Salvador do Sul, novamente

Salvador do Sul, novamente

Escrevo com atraso esta pequena crônica de viagem pois saímos de Porto Alegre lá em 10 de agosto (quinta-feira) para ficarmos em Salvador do Sul até o domingo (13). Já conhecíamos a pequena cidade serrana e tínhamos adorado. Chegamos de ônibus por volta das 13h e fomos direto para o Apolo XII, um restaurante lancheria que fica na rua principal de Salvador. Como é bom sair de Porto Alegre e não apenas em razão de nosso prefeito! Em Salvador do Sul, as verduras não têm gosto de isopor. A gente come e repete o alface e a couve-flor, coisa que só se faz na capital se estivermos em severo regime ou se formos masoquistas.

Depois do almoço, ainda com as pequenas malas, subimos de táxi até o hotel Candeeiro da Serra, que já conhecíamos do ano passado. Tentando manter a felicidade de 2016, pedimos exatamente o mesmo quarto.

Bem, a Elena costuma carregar seu violino onde vai, mas desta vez ela parecia um pouco mais fanática do que o habitual. Chegamos ao nosso quarto, ela abriu o estojo do violino e foi tocar na sacada sem dar bola para o sol. Queria estar em forma.

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E seguiu mandando bala com a cidade atrás.

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Depois, saímos para fazer um de nossos passeios preferidos. Fomos até o Colégio Santo Inácio. A parte de trás do Colégio é especialmente bonita e tranquilizadora. Sempre ficamos um tempinho ali, sem querer muito ir embora.

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E caminhamos por uma estrada lateral que leva a um lago e a todo o tipo de subidas e descidas, sempre com bonitas paisagens.

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Lembro bem de nossos temas aquele dia. Estávamos especialmente a fim de falar a respeito do passar do tempo, da velhice e de outros fatos, digamos, inexoráveis. A coisa estava muito filosófica e, é claro, não conseguimos chegar nada que fosse conclusivo. Mas o que interessa é que a paisagem valia a pena.

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O absurdo é que este local da cidade está fechado para caminhadas no fim de semana. Os novos proprietários do Colégio e dos arredores simplesmente colocaram guardas que impedem a entrada de gente que só quer passear e olhar um dos locais mais legais que existem em Salvador do Sul. Descobrimos isso no sábado, quando tentamos repetir a caminhada. Os guardas nos avisaram que não poderíamos seguir, o que, desculpem, é de última categoria.

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A Elena estava perfeitamente natural. Só que estava estudando muito mais. A única estranheza real é que ela tinha ficado contrariada quando cheguei uma hora mais cedo para buscá-la na quarta-feira na escola da Ospa. Eu, obviamente, não sabia o que ela estava preparando.

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No dia seguinte, sexta-feira (11), anotei no Facebook:

Meu aniversário é apenas dia 19, mas acho que recebi hoje o melhor presente de aniversário de minha vida. A Elena Romanov fez toda uma preparação secreta. Levou-me até uma pequena igreja aqui de Salvador do Sul (a Igreja Matriz Velha), dizendo que queria estudar violino num espaço que não fosse acusticamente “seco” como nosso quarto de hotel. Pediu que eu levasse um livro para ler, a fim de não me entediar. OK. Lá chegando, após fazer algumas escalas, …

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… me pediu que eu fosse sentar em um lugar determinado e começou a tocar a Chaconne de Bach. No início eu achei “puxa, que bem tocado” para uma brincadeira improvisada, mas a coisa se estendeu de tal forma e com tamanha perfeição e musicalidade que primeiro me emocionei a ponto de ver surgirem algumas lágrimas e depois mais ainda porque me dei conta de que aquilo, talvez, fosse um presente imaterial para mim. Quando fui agradecer, apareceu um sujeito na igreja vazia falando para ela “Eu entrei aqui para fazer umas preces, mas depois disso já considero que tenha feito”.
Obrigado, Elena.
(Imaginem que ela decorou a enorme peça para que eu não pudesse saber de nada antecipadamente, vendo as partituras que ela levava).

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Por sorte, tenho gravadas as três vezes que ela tocou a Chaconne naquela manhã, mas ela me proibiu de mostrá-las. Ah, os músicos… A Chaconne é das mais belas peças que conheço. Foi escrita após Bach saber que sua primeira mulher tinha falecido. Como disse meu amigo Marcos Nunes, a partir dela ele percebeu, ainda adolescente, “que a vida humana é muito mais complexa que todos os adjetivos do mundo, e a palavra angústia, com todo seu amargor, tem algo que expressa a condição humana, mas que a gente só tateia ouvindo a Chaconne”Eu a ouvi pela primeira vez numa viagem ao Rio de Janeiro, logo após ter feito 18 anos. Era um concerto em alguma sala, talvez na Cecília Meirelles recém inaugurada. A primeira sensação foi a de ter sido derrubado, tal a beleza e a angústia da peça. Depois, com o passar dos anos, essa angústia passou a um segundo plano e, para mim, hoje ela é uma peça belíssima e triste, pela qual sou fascinado. A Elena sempre soube disso, é claro.

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Na sexta-feira, seguimos nossa subidas e descidas por Salvador e reencontrei uma conhecida amiga do ano anterior (foto acima). Ela me reconheceu imediatamente. Os cães sabem quem gosta deles. Sempre ou quase.

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Também fomos ao nosso café preferido na cidade, o da Loja Dautys.

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Como fizéramos em 2016, tentamos tirar fotos nossas refletidas nos espelhos da loja, mas este ano não deu tão certo.

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Salvador do Sul permanece para nós como uma espécie de refúgio das agitações da vida profissional e da cidade grande. Um local onde o ar que se respira parece trazer de volta meus pulmões e os avós cruz-altenses, por onde se pode passear cumprimentando alegremente desconhecidos e onde os passeios a pé são os melhores. Mas a cidade tem que manter SEMPRE ABERTOS os caminhos em torno do Colégio Santo Inácio, por favor.

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Agora, se a cidade já estava ligada à Elena, também está ligada ao mais belo presente que já recebi, assim como ao casal que administra o excelente hotel Candeeiro da Serra, Carla Specht e Alex Steffen, que receberam, trataram e nos engordaram extremamente bem em nossas duas visitas. Nossa, quanta coisa boa tem naquele café!

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Finalizando: na foto acima, a Elena prepara mais uma execução da Chaconne, agora no nosso quarto do hotel.

Algumas reflexões irresponsáveis sobre música

Não sou tão original quanto Glenn Gould. Gosto de concertos e de gravações ao vivo. Acho as últimas quase sempre superiores às de estúdio. Frequento concertos – principalmente aqueles de preços camaradas – e creio que eles sejam experiências fundamentais tanto para o músico quanto para a platéia. Ver uma obra ser interpretada é uma experiência muito diferente de apenas ouvi-la. O jogo entre os instrumentos, a dinâmica, o trabalho dos grupos instrumentais de uma orquestra, por exemplo, é algo que enriquece muito a audição e, quando voltamos a ouvir a mesma música em nossa casa, as imagens da execução nos acompanharão.

Mas tenho restrições à escolha de repertório da esmagadora maioria dos concertos, quase conservadoras e heterogêneas. A escolha é conservadora porque o solista e o produtor não gostam de arriscar, trilhando via de regra o batido mainstream do repertório. Porém, amigos, há uma imensa distância entre o repertório destes museus sonoros que são nossas atuais salas de concerto e a variedade da oferta de música em CD ou em mp3. Tal distância não precisaria ser tão grande, até porque, excetuando-se os casos Gould-like, quem grava normalmente já apresentou a obra em concertos. Mas nos concertos terceiromundistas… Mesmo que um solista ou grupo tenha maior intimidade com determinado compositor ou período, os executantes apresentarão as obras mais óbvias e conhecidas, as de aplauso fácil. Não parece haver grande interesse em surpreender o público com algo diferente. E a heterogeneidade? Credo, dia desses fui a um concerto onde eram interpretados Mozart, Rossini, música para “trompa alpina”, Shostakovich e Bartók. Alguém pode conceber cardápio mais variado? Qual é a intenção? É a de satisfazer o maior número de ouvintes ou irritá-los?

Já no amplo mundo dos CDs existe oferta de todo o tipo de música, há a possibilidade de se ouvir 90% das obras dos principais compositores. Os catálogos das gravadoras são potencialmente sempre crescentes, podem ir se ampliando através dos anos (principalmente no caso da Naxos, que tem este objetivo). Hoje — se pudermos dispor de muito dinheiro e de um considerável limite de crédito em nosso cartão internacional –, podemos realizar qualquer desejo auditivo. Se você quiser a integral das Cantatas de Bach, por exemplo, basta pagar uns R$ 3.000,00 que logo chegarão via Sedex centenas de cantores berrando a sua casa.

A parte financeira é um tremendo problema para alguém que seja doido por música clássica. Os blogs como PQP Bach e seus congêneres resolvem parcialmente o caso. Nossa necessidade de ouvir diferentes gravações de uma obra que amamos é uma coisa que o ouvinte comum não entende. Uma vez que The White Album dos Beatles foi adquirido, o problema está resolvido. O Álbum Branco sempre será o melhor registro do Álbum Branco, creio. O resto são regravações de músicas isoladas. O mesmo não vale para uma sonata de Beethoven, até porque Beethoven não deixou quaisquer registros sonoros… Simplesmente temos uma grave compulsão por ouvir a sonata x por Pollini, Arrau, Freire, Uchida, Richter, Gould, Pires, Kissin, Gilels, etc. Amigos meus que só se interessam por literatura ficam pasmos ante a necessidade de se ouvir (ou possuir) várias gravações da mesma sonata. Para quê, perguntam eles? Eles não imaginam a nossa felicidade ao descobrirmos aquele pequeno detalhe, aquela sutil intenção do compositor que apenas Pollini ou outro regente ou solista soube mostrar. Eles não imaginam como podemos discordar alegremente elogiando ou detratando uma concepção que esteja muito perto ou longe daquilo que nosso ouvido considera o ideal.

A gente é assim, não adianta. A gente gosta é disso que transcrevo a seguir (transcrição ipsis litteris deste post, que é meu):

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha chata a música erudita…