O dia 25 de setembro — assim como o 4 de janeiro, Bernardo — é uma superdata. É a data de nascimento de minha filha Bárbara. Sou um sujeito como quase todo mundo, então tenho um amor incondicional e oceânico por meus filhos. Mas meus contatos com eles foram drasticamente reduzidos nos últimos meses. O Bernardo está em Berlim e meus encontros pessoais com ele em 2015 ficaram reduzido quase a zero. O Skype não vale. A Bárbara hoje não mora mais comigo e entrou naquela idade maluca em que se trabalha mais do que os pais. Há a faculdade, o estágio, o namorado, as festas, o mundo e o tempo que sobra é pequeno. É a prova de que, mesmo que a biologia pense diferentemente, não fazemos os filhos para nós. Mas creio que o vínculo amoroso permaneça intacto.
Que eu lembre, nunca comentamos a respeito, mas, quando morávamos juntos, éramos uma dupla bastante original. Temos tendência a permanecermos silenciosos e assim ficávamos por horas. Lembro de passarmos finais de semana na mesma casa, apenas conversando na hora das refeições. E era tudo muito leve e agradável. Lembro de nossa viagem para a Europa. Passamos 20 dias juntos sem nenhuma altercação, desentendimento, nada. É claro que não foi por ficarmos quietos. Conversamos muito e recordo do momento em que chegamos a Camden Town, Londres, e eu caí inteiramente no ritmo dela, entrando onde ela queria entrar e fazendo o que ela desejava. Ela subitamente virou-se para mim e disse que estava curtindo muito, mas que a viagem não era só dela, era minha também. Eu assenti em silêncio, feliz, mas segui pensando que a viagem era dela. E era.
2013 foi um grande ano para mim. Além de ter sido o ano em que a Elena entrou na minha vida, foi o ano desta coisa que eu sugiro a todo pai fazer: uma longa viagem com um filho(a). Pode ser para qualquer lugar, não precisa ser necessariamente para paraísos caros. Bem, se a relação for tensa, talvez seja melhor esquecer. Eu e Bárbara aproveitamos aquela que talvez tenha sido nossa última chance. Com os 18 anos que ela tinha em fevereiro de 2013, ainda era possível. Agora, em dezembro, ela voltará à Europa numa viagem que envolve o irmão, mas também o namorado, um calendário mais apertado, etc. Enfim, acho que aquela foi a última oportunidade de pai e filha viajarem sozinhos.

Tenho uma lembrança bobíssima, que certamente só eu acho emocionante. Num dia de nossa viagem, a gente estava mais ou menos próximo do monumento acima, na entrada do Josefov, o bairro judaico de Praga. O Monumento à Franz Kafka foi inspirado em um dos contos de Kafka, Descrição de uma Luta. É Kafka nos ombros de um gigante destituído de cabeça e mãos, representação de uma das cenas da história. No bairro há um monte de sinagogas. Tem a Sinagoga Pinkas, a Velha Nova Sinagoga, a Alta Sinagoga, a Prefeitura judaica, o Antigo Cemitério judaico, etc. E precisávamos comprar ingressos para ver tudo isso. Fui comprá-los e notei que a atendente estava olhando para alguma coisa às minhas costas. Pedi nossos ingressos e a senhora nem me ouviu, continuou olhando. Fui ver o que estava acontecendo e observei que Bárbara girava lentamente sobre si mesma, olhando para o alto e sorrindo. Na hora achei estranho, ela não costuma deslumbrar-se facilmente, que ataque era aquele? O que não sabia é que aquela imagem ficaria gravada tão fortemente em meu cérebro.
A senhora voltou a me dar atenção e me disse em inglês, sorrindo:
— Ela nunca viu a neve… De onde vocês são?
Só então me dei conta de que (1) tinha começado a nevar e (2) que a Bárbara nunca tinha visto aquilo e estava encantada.

Por alguma razão, toda vez que lembro de minha filha e certamente quando lembro daquela viagem, me vem a imagem da Babi girando. Não tirei fotos daquele momento. Se o fizesse, talvez não lembrasse tão bem. Depois veio mais neve.

e muito mais neve.

E veio a zombeteira.

Antes que me torne sentimental e aborrecido, é melhor parar. Feliz aniversário, Babi! Dizem que a gente é parecido, mas eu te acho parecida é com minha irmã. Quando tu te irritas ou logo que acordas, bá, ficas igual. É aquela coisinha intratável. Até bem pouco tempo, eu te acordava com um Nescau no quarto, mas tu ficavas louca da vida quando eu entrava cantando romanticamente Moon river. Então eu mudei para o estribilho de Geni e o Zeppelin. Também sei que não podes ouvir outra canção do Chico Buarque, Cala a boca, Bárbara, música com a qual eu te ninava quando eras bebê. Sim, acho que fui um pai insuportável, mas o resultado comprova que não fui tão mal assim, ao menos te passei metade de uma carga genética bem legalzinha. Por dentro e por fora. (Vê-se e sente-se que a outra metade também é muito boa).
E jamais esqueça que hoje é também o aniversário de meus ídolos Dmitri Dmitrievich Shostakovich e William Faulkner. Naquele domingo à tarde, tudo foi preparado para que nascesses em boa companhia, viu?