Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Rafael Ortega Basagoiti

O personagem Leonard Bernstein era excessivo. Ele viveu em um conflito quase permanente sobre como administrar a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade, em tempos em que a tolerância (especialmente nos Estados Unidos) não era o que é agora, e além disso foi investigado pelo FBI por sua tendência esquerdista. Apaixonado, extrovertido, suas manifestações de efusividade seriam hoje objeto, no mínimo, de escândalo (sua própria filha declara em um dos documentários que beijava todos que estavam ao seu alcance, um músico da Filarmônica de Viena relata o assunto com ironia: “Disseram-me, não enxugue, afinal é suor de Bernstein”). Na época em que conheceu sua futura esposa, Felicia Montealegre, ele já havia tido seus namoros homossexuais, e Paul R. Laird, em sua excelente biografia (Life and Work of Leonard Bernstein , Turner, 2018), sugere que sua amizade com Aaron Copland provavelmente foi mais do que isso.

Mas o ambiente era o que era, e um de seus mentores, Serge Koussevitzky, então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, pressionou-o a mudar seu sobrenome (sugeriu Leonard Burns) para eliminar o toque judaico e a se casar. Ambas as coisas, a segunda destinada a reprimir os rumores de sua homossexualidade, ajudariam sua carreira. Lenny não mudou o sobrenome, mas se casou com Felicia. O conflito sobre sua sexualidade persistiu e ele acabou se separando da esposa para se juntar ao amante Tom Cothran. Mas quando Felicia foi diagnosticada com o câncer que acabaria com sua vida, ele voltou e ficou com ela até sua morte. Ele a amava, não há dúvida disso, por mais que sua tendência sexual o levasse para outras camas.

É esta relação única entre Lenny e Felicia, e o conflito sexual que lhe está subjacente, que é o foco do filme Maestro, protagonizado e realizado por Bradley Cooper, produzido pela Netflix e agora disponível na plataforma. Não entrarei no aspecto puramente cinematográfico neste artigo, mas vale a pena fazer algumas anotações que surgem depois de ter visto o filme. Não há nada de questionável, em princípio, no fato de o filme focar nessa relação, a ponto de Felicia (aliás, maravilhosamente interpretada por Carey Mulligan), ser praticamente o papel principal. Na verdade, é uma faceta pouco delineada em outros documentários. E, a julgar pela declaração da própria filha Jamie (protagonista de uma das cenas do filme, que motiva Felicia a pressionar Lenny a falar com ela e a negar os rumores sobre sua homossexualidade), é uma questão bem retratada. Acredito, no entanto, que existe um problema, e não de menor importância, em outros domínios.

Compositor, pianista, diretor, divulgador, ensaísta e professor. Talvez você possa encontrar pessoas que desenvolveram todas ou quase todas essas facetas, mas para elas terem feito isso no nível de excelência em que Leonard Bernstein fez, é, não acho que estou exagerando, muito difícil, se não impossível. Lenny foi uma das grandes personalidades musicais do século XX, sem dúvida. Muitos podem não gostar de sua música, ou pensar que ele não deveria ter ido além dos (ótimos) musicais. Para outros, seus modos no pódio podem parecer exagerados, teatrais, pouco ortodoxos e até caóticos (aqueles saltos, aquele balanço de braço, aquele movimento corporal, aquela técnica de batuta, no mínimo singular…). Talvez sua tendência, como maestro, para tempos realmente extremos — exceto o último Celibidache e algumas gravações de Bach de Scherchen, é difícil lembrar de lentidão mais no limite do que aquelas do último movimento da Nona de Mahler nas mãos de Bernstein — seja indigesto para alguns, porque foge ao cânone.

Mas esse caráter excessivo foi e continua sendo fascinante. Ele vivia a música com uma intensidade contagiante. Os seus critérios podem ser discutíveis, o seu gesto e o sus batura quebram toda a ortodoxia. Mas o que aquele homem transmitia… a paixão, a convicção, eram tais que era literalmente impossível não o seguir, não se sentir capturado pela sua mensagem, fosse ela música, interpretação ou divulgação. “Eu amo duas coisas: música e pessoas. Não sei qual dos dois eu prefiro.” Estas são as primeiras palavras de uma declaração um pouco mais longa que Leonard Bernstein, com a voz já muito rouca, em 1990, poucos meses antes de morrer, diz à câmera com comovente ternura. É o início de um estupendo documentário, The Gift of Music, narrado por Lauren Bacall e editado em DVD pela Deutsche Grammophon. Há outro documentário, Larger than life, também magnífico, creio que disponível na medici.tv.

Qualquer um desses documentários, ou qualquer uma das muitas entrevistas com Bernstein –entre elas, a que você pode ver aqui, da série Kennedy Center Honors Legend — deixa um retrato dele muito mais completo e fascinante do que o deste filme de Bradley Cooper.

Porque, na minha humilde opinião, é aí que reside o seu principal (embora não único) defeito: intitulado Maestro, espera-se encontrar um filme em que todas estas facetas estejam mais ou menos bem retratadas. Mas a música, apesar do título, parece uma companheira marginal. Aquela que é considerada sua principal obra, a Missa, aparece saindo na ponta dos pés. O mais conhecido, West Side Story, mal participa. Não há nada da sua relação, muito longa e profunda, com a Filarmónica de Israel, nem com a de Viena, a Baviera ou o Concertgebouw. Pior ainda, presume-se que o espectador conheça muito bem a vida de Bernstein antes de assistir ao filme, porque se não for o caso, a presença fugaz de pessoas tão essenciais na sua vida como Aaron Copland ou Koussevitzky é dificilmente identificável. Outros, igualmente importantes, como Dimitri Mitropoulos, o realizador grego que o impulsionou a ser compositor, ou Fritz Reiner, seu professor no Curtis Institute, em Filadélfia, nem sequer aparecem. Também passa despercebida, ou quase, a sua extraordinária atividade de divulgador que está no YouTube… Ver qualquer um destes vídeos explica de uma forma muito simples porque este homem conseguiu fisgar milhões de pessoas pela música clássica.

Mais difícil de traduzir em filme é seu papel como colunista, mas também é altamente recomendável aprofundar-se na inestimável descrição que faz de seu querido Mahler neste artigo: Mahler – Chegou a sua hora – na Alta Fidelidade, Vol 17 no. 9, setembro de 1967, posteriormente reproduzido em seu primeiro ciclo Mahleriano para CBS-Sony. É difícil explicar, sem meandros técnicos, o que é a música de Mahler, o que ela expressa e significa, com mais precisão e riqueza do que a escrita nesta coluna.

Além disso, interpretar um regente (e ainda mais um como Bernstein) é extremamente difícil, o que deve ser levado em conta ao julgar o trabalho de Cooper. O ator americano, treinado pelo diretor do Metropolitan, Yannick Nézet-Séguin, se sai razoavelmente bem em uma cena com o coro, mas quando tenta reproduzir a lendária gravação da Segunda Sinfonia de Mahler na Catedral de Ely (que faz parte do ciclo de Mahler gravado em DVD pela Deutsche Grammophon) vai longe demais. Lenny era, como já observei, excessivo. Cooper vai mais longe, mas o que em Bernstein parece um excesso natural, em Cooper parece beirar o grotesco. A sua caracterização, incluindo a controversa prótese nasal, é ótima. A dublagem presta um péssimo serviço, no entanto. A voz de Bernstein, especialmente a do Bernstein mais velho, parece demasiado melíflua (compare com o original da entrevista citada acima, mas também com o som original do filme).

Em suma, o mais problemático é que muitos virão esperando ver um retrato de Bernstein com aquelas múltiplas facetas ligadas à música que, além disso, teve uma relação única com a sua esposa, e que viveu um duro conflito com a sua tendência sexual. Mas o que você verá é o retrato de alguém que teve uma relação única com sua esposa, enquadrada em um duro conflito com sua tendência sexual… e que, além disso, também era músico. Mas como isso é pouco, o título é enganoso, porque não responde ao que se vê depois. O retrato esperado permanece incompleto.

O Bernstein de verdade

Lavard Skou Larsen: “A cultura é a única coisa que nos mantêm, é o catalisador para entender a vida”

Lavard Skou Larsen: “A cultura é a única coisa que nos mantêm, é o catalisador para entender a vida”

Publicado em 13 de abril de 2014 no Sul21.

Quando pegamos um CD ou um programa de concerto e lemos o nome de Lavard Skou Larsen, ficamos normalmente surpresos ao saber que se trata de um maestro e violinista porto-alegrense radicado na Áustria. Os pais desta estrela internacional da chamada música erudita são os violinistas Perly e Gunnar. Ela é gaúcha e Gunnar Skou Larsen foi um dos estrangeiros que vieram para tocar violino na Ospa (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre) de Pablo Komlós nos anos 50. Veio da Dinamarca.

Lavard recebeu o Sul21 no apartamento de sua mãe, no bairro Moinhos de Vento. Mesmo com a pesada agenda de concertos — nesta quinzena ele deu concertos em Erevan e em Tbilisi, respectivamente as capitais da Armênia e da Geórgia — ele sempre retorna a Porto Alegre para ver D. Perly, uma lúcida senhora de 90 anos e para tocar e reger, como fará na próxima terça-feira (15). Desta vez, trouxe a nora e os netos. Lavard viveu em nossa cidade só até os quatro anos de idade, mas fala um português perfeito e diz sentir-se em casa como porto-alegrense, gremista e amante do churrasco.

Hoje, além dos concertos pelo mundo, Lavard Skou Larsen é professor de violino na Universidade Mozarteum, em Salzburg, e da cadeira de prática de orquestra. Desde 1991, é fundador, maestro e diretor artístico da Salzburg Chamber Soloists, de grande sucesso no mundo inteiro. Grava regularmente para os selos Naxos, Denon, CPO, Marco Polo, Movieplay, Stradivarius e Coviello Classics e, em 2004, assumiu o cargo de maestro titular da Deutsche Kammerakademie Neuss am Rhein (Alemanha).

Como dissemos, na próxima terça-feira ele estará novamente à frente da Ospa, no Auditório Dante Barone, às 20h30, num concerto cujos detalhes são discutidos abaixo.

É desnecessário alongar-se sobre seu currículo. Acreditamos que boa parte de sua visão da música e do mundo está na entrevista abaixo, que foi longa, gentil, informal e pontuada por risadas.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Às vezes, meu pai me batia com o arco do violino, então eu tocava melhor!” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Como é que um sujeito chamado Lavard Skou Larsen nasce em Porto Alegre?

Lavard Skou Larsen — (risos) Meu pai veio para o Brasil em 1955. Naquela época, vir para o Brasil era uma coisa muito especial, muito exótica, era uma aventura. Ele era violinista, dinamarquês e estudava violino em Viena. Mas quis fazer um ano ou dois anos em outro país. Poderia ter ido para a Índia, para o Paquistão, mas veio para o Brasil. Ele tentou tocar violino no Rio de Janeiro, na OSB, mas lá não tinha lugar. Daí, disseram pra ele “Olha, em Porto Alegre tem um húngaro, Pablo Komlós, que fundou uma orquestra, e lá estão precisando de gente”. E ele veio. Minha mãe conta sobre o dia em que ele chegou. Ele apareceu no ensaio com uma mala numa mão e o estojo de violino na outra, e o único lugar que tinha para sentar era ao lado de minha mãe. Ela é o mais velho membro da Ospa. Tem 90 anos.

Sul21 — A senhora também é violinista?

D. Perly Skou Larsen — Sim, eu toquei no primeiro concerto da Ospa, em 1950. Eu sou daqui de Porto Alegre, estudei no Instituto de Belas Artes. Eu me formei bem na época em que o Komlós estava organizando a orquestra, quando ele estava convidando todo mundo que sabia tocar um pouquinho. O pai do Lavard veio mais tarde. Ele tocava conosco e dava aulas de violino, porque tinha uma formação musical muito sólida.

Lavard — Mas ele te conheceu na Ospa, ele chegou para tocar na Ospa?

D. Perly — Sim, foi contratado. Naquela época a Ospa recebeu uma porção de músicos da Europa. Não foi só ele. Isso tudo em meados de 1950 e 1960. Aí eu casei com Gunnar Skou Larsen, montamos até escolas de música em Porto Alegre.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Lavard e sua mãe, D. Perly, a mais antiga integrante da Ospa | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Como surgiu o violinista Lavard Skou Larsen?

Lavard — Acho que surgiu quando eu estava na barriga dela… Meu pai comprou meu primeiro violino quando eu era um embrião. (risos) Eu não tive escolha. Meu pai foi o primeiro músico de sua família. Meus avós eram camponeses na Dinamarca, gente bem simples. Ele tinha orgulho da profissão que o levara à Viena. E, logo com quatro anos de idade, eu comecei a arranhar o violino no método Suzuki, em que você aprende brincando. Ele tentou o mesmo com minha irmã, mas não obteve sucesso. No início eu era um pouco cabeça dura, não queria estudar, então ele me dava umas chicotadas com o arco. Depois disso eu tocava muito bem! (risos)

Sul21 — Além de apanhar com o arco, o que o guri Lavard fazia? Jogava bola?

Lavard — Brincava com os amigos, jogava bola… O meu pai era muito legal, todos os dias a gente tinha uma ou duas horas de estudo, mas depois, eram só brincadeiras. Ele me ensinou a paixão pela Fórmula 1, por exemplo, me levava às corridas lá na Áustria. Mas sabia educar muito bem, me fazia estudar seriamente. Éramos amigos.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto tirada por Gunnar Skou Larsen. Nela, o menino Lavard brinca com um pequeno violino. | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Vocês viviam entre a Europa e Porto Alegre então?

Lavard – Sim, nós fomos para a Europa em 1966. Eu tinha 4 anos. Meu pai desejava estudar regência e tinha planejado ficar alguns anos na Áustria, mas acabou contratado pela Camerata de Salzburg, o que fez com que ele permanecesse definitivamente. Minha mãe também começou a tocar lá. Depois, ele fundou sua própria orquestra de câmara. Voltamos algumas vezes a Porto Alegre, sempre por compromissos profissionais dele ou para visitarmos a família. Ele faleceu em 1975. Hoje eu venho seguidamente à cidade, uma vez por ano, mais ou menos, para ver minha mãe.

Sul21 – Onde tu estudaste, quem foram teus professores?

Lavard – Estudei basicamente fora. Comecei no Mozarteum de Salzburg logo após a morte do meu pai, em 1976. E tirei o diploma com 21 anos, era um dos mais jovens. Estudei com Sandor Végh, e depois fui spalla em várias orquestras. Também aperfeiçoei esta profissão de liderar e organizar orquestras. Eu gostava disso mais do que tocar como solista. Até hoje toco como solista, mas tem que estudar muito para ser bom (risos). Eu faço isso umas quatro ou cinco vezes por ano, mas o que gosto mesmo é de procurar realizar o meu conceito de música dentro de um grupo, para uma orquestra de câmara ou sinfônica.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Uns pedem ordens; outros, conversas. Há que considerar todos.” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Tu sempre pretendeste reger?

Lavard — Não, isto veio depois. Acho que o maestro tem que saber muito bem como funciona uma orquestra por dentro. Eu tenho muita experiência de tocar em orquestra como spalla. Eu conheço os problemas e as manias dos músicos, sei da psicologia deles. Você tem de conhecer a essência do grupo. Eu não acredito muito nesses maestros que regem piano, que treinam só o gestual e que só eventualmente trabalham com uma orquestra. A orquestra é um gigante vivo na nossa frente. E eu comecei com isso já cedo, ganhei um prêmio aos 16 anos. Regi uma pequena orquestra na Áustria num concurso e ganhamos, eu e a orquestra, o primeiro prêmio. Mas foi em 2004, quando comecei na Orquestra de Neuss (a Deutsche Kammerakademie Neuss), que eu comecei a reger seriamente. Agora eu posso dizer que sou um maestro, que eu rejo mais do que toco.

Sul21 — É uma liderança natural ou é uma questão de postura adquirida, de atuação?

Lavard — Sem dúvida, você tem que ter um gene de liderança, e às vezes é necessário ser autoritário mesmo. A conversa com um é diferente da que se tem com outro. Um é mais sensível, outro é mais cerebral, outro talvez seja mais limitado. Uns pedem ordens; outros, conversas. Há que conhecer e considerar todos.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Lavard com o filho Laurits | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 –Tu te caracterizas como durão ou conciliador?

Lavard — Depende muito da orquestra. Quando não há disciplina ou estudo, eu sou muito duro. Quando há, eu sou aberto, acessível, tenho humor. Eu tive uma orquestra de músicos da Geórgia que estava residente na Alemanha. Fiquei lá dois anos… Foi insuportável, eu agi duramente e só deu rolo. Havia um grupo acomodado nas primeiras cadeiras que era mais velho e não tocava nada bem. E tinha um grupo excelente de jovens que pedia passagem. Estes me apoiavam. Foi um caso grave, houve até luta física entre eles. Os músicos das primeiras cadeiras não aceitavam a rotatividade que hoje em dia é normal. Eles não queriam saber disso, tinham uma formação meio soviética, mas eu fora contratado justamente para modernizar uma orquestra que era patrocinada pela Audi. Também não aceitavam críticas a seu modo de tocar, levavam tudo para o lado pessoal. Mas, feliz ou infelizmente, o maestro tem que ser o chefe. Quando eu entro numa orquestra, penso no tempo que permanecerei lá e como posso educá-la do jeito que quero. O som, o estilo e a forma de tocar são determinadas pelo maestro. É triste ver que os muitos maestros não têm essa obsessão de imprimirem suas assinaturas nas orquestras. Com toda a modéstia, eu posso dizer que imprimi meu estilo em Neuss e na Salzburg Chamber Soloists.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Quando aparece alguém talentoso e com vontade de aprender, eu faço de tudo para mandá-lo para Salzburg”. | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Tu também tens importante atividade pedagógica, não?

Lavard — Sim. Dou aulas em Salzburg e algumas vezes convidei músicos daqui para completarem suas formações comigo no Mozarteum. Todos eles estão bem colocados em orquestras brasileiras. Quando aparece alguém talentoso e com vontade de aprender, eu faço de tudo para mandá-lo para Salzburg. O custo para brasileiros é de 570 euros por semestre. Nosso conservatório é muitíssimo superior à esmagadora maioria dos norte-americanos, onde se paga até 25 mil dólares por semestre.

Sul21 — Qual é tua orquestra dos sonhos?

Lavard — Eu acho que a melhor orquestra alemã que jamais existiu foi a Filarmônica de Munique, sob a direção de Sergiu Celibidache. O que eu gostava em Celibidache – e meu professor em Salzburg, Sandor Végh, também era assim – é que havia uma filosofia, um conceito por trás, eles faziam música para entender a vida. Para eles, a música não era só notas e beleza, era mais importante que a religião. Eles procuravam o significado daquilo que estava entre as notas, do que emergia delas. A estética da música de Celibidache era uma coisa filosófica, muito profunda. Fora isso, a técnica de montar uma orquestra, de afiná-la e de fazê-la entender a música e o que estava acontecendo, eram únicas, era uma coisa de uma inteligência cultural que poucos alcançam. Celibidache conseguia unir técnica, espiritualidade, agressividade, tudo. Especialmente a música de alguns grandes artistas — falo de Mozart, Bach, Schubert, Haydn, Beethoven — têm significados muito profundos. A partir deles você entende muitas coisas íntimas da alma, do espírito. São coisas que mexem contigo. Como disse Beethoven, não existe coisa igual à música. Nem a filosofia, nem a religião, nem a psicologia chega perto da música. A música realmente pode resolver coisas. E quem tomou a sério estas noções foram Sandor Végh e Celibidache.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Uma gravação é como um retrato de uma pessoa. Você tem o retrato, mas não o prazer da presença”. | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Como entender os significados, vozes e intenções?

Lavard — Não é nem uma questão de compreender. Um repórter perguntou ao Celibidache o que era a tal transcendência de que ele tanto falava, e ele respondeu que não tem como explicar a palavra transcendência porque ela também é transcendental! (risos) Porque a música é uma coisa passageira, ela existe neste instante. Quando tu escutaste a nota, ela já é passado. Um quadro eu posso olhar o tempo inteiro, posso estudar, o pintor pode modificá-lo. A música não. Celibidache nunca quis fazer gravações de estúdio porque ele pensava a música a partir do momento espontâneo do concerto, dessa existência efêmera. Uma gravação é como um retrato de uma pessoa. Você tem o retrato, mas não o prazer da presença. Eu também não gosto muito de gravações, mas você aprende coisas quando grava, apesar de que nunca vai ser a mesma coisa do que um concerto ao vivo. Os concertos ao vivo são a música de verdade.

Sul21 — E o repertório dos sonhos?

Lavard — Bem, minhas especialidades são Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert. Também tenho muita afinidade com a música francesa e gosto muito de Brahms e Bruckner. O que eu não aprecio muito é a ópera, só suporto as de Wagner e Mozart e alguma coisa de Puccini. Rossini, Donizetti, etc., não gosto muito deles. Essas historinhas do cara que casou errado, do amor escondido, das mocinhas, dos disfarces, acho muito bagaceiras… Isso era coisa pra divertir o pessoal daquela época. Hoje em dia não faz sentido.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Acredito que os manifestantes foram muitos sábios ao protestarem durante a Copa das Confederações. Meus amigos me perguntavam o motivo; afinal, para os europeus, somos o país do futebol.” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — E o programa do teu concerto com a Ospa na próxima terça-feira?

Lavard — A primeira parte é Mozart, minha especialidade. Eu vou reger a Sinfonia Nº 38. Na segunda parte, eu vou reger e tocar o primeiro violino solo nas Metamorphosen, de Richard Strauss. É uma obra muito complicada, não sei se vai dar certo, mas vamos ver! É escrita para 23 solistas — 10 violinos, 5 violas, 5 violoncelos e 3 contrabaixos. Deixa eu te contar uma coisa: no dia 10 de abril de 1945, Strauss batizou a composição como Réquiem para Munique, porque ele era do Partido Nazista e estava escrevendo para os alemães que estavam sendo derrotados na Segunda Guerra Mundial. Strauss sofreu muito pelo fato dos alemães não terem conseguido se desenvolver depois da I Guerra Mundial. Sofreu mais ainda quando Hitler foi ladeira abaixo. Então ele escreveu um Réquiem. Só que, quando ele criou esse título, alguém mais esperto lhe disse que ninguém ia tocar a obra! (risos) Aí então ele botou Metamorphosen, que é uma coisa completamente objetiva, sem nenhum contexto político. Mas bem no final, nos últimos dez compassos, os contrabaixos tocam o motivo do segundo movimento de Eroica, de Beethoven. E aí o Strauss escreve “In Memoriam” na partitura. Neste ponto a gente percebe que o Réquiem original está escondido ali. E é uma peça maravilhosa, lindíssima, romântica ao mais alto e digno grau.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Essas historinhas do cara que casou errado, do amor escondido, das mocinhas, dos disfarces, acho muito bagaceiras…” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Tu gostas muito de futebol, infelizmente és gremista… E a Sala Sinfônica da Ospa? Parece que há dinheiro para os estádios, já para a cultura…

Lavard — Sim, você é colorado, eu sei pelo Facebook (risos). Hoje em dia, o futebol está emburrecendo as pessoas. Isso acontece em todo o mundo. Parece que o futebol é a única coisa que importa. Você abre o noticiário e a primeira coisa é o futebol. Eu acho errado. O futebol tem que retornar ao seu lugar. E olha que eu adoro futebol! Aqui, por exemplo, só se fala e só se briga pela Copa. Por exemplo, a Ospa, que tem um enorme potencial e é uma instituição da cidade, ficou esquecida. Eu acho isso um escândalo. Eu acho que os músicos da orquestra têm razão em fazer greve e cancelar concertos, as condições que eles estavam quando eu regi, em 2011, naquela sala onde ensaiamos lá no Cais (o armazém A3), eram escandalosas. Eu sou brasileiro e fico indignado com este tratamento. Acredito que os manifestantes foram muitos sábios ao protestarem durante a Copa das Confederações. Meus amigos me perguntavam o motivo; afinal, para os europeus, somos o país do futebol. Eu tentava explicar que quem não tem o básico, talvez não deva pagar por algo caro como uma Copa do Mundo. Um povo sem cultura é um povo perdido. A cultura é a única coisa que nos mantêm vivos. A cultura é o catalisador para entender a vida, não interessa se é pintura, escultura, dança, música, teatro, poesia; a cultura é a coisa mais importante, mais importante do que a religião. A cultura leva a entender a vida e isso é fundamental. A música é a medicina da alma. A cidade tem que ter uma grande orquestra. Como disse o Erico Veríssimo, “eu tenho orgulho de morar numa cidade que tem uma orquestra sinfônica”. Isso tinha que estar bem grande em cima da Rua da Praia, tinha que escrever lá “Nós temos uma orquestra sinfônica e é a Ospa.”.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Sendo maltratada, qualquer pessoa acaba sem vontade de trabalhar” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 — Atualmente a gente passa pela Av. Independência e vê o prédio do ex-Teatro da Ospa sendo destruído. Sugiro-te nem passar lá, é deprimente. E a Ospa, hoje é jogada de um lado pra outro.

Lavard — Já passei por lá… Eu vejo nosso ensaio de hoje (9 de abril), na sala Elis Regina, como um bom passo, como uma perspectiva positiva no horizonte da Ospa. É uma sala muito boa, ótima. Faltam coisas fundamentais como o ar condicionado, mas é uma boa sala, muitas orquestras europeias não têm uma sala como aquela. Mas hoje devo ter perdido dois litros de suor ensaiando lá! Sendo maltratada, qualquer pessoa acaba sem vontade de trabalhar, é uma pena. Em São Paulo conseguiram montar uma ótima orquestra, com estrutura. É seguir o caminho.

Sul21 — Os políticos admiram a Ospa. Seus discursos são sublimes. Mas na prática tal admiração não se confirma.

Lavard — Tudo funcionava melhor na época em que havia maestros muito capazes e influentes, como Eleazar de Carvalho e David Machado, verdadeiras feras. Não quero dizer que isso seja bom, mas quando eles queriam uma coisa, brigavam, exigiam e conseguiam. Às vezes não adianta ser diplomático e democrático, às vezes o que resolve é o soco na mesa. Lamento dizer isso.