Antes da improvável penitência, o Carnaval, Carnis Valles, ou os prazeres da carne

Antes da improvável penitência, o Carnaval, Carnis Valles, ou os prazeres da carne
Foto: Guilherme Santos / Sul21

Tal como o Natal, o Carnaval é uma festa anterior ao Cristianismo. É comemorado há pelo menos 10 mil anos. Existia no Egito, na Grécia e na Roma antigos, sempre associado à ideia de fertilidade da terra. Era quando o povo comemorava a futura boa colheita, a proximidade da primavera e a generosidade dos deuses. A festividade começou pagã e trouxe até nossos dias parte de suas características originais: os rostos pintados, as máscaras, o excesso, a extravagância e a troca de papéis.

Em Roma, o mais belo soldado era designado para representar o deus Momo do Carnaval. Era coroado rei e permanecia três dias nesta condição. Posteriormente, passou-se a escolher o homem mais obeso da cidade para servir como símbolo da fartura e reinar por três dias. Esta troca de papéis durante o carnaval foi extensivamente analisada por Mikhail Bakhtín no clássico A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Segundo Bakhtín, o carnaval permitia a inversão da ordem estabelecida, a fuga temporária da realidade. Seria um espaço de suspensão da rotina que ofereceria aos homens um grau de liberdade não experimentado normalmente. Se Bakhtín visava descrever a Idade Média e o Renascimento com a frase anterior, também descreve o que ocorre hoje, aqui, agora.

Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com suas leis, isto é, as leis da liberdade.

Mikhail BAKHTÍN

28/08/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Cortejo dos artistas de rua. Foto: Guilherme Santos / Sul21

O antropólogo Roberto Da Matta, em sua obra Universo do Carnaval: imagens e reflexões, traz a obra de Bakhtín ao encontro da realidade brasileira. Se não há uma inversão completa da ordem, é o momento em que os mais pobres, organizados, invadem o centro da realidade, estabelecendo um “mecanismo de liberação provisória das formalidades controladas pelo estado e pelo governo”. Durante o carnaval, há toda uma encenação em que se desmancham as subordinações – os pobres vestem ricas e escandalosas fantasias tomando o lugar da elite –, em que há outras inversões de papéis – homens travestindo-se de mulheres e vice-versa — e a celebração da abundância – de riqueza, de brilho, de música, de dança, de energia – em contraposição à rotina e à austeridade. Voltando à Bakhtín: “É a violação do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada do seu curso habitual”.

Foto: Guilherme Santos / Sul21

A Igreja Católica defendeu por muitos anos que a festa surgiu a partir da implantação da Semana Santa, no século XI. A Semana Santa ou, mais exatamente, a Sexta-feira Santa, é antecedida pela Quaresma, período de 40 dias que começa exatamente na Quarta-feira de Cinzas. A Quaresma seria um longo período voltado à reflexão e onde os cristãos se recolheriam em orações e penitências a fim de preparar o espírito para a chegada do Cristo ressurreto. Mas, antes, festa total! O longo período de privações teria incentivado as festividades nos dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas. A palavra “carnaval” estaria também relacionada à ideia dos prazeres da carne e a etimologia vem a nosso auxílio: carnaval deriva da expressão carnis valles, carnis significa “carne” em latim e valles significa “prazeres”. Então, se há a devoção a Cristo, antes há a devoção aos prazeres da carne. E não é nada de espantar a nudez das pessoas durante o período…

A passagem de uma data para outra, do Carnaval para Quaresma na Quarta-feira de Cinzas, foi tema para o grande Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569) no quadro A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), onde são mostrados dois grupos frente a frente, o dos penitentes e o carnavalesco. É curioso notar que a genial gravura confronta dois grupos diversos e não uma mudança de postura das mesmas pessoas. Se há realismo no quadro do flamengo, havia dois grupos, o dos festeiros e o dos religiosos. À direita, vem o grupo de religiosos; à esquerda, o de carnavalescos.

‘A luta entre o carnaval e a Quaresma’, obra de Pieter Brueghel, O Velho.

O dia anterior ao fim do Carnaval é a Terça-feira Gorda, em francês Mardi Gras, nome do Carnaval de New Orleans.

No Brasil e em todo o mundo onde há Carnaval, são verificadas características das manifestações antigas. O que são os trios elétricos senão cortejos que carregam milhares de pessoas que cantam, dançam e bebem numa verdadeira celebração dionisíaca? O que é o desnudamento aliado à luxúria, garantindo um cenário altamente propício à liberdade sexual, senão o clima tão bem descrito em Concerto Barroco, romance histórico do cubano Alejo Carpentier que se passa na Veneza de Vivaldi (no início do século XVIII)? Tais excessos, que normalmente acabavam em grandes orgias eram condenados pela Igreja, mas arrebatavam a nobreza. Bakhtín chama de “realismo grotesco” tal conjugação de materialidade e corpo, onde as satisfações carnais (comida, bebida e sexo) têm lugar de destaque.

Foto: Guilherme Santos / Sul21

Apesar da Quaresma ser quase desconhecida e pouco sentida em nossos dias, a catarse coletiva, o exagero e os efêmeros dias de festa contínua seguem e certamente seguirão por séculos. Na “sociedade do espetáculo”, como diria Guy Debord, o Carnaval se transforma em desfiles monumentais transmitidos pela TV, onde o que se vê é ainda o exagero, a troca de papéis e as alegorias e paródias que vêm desde há 10.000 anos, quando os homens afastavam os maus espíritos de suas plantações através de máscaras. A catarse atual não ocorre depois do longo inverno do hemisfério norte, nem é causada pela perspectiva de um longo período de penitência, mas é a data estabelecida no imaginário popular como a do verdadeiro início do ano, depois da qual tudo volta ao normal, entronizando finalmente o cotidiano que reina pelo resto do ano. Muito pensadores marxistas veem o carnaval como uma válvula de escape para as tensões do cotidiano, permitida, controlada e estimulada pelos grupos dominantes a fim de, depois, manipular e reforçar a ordem vigente, mas não sejamos tão revanchistas no dia de hoje. Dioniso não ficaria feliz.

Rabelais: o politicamente incorreto que distorcia o mundo a fim de dissecá-lo

Tudo começa com um descomunal banquete. A Primeira Lei de Farinatti é respeitada: “Antes faça mal que vá fora”. A recusa está fora de questão. Gargamelle, mulher de Grandgousier, mastiga tripas de boi até explodir – e come tanto que acaba por parir seus próprios intestinos. Então, com apenas dois orifícios disponíveis, as duas orelhas, dá luz ao Gargântua, pai de Pantagruel, ambos memoráveis glutões.

Gargântua (1534) e Pantagruel (1532) fizeram a fama do respeitado e erudito médico e clérigo François Rabelais (ca. 1490-1553). Ele fez do grotesco e do escatológico uma das mais originais e radicais obras humanistas do final do Renascimento. De seus livros saiu um adjetivo em língua portuguesa, pantagruélico – adj. relativo a Pantagruel, personagem caricatural de um romance de Rabelais, o qual se singulariza por ser amante da boa mesa e do bom vinho. / Abundante em comidas e bebidas. Entre a devoção e o temor a Cristo de sua época, que alternativamente explorava a elegância dos temas clássicos e mitológicos — argh! — Rabelais foi ao encontro da cultura popular e do “mau gosto” a fim de satirizar seus pares.

Há um celebérrimo estudo, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, do teórico russo Mikhail Bakhtin, que trata da influência das fontes populares nos livros mais famosos de Rabelais. Desde seu lançamento em 1965, a obra é referência para quem se dedica à história do riso e à cultura popular. Pois o riso e sua penetração merecem ser muito estudados.

A literatura chegou tarde à vida de Rabelais. Foi franciscano – o que já é bastante engraçado – e depois beneditino. Deslocou seus interesses para a ciência-irmã medicina. Tornou-se médico. A literatura veio provavelmente como forma de sustento e logo passou a ser forma de ataque. Em Pantagruel atacava o academicismo da época. E a educação de Gargântua foi esmeradíssima, ele só frequentou os escolásticos, podia recitar obras de cor e salteado, o que não evitou que se tornasse “um idiota, palerma, distraído e bobo”. O autor também era um admirador do caráter laico da Reforma Protestante. Claro que seus livros, grandes sucessos, foram proibidos.

Como todo o verdadeiro humorista, Rabelais não era um mero palhaço. Suas críiticas eram sérias. Durante o Iluminismo, houve muita discussão acerca de sua importância. Em nossos dias, além do ensaio de Bakhtin, houve outro, de Lucien Febvre que conjeturava acerca de um provável ateísmo – coisa em que não acredito. De qualquer modo, a exploração da hipérbole e a distorção do mundo foi-nos mostrada pela primeira vez sob uma forma que é usada até hoje por humoristas, escritores e compositores inteligentes (Shostakovich é um grande rabelaisiano): como uma forma de decompor e recompor o mundo, como uma forma de observar sua anatomia e dissecá-lo.

Rabelais realmente “tirava profiteroles das indulgências”. Como? Olha, há muito que pensar a respeito.

Gargântua tinha que se alimentar, pois não?