?

X. e eu na cama, novamente:
— Vocês mulheres vivem 10 anos mais do que a gente.
— Hummm.
— Eu tenho 9 anos mais do que tu.
— Hummm, e daí?
— E daí que serás minha viúva por 19 anos.
— Para senão eu vou começar a chorar. É sério!

Bernardo, na secretária eletrônica do celular:
— Pai, tô te ligando para saber o resultado do jogo do Grêmio. Se bem que eles devem ter perdido. Já tô até feliz. (risadas) Só me diz de quanto. Um beijo.

X. e sua mãe:
— Mãe, por que tu me deste o nome de X.?
— Ora, porque eu gostava e tinha uma amiga cheia de vida e muito bonita chamada X.
— Sabe o que significa?
— Não.
— “Manca”.
— …
— Conheces a palavra claudicante?

Ela, ele e garçom num restaurante do interior da ex-Tchecoslováquia. Ela olha atentamente para o menu em tcheco. Por fim, aponta um prato:
— Cocó? – diz, enquanto mexe os cotovelos como asas.
— Muuuuuuuuuuuuu – responde o circunspecto garçom.

Bárbara e eu.
— Pai, quero fazer uma tatuagem.
— Sou contra.
— Mas é pequena, na parte interna do pulso. Só o contorno de um cavalo.
— Não fica vulgar?
— Vulgaridade é postura, pai. Tu estás aí há 52 anos e não te deste conta?

(Ela fez a tatuagem. Disse que quase morreu de dor. Ficou bonito.)

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2666, de Roberto Bolaño (2ª Parte – La parte de Amalfitano)

Benno Von Archimboldi? Esqueçam. Seu nome nem é citado. A segunda é a parte mais curta de 2666 e se a violência e a morte são os panos de fundo do romance, esta é a parte em que a morte domina sozinha. Domina a primeira metade do capítulo, onde o professor de filosofia Amalfitano dedica-se a evocar sua ex-mulher Lola, uma bicho-grilo das mais radicais que o deixa sozinho com a filha Rosa em Barcelona para ir atrás, ir atrás e ir atrás — como tantos personagens de Bolaño — de um poeta, enquanto o melancólico Amalfitano instala-se com a filha na cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA. E domina também a segunda metade, em que ficamos incomodados pelos sintomas de uma loucura que começa a insinuar-se em Amalfitano, o qual ouve vozes, comete pequenas esquisitices, preocupa-se com a segurança de Rosa numa cidade de repetidos assassinatos e sonha, sonha muito.

O personagem Oscar Amalfitano tem na decadência física sua dimensão trágica. A descrição que Bolaño realiza ao descrever rapidamente suas aulas e seus diálogos com a “voz” é comovente. Também o aparecimento de um livro do qual absolutamente não lembrava — O Testamento Geometrico, do galego Rafael Dieste — e seu entorno são narrados de forma inalcançável por autores menos capazes, a grande maioria. Inspirado por Marcel Duchamp, Amalfitano pendura o livro no varal de sua casa, de forma que este possa aprender sobre a vida cotidiana de Santa Teresa e proteger sua filha, tudo isso dentro de uma série de livres associações que funcionam espetacularmente neste capítulo que é finalizado por mais um sonho. Aposto que a história de Amalfitano e de seu destino serão deixados assim mesmo, no máximo ele reaparecerá como personagem secundária. Afinal, estamos lendo Bolaño e cabe a nós dar continuidade ou nexo à superfetação de ficções.

E aqui está o final de A parte de Amalfitano (trad. portuguesa de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, copiada daqui e “tropicalizada” (ho, ho, ho) por este abusivo resenhista:

… Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, até um conjunto de majólicas (azulejos pintados) listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (…) Quando o último filósofo do comunismo estava finalmente chegando à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria estupefato que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar tais disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pluma. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E lhe dizia: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou te explicar qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou te explicar. E depois me deixa em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a se desmoronar nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância e dos Urais e da Sibéria e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da bolso e dizia:

— Acho que é hora de beber um copinho.

Obs.: A Livraria Cultura (link acima, na coluna do meio) tem 2666 na edição espanhola da Anagrama. Pelo que é, custa bem baratinho, R$ 71,34. Afinal, veio de um país onde as edições são enormes. A propósito, lançado em 26 de setembro em Portugal, 2666 já vendeu 23.000 exemplares. Pobre Brasil-sil-sil…

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Não faz falcatrua com o tio

Fui vítima de um sequestro relâmpago em 2002. Não foi nada divertido. Eu estava chegando na residência de minha mãe quando vi um jovem vestido como qualquer pessoa de classe média aproximar-se da porta de meu carro. Veio numa velocidade inequívoca, deixando bem à mostra uma arma que apontava para algum lugar abaixo de minha cabeça, ou seja, a porta, pois eu estava sentado no carro, esperando que a porta automática abrisse. Fazendo o que sempre vira nos filmes, saí do carro com as mãos para o alto, em total silêncio. Ele me mandou sentar no banco de trás, onde logo recebi a companhia do mais agitado do grupo. Os bancos da frente foram ocupados pelo rapaz da arma e sua namorada. Eram 19h30, mais ou menos.

Mantive o silêncio que insiste em me acompanhar nas situações críticas e apenas notava vagamente que o motorista desejava dirigir rapidamente, mas que era inexperiente, muito inexperiente. Não parecia drogado, apenas dirigia mal. Já meu companheiro de banco parecia bastante alterado. De forma descontrolada, gritava palavrões e batia em minha cabeça com o cano do revólver que recebera do motorista. Ele apontava a arma para um local acima de meu ouvido direito — bem onde eu suponho que esteja meu cérebro — e batia ali com força. Eu não consigo refazer perfeitamente este período em minha memória. Acho que meu estado era mais de perplexidade e menos de medo, mas talvez isso seja uma fantasia posterior: meu estado devia ser de medo paralisante e só. Afinal de contas, eu nunca peguei um revólver e imagino que este seja uma coisa para ser manuseada com certo cuidado, como se maneja algo prestes a explodir. Não deve ser um instrumento para bater na cabeça de alguém, ainda mais com o cano apontado. Tratava de ficar o mais quieto possível ouvindo um monte de ofensas, quando o motorista mandou o sujeito parar de babaquice e ver se eu tinha dinheiro. Em resposta, o sujeito abriu minha pasta e logo achou a carteira. Tinha R$ 30,00. O cara ficou puto.

Antes que ele voltasse a se divertir com minha cabeça, resolvi falar:

— No bolso de trás da calça, tem R$ 1.700,00.

O casal no banco da frente comemorou, dizendo que o tiozinho era legal. Meu colega começou a dar risadinhas enquanto demonstrava enorme dificuldade para pegar o dinheiro, apesar de eu ter virado quase 90º a fim de que ele pegasse. Então, ele mandou que eu entregasse o dinheiro para ele. Não pensem que ando sempre com R$ 1.700,00. O que ocorrera é que eu achei que tinha dinheiro demais no caixa da firma e resolvi levar comigo. Era uma atitude rotineira para evitar, digamos, faxineiras mais curiosas. Disse para eles que não tinha dinheiro em caixa automática, que pegara tudo. O cara do meu lado duvidou aos berros, perguntando se eu tinha certeza absoluta daquilo. Confirmei e confirmei e confirmei. A menina do banco do acompanhante disse que era melhor assim pois

— fico muito “tensionada” nesses caixa automático.

Empreendemos um longo passeio aparentemente sem objetivo nenhum. O motorista dizia que o rádio do carro era uma bosta, que nem valia a pena roubar. Partiram para as avaliações: meu relógio era legal, o celular era outra bosta, a pasta era das caras e eles levariam, etc. E assim chegaram a conclusão que o saldo do sequestro seria R$ 1.730,00, minha pasta e o relógio. Apesar disso, ligaram o rádio na Atlântida, da RBS. A conversa era pouca e o motorista nos levou à periferia de Canoas, voltou a Porto Alegre, andou por umas vilas, etc. O que procuravam? Era algum plano para mim? Em certo momento, vi que o rapaz ia dobrar numa rua onde eu tinha visto rapidamente as luzes de um carro da Brigada Militar. Dei um grito:

— Não entra aí, tem um carro da Brigada!

Pode parecer paradoxal, mas achei que poderia haver algum gênero de tiroteio ou confronto e que eu seria um detalhe insignificante para ambos os lados. Além do mais, minha pequena experiência manda evitar autoridades como criminosos, brigadianos, juízes de direito e de futebol. Mais paradoxal ainda, sempre me entendi bem com policiais, os quais sempre foram razoáveis. Mas tergiverso. Minha atitude foi saudada pelos inquilinos (ou novos donos) de meu carro como um grande passo em minha vida como celerado.

— Porra, o tiozinho aprende rápido!
— Cacete, como é que ele viu?

Como já estava me tornando um ídolo, já conseguia pensar claramente que eles estavam procurando um lugar para me matar ou para utilizar meu inexpugnável ânus para seu prazer, algo assim. Como ninguém me impedia de falar, empreendi o mais patético dos discursos: tinha dois filhos pequenos (verdade), era separado (verdade), cuidava de uma mãe doente (verdade), era filho único (mentira…), trabalhava para todos eles (mentira) e que haveria muito sofrimento se alguma coisa me acontecesse (não sei); enfim, apelei. Então, subimos um morro de Porto Alegre que atende pelo delicado nome de Maria Degolada. O rapaz foi parando num local que, se não era um descampado, também não era desabitado. Então, a menina do banco da frente falou com veemência para o motorista:

— Não faz falcatrua com o tio! Ele é legal!

O cara olhou para ela e disse:

— Calma, …inha.

Me mandaram sair do carro. Saí lentamente, como se estivesse entre amigos, mas na verdade pensando que, se corresse, poderia levar um tiro (sabem aquele instinto que manda a gente NÃO correr de cachorros?, pois é, foi o que pensei indistintamente). Dei alguns passos e me chamaram. Quase me caguei. Era o motorista. O rapaz, com um sorriso, dizia para eu levar minha carteira vazia de dinheiro e meu celular de merda. Devia ter pedido dinheiro para o ônibus, talvez ele me desse. Me explicou que dava trabalho fazer os documentos que estavam na carteira e que tinha tirado a bateria do celular para eu ter não telefonar para meus amigos brigadianos. Peguei as coisas e caminhei devagar. Nunca mais os vi.

Depois de algumas quadras, notei que estava fedendo. Era o pior cheiro que já tinha sentido em mim. Era uma coisa animalesca, chegava a arder no nariz. Horrível. Caminhei, acho, por três horas. A sede era imensa. Quando cheguei à casa da minha mãe, ela dormia. Melhor assim. Devo ter ficado meia hora esperando a banheira encher, coisa que nunca fizera antes. Mergulhei na água pensando em meu azar e sorte, e no significado de “falcatrua” para aqueles caras. (Ouvi depois essa palavra ser usada no sentido de sacanagem).

No dia seguinte, às 8h em ponto, avisei o seguro sobre o carro e eles me mandaram fazer uma ocorrência. Fui trabalhar, não estava com nenhuma pressa de ir à polícia. Raciocinava confusamente que o problema era meu e que não tinha necessidade de ficar falando naquilo. Por volta das 10h30, um funcionário da seguradora me ligou, dizendo que meu carro estava na Rua Botafogo, estacionado em local proibido, com as janelas abertas. Meu rádio devia ser uma bosta mesmo, o resto também. Nunca fiz a ocorrência e nem liguei de volta para o seguro. Ninguém, além de meus filhos, soube da história. Naquela época, era doloroso demais contá-la.

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Todas as filas a fila

1. Dizem que o OPS trocará de servidor neste fim de semana. Estaremos certamente parados por algumas horas antes que paremos por completo.

2. Ontem foi o dia de instalar programas. Troquei meu velho notebook por um desktop bem mais parrudo. Queria trocar de notebook, mas digamos que era mais “fácil” comprar uma configuração com mais disco e memória se voltasse ao velho desktop. Sem problemas. Por conta da confusão, perdi de acompanhar a formação de mais um belo grupo de comentários, mas era necessário: os 40 GB e o XP ainda original — nunca reinstalado — do meu velho Dell Latitude mereciam aposentadoria. Ele se pagou, foram quatro anos de trabalho intenso. Hoje ele vai se assustar por não ter sido ligado. Talvez ele sirva para viagens. É incrível como consigo não estragar minhas coisas, mas a fila tem de andar.

3. Ontem também foi o dia de conversar com as assistentes sociais que acompanham o cumprimento de minha pena. Elas me pediram um tempo antes de fazerem a provável (certa) transferência. Fiquei tão indignado com aqueles acontecimentos que fiz questão de agregar a meu processo um texto que não era outro senão o post linkado acima. Elas ficaram tão pasmas com o acontecimento quanto eu, ou ao menos fingiram muito bem. Fui claro, disse que considereva-me ofendido. Querem contatar a instituição, o juiz, o escambau. Só espero que não lembrem de direcionar as consequências para meu combalido ânus. Chega, né? Querem saber?, temo muito passar de vítima a vilão.

4. À noite, fui ao show do Guinga, do baixista Max Robert e da cantora Marcê Porena no Teatro São Pedro. A desproporção entre o que toca e compõe Guinga em relação a Max Robert é acachapante. Não sei o motivo de se apresentarem juntos. Já está mais do que na hora de Guinga, 59 anos, assumir-se como chefe e fazer-se acompanhar de um pequeno grupo e de uma cantora ou cantor eficiente. Esse negócio de ficar longos minutos — tempo emocional — suportando composições e interpretações de segunda categoria à espera de alguns minutinhos — tempo emocional — do grande violonista e dentista Guinga, é como ir ver um show de Chico Buarque e ele convidar Joana para cantar por uns 45 minutinhos.

5. Há gente louca para tudo. Tanto que uma pequena e simpaticíssima editora me convidou para publicar O Monólogo Amoroso com eles. Teria que finalizar, né?

6. Vou tentar produzir algo futebolístico para o Impedimento hoje. Há algum tempo comecei uma série chamada “A ascensão e a ascensão dos negociantes”. Burramente, parei no segundo ou terceiro capítulo. Pior, deixei de fazer anotações. A tese será baseada no Inter, mas serve para todos. O Internacional é hoje um balcão de negócios, porém a estrutura comercial não consegue criar resultados, apenas lucro, egos e esperanças de contratos no exterior para os jogadores. Tudo o que chega ao Inter, excetuando-se Guiñazu e Clemer, tem o imediato horizonte da venda. Os caras são tão bons nisso que até Magrão conseguiu ser negociado, mesmo que tivesse se arrastado por meses em campo. Bastou duas boas partidas e tchau. O técnico Tite há que ser compreendido. Ele esta lá não para fazer futebol, mas para fazer a fila de vendas andar. Então, só joga quem estiver na hora de ser vendido. Se fosse investidor, acho que gostaria deste “técnico”. Quem sabe o Inter passa a informar a torcida sobre os balancetes? A gente torceria por eles, mas sempre haveria um chato para contestar as comissões…

7. Ah, e acho que está na hora de tratar disso. Afinal, nove entre dez conselheiros independentes sabem que o Beira-Rio tem de ser derrubado para a Copa. Não há conserto. É sucata. E, olha, a questão é muito séria. Há um grupo de pessoas que estão esperando o time melhorar para denunciar a verdade. Só que o time não lhes dá a mínima chance. Em tempo: acho ridícula toda esta movimentação para vermos dois ou três jogos da Copa na cidade. Já pensaram se nos couber Gana x EUA, Equador x Japão, Arábia Saudita x Bélgica?

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25 de setembro de 1994, 19h40, Bárbara

Te vi poucos segundos depois de apareceres
a médica passou a toda velocidade, estava sorrindo
o teu grito era imenso, um bocão de 2,5 Kg
ela te limpava, dizendo nossa ela é forte
e aí te peguei, tu estavas toda rígida,
ainda berrando, embrulhada em panos,
quem eras?

Cuidei muito de ti, tu eras pequena
e me enxergavas imenso
o que sempre me diminuía;
te acostumaste com minha falta de jeito
sempre bem escondida
sob a torrencial chuva de bobagens
das quais sou refém

A infância foi uma infância
e tu nem lembras mais que me pedias, rindo sedutora
na porta da creche
pai, me entrega daquele jeito?
e eu te entregava na porta, segura por um pé, de ponta cabeça
dizendo pelo amor de deus
fiquem com esta porcaria

E aí houve a separação
e deixei tudo para o dado e para ti

mas querias vir
eu cá dizendo que deixara tudo para ti lá
tu dizendo não
e vieste para cá
para mim
para nós

Confesso sem vontade nenhuma de dizer, que tua decisão me (nos) assustou
imaginava anos de despojamento vendo de longe tua formação
quando pediste e pediste e pediste por meses para vir
e, bobo que sou, quando quis ajustar a vida cá
recuperando algo que deixará lá
vi só egoísmo, ódio e cus-
tas

Mas
como foi bom;
quando penso no futuro
quando estou infeliz de dar dó
ou alegre porque houve alguma coisa legal
e a vida voltou a ser uma aventura boa e estamos os
três rindo na cama ou na mesa, penso em ti e o resto vira
lenda e o medo da vida vira medo do dia em que tudo acabará
— pois acabará, querendo ou não —
e que seja numa noite após um desses dias em que mal nos suportamos,
de tão debilóides

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Milton versão portuguesa

Ora, pois pois, recebi minha cidadania portuguesa. Não que tenha algum interesse em me mudar ou mesmo em conhecer os parentes de meu pai. Dia desses, a internet me permitiu saber que há alguns Ribeiros nos endereços esperados em São João do Loure, distrito de Aveiro. Um deles é dono de um motel. Vi fotos dos quartos. Talvez conseguisse um test drive gratuito lá. O que gostaria de saber mesmo é porque Manuel Martins Ribeiro, meu avô, deixou Portugal. Certamente foi a pobreza que empurrou aquele homem à aventura de vir trabalhar como estivador no cais de Porto Alegre, depois conseguiu abrir uma padaria (enfim, é o caso típico do portuga chamado Manuel, dono de uma padaria chamada Lisboa…). O que gostaria de saber seriam os detalhes, as circunstâncias todas e isso só com ele (veio com quem, por que metade da família ficou, ele era da parte pobre dos Ribeiro?, etc.). Acho que sempre fomos realistas. Já tive contatos com descendentes de ucranianos que eram parentes da princesa Anastácia… Outros diziam que ela estava no navio que os trouxera. Já ouvi narrativas de imigrantes italianos que eram nobres e ricos, muito ricos na Itália. Ora, ninguém vinha para o Brasil por ser rico. Há poloneses com histórias incríveis também. Lendas e lendas.

Diziam que meu avô era um grande piadista e bem-sucedido mulherengo. Nas fotos, sempre sorri muito. Era mais bonito do que meu pai e eu. Morreu em 1960, quando eu tinha 3 anos. Parece que ficou muito feliz quando soube que se segundo neto era varão, pois tal fato garantiria a continuidade do nome Ribeiro, um sobrenome raro, exclusividade nossa. Não lembro de nada, mas soube que ele gostava de me atirar para o alto e depois pegar, coisa que sempre fiz com meus filhos. Costumava amarrar fios em notas de dinheiro que deixava na calçada em frente à padaria. As brincadeiras do filho eram mais punks, meu pai tinha a mania de cuspir em quem afagava seus belos cachinhos. As pessoas concordam que minha avó, Maria Nazaré, prima-irmã do marido Manuel e que morreu em 1954, era uma santa. E eu tenho a cara dela, como minha mulher descobriu, surpresa. Todos gente comum. Sua filha, minha tia, aprendeu a tocar piano e era professora do instrumento; mas quem adorava música era meu pai, que chegou a compor valsas… Uma delas, Férias de Julho, era dedicada a mim e minha irmã. Sei a melodia até hoje. Às vezes, ele sentava no piano e dava um recital de… Férias de Julho. (Era uma geração de pianistas. Minha mãe também tocava, preferencialmente tangos, fato que fez com que seu professor – o maestro Leo Schneider – fechasse violentamente a tampa do piano em suas mãos. Ela estava divertindo as meninas do internato que dançavam quando chegou o maestro. Ele queria que ela tocasse apenas clássicos, não aquela música degenerada…) Mas, voltando à nossa casa, um dia, o piano sumiu. Todos o haviam abandonado e o utilizavam para largar suas coisas. Minha mãe se irritava com aquilo e vendeu-o.

Há um escritor na família. Era irmão de minha avó, viveu sua vida no Rio de Janeiro e atendia pelo nome artístico de Cardoso Filho. Meu pai achava seus livros uma merda.

Então, em resumo, não conheci quem me deu a cidadania, apenas os filhos dos imigrantes. Do ponto de vista cultural, herdamos muitas coisas deles – do ponto de vista material, puf! –, mas quem deverá aproveitar a cidadania é minha filha, que poderá utilizá-la para estudar fora, se quiser. Meu filho tem 18 anos e não obterá vantagens por ser maior de idade. E eu, quando for à Europa, agora não preciso mais entrar na fila dos não comunitários, serei considerado cidadão de primeira linha. Além do mais, na improvável hipótese de desejar ir aos EUA, entro direto sem me humilhar no Consulado em São Paulo.

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