Ospa: a qualidade de Dimitri Cervo e o Rachmaninov de meu descontentamento

Dimitri Cervo em pose de herói: o justo vencedor do concerto de ontem.

O concerto de ontem da Ospa teve uma primeira parte bastante interessante. A primeira obra apresentada foi o famoso Adágio para Cordas de Samuel Barber. Se já era uma música conhecidinha, depois que se tornou trilha sonora de Platoon, filme de Oliver Stone, tornou-se parte do repertório de concerto. As cordas da Ospa estiveram impecáveis, mostrando-se translúcidas e leves na tristíssima melodia muito utilizada em velórios.

Depois veio Museu – Uma Canção de Vigília sobre um poema de Armindo Trevisan, do compositor e ex-diretor da Rádio da Ufrgs, Flávio Oliveira. O concerto era dedicado aos 55 anos da emissora, então os dois fatos devem ter alguma ligação. Ou não. Ao menos por mim, o belo poema de Trevisan (Museu, do livro A Serpente na Grama) não podia ser inteiramente compreendido na dicção dos cantores, porém, com o auxílio do programa, obtínhamos as legendas para o entendimento. Quando juntamos letra e composição, tudo cresce muito.

A primeira parte foi finalizada por Série Brasil 2000 nº 4 –Toronubá, excelente composição de Dimitri Cervo. É uma absoluta raridade a forma inteligente com que Cervo utiliza o minimalismo. Ele não torna suas composições meras proezas repetitivas. Há mudanças radicais de tons e ambientes, tanto que depois de um primeiro movimento, absolutamente furioso, há uma espécie de Réquiem onde todo o material temático é readequado e revisitado. Não, o que ouvimos não foi nada comum nem esquecível. Há intenções, conteúdo e significado na obra. Foi o ponto mais alto do concerto e merece um bis especial pela Orquestra Sinfônica de Sergipe:

O programa vinha coerente e certinho, mas então chegamos ao Rachmaninov de meu descontentamento, compositor homenageado “de fato” pela Ospa em 2012. Aqui, nada de conteúdo ou significado, é só beleza… Em Porto Alegre ouve-se mais Rach do que em qualquer outra cidade do mundo, incluindo as russas e americanas. O longuíssimo, vulgar e ornamental Concerto nº 3 para piano e orquestra — composto por Rachmaninov para ele mesmo aparecer — é um enfrentamento parecido com o clássico alagoano ASA de Arapiraca e CRB. Sim, os dois times não se marcam, pois o piano prefere tocar tão sozinho quanto os maiores craques do ASA em seus devaneios de cadenzas sem fim nem finalidade. Foram 42 minutos maçantes, mas que deixaram o público feliz. A pianista era muito boa e rápida, pena a música. Para tirar o gosto e melhorar o humor após a exibição de tantas vaidosas brilhaturas pessoais, passei a manhã ouvindo um CD do Dimitri Cervo e os três Concertos para Piano de Béla Bartók. Mas ainda estou em fase de recuperação.

P.S. — O CRB caiu para Série C do Brasileirão. O ASA ficou na B.

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Abaixo, Marilyn Monroe atenta a um daqueles prosaicômicos solos de Rachmaninov:

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Ospa faz 62 anos e ainda é uma senhora difícil

Pablo Komlos: Diz quem foi que fez o primeiro teto / Que o projeto não desmoronou / Quem foi esse pedreiro esse arquiteto /E o valente primeiro morador

O primeiro concerto da Ospa ocorreu em 23 de novembro de 1950. A regência foi de seu primeiro maestro e diretor artístico, Pablo Komlós, e a orquestra interpretou obras de Weber, Mendelssohn, Berlioz e Beethoven. O gran finale veio com a Sinfonia Nº 3, Eroica. Deve ter sido uma noite e tanto e eu, sinceramente, não quero que seja verdade o fato de que a primeira obra executada tenha sido de autoria de Weber. Acho que isso machucaria a maioria dos admiradores da orquestra. Em função deste temor, encerro aqui o processo de pesquisas para este texto.

Aos 62 anos, esta senhora permanece sem teto ou, melhor dizendo, é jogada de um local para outro, como se costuma fazer com as vilas e a cultura em nosso estado. No início de 2013, nossa Ospa mudará novamente de ponto, ops, desculpem, de local de ensaios. Parece que sairá do cais do porto onde os integrantes da orquestra tiravam belas fotos de barcos e lagartos para o CAFF (Centro Administrativo Fernando Ferrari). Este seria seu penúltimo lugar de moradia, pois o Teatro da Ospa deve ficar pronto em 2014.

(Nas línguas eslavas, Ospa significa varíola; ignoro se estas mudanças de local são devidas a algum gênero de quarentena).

O que é notável é como esta sexagenária, mesmo sem moradia fixa e ainda negociando seu quadro — onde tenta reorganizar a instituição e colocar seus membros nas posições corretas através de concursos específicos — está bonita, com bom desempenho e, pasmem, é muito cortejada. Por exemplo, há alguns meses um grupo de melômanos quixotescos procura criar uma Associação de Amigos da dita cuja e, olha, como é complicado marcar reuniões! Já somos 3.082 admiradores e ninguém obteve ainda tocar na senhora. Céus, é muita pudicícia para quem é tão boa no palco.

Parece que segunda-feira haverá finalmente uma reunião. Está marcada. Serão 3.082 admiradores se pavoneando para a senhora de 62 anos. Esperamos alguma abertura.

De resto, parabéns a esta grande orquestra, a seus músicos e até a sua diretoria, que um dia irá render-se ao encanto de seus fãs!

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Ospa: uma sétima de Mahler para não se colocar defeito

Ira Levin: trabalho impecável, até para não deixar cair a fugidia partitura (quem estava no concerto sabe a que me refiro).

Eu achei o público pequeno. O Salão de Atos da Ufrgs estava com uma lotação de aproximadamente 70%. E, quando acabou o concerto, achei o público menos numeroso ainda. Pois o que ouvimos foi de tal forma grandioso e sublime que nos deixou menores. Ou maiores. Pois internamente me sentia como se tivesse crescido alguns centímetros. É um verdadeiro crime o fato de que tantos ensaios, com resultados tão bons, gerem apenas um concerto que, pior, não será repetido tão cedo. Mas deveria.

O único problema foi o de ter sentado ao lado de duas pessoas que não conseguiam calar a boca e que, curiosamente, guardam algum parentesco com uma importante figura da orquestra. Para completar, a menina grávida e sua mãe saíram estrepitosamente em meio ao último movimento. Encheram o nosso saco por mais de uma hora e, quando minha mulher pediu que parassem de falar, chamaram-na de “grossa”. Arrã.

A Sinfonia Nº 7 tem uma estrutura simétrica mais ou menos assim: um belíssimo e dançante Scherzo envolvido por duas ma-ra-vi-lho-sas “Músicas da Noite”, as quais são antecedidas e sucedidas por dois movimentos tipicamente mahlerianos, um sombrio e outro luminoso. Fazendo um esquema bem precário, é assim:

Sombras / Música da Noite 1 / Scherzo / Música da Noite 2 / Alegria

O maestro Ira Levin comprovou novamente sua extraordinária competência — ele já tinha regido a Ospa na Sinfonia Nº 1 de Mahler em julho do ano passado. Repito o que disse naquela oportunidade: ele DEVE ser convidado mais vezes.

Em casa, em CDs, costumo ouvir a sétima sinfonia retirando o primeiro e o último movimento. Fico apenas com as duas Nachtmusiken e com o Scherzo, que me é particularmente sedutor. Ontem, este esquema revelou-se em toda sua imbecilidade. A arquitetura da Sinfonia só faz sentido quando ouvida por inteiro. O caminho percorrido pela música só pode ser compreendido se sabemos seu início e seu seu final. Mais: os jogos timbrísticos entre os instrumentos e as melodias que são começadas aqui e desenvolvidas acolá, ou seja, toda a arte da composição e da orquestração de Mahler só podem ser sentidas e avaliadas ao vivo. Hoje, a Sétima é hoje outra sinfonia para mim.

Os destaques da orquestra foram muitos. O pessoal dos metais, o primeiro violinista Emerson Kretschmer, o primeiro violista Vladimir Romanov, todos os sopros e a percussão,  as cordas, todos estiveram absurdamente bem numa obra que não é nada fácil.

Parabéns a todos os envolvidos. Na próxima terça-feira, haverá o retorno de Rach ao Salão de Atos, mas há muita coisa boa para trabalhar na memória. Agora mesmo estava ouvindo uma das gravações de Bernstein da Sétima. Sim, agora que a entendo melhor, é outra sinfonia.

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Ospa: um novo (e equivocado) conceito de Concerto para a Juventude

Thiago Santos: sabendo que lugar de regente é ao lado da orquestra

Ontem, não teve concerto da Ospa. Porém, no último domingo, às 11h da manhã, minha mulher me acordou cheia de carinhos. Ela estava me enganando, porque não queria nada comigo: sua real intenção era a de me arrastar ao Salão de Atos da UFRGS. O programa não se parecia nem um pouco com aqueles dos Concertos para a Juventude do passado. Nada de programinhas simples, divertidos e dominicais para as famílias que estavam ou que iriam depois ao Parque da Redenção ali ao lado. Nada de programas pré-prandiais. O programa era totalmente adulto, destinado a… Bem, não sei a quem.

O que sei é que o horário e a discutível grife “Concerto para a Juventude” têm sido usados como escoadouro para que os vencedores dos Concursos Jovens Solistas possam enfim apresentar-se. Deste modo, o Concerto para a Juventude vê-se transformado em Concerto DA Juventude. Gostei mais da atuação sóbria do regente Thiago Santos do que de sua escolha da lastimável Abertura da Ópera Oberon, de Carl Maria von Weber para iniciar o concerto. Não chega a ser surpreendente que esta ópera tenha sido um rotundo fracasso. A Abertura já recomenda a fuga. É a música de um alemão que tenta ser italiano. Não dá certo.

Apesar da excelente performance do violista Gabriel Polycarpo — magérrimo e engraçado como só os pós-adolescentes conseguem ser, com um casaco grande demais para o cabide, tendo ficado cada vez mais torto durante a execução — , pô, convenhamos, o Concerto para Viola, Op. 1 de Carl Stamitz deve ser exigência de professor. Talvez seja muito bom para desenvolver a técnica do violista e o guri saiu-se bem demais, mas que musiquinha sem graça!

Thomas Pires: Alongamentos para o pescoço e bons solos

Já Thomas Konig Pires entrou nervoso, fazendo execícios para um pescoço certamente tenso. Coçou também as costas, impulso incontrolável em pessoas brilhantes e cheias de conteúdo (explico: tenho a mesma mania, coço as costas quando falo em público; então Thomas é um gênio). Então, ocorreu a mágica. Logo na primeira intervenção viu-se que o moço sabia o que tinha vindo fazer. O que eu antecipava como uma série de solos nervosos deu lugar a uma série de solos percussivos de alta qualidade. Eram as Tres Danzas Concertantes, do cubano Leo Brouwer, outra escolha meio estranha, mas vá lá.

A melhor obra da manhã foi Tributo a Portinari, de César Guerra-Peixe, certamente uma escolha de Thiago Santos, um bom jovem regente que tem a característica de saber receber os aplausos — fora do estrado, ao lado e ao nível dos músicos, demonstrando uma falsa vontade de ser como eles, como diria o Lebrecht. Mas é educado fazer isso!

Gabriel Polycarpo: Excelente violista formado na Escola da Ospa

É óbvio que a Ospa deve arranjar outro horário para seus Concertos da Juventude, mantendo os antigos Concertos para a Juventude com seus repertórios simples de trechos de obras do gênero João Carlos Martins, só que com que alguém mais barato, talvez um neobelardi inventado. Lembro da época em que a Ospa apresentava seus jovens solistas em concertos noturnos, muito mais adequados ao tipo de repertório normalmente escolhido. E lembro do tempo da Escola de Música da Ospa, onde estudou este ótimo Gabriel Polycarpo. Mistura de programa social e produção de material humano qualifica para as orquestras, a Escola está paralisada, prejudicando o aparecimento de novos gabriéis e deixando ociosos músicos que deveriam repassar sua experiência e conhecimento. Mas vou parar por aqui a fim de não me irritar, OK?

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Elliott Carter (1908-2012)

Elliot Carter

Faleceu ontem em Nova Iorque o compositor americano Elliot Carter poucos dias antes de completar o seu 104º aniversário. Carter é alguém muito particular: conseguia ser totalmente atonal e manter grande lirismo.

Ele foi extremamente produtivo em seus últimos anos. Publicou  mais de 40 obras, entre seus 90 e 100 anos e mais de 14  depois que ele fez 100 em 2008, sem baixar a qualidade. Nas entrevistas abaixo, Carter nos ensina um monte de coisas.

http://youtu.be/Zzs8Ov2p-Rc

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It`s only rock 'n' roll

Presente do Jorge Lima. Eu estou ali na plateia.

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Lançamento de livro "desmitificador" marca os 81 anos de João Gilberto

Publicado pelo Sul21 em 10 de junho de 2012 

Neste domingo, o cantor em cuja certidão de nascimento consta o imenso nome de João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira completa 81 anos. É um aniversário especial, pois coincide com o lançamento do livro João Gilberto, pela Cosac & Naify. Trata-se de um livro inteligente e oportuno — sua principal missão é a desfocar o João Gilberto como homem difícil, esquisito e maniático (palavra que não existe na língua portuguesas mas que faz uma falta tremenda), focalizando o músico, sua importância e originalidade. Já não era sem tempo. O livro não nega as confusões, hesitações, brigas, cancelamentos, nem o estilo de vida do cantor, apenas dá a devida importância a este fatos com os quais o ouvinte não tem contato quando este baiano de Juazeiro pega o violão, senta no banquinho e canta. E encanta, diríamos, em trocadilho que pisa a linha divisória e invade a área do mau gosto.

João, Tom e amigas

É um livro bastante esperado e que já nasce clássico — quanto mais não seja em razão de seu preço. Deverá figurar ao lado de outros clássicos como O Balanço da Bossa (1968), de Augusto de Campos, e Chega de Saudade (1990), de Ruy Castro. O livro da  Cosac — lindíssimo, cheio de fotos como um livro de arte, valendo cada centavo de seus R$ 215 (512 páginas) — é organizado por Walter Garcia, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sob coordenação dos editores Milton Ohata e Augusto Massi. Dividido em quatro partes, João Gilberto traz ensaios e textos críticos escritos especialmente para o livro. Estes contextualizam a música de João na história da MPB e apontam afinidades entre sua produção e outras áreas da cultura brasileira. A obra também tem a proposta de ser uma compilação, um repositório de tudo o que já se escreveu de importante sobre João e que estava fora de circulação, além de apresentar uma seleção de entrevistas concedidas pelo cantor e reunir depoimentos de pessoas.

Num país onde muita gente não gosta de Elis Regina, por exemplo, por ela ter sido assim ou assado, e despreza João Gilberto por ele ser um ser humano complicado, o livro da Cosac parece ter vindo para equilibrar com ensaios sérios, o volume do farto anedotário que circula a respeito das esquisitices de João — tanto que possui um capítulo “desmitificador” chamado Antianedotário. “Este é um livro a favor”, diz Ohata. “Deixamos em segundo plano as histórias curiosas que aderiram à figura de João. Esqueça o homem que fez o gato se suicidar, que fala no telefone por código Morse, que só sabe reclamar do som e do ar-condicionado, que pede estranhos favores, que passa noites ao telefone, etc. Não por acaso, criamos a seção Antianedotário.

Na busca pela análise da música e das diferenças de João Gilberto, Milton Garcia trouxe o músico e professor  Aderbal Duarte para demonstrar como se dá, na pauta musical, a famosa batida criada por João.

O livro leva a peito o que disse Vinicius de Moraes em 1964: “Eu sei que dentro da sua neurose, dentro da sua esquisitice, existe um lugar que ele rega diariamente com as lágrimas que chora por dentro. Um lugar que podemos chamar de Brasil, por exemplo”. Tem toda a razão. João Gilberto jamais deixou de traduzir o Brasil, de modernizá-lo em suas recriações musicais. Mas é complicado convencer o Brasil.

O fundador da bossa nova em ação

João ganhou um violão aos 14 anos e nunca mais largou. Nos anos 40, ouvia de Duke Ellington e Tommy Dorsey a Anjos do Inferno, Dorival Caymmi e Dalva de Oliveira. Aos 18 anos, foi para Salvador para cantar como crooner e logo depois para o Rio de Janeiro, onde fez parte do conjunto vocal Garotos da Lua. Sua história no grupo durou pouco. Cansados de seu comportamento — atrasos, faltas, etc. — os Garotos da Lua o demitiram num momento em que se tornava conhecido.

Em 1958, gravou dois compactos num estilo nunca antes ouvido e que inauguraram a bossa nova: “Chega de Saudade”/”Bim Bom” em julho, e “Desafinado”/”Oba-la-lá” em novembro. No mesmo ano, tinha acompanhado Elizeth Cardoso em duas faixas do LP “Canção do Amor Demais” (“Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes e “Outra Vez”, de Tom), considerado outro marco inaugural na história da bossa nova.

As características que mais o notabilizaram foram a maneira de cantar em voa baixa, fugindo da tradição dos cantores do rádio, famosos por seus “vozeirões”. Também a forma de tocar violão traz uma batida diferente, que desloca o acento da tradicional batida de samba.  Até hoje, não há concordância a respeito de quando começou a bossa nova. Alguns dizem que foram os compactos de 1958; outros que foi Canção do Amor Demais; outros dizem que foi Chega de Saudade (1959), primeiro disco solo de João Gilberto. Há muitas coisas em comum entre os três fatos: há Tom, Vinícius, mas principalmente há a famosa batida de João Gilberto, presente no violão de todos os trabalhos. Pouco sabem que a faixa-título do disco de João, Chega de Saudade, já aparecia no álbum de Elizeth.

O surgimento de Chega de Saudade marcou uma revolução na música brasileira. Foi um estrondoso sucesso no Brasil — onde os cantores e até mesmo João ainda eram crooners de voz empostada — , lançando a carreira do cantor e de todo o movimento da bossa nova. Além de Chega de Saudade no lado A, o disco — que mais parece uma antologia de clássicos — abria o lado B com Desafinado, de Tom e Newton Mendonça, e ainda continha Brigas nunca mais (Tom e Vinícius), Maria Ninguém (Carlos Lyra), Rosa Morena (Dorival Caymmi) e É luxo só (Ary Barroso), entre outras. Este disco foi seguido de outros dois, em 1960 e 1961, nos quais ele continuou apresentando músicas inétitas de uma nova geração de cantores e compositores, como Carlos Lyra e Roberto Menescal.

A influência de João Gilberto foi fundamental para toda a MPB que veio depois. Chico Buarque, Caetano, Gil, Nara Leão, João Bosco, até os atuais Fernanda Takai, Luiz Tatit e toda uma geração de cantores de pouca potência vocal são seus rebentos.

Além de hábitos exóticos, João Gilberto e seu violão carregam a música em suas entranhas. Prescidem de distorções, mixagens ou estratégias de engenheiros de som. Perfeccionista, ele percebe qualquer semitom fora do lugar, corrigindo o que pensa ser a surdez de alguns. Seu trabalho é via de regra impecável, dentro do mais alto senso de estilo. João Gilberto possui enorme discografia, porém seu acervo de novas canções cresce lentamente. É que ele vai polindo as velhas canções de parceiros da bossa nova ad infinitum, extraindo novas sonoridades e divisões, sempre surpreendendo.

Vaia de bêbado não vale…

Conta-se muitas histórias — a maioria verdadeiras — de suas excentricidades. O cantor vive recluso, porém passa horas ao telefone durante a madrugada, conversando com amigos. Tem um jeito tranquilo e doce, mas já dispensou subitamente orquestras que ensaiaram com ele para tocar sozinho na hora do show. Também já fez muitas plateias passarem calor por não aceitar que o ar condicionado fosse ligado e costuma passar meses em casa, deixando os amigos preocupados por apenas alimentar-se através de  teleentregas… Na noite de inauguração do Credicard Hall foi incompreensivelmente vaiado e chamou os espectadores de bêbados. Talvez seja um chato ou maluco, mas, desculpem, o maluco permanecerá como o maior marco de nossa música.

Obviamente, este comentarista considera pouco profissional cancelar shows subitamente e imotivadamente, mas pensa que não tolerar sons de celulares em shows, cochichos da platéia, ares-condicionados barulhentos ou caixas de som desreguladas não seja exatamente loucura.

Discografia:

  • Quando Você Recordar/Amar É Bom – 78 rpm single (Todamerica, 1951)
  • Anjo Cruel/Sem Ela – 78 rpm single (Todamerica, 1951)
  • Quando Ela Sai/Meia Luz – 78 rpm single (Copacabana, 1952)
  • Chega de Saudade/Bim Bom – 78 rpm single (Odeon, 1958)
  • Desafinado/Hô-bá-lá-lá – 78 rpm single (Odeon, 1958)
  • Chega de Saudade (Odeon, 1959)
  • O Amor, o Sorriso e a Flor (Odeon, 1960)
  • João Gilberto (Odeon, 1961)
  • Brazil’s Brilliant João Gilberto (Capitol, 1961)
  • João Gilberto Cantando as Músicas do Filme Orfeu do Carnaval (Odeon, 1962)
  • Boss of the Bossa Nova (Atlantic, 1962)
  • Bossa Nova at Carnegie Hall (Audo Fidelity, 1962)
  • The Warm World of João Gilberto (Atlantic, 1963)
  • Getz/Gilberto (Verve, 1963)
  • Herbie Mann & João Gilberto (Atlantic, 1965)
  • Getz/Gilberto vol. 2 (Verve, 1966)
  • João Gilberto en México (Orfeon, 1970)
  • João Gilberto (Philips, 1970)
  • João Gilberto (Polydor, 1973)
  • The Best of Two Worlds (CBS, 1976)
  • Amoroso (Warner/WEA, 1977)
  • Gilberto and Jobim (Capitol, 1977)
  • João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (WEA, 1980)
  • Brasil (WEA, 1981)
  • Interpreta Tom Jobim (EMI/Odeon, 1985)
  • Meditação (EMI, 1985)
  • Live at the 19th Montreux Jazz Festival (WEA, 1986)
  • João Gilberto Live in Montreux (Elektra, 1987)
  • O Mito (EMI, 1988)
  • The Legendary João Gilberto (World Pacific, 1990)
  • João (PolyGram, 1991)
  • João (Polydor, 1991)
  • Eu Sei que Vou Te Amar (Epic/Sony, 1994)
  • João Voz e Violão (Universal/Mercury, 2000)
  • Live At Umbria Jazz (EGEA, 2002)
  • João Gilberto in Tokyo (Universal, 2004)

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Oblivion, de Astor Piazzolla, com Sol Gabetta e Liudmyla Polova

Indicação de Alexandre Constantino. Sol é argentina e há pouco gravou o espetacular CD Duo, com Hélène Grimaud. Para quem tem rudimentos de alemão – eu tenho dois semestres feitos há três décadas no Goethe — , a entrevista após a música é bem legal. Entendi 23% dela, mais ou menos.

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Maior capa de CD (além disso, é excelente)

Social Studies, de Carla Bley

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Quanta música numa foto

Miles Davis, John Lennon e Yoko Ono. É, Yoko poderia ter ficado de fora. Foto de Andy Warhol, conforme aviso nos comentários.

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120 anos depois, a Cavalleria Rusticana retornou ao Theatro São Pedro em grande estilo

Santuzza (Claudia Riccitelli) e Turiddu (Richard Bauer), em cena da Cavalleria

Em 17 de maio de 1890 estreava a Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni no Teatro Costanzi de Roma. Na mesma data nascia o Verismo musical italiano e, assim como na literatura, também na ópera a arte passava a imitar a vida, fugindo dos modelos históricos e míticos e mergulhando no cotidiano.

A violinista da OSPA, Elena Romanov, fez-me notar que, em 1892, apenas dois anos após a estréia na Itália, a Cavalleria já chegava ao Theatro São Pedro com a grande Companhia Lírica Italiana de Poltronieri e Bernardi. Achei interessante lembrar ao apreciadores da lírica que, no século XIX, era usual companhias profissionais de ópera italiana se deslocarem de navio para a América Latina iniciando seu circuito pelo Teatro da Paz de Belém, de 1869, descendo em direção ao Teatro de Santa Isabel de Recife, de 1850, Theatro São Pedro de Porto Alegre, de 1858 e Theatro Sete de Abril de Pelotas, de 1834. Depois seguiam para o Uruguai e Argentina. Em 1890, ainda não existiam o o Theatro Pedro II e o Municipal de São Paulo, o Teatro Amazonas, o Theatro Municipal do Rio e o Theatro José de Alencar de Fortaleza, entre outros.

Em 2012, durante este final de semana, no Theatro São Pedro, passados 120 anos, voltamos a ouvir a história de Turiddu Macca, um camponês siciliano que, ao retornar do serviço militar, encontra Lola, sua namorada, casada com Alfio, um rico caixeiro-viajante. Tomado pelo ciúme, ele seduz a jovem Santuzza e a usa para provocar a antiga namorada. Lola cai na armadilha e torna-se sua amante. Santuzza, ao descobrir a traição, denuncia os amantes para Alfio, que, para lavar sua honra, desafia Turiddu para um duelo que se conclui com a morte deste.

Foram 55 minutos de tensão e drama enriquecidos pela Ospa (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre), coro e solistas.

O maestro Enrique Ricci transpirava segurança e carisma e, mesmo no espaço reduzido do pequeno teatro, o qual impedia movimentos de palco e limitava a atuação cênica, soube extrair interpretações emocionantes.

A orquestra e o coro estavam claramente seduzidos pelo maestro e havia congraçamento, integração, vontade. Quem estava na plateia sentia a música chegando como ondas, via-se as pessoas sendo transportadas pela obra. Eu mesmo, com a visão periférica, buscava meus vizinhos de platéia e via respirações, mãos e pernas que vibravam em sincronia com os acontecimentos do palco. A orquestra se transformou em praça e o coro sinfônico – com suas vozes treinadas pelo maestro Manfredo Schimiedt – foi o povo da Sicília, com sua religiosidade, alegria e drama.

A soprano Cláudia Riccitelli, foi uma apaixonada Santuzza, hipnotizando o público com uma expressividade sanguínea que a ajudou a superar as dificuldades do papel. A mezzo Luciane Bottona, destacou-se com uma mamma Lucia de ótima atuação cênica, voz segura, bem projetada e de lindo timbre. O barítono Sebastião Teixeira, apresentou um Alfio impecável com belos e sonoros graves. O tenor Richard Bauer, foi um bom Turiddu, destacando-se no dueto com Santuzza. A soprano Elisa Lopes encarnou satisfatoriamente a provocante Lola.

Momento memorável, casa lotada em todas as récitas, merecia mais e mais réplicas.

O momento dos aplausos | Foto: Romina Juliana

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Gustav Mahler, Sinfonia Nº 2 / Dudamel · SBSOV · NYCGB · BBC Proms 2011

Gustavo Dudamel conduz a Grande Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, o Coro Juvenil Nacional da Grã-Bretanha, Miah Persson e Anna Larsson, na 2ª Sinfonia de Gustav Mahler “A Ressurreição”. Versão completa, com 94 minutos.

http://youtu.be/hZzFruQCofM

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Maurice Ravel, La Valse

O máximo. Com a regência de Myung-Whun Chung e a Orchestre Philharmonique de Radio France.

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Ospa: o melhor concerto de 2012? Acho que sim

O maestro Pedro Calderón: volte sempre, viu?

Bom repertório, bom maestro, bom solista e uma orquestra inspirada fizeram ontem à noite um dos melhores concertos de 2012, talvez o melhor de todos. Foi o conserto do concerto, se me entendem. Chovia muito e a Assembleia Legislativa ficou com pouco mais da metade de suas dependências ocupadas, apesar do ingresso gratuito.

A primeira obra foi o famoso Concerto para Violino, Op. 64, de Felix Mendelssohn. É uma obra em três movimentos interligados que recebeu eficiente interpretação do solista nipo-germânico Koh Gabriel Kameda, sobre o qual tínhamos especial curiosidade. Afinal, o cara toca num Stradivarius de 1727. Kameda é um excelente violinista, as notas estão todas lá, mas acho que ele pecou na interpretação um pouco dura demais. Aquilo prejudica até o som privilegiado de seu violino. Meu entusiasmo por ele é limitado, mas tenho que dizer que o aplaudi muito. É que a memória do concerto de Mendelssohn ficou prejudicada pelo que veio depois e que foi muito, mas muito maior.

Ah, Kameda e a Ospa deram um bis com Oblivion de Astor Piazzolla. Engraçado, aqui Kameda perdeu a contenção, fazendo exatamente o que dele se esperava no Concerto. Enfim, coisas.

Tenho uma relação especial com a Sinfonia Nº 9 de Franz Schubert, apresentada após o intervalo. No dia 10 de dezembro de 1993, encontrei meu pai à noite num supermercado. Como sempre fazia com ele – e ele comigo – vim sorrateiramente por trás e fingi dar-lhe um encontrão. Depois, conversamos umas bobagens e nos despedimos. No dia seguinte, às 6h, ele estava estirado no banheiro de casa, morto, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Meio perdido, andei pela sala e resolvi abrir o CD Player para ver o que estava ali dentro. A última música que ele tinha ouvido fora a Sinfonia Nº 9, A Grande, de Schubert, com Claudio Abbado e a Chamber Orchestra of Europe. Nos dias posteriores, ouvi loucamente aquela música belíssima. Conheço-a em detalhes, claro. Qualquer psicólogo de farmácia dirá que eu tentei trazê-lo de volta através da Sinfonia, mas que ela não era tão grande assim. Mas, enfim, o concerto…

Ou o regente Pedro Calderón deu total liberdade ou foi muito bem compreendido pelos músicos. Isto era visível pela felicidade de todos. As cordas estiveram perfeitas numa obra longa em que elas trabalham o tempo inteiro.

O primeiro movimento inicia com um solo de trompa que foi executado na medida por Israel Oliveira. Todo o Andante – Allegro ma non Troppo recebeu a seriedade que merece, mas Calderón parecia ter a clara intenção de nos mostrar que seu Schubert era o dos lieder, o das canções. O segundo movimento (Andante con Moto)tem importante participação das madeiras e das flautas – destaques sempre e sempre para Viktória Tatour e Klaus Volkmann – e foi talvez o grande momento da noite. Há ali um tema puxado pelos segundos violinos que depois é “cantado” por toda a orquestra. Sim, ele foi “cantado” por todos os instrumentos como poucas vezes ouvi. Era pura felicidade dentro de uma melodia que nos remete novamente às canções schubertianas. Quem esteve lá ouviu. No Allegro Vivace que fecha a nona com algumas curtas referências a sua irmã de Beethoven, o entusiasmo de todos era tamanho que a batuta de Calderón acabou saltando de sua mão, voando sobre a cabeça dos spallas Omar Aguirre e Emerson Kretschmer, caindo atrás deles. Calderón seguiu o baile. Este Calderón – um argentino que deve ser octogenário — podia vir mais vezes, não? Ninguém vai se incomodar.

Foi maravilhoso. Gosto de observar a plateia na saída de shows, filmes e concertos. Ela saiu nas nuvens, vinda de um mundo absolutamente feliz. Estavam sem medo da chuva, também. Notei uma mulher que saiu à rua com total naturalidade e uma sombrinha na mão. Achei graça. Como prestar atenção a um mero guarda-chuva depois daquilo?

Programa

Felix Mendelssohn: Concerto para Violino, Op. 64
Bis: Astor Piazzolla: Oblivion
Franz Schubert: Sinfonia nº 9

Solista: Koh Gabriel Kameda
Regência: Pedro Calderón

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Celebração, grande música e política no show de Tom Zé

AQUI, fotos da queima do inflável da Coca-cola na saída do show.

AQUI, fotos do show.

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O tom do show foi dado sem que nenhuma canção fosse apresentada. Quando o locutor anunciou o espetáculo que fechava a edição de 2012 do Porto Alegre Em Cena, a Prefeitura foi citada, recebendo imediatamente uma vaia. Logo depois, sozinho, Tom Zé entrou lentamente no palco carregando um maço de jornais. Começou a ler algumas manchetes, agradecendo aos jornalistas que organizaram suas — segundo ele — disparatadas respostas, tornando-as bonitas matérias. Quando chegou ao nome de Zero Hora, outra vaia. Então Tom Zé jogou longe seus jornais e ficou claro que o show teria enorme participação de um público que ama o cantor e compositor.

Antes mesmo da banda entrar, ele tratou de organizar o movimento, pedindo respeito aos seguranças e que as pessoas em pé na frente do palco se retirassem porque senão todo o Araújo Vianna seria obrigado a levantar. Todos colaboraram e o show começou, não sem antes ouvirmos a explicação para o rabo que Tom Zé trazia atrás de si. Ele ensinou que os faraós egípcios, quando visitavam a divindade, colocavam um rabo a fim de demonstrarem sua inferioridade em relação aos deuses. Com o mesmo, Tom queria deixar clara sua posição em relação a Caetano e Gil, os principais nomes da Tropicália.

Falta uma semana para Tom Zé completar 76 anos, mas ele parece ter 36. Canta com voz potente, dança as danças do nordeste erguendo os pés até quase a altura de sua cabeça e demonstra enorme felicidade de estar ali. Afinal, o mais anárquico e injustiçado membro da Tropicália recebe desde os anos 90 a contrapartida que não tivera antes. Como dissemos, o público o adora — todos os CDs trazidos pelo artista foram comprados antes da apresentação — , canta junto, aplaude muito e, entre as músicas, Tom lê os recados que recebe e ouve pedidos de canções. Um dos recados mais aplaudidos foi aquele que reclamava que o elevador da Casa do Estudante não funciona há um ano.

A base do show é seu último CD, Tropicália Lixo Lógico. As canções são efetivamente ótimas, altamente criativas, com destaque para Não tenha ódio no verãoO motobói e Maria ClaraMarcha-enredo da Creche Tropical e De-de-dei Xá-xá-xá. Entre elas, homenagens à Aristóletes e citações das Metamorfoses de Ovídio. Foi quando, ao final de uma canção, inesperadamente, foram subitamente desfraldadas faixas pela plateia. As faixas diziam “Praças Vendidas”, “Não ponha o toque de recolher na alegria” e outras palavras de ordem do movimento porto-alegrense Defesa Pública da Alegria. Um gosto vidro e corte perpassou a espinha deste comentarista que pensou estar voltando aos tempos da ditadura.

Sensível ao momento, Tom Zé foi até a margem do palco, pegou um papel e começou a ler o manifesto do movimento. Foi um episódio belíssimo e, a partir dali, o compositor passou a uma revisão de sua obra em ordem cronológica descendente. Nesta viagem ao passado, ele apresentou algumas de suas músicas inspiradas por avisos — as hilariantes Não urine no chãoAtenção passageiro, antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar — , até chegar ao clímax: a clássica 2001, imortalizada pelos Mutantes. No caminho passou por Augusta, Angélica e Consolação e muitas outras. O show foi encerrado por Xique-xique (“Sacode a cultura, sacode a cultura”). No bis, entre outras, Menina amanhã de manhã e Jimi Hendrix.

Sobre o novo Araújo há que dizer que a amplificação do som esteve bastante boa. Caminhamos por todo o auditório e não percebemos aqueles ecos e retornos de som do passado.

Durante o show, Tom Zé mostrou um dos cartazes trazidos pelo público, o qual dizia “Praças vendidas”. Ao final do show, um grupo pôs fogo em um inflável da Coca-cola.  Também alguns manifestantes sentaram no gramado ao lado do prédio — cercado por grade desde a reabertura — , e foram retirados do local com truculência, segundo relatos. A Brigada Militar informa que não houve registro de nenhuma ocorrência, seja sobre o protesto, seja sobre a queima do inflável.

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O caso João Carlos Martins e a Ospa

O candidato a André Rieu brasileiro

Ontem tivemos um concerto regido por João Carlos Martins na Ospa. No passado, Martins foi um grande pianista, um excelente intérprete de Bach, mas depois uma série de acidentes e circunstâncias fizeram com que ele perdesse o movimento das mãos. Hoje, aos 72 anos, Martins atua como uma espécie de André Rieu brasileiro, regendo música ligeira e batucando lamentavelmente um piano com os três dedos que ainda lhe atendem. Vê-lo tocando é triste tanto para os olhos como para os ouvidos, é algo que busca despertar nossos sentimentos de pena, que toca muitas pessoas facilmente suscetíveis a situações do tipo ele-está-lutando-contra-a-adversidade ou e-mesmo-assim-ele-é-feliz. Não é proibido e muita gente gosta, mas, na minha opinião, a vaidade de Martins é tão grande que mesmo a exposição de suas deficiências como pianista serve a seu ego sedento de espectadores. E ele encontrou um público que ouve seus discursos e o  aplaude, feliz. Não é mais arte, não é mais música erudita, é a utilização de prestígio para tocar movimentos sinfônicos ou nem isso. Ontem por exemplo, ele apresentou um retalho do Bolero de Ravel, pois talvez lhe falte resistência física ou não sinta interesse do público numa audição integral.

Antes de perder os movimentos das mãos, Martins teve uma rumorosa passagem pela Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo. O prefeito era seu amigo Paulo Maluf. Atualmente, Martins é réu em um processo onde é acusado de corrupção. Segundo o revista Veja (há links na página):

Como empreiteiro dono da Paubrasil, o pianista recolheu quase 20 milhões de dólares em caixa dois para as campanhas de Maluf. As construtoras Paubrasil e Entersa,– das quais Martins era sócio,– cometiam fraudes contábeis para esconder do Fisco o quanto faturavam e a maneira como empregavam seus recursos. Desta forma, ficavam livres para financiar as campanhas do político. Em 1993, ano em que Paulo Maluf assumia a prefeitura de São Paulo pela segunda vez, a Receita Federal descobriu que a Paubrasil – empresa do pianista João Carlos Martins – havia recebido doações clandestinas para as campanhas eleitorais de Maluf nos anos 1990. A proprietária de um imóvel alugado pela Paubrasil denunciou que ali funcionava uma confecção que fazia uniformes para a empresa e também material de propaganda de Maluf. Em 2009, o caso de corrupção rendeu-lhe uma condenação a dois anos e nove meses de prisão – período substituído por pena restritiva de direitos – por crime contra a ordem tributária. O maestro entrou com recurso e aguarda julgamento.

Não creio que tenha, em toda a minha vida, assistido a um concerto pior do que o de ontem

A Ospa é uma orquestra pública, financiada pelos contribuintes através de impostos, e penso que devemos considerar dois aspectos. O primeiro é o artístico. A Ospa deve servir ao que der e vier? Ontem, a exigência artística era tão rala que a orquestra entrou despreocupada, sem a menor concentração, tocando mal obrinhas populares que tiraria normalmente de letra, talvez irritada com a indulgência para consigo e para com o público. Porém, observando as caras das pessoas que assistiam o concerto, via-se um indiscutível encantamento de gente que normalmente não comparece aos concertos. Isso é educar e formar público? Certamente NÃO. Uma experiência de décadas nos diz que aquelas pessoas não irão aos concertos “sérios” e transcendentes, onde serão tocadas obras completas do modo como foram compostas. O público de ontem era formado basicamente por pessoas de mais de 40 anos que estavam com pena do pobre pianista com dificuldades. Na última oportunidade em que esteve em Porto Alegre, Martins apresentou um curta metragem com sua história artística e médica. Houve lágrimas na plateia… Era um público de Hebe Camargo, não o da música. Como se comprova nos países onde a música é mais desenvolvida, não é com concessões que se atinge a música erudita, é com o acesso fácil a ela. Neste quesito, os casos da Venezuela e da Inglaterra — eu escolho pegar como exemplos países bem diferentes — são absolutamente exemplares.

O outro aspecto é o moral. OK, o caso de Martins ainda não foi inteiramente julgado. Coube recurso e este é um direito seu. Porém um governo do PT deveria pagar um cachê — certamente dos mais altos cachês deste ano — justamente para um apoiador de Paulo Maluf acusado de corrupção? Precisa mesmo? E o estado legalmente pode pagar alguém com as acusações que pairam sobre o ex-pianista? Para fazer aquilo não seria melhor resgatar da aposentadoria o maestro Tulio Belardi e seus concertos populares onde ele até cantava tangos para a mesma plateia extasiada?

Bem, deixo para meus sete leitores estas interrogações.

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A Ospa precisa de mais do que um teatro

A sala de ensaios com o protetor de acrílico | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Publicado originalmente em 20 de maio de 2012 no Sul21

Eu venho de uma cidade que tem uma Orquestra Sinfônica.
Erico Verissimo

“O Governo tem os olhos voltados para a orquestra, a Secretaria da Cultura também tem os olhos voltados para a orquestra, mas a Fundação (FOSPA – Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre), entidade que detém a gestão da orquestra, só tem olhos para o governo. Desta forma, sem gestão, a orquestra fica abandonada”. Tal imagem foi criada pelo presidente da AFFOSPA (Associação dos Funcionários da Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre), Wilthon Matos — que mostrou vários e-mails com relatos de músicos da OSPA — , a partir de uma afirmação do pianista André Carrara, músico da orquestra e membro da diretoria da entidade. O trompista Israel Oliveira, também da diretoria, diz que a Fundação tem receio de reivindicar qualquer coisa e acaba por não representar os músicos frente ao governo e, pior, não consegue gerir a orquestra.

Vamos explicar as siglas e as funções de cada órgão. O governo e sua Secretaria da Cultura são conhecidos, a FOSPA é a Fundação que deve se responsabilizar pela gestão da orquestra, seja administrativa ou artisticamente, e a AFFOSPA é a associação dos músicos da orquestra. “Temos um problema gravíssimo de gestão, a Fundação ignora, não ouve os músicos”, completa o mineiro Carrara.

Na tarde da última quarta-feira, o Sul21 visitou a direção da Associação de Funcionários em sua sede, uma pequena sala no edifício da Gal. Malcon em Porto Alegre. A Associação relatou que a relação com a Fundação está cada vez mais “franca”, o que talvez seja uma figura de linguagem educada para a palavra correta: “tensa”. A Associação considera, por exemplo, que o governo do estado está dialogando e ouvindo as partes na discussão salarial e do quadro de funcionários da orquestra, porém, se é consenso que a é proposta atual de reajuste é boa, é porque a Fundação assim avaliou, sem ouvir a orquestra.

André Carrara e Wilthon Matos (à direita)

André Carrara diz que “nenhum governo, ou, pelo menos, este, faria uma alteração no conteúdo de um projeto de aumento sem dialogar ou comunicar ao autor do projeto. A Fundação teve conhecimento dos valores oferecidos e os aceitou sem pestanejar e sem nos consultar. Nosso problema, como disse, é de gestão, não é um problema com o governo estadual. O governo está sentado à mesa de negociações discutindo o quadro, onde nós tentaremos reorganizar a instituição e colocar o funcionários certos nos lugares certos através de concursos específicos. O governo tem investido no teatro e sido sensível às nossas necessidades.

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Toda a vez que sentamos com o Secretário da Cultura, fomos ouvidos. Então, quando os colegas dizem que nós temos que fazer uma manifestação, o local correto não é fazer isso na frente da Casa Civil, mas frente da sede da Fundação. O atual governo é o mais favorável, o mais solícito, próximo e efetivo de todos, tanto que o teatro vai sair. Nós temos um problema interno”. Por exemplo, este foi o único governo que nos entregou uma proposta por escrito (ao lado).

Nenhum dos três representantes da Associação dos Funcionários é gaúcho. Eles ficam animados quando falam nos motivos que os fizeram virem para Porto Alegre. Curiosamente, o motivo parece ter sido o naipe de cordas da Ospa. “Quando eu cheguei aqui em 2004, fui logo assistir a um Concerto da Ospa onde ela tocava a Sinfonia Clássica de Prokofiev. Fiquei encantado, principalmente com as cordas da orquestra. A afinação, a qualidade sonora do naipe de violinos era incrível e olha que eu vim de orquestras muito boas”, conta Wilthon. “E, mesmo com o tratamento recebido, o nível artístico dos concertos ainda é muito bom. Não sabemos até quando será”.

As condições de trabalho – a fase do Palácio Piratini

A Ospa perdeu muito nos últimos anos. Os dois últimos concursos para músicos da orquestra foram no governo Rigotto, sendo que “a coisa degringolou de vez no governo de Yeda Crusius”, conforme Carrara. “Durante aqueles quatro anos, perdemos o Teatro da OSPA na Av. Independência, a Escola e vários funcionários na área administrativa”.

Logo que o ex-Teatro Leopoldina foi perdido, a Ospa passou a ensaiar no Palácio Piratini. Ali, grande parte do sentido, do espírito de grupo da orquestra, foi perdido. “Ficamos sem local para conversar, praticar e até largar nossos pertences. Vinha um caminhão com o nosso material – , instrumentos, cadeiras, estantes – eles deixavam tudo lá, nós usávamos a Sala de Imprensa”, contígua ao Salão Negrinho do Pastoreio e depois tudo era carregado de novo no caminhão. Ficamos sem salas e armários. Imagina, um ensaio de orquestra é uma bagunça. Os naipes muitas vezes tocam separadamente, repetindo os temas, a gente atrapalhava o funcionamento do Palácio, é claro, mas estávamos fora de nosso ambiente. Tínhamos horários e não adiantava chegar mais cedo porque mais cedo o Palácio estava fechado…”.

O trompista Israel Oliveira

Israel Oliveira completa: “Eu toco trompa, ele toca tuba (Wilthon). Como podemos ensaiar em casa? Hoje, com a tecnologia, a gente consegue se ouvir usando fones sem fazer muito barulho, há aparelhos que permitem isso, mas a gente perde a noção de força, de tocar forte ou piano (fraco) e perde a noção do diálogo que temos que estabelecer com outros músicos. Isto é, é uma necessidade imperiosa termos um espaço nosso. Nós não podemos ensaiar sozinhos em casa. Temos músicos excelentes, mas houve um prejuízo total em termos de performance”.

A fase em que a OSPA ensaiava no Palácio Piratini possui acentuados traços de comédia. Os instrumentos e cadeiras da orquestra ficavam armazenados dentro de um caminhão, pois não tinha como deixar o material no Palácio. Era um caminhão de mudanças e os instrumentos eram carregados de um local para outro transportados por pessoal não especializado. Naquela época também vários músicos se demitiram por terem sido convidados por outras orquestras sem substituição.

O fechamento da Escola de Música da Ospa

Depois, foi a vez da Escola de Música da OSPA fechar. Com a saída de funcionários administrativos e com a extinção das funções gratificadas, a Escola teve de ser fechada. A escola atendia alunos carentes. Desta forma um benefício social à população foi abolido. Vários músicos da OSPA e inúmeros outros que hoje se dedicam à música popular, quando meninos, foram formados na Escola da Ospa ou análogas. Os músicos que incorporaram esta FG a seus salários permanecem recebendo mesmo sem escola. Hoje, a Escola da Ospa não funciona, mesmo tendo prédio e uma estrutura mínima. O governo atual ainda não deu uma posição a respeito da escola. O fato é que a Fundação fez o pedido através de ofícios e, como sabemos, a papelada que não faz barulho nem incomoda.

Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

A mudança para o cais do porto

Então, no início de 2010, a governadora Yeda Crusius anunciou que precisava fazer uma reforma no Palácio e que a Ospa não poderia permanecer lá. Então, foi dada a “solução” do cais do porto e a orquestra foi se alojar no armazém A3. A vida no porto não está sendo nada divertida, mas os primeiros dias foram ainda menos. As paredes eram de gesso acartonado e as placas de absorção acústica, poucas. O pessoal da Fundação tentava convencer os músicos de que a nova sede era o melhor dos mundos. Como não era, a orquestra voltou a ser um problema para a Fundação.

Durante os ensaios, o som produzido pelos metais é tão alto e reverbera de tal forma que o pessoal das cordas passou a usar protetores auriculares. Também são utilizadas placas de acrílico com a finalidade de separar os metais dos outros instrumentos. Wilthon Matos explica: “É que numa sala inadequada e baixa, o som não sobe, provocando um verdadeiro estrondo. Então, o pessoal das cordas se protege como pode. As placas de acrílico causam prejuízos artísticos, pois o pessoal dos metais não consegue ouvir como seu som se projeta. O cara que está tocando o trompete passa a semana inteira com aquele acrílico na frente. Na hora do concerto, o som se projeta de forma diferente, de que valeu o ensaio?”. “O instrumentista perde a referência para que o que é forte ou piano”, completa o trompista Israel. “A música é um diálogo”, diz Carrara. “Como é que um colega vai ouvir o outro se usa protetor auricular?”.

Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Wilthon cita mais um item do rosário de problemas da orquestra. “Até nossas cadeiras estão quebrando. No concerto de domingo passado (no Colégio Militar de Porto Alegre), uma oboísta caiu. No concerto anterior foi a cadeira do spalla e do corne inglês. A Fundação, que deveria estar atenta a isto, só agora está tratando de nossas cadeiras”. Porém, apesar do local precaríssimo, em 2010, a governadora compareceu na inauguração da sala do A3… Segundo Matos, “todos os órgãos sofreram com os cortes do governo Yeda e encontraram soluções criativas, nós não. A Fundação não correu atrás de soluções”.

Revitalização do cais do porto

Não obstante, a lista de tragédias não para. Agora, com a revitalização do cais do porto, a OSPA será obrigada a se mudar novamente em agosto. Para onde? Ninguém sabe ainda onde será o novo puxadinho. Segundo a AFFOSPA, a indefinição foi novamente criadas pela inoperância e falta de previsão da Fundação que deveria gerir a orquestra. Ou seja, apesar da AFFOSPA dizer que o governo está na mesa discutindo, criando o quadro e agindo para garantir a Ospa por muito mais do que uma legislatura, há mais problemas logo à frente.

A Associação de Amigos foi extinta

Se a Fundação tem um diálogo insuficiente com os músicos, o mesmo acontece com o público da Ospa. Há algumas semanas um pequeno grupo de ouvintes e admiradores da orquestra, formado, em sua maioria, por descontentes com os repertórios dos concertos dos últimos anos, com o escasso e equivocado material dos programas e com os locais inusitados e nada confortáveis das recitais – há concertos de duas horas em bancos duros de igrejas de péssima acústica – começou a conversar através das redes sociais. Nestes contatos surgiu o tema da ausência de uma Associação de Amigos da Ospa. Ora, a imensa maioria das orquestras do mundo todo são apoiadas por Associações de Amigos, entidades sem fins lucrativos que visam dar apoio às orquestras. Seus associados pagam mensalmente um valor irrisório em troca de ingressos mais baratos, participação nas decisões no repertório e, muitas vezes, até adquirem instrumentos ou contratam músicos para se apresentarem em concertos.

A recriação da Associação de Amigos da Ospa já tem logotipo no Facebook

No Facebook, foi criado um grupo virtual chamado Associação dos Amigos da OSPA que, em menos de uma semana, contava com mais de 2000 seguidores. O grupo, criado em 23 de abril – não tem um mês de existência – , segue crescendo e ora conta com mais de 2500 seguidores. A primeira ação do grupo foi a de buscar informações sobre a antiga Associação de Amigos mas, após interpelar o diretor artístico, o e-mail da Assessoria de Comunicação que consta no site da OSPA, a página do Facebook da orquestra e vários músicos e ouvintes que participaram da antiga associação, nada obteve de informações.

Uma das criadoras do grupo, diz que ainda não se sabe se a antiga Associação de Amigos era formal ou informal. Há alguns relatos de antigos carnês de contribuição, mas nenhum material foi encontrado e nem se conhece os motivos pelo quais foi fechada. Dentro do grupo, há o consenso de que a OSPA merece uma Associação do gênero, mas a Fundação não reage ou responde.

Ou seja, não há relação entre o público da Ospa e a Fundação que gere a orquestra. As ações da Associação de Amigos vêm ao encontro da opinião dos músicos.

Futuro Teatro da Ospa, no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho l Foto: Ospa / Divulgação

O futuro

“O que nós cobramos é que a Fundação esteja no compasso do governo. O governo quer a Ospa, quer apoiar a Ospa. O secretário Assis Brasil afirmou que colocaria o cargo à disposição se não resolvesse a questão salarial, de quadro e de teatro da Ospa. E o papel da Fundação seria o de viabilizar as coisas mais facilmente. A Fundação não consegue nem resolver os problemas imediatos da orquestra. Falta arregaçar as mangas e trabalhar.

A Fundação tem como presidente o médico Ivo Nesralla e seu diretor artístico é o maestro Tiago Flores. O maestro Flores não respondeu a nossas tentativas de contato, apesar de ter, à princípio, por e-mail, manifestado o desejo de conversar com o Sul21. Atualmente, Tiago Flores tem um péssimo relacionamento com a orquestra. Em contatos com vários músicos, podemos afirmar que não obtivemos manifestações de apoio à atuação de Flores, principalmente porque ele não considera a opinião da orquestra ao contratar maestros e ao definir repertório, desconsiderando a opinião da Comissão Artística. Aliás, no primeiro ano de funcionamento da Comissão Artística, houve uma súbita melhora na qualidade da programação o que infelizmente não subsistiu no segundo ano e alguns colegas deixaram a comissão. Carrara foi, inclusive, eleito como membro da Comissão, mas a abandonou pela disponibilidade restrita como vice-presidente da AFFOSPA e também por discordar de alguns pontos administrativos.

“O problema não é o Assis Brasil, é seu funcionário”. | oto: Ramiro Furquim/Sul21

“O problema não é o Assis Brasil, é seu funcionário. E nós, na última reunião, avisamos: ou o Tiago passa para o lado da orquestra ou a orquestra passará por cima dele. Afinal, é a nossa sobrevivência”, diz o presidente Wilthon.

Hoje, a orquestra tem três reivindicações principais: a construção do teatro, o quadro funcional da orquestra – principalmente na área administrativa porque, se não há nem cadeiras ou estantes adequadas, existe um problema administrativo com pessoas pouco qualificadas no exercício de determinadas funções –, e a questão salarial. “Desde 1995, nós estamos defasados em 76,5 % só em relação do IGP-M. Todas as orquestras públicas do resto do país enfrentam problemas, mas nossa defasagem salarial em relação a elas é de aproximadamente 70%. A orquestra não pede nenhum aumento, apenas a reposição do que foi perdido nestes 17 anos.

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Ospa: Quando o clima é acertado

Johannes Brahms: uma camada de gelo que esconde um vulcão

Como ontem era a data de aniversário de minha filha, não julguei CORRETO ir ao Concerto da Ospa. Achei melhor jantar em casa, essas coisas. Mas coloquei uma missão para meu dileto amigo Ricardo Branco: já que ele iria ao concerto, que escrevesse algumas linhas a respeito. Costumamos ir juntos aos concertos que ocorrem na Reitoria da UFRGS. (Ignoro o motivo que leva o Branco e sua esposa Jussara a não irem aos concertos da Ospa em outros cantos da cidade que não a UFRGS). Talvez, após esta introdução, ele venha aqui nos explicar sobre o estranho fato. Pois é bom ir aos concertos com eles! O Branco é meu amigo a obscenos 36 anos e nosso gosto musical é bem parecido. Então, antes de passar a palavra ao Ricardo Branco, deixo para vocês o programa do concerto de ontem e despeço-me:

Programa:
Mikhail Glinka: Abertura da ópera “Ruslan e Ludmila”
Camille Saint-Saëns: Concerto para Piano e Orquestra nº 2, Op. 22
Johannes Brahms: Sinfonia n° 1

Regente: Roberto Tibiriçá
Solista: Ney Fialkow

Ser chamado de Pai de algum movimento musical, como normalmente é referido Glinka, pode significar nada mais do que ser um antecessor dos grandes. Com efeito, a abertura da ópera Ruslan e Ludmila, não passava de um aquecimento para recuperar-nos da algidez que pairava lá fora. Atingida a tepidez indispensável, pudemos sorver o belíssimo chocolate quente do Concerto para piano Nº 2 Op. 22 de Saint-Saens. Já no solo inicial, em estilo de uma fantasia, entendemos a que o pianista Ney Fialkow viera. O tema melancólico estava bastante adequado à noite. Um concerto leve que demandava um piano enérgico. Por fim, um movimento bastante rápido onde a orquestra e osolista ganham volume e terminam numa série de arpégios. Sinceramente, não sei por que os pianistas preferem o Concerto Nº 2 de Rachmaninof a este. Talvez o motivo esteja ligado ao fato de eu não ser pianista e sim um ouvinte.

Totalmente aquecidos, chegou a hora de brandy, ou vinho. No caso um Borgonha de alta classe. Brahms, primeira Sinfonia. Carpeaux comentou que havia um crítico americano que sugeriu adicionar “em caso de Brahms” nas placas de saídas dos teatros. Talvez por isso, este país gerou tão tardiamente compositores dignos de nota.

Sempre vi Brahms como uma camada de gelo escondendo um vulcão. Nada mais apropriado para a noite. No primeiro movimento há mais tensão que nos dois seguintes. O segundo é bastante lírico e o terceiro é o típico Brahms de ritmos e texturas complexas. Alguns já a chamaram de décima de Beethoven, será por que o più sostenuto no quarto movimento lembra o andante da nona? Não importa, é musica das maiores.

Assim se passou a noite, o gelo lá fora e a OSPA aprumada, agraciando-nos com lavas sonoras. Um ótimo retorno do Uruguai.

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Music for a while, de Henry Purcell

Com o contratenor Andreas Scholl e grupo não identificado. Mas eu conheço aquele regente careca. Putz, quem é?

http://youtu.be/v2c4jVjgei8

E abaixo, agora com um barítono, a mesma música. O barítono é Maarten Koningsberger e o cara da tiorba é Fred Jacobs. A aqui, a primeira múisca é Music for a while de Purcell e a segunda Goûtons un doux repos, de Michel Lambert. Não entendi o gênero de concerto, nem o papel daquela tia aplaudindo extasiada no palco.

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OSPA, Yamandu e Música Brasileira

O compositor e pianista Dimitri Cervo

A gente aqui é muito chique. Como o titular do espaço resolver ver a peça Deus da Carnificina — uma de suas preferências absolutas — terceirizamos a resenha do Concerto da Ospa de ontem  à noite com alguém que conhece muito mais. Não se acostumem, eu voltarei! Sim, o texto a seguir é de Dimitri Cervo, convidado por nós para escrever acerca de um concerto que, pelo visto (ou lido), foi ótimo. Agradeço ao Dimitri por ter concordado tão pronta e simpaticamente com nossa proposta. Aproveito também para me desculpar pela ligação que o tirou da cama, fato que só fui descobrir após lê-lo. Ah, a Ospa apresentará o mesmo programa de ontem na segunda-feira que vem, só que no Teatro Solis, em Montevidéu. Eu não disse que estamos chiques hoje? Com vocês, Dimitri Cervo:

Chego às 20h15 para o concerto da OSPA de ontem à noite, fila no pórtico da Assembléia Legislativa, ingressos esgotados. Após certa apreensão, pelas 20h30 as cerca de 70 pessoas que ficaram de fora são gentilmente convidadas a se acomodar “onde for possível.” Todos entram satisfeitos, com o aquele espírito de imagina-perder-esse-concerto-tchê! Olho ao redor, Assembléia Legislativa lotada, público animado e diversificado, alguns até com mate em punho e ainda consigo sentar bem no meio da sala, enquanto que a maioria se acomoda nas escadas laterais.

O concerto começa, música sublime de Carlos Gomes pairando no ar, José Maria Florêncio consegue extrair o máximo dessa obra prima: Alvorada, de Carlos Gomes. Logo entra Yamandu Costa, violão na mão, jeito “amandueiro”, um pouco levado, de alpargatas e bombacha. Ele é o solista da Fantasia Popular, obra sua em parceria com Paulo Aragão, que teve sua gênese em 2008 e desde então tem sido apresentada no Brasil e no exterior. Os três movimentos fluem maravilhosamente. No final, Yamandu, muito aplaudido, volta para um bis, com a excelente Bachbaridade, uma síntese musical e fonética e do espírito irreverente desse grande artista.  Muito ovacionado, coloca o violão acima de sua cabeça, ofertando-o a platéia, simbolizando um “me coloco a serviço desse instrumento e da música”. Grandiosidade e humildade em um mesmo ser.

Falando com Aragão, soube que o processo criativo dessa obra representa o amadurecimento de uma relação artística de mais de uma década.  Yamandu lhe passou em gravação inúmeras ideias musicais, e aos poucos elas foram sendo anotadas e modeladas em conjunto por esses dois vizinhos em Botafogo, tomando a forma final nessa excelente obra em três movimentos, em que a expressividade e virtuosidade do violão brasileiro de Yamandu são tão bem balanceadas com os recursos orquestrais.

Na segunda parte José Maria Florêncio voltou a demonstrar porque é um dos maestros brasileiros mais conceituados no mundo. Sua singular e precisa concepção da Bachianas Brasileiras nº 4, de Heitor Villa-Lobos e da contagiante Suíte Sinfônica nº 2 – Pernambucana, de César Guerra-Peixe fecharam a noite em grande estilo

Após o concerto, ainda tive a honra de partilhar do jantar com Yamandu, Paulo, Florêncio, Tiago Flores e Elisa Cunha. Depois, a grande e boa armadilha do Yamandu, “vamos em algum lugar para uma saideira”. Foi um privilegio trocar ideias com Yamandu, Florêncio e Aragão madrugada adentro, as riquezas que brotaram desse encontro jamais poderá ser reproduzida em palavras. Para resumir, a saideira só terminou na hora de Yamandu ter que ir para o aeroporto, para outro compromisso sinfônico, agora com a Sinfônica Brasileira. E eu que esperava poder dormir um pouco mais hoje, fui despertado com o Milton Ribeiro ao fone. Já que ele não pode ir ao concerto me pediu essa resenha. Fiz o que pude, mas para capturar algo do essencial que aconteceu em música no concerto, e no palavreio do pós-concerto, só um escritor escrevendo um livro, ou um compositor criando música.

Dimitri Cervo — www.dimitricervo.com

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