Inverno da Alma, de Debra Granik

Muito mais impactante, completo e denso do que o muito duvidoso Buitiful é este Inverno da Alma (Winter`s Bone) que traz de quebra um extraordinário e desconhecido elenco, capitaneado por uma menina de apenas 20 anos capaz de uma atuação dilacerante: Jennifer Lawrence.

A comparação com Biutiful se justifica por um filme também sobre a pobreza e, pior, sobre a miséria humana. Mas aqui não temos “visões kardecistas” post mortem do fraco roteiro de Iñárritu. O filme se passa nas montanhas geladas de Missouri e o plot não pode ser mais simples. Ree Dolly (Jennnifer Lawrence) vive com uma mãe doida varrida e dois irmãos pequenos numa casa na mais absoluta zona rural. O pai da família, ao ser preso por produzir drogas, tinha empenhado a casa para pagar a fiança. Se Ree não conseguir encontrá-lo ou se não provar que está morto, deixará a si e à família sem teto. Ao deixar sua personagem perdida entre parentes e gangsteres do comércio de drogas, Debra Granik realiza um grande filme, que já venceu os Festivais de Berlim, Sundance e Seattle. Vale a pena.

httpv://www.youtube.com/watch?v=ndElnzionNM&feature=player_embedded#

Clique aqui para ver o trailer.

A Fita Branca, de Michael Haneke, foi o melhor filme de 2010

OK, eu abandonei a lista de filmes que mantenho no blog. Esqueci dela, assim como esqueci de declarar o melhor filme do ano passado, em minha humilde opinião. Claro, o mundo não mudará se eu não declinar minha lista, mas eu costumo encher o saco dele todos os anos.

Não foi um ano tão fraco quanto os anteriores. A Fita Branca, de Michael Haneke, foi DISPARADO o melhor filme de 2010. Outros bons filmes foram o argentino O Segredo dos seus Olhos, de Juan José Campanella, o italiano Vincere, de Marco Bellocchio — fui convencido por amigos de que se tratava de um bom filme, apesar de não aprovar seu estilo tonitruante — , O Escritor Fantasma, de Roman Polanski, Tudo pode dar certo, de Woody Allen e O que resta do tempo, de Elia Suleiman.

Os dois maiores filmes recentes sobre o amor?

Sabe-se que as grandes obras costumam girar sobre três temas básicos: o amor, a morte e deus. O cinema adora o amor, até porque é mais leve do que fazer filmes sobre o silêncio de deus e poucos além de Bergman sabem falar da morte. Porém, os dois filmes que escolhi também falam sobre a morte.

As Pontes de Madison é narrado através das cartas de uma mãe recém falecida, Francesca Johnson (Meryl Streep), e esta fala sobre outra morte, a do fotógrafo da National Geographic Robert Kincaid (Clint Eastwood). Em Encontros e Desencontros — incrível tradução de Lost in Translation — fica tão clara a diferença de idade entre os personagens de Scarlett Johansson e Bill Murray, que só podemos pensar: ela é muito jovem e tem a vida pela frente, ele tem muito menos tempo. Bem, de qualquer modo, a morte está em quase toda manifestação humana.

Lost in Translation (2003) é o segundo filme de Sofia Coppola. Bill Murray faz um ator de meia-idade que se encontra em Tóquio para uma campanha publicitária. É casado e desanimado, inclusive com seu casamento. Ele se sente oprimido com a rotina sem sentido de sua vida. No hotel, onde está hospedado sozinho, conhece Charlotte (Scarlett Johansson), uma jovem recém casada que aguarda o marido que está trabalhando por alguns dias noutras cidades do Japão. Há nele enorme entusiasmo profissional, mas quase nenhum por sua jovem mulher que é deixada a esperar. Ambos estão desconectados de seus parceiros e, juntos, começam a repartir horas que não passam enquanto se estabelece uma relação de compreensão mútua. O caso não vai adiante neste excepcional roteiro da própria diretora, filha de Francis Ford Coppola, autor de outro clássico deste cinema de momentos apenas respirados, A Conversação (1974).

As Pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995) tem origem num livro bastante fraco de Robert James Waller. Eu o li. Alfred Hitchcock já ensinava que não se deveria pegar obras-primas literárias para passá-las ao cinema. Ao natural, dizia o gordo, as obras mas fracas são as que mais se prestam à conversão, talvez porque seja mais simples criar significados onde não há e é inviável imitar ou alterar o significado de obras densas. A história é simplíssima. Conta a história de Francesca (Meryl Streep) uma mulher casada que se envolve com um fotógrafo da revista National Geographic que, numa tarde indolente, chega a Madison, em Iowa, a fim de registrar imagens das famosas pontes cobertas. O marido e filhos de Francesca, que vive num sitio, estão ausentes devido a algum evento rural, como uma exposição de animais. A história é contada em flashbacks. Após a morte de Francesca, seus filhos descobrem um manuscrito que revela esta passagem de sua vida.

São obras de climas com vários pontos em comum, apesar de se passarem em ambientes diversos. A ação de Pontes de Madison ocorre no campo, em Madison County, para onde se dirigiu o fotógrafo Robert Kincaid (Clint Eastwood). Lost in Translation se passa no Japão, num hotel no centro da metrópole. E aqui cessam as grandes diferenças do quarteto ou quinteto: dois homens são fotógrafos, profissão que já pressupõe despojamento e viagens. Três são casados — só Kincaid-Eastwood não é — e três parecem estar decididamente à deriva pelo mundo — só Francesca-Streep está firmemente em casa. Porém, todos eles, casados ou bandoleiros, estão sentimentalmente à deriva e parecem encontrar amor ou o consolo em apenas um encontro efêmero.

Em verdade, sob o amor, há o tema da insatisfação. Nem o bobinho marido  workaholic de Scarlett no filme de Sofia Coppola parece feliz. Estão todos insatisfeitos; se Francesca, Robert e Bob Harris (Bill Murray) passaram e passarão suas vidas neste estado, a Charlotte de Johansson fica paralisada no meio da rua, enquanto Brian Ferry canta More than this, there is nothing.

O reinventor do cinema

Por Fernando Monteiro

O mais importante cineasta vivo completará 80 anos no dia 3 de dezembro. Coincidência ou não, três semanas antes a Academia de Ciência e Artes do Cinema vai lhe entregar um Oscar honorário – pelo conjunto da obra – como se isso fizesse diferença para Jean-Luc Godard.

NÃO faz. Até porque nada é menos parecido com Godard do que a famosa estatueta dourada, uma figura andrógina concebida para representar a glória na indústria cinematográfica americana (e talvez por isso segurando, contritamente, uma espécie de espada encaixada entre as longas pernas).

Ao Jean-Luc já ancião será conferida uma homenagem antes recusada ao cineasta ao longo da carreira de meio século e, até agora, 85 títulos que contaram com a solene indiferença da mesma Academia. Só agora ela resolveu conceder-lhe um Oscar “especial” que chega tarde às mãos do diretor nunca galardoado, antes, ao menos com aquele prêmio colher-de-chá conferido aos melhores filmes estrangeiros – um troféu considerado importante por nós, mas não por eles. O homenzinho na pose de sentinela transida, para os americanos é relevante somente quando premia roteiristas, músicos, atores, atrizes, diretores e produtores integrados ao sistema hollywodiano.

Na contramão disso, Godard sempre representou – e ainda representa – um cinema radicalmente criativo e rebelde. Quem queira saber mais sobre a modernidade da sua obra, é só conferir as 944 páginas de GODard (assim mesmo, na capa), livro do historiador e jornalista Antoine de Baecque lançado na França em março deste ano.

Nem com essa empreitada do sério Baecque, se animou o Godard convidado para colaborar com a alentada biografia: “Pra que diabo servirá saber sobre detalhes da minha vida?” – logo de saída ele perguntou ao compatriota e admirador interessado até no café da manhã de uma lenda viva.

Agora, lá vem o Oscar chatear com seus cenários de luxo e acomodação, num contexto que é o emblema maior do Negócio, no cinema. O “caneco” americano celebra isso, madrugada adentro, numa festa de brilho brega, com passarela de celebridades e tradutores simultâneos tropeçando nas piadas sem graça de emocionados agraciados pulando do auditório com cara de surpresa. Seja como for, o diretor de “Acossado” sequer confirmou que estará presente, na entrega – prévia – dos prêmios especiais de 2010.

O DISSIDENTE QUE VIROU UM CLÁSSICO

Jean-Luc Godard nunca morreu de amores pelo cinema made in USA, mas, justiça seja feita, ele também não compareceu ao Festival de Cannes deste ano. Foi esperado até o último momento, quando afinal avisou que resolvera cancelar a viagem à Riviera, a fim de apresentar a mais recente produção (“Film Socialisme”) com a inconfundível assinatura JLG nos créditos – que incluem a cantora Patti Smith, o filósofo Alain Badiou e o historiador palestino Elias Sanber.

Se houver explicação para as recusas do cineasta, será a de que o homem está cada vez mais parecido consigo mesmo e, portanto, menos disposto a suportar as “futilidades” de festivais, holofotes da mídia, prêmios e entrevistas coletivas que fazem a delícia dos Woody Allen da vida.

Godard sempre foi mortalmente sério, desde seus tempos (cancelados, também) daquele cigarro de desprezo no canto da boca, óculos escuros e os olhos novos para imagens de desacordo vinte e quatro quadros por segundo.

Não resisto à tentação de fazer um paralelo desse Godard irredutível com um cineasta brasileiríssimo. Aviso aos navegantes [da obviedade]: não se trata de Glauber Rocha. O nome que vou trazer para perto de Jean-Luc é o do também revolucionário Mário Peixoto, realizador de um único e fundamental título: Limite, de 1930.

Ele foi o nosso Godard avant-la-lettre, e Jean-Luc é, no cinema de hoje, o único diretor que, a exemplo de Mário, continua interessado no cinema-cinematográfico (tautologia necessária), ou seja, na imagem pura, no discurso não “verbal” de tomadas que revelam o real para além do “naturalismo” vagabundo no qual se refestela grande parte dos filmes burros deste momento agônico quer do cinema clássico (a la John Ford e David Lean), quer do cinema das almas formalmente inconformistas, na tradição de Eisenstein, Peixoto, Welles e Godard.

É isso mesmo: um carioca, solitário, forma no quarteto básico do Cinema – com o “C” maiúsculo da contemporaneidade que não filma para o passado.

Usando-se do paradoxo dos signos verbais, o mais próximo de uma sinopse godardiana seriam os versos da polonesa Wislawa Szymborska (prêmio Nobel de 1996): “Quando pronuncio a palavra Futuro/a primeira sílaba já pertence ao passado./ Quando pronuncio a palavra Silêncio,/destruo-o. /Quando pronuncio a palavra Nada, /crio algo que não cabe em nenhum não-ser.”

Essa brevíssima metafísica corresponde, em parte, àquela dos filmes menos palavrosos do Jean-Luc que fez de tudo para reinventar a sétima arte: filmes literários e anti-policiais, crônicas parisienses desesperadas e ensaios de política, visões escatológicas, dramas cubistas, anotações e epifanias – jamais parecida uma com a outra – porque Godard sabe que o cinema é uma arte que, estranhamente, envelhece com a velhice das décadas, das culturas e da história a que ninguém mais está presente depois do ex-anônimo Abraham Zapruder filmando, em 8 milímetros, o assassinato de um presidente.

Isso aconteceu quando Godard caminhava para o zênite da “Nouvelle Vague”, a escola francesa de cinema da qual se tornaria a cabeça mais inquieta (enquanto o recém-falecido Claude Chabrol era a mente mais convencionalmente gaulesa, desculpem os chabrolianos que nunca aceitaram bem a superioridade dos Godard e dos Rivette). Ora, Jean-Luc foi, quase sozinho, a nova vaga em essência, longe da noite americana e outros disfarces à Truffaut. Ele impregnou o seu cinema da marca do reflexo do tempo que passa à nossa frente, caótico e inacabado como são todos os tempos.

VELHOS TEMPOS, BELOS DIAS

No auge da “Nouvelle”, mal havia o intervalo necessário para entender a nova visão godardiana nas coxas – entretanto, bem-feita – e lá vinha mais uma instigação lítero-visual dos seus cadernos de Dziga-Vértov da ficção cinematográfica em modo de discurso já diferente. Como descrever o que era aguardar, ansiosamente, o novo Godard?

Basta dizer, talvez, que era como esperar uma mensagem codificada invertendo tudo que fosse fácil de apreender nas salas de poltronas acolchoadas do pensamento, e que suas “películas” (ainda se usa a palavra?) de Kino-verité podiam ser Alfa e Ômega, e rolar de trás para diante nos projetores, de acordo com o ajuste irônico do autor de Je vous Salue, Marie: “Sim, todo filme tem que ter princípio, meio e fim, embora não necessariamente nessa ordem”.

Isso – esse novo modo de contar uma história na tela – viria a ser apropriado até pelos cineastas mais idiotas da indústria, nas imitações baratas que surgiriam, depois, macaqueadas das reinvenções de Godard. Mais, muito mais do que metade da linguagem do cinema de hoje, saiu das liberdades que esse cineasta tomou com a linguagem, até como possível reflexo de ser oriundo da família Monod, de protestantes severos.

O irrequieto artista surgido deles fez “história imediata”, ao filmar com uma necessidade de urgência tal que não hesitava sequer em furtar dentro de casa. Na época da estréia atrás das câmeras (Operátion Béton, curta-metragem, 1954), para choque dos seus sisudos parentes, o jovem Jean-Luc roubou um livro da biblioteca do avô – obra rara, com o autógrafo de Paul Valéry – para suplementar as despesas da produção.

Esses Monod franco-suiços bem-pensantes dos quais Godard provém, tornam-se bem mais aceitáveis, entretanto, do que a modernosa ligeireza dos monos, dos macaquinhos que passaram a praticar a diluição-da-diluição dos filmes que essa lenda cinematográfica involuntariamente articulou para um futuro de “déjà vu” estético e calculadoras exponenciais de lucros, quer sejam do mais novo Almodóvar atropelado pela vulgaridade do Tarantino mais recente, ou sejam do cinema falso-brilhante de Martin Scorcese e outros menos votados (formando a multidão de esquecíveis quase de imediato à consagração de um único dia na “Quinzena dos Realizadores”, na corda bamba da montanha russa mimetizada desse senhor que, nos anos de 1960, reinventou a arte das imagens: Monsieur Jean-Luc Godard).

O cineasta mal copiado é, na verdade, pináculo, vertigem e ascese – enquanto o resto vai de pós-modernismo tatibitate até chegar à cinematografia pedestre dos Spielbergs interessados em entretenimento rasteiro de maneira a fazer fortuna rápida com a sintaxe libertada pelo mestre.

Por que Godard estaria interessado na “homenagem” de uma estatueta sem valor? (Sem valor, vírgula: o Oscar serve para fazer dinheiro, mas não com os filmes alternativos da rica marginalidade do seu cinema).

Onde ele iria enfiá-lo? A pergunta é, acreditem, sem malícia – livrando o seu da reta e prevendo que o homenageado vá sair pela tangente daquela cerimônia de americanos “jecas” no Afeganistão de verdadeiros caipiras que já elevaram a mediocridade de um Forrest Gump à morada da sexta felicidade de seis estatuetas e quase setecentos milhões de dólares de receita.

Estou tentando louvar um velho renovador com o melhor do seu veneno: a paráfrase de um texto o mais próximo possível do cinema maravilhosamente perto das primeiras visões dos Lumière, quando a imagem era novidade e invenção mecânicas, a estimular a mente de proto-espectadores ainda bebês em matéria de “sétima arte”.

O cinema voltou a engatinhar? “A indústria recupera tudo”? Quem disse isso? Gilles Deleuze? Glauber? Godard? Branchú?…

Não importa: a dúvida sobre essa frase a indústria (zás!) já a recuperou, junto com a camiseta de Che Guevara que o mercado gosta de usar debaixo do smoking alugado para a noite do Oscar.

Alguém imagina Godard enfiado numa roupa de cerimônia, subindo ao palco pelo tapete cor vermelho-sangue do Iraque que vai recomeçar a render mais filmes de soldados desajustados de volta para a América sem qualquer inocência (restante daquela que havia na Idade de Ouro de um John Ford)?…

Eu, pelo menos, não consigo ver o diretor revolucionário no cul-de-sac de uma roupa apertada, avisando a todo mundo – na platéia expectante – que, no seu rigor, esqueceu de vestir a cueca, e, em seguida, agradecendo comportadamente aos pais, aos mestres, aos bedéis, às ex-namoradas, aos guardadores de carros e à antiga (in)sanidade dos tempos em que ir ao cinema era viver a vida novamente intensificada de um jeito que nada tem a ver com a arte sete vezes pasteurizada na telinha do celular…

Viva Godard. Os que vão ter saudade do futuro te saúdam!, rapaz de oitenta anos, imortalmente jovem na atração fatal de filmes ainda em plena desobediência política, artística, global – o escambau.

A Suprema Felicidade, filme de Arnaldo Jabor

Publicado ontem no Sul21

Vinte e seis anos após Eu sei que vou te amar, Arnaldo Jabor volta às lides cinematográficas com o nostálgico e autobiográfico A Suprema Felicidade. Neste ínterim, Jabor trabalhou como colunista de O Globo e como comentarista do Jornal Nacional, Jornal da Globo, Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Fantástico e da Rádio CBN. Escreveu também dois best-sellers: Amor é prosa, sexo é poesia (Editora Objetiva, 2004) e Pornopolítica (Editora Objetiva, 2006). Se seus textos e suas intervenções na televisão renderam-lhe admiração e críticas, seus antigos filmes sempre foram respeitados.

Porém o mesmo certamente não ocorrerá com A Suprema Felicidade. Chamá-lo de ruim é insuficiente, seria apenas colocá-lo na vala comum dos projetos fracassados. Para caracterizar o filme com maior exatidão, talvez o melhor seja utilizar a palavra pavoroso. Na partida, a ideia não é má: a trama ocorreria no Rio de Janeiro do pós-guerra, buscando fazer uma crônica nostálgica dos anos de formação de um menino – certamente o próprio Jabor. O filme iria desde a infância até a adolescência de Paulo, da guerra ao amor, de Deus ao sexo, das convenções à família, só que o roteiro e seu cantor revelaram-se muito inferiores aos temas.

Em poucos minutos, toda a ideia inicial torna-se rarefeita e Jabor passa a dar atenção apenas ao sexo, realizando uma paródia involuntária de A Primeira Noite de um Homem. O adolescente Paulo perde-se em cenas de gosto duvidoso sob a orientação de um avô boêmio e de um pai cheio de repressão e concupiscência, respectivamente dentro e fora de casa. Aqui, Jabor consegue o impossível: fazer Marco Nanini, o avô materno, realizar uma atuação forçada, fora do tom. Aliás, tudo é acompanhado pelo avô, que despeja boemia pelos poros e pérolas de sabedoria em suas falas. Nada mais clichê. A única personagem que se salva do naufrágio geral é a da mãe (Mariana Lima). Melhor seria tornar o avô narrador do filme — ele funcionaria como elemento unificador, meu caro Jabor.

Os problemas do filme começam pelo roteiro interminável, repetitivo e verborrágico, e seguem pela direção de arte tosca, pela falta de estrutura, pelas alegorias deselegantes, pela má direção de atores e, para terminar, pela pieguice e inverossimilhança – por exemplo, o personagem do protagonista é dividido entre três garotos de idades diferentes e nada em comum, inclusive a cor dos olhos varia!

O filme começa com o anúncio do final da Segunda Guerra Mundial e passa a acompanhar a em flash-backs a história dos pais de Paulo (Dan Stulbach e Mariana Lima), mostrando como se apaixonaram e passaram a se detestar. As cenas da infância de Paulo num colégio católico são ainda boas, apesar da onipresente e lastimável direção de arte.

O estilo também não se decide. Em alguns momentos é uma história adolescente, noutros é a crônica da crise de um casal, noutros é uma chanchada dos anos 70, noutros o único humor são os trocadilhos chulos, ainda noutros é um musical e tudo isso sem um elemento unificador que justifique as alterações de estilo.

Saudades de um Rio antigo? Saudades de um (mau) cinema? Saudades de um avô querido? Da mãe? Nostalgia de si mesmo? Impossível responder qual foi a intenção de Jabor à beira de seus 70 anos.

O melhor do filme é a epígrafe de mineiro-carioca Drummond:

As coisas findas
Muito mais que lindas
Essas ficarão

"O Sétimo Selo": Bergman usa o cinema para reflexão

André Setaro
Publicado originalmente no Terra

Ingmar Bergman (14/07/1918 – 30/07/2007), um dos maiores pensadores do cinema, morreu há três anos, com 89 anos de idade completados poucas semanas antes de seu passamento. A coluna lembra o genial cineasta através de seu belo “O sétimo selo”.

Não apenas um cineasta, mas um autor completo, um pensador que se vale do cinema para refletir suas angústias, suas dúvidas, refletir sobre a condição humana, Ingmar Bergman é um dos maiores realizadores cinematográficos de todos os tempos. Houve uma época, nos idos dos 60 e 70, que o seu nome despertava imensa curiosidade e, por causa dela, formou-se um verdadeiro culto ao diretor, que alguns chamaram de bergmania. Se na primeira fase de sua carreira não conheceu o sucesso nas bilheterias, considerado pelos exibidores um cineasta maldito, a partir dos meados dos anos 60 um mercado se abriu para suas obras. Principalmente na sua “fase psicanalítica” – “Cenas de um Casamento”, “Face a Face”, “Sonata de Outono”… Os filmes de Bergman que mais aprecio, no entanto, exceção se faça a “A Paixão de Ana” (1970), e, também a “O Silêncio”, são aqueles da primeira fase, notadamente “O Sétimo Selo” “Morangos Silvestres”, “A Fonte da Donzela”, “Noites de Circo”, “Mônica e o Desejo”, “Sorrisos de uma Noite de Verão”, “Juventude”, entre outros. No frigir dos ovos, entretanto, posso dizer que admiro a todos os seus filmes.

“O Sétimo Selo”, obra-prima da primeira fase do cineasta, ainda que produzido em 1956, somente em 1976, vinte anos depois de sua realização, foi lançado no Brasil através da distribuidora “Cinema 1” e, aqui na Bahia, apresentado neste mesmo ano no antigo cine Nazaré da Praça Almeida Couto. Já “Morangos silvestres” obteve estréia ainda na segunda metade do decurso dos 50, conseguindo grande impacto e estupefação na época de seu lançamento Alegoria tragicômica em forma de mistério medieval, com um desenvolvimento livre do imaginário da Idade Média, “O sétimo selo” ( “Det sjunde inseglet”) tem sua fábula estruturada na volta de Antonius Blok (Max Von Sydow) à Suécia após dez anos de luta na cruzada e o jogo que estabelece com a Morte num tabuleiro de xadrez. Antonius e seu lacaio Jons (Gunnar Blornstrand) se dirigem, por uma longa jornada, ao castelo onde moram, e, no caminho, contemplam uma terra arrasada pela peste. Este itinerário de Blok, do erro inicial à Verdade final, é conduzido com extrema maestria por Ingmar Bergman, que se utiliza, aqui, do cinema, como um veículo “filosofante” e reflexivo acerca da condição humana. No percurso, Blok e Jons encontram vários personagens, mas apenas um casal de artistas mambembes se constitui num remanso de paz e tranquilidade, longe da mesquinharia e da hipocrisia dos outros. Blok, entretanto, continua o jogo de xadrez com a Morte (impressionante caracterização de Bengt Ekerot), mas esta, de repente, ganha partida. Vencedora, precisa levar consigo todos os personagens, deixando na vida somente o casal de cômicos (Bibi Andersson e Nils Poppe), o único capaz de desfrutá-la de maneira pacífica e feliz.

“O Sétimo Selo”, antes da consagração definitiva que se daria, um ano depois, em “Morangos silvestres”, já coloca Bergman, no panorama internacional, como um dos grandes cineastas do século XX. Trata-se de um filme, a rigor, gnoseológico em que se estuda a origem e a possibilidade do conhecimento por parte do homem. Por autor, os filmes de Bergman se constituem, na verdade, em variações sobre um mesmo tema. Em todos eles, presentes: a incomunicabilidade dos seres, a angústia do estar-no-mundo, a inevitabilidade e o mistério da morte, os tormentos da relação amorosa… “O sétimo selo” volta às raízes do cinema nórdico de Victor Sjostrom e Mauritz Stiller, à floração sueca, quando a natureza tinha uma forte influência no comportamento das personagens. Assim, “Det sjunde inseglet” pertence à série de filmes que Bergman realizou e que possuem um “decór” histórico, ainda que o fato de a ação localizada na Idade Média não tira a esta obra magistral seu caráter contemporâneo. O homem que Bergman estuda é o homem do aqui e do agora.

Veja-se o caso dos dois protagonistas principais, o Cavaleiro e seu lacaio, que formam, a seu modo, um binômio no qual se debate o tema das fontes das possibilidades de conhecimento – não somente o conhecimento de Deus mas de tudo aquilo que escapa à constatação estrita dos sentidos. Elementos de mistérios – a bruxa, a peste, a procissão penitencial.., simbolismos e participações insólitas, como a personagem da Morte, criam, em “O sétimo selo”, um clima tenso ao qual contribuem uma planificação e uma iluminação ( do artista Gunnar Fischer antes de Bergman trabalhar com o iluminador Sven Nykvist) cuidadas com esmero.

Em “O Sétimo Selo”, como a afirmar a condição de autor do cinema moderno, Bergman mostra uma constância temática e estilística, um universo ficcional próprio e um estilo – que faz o artista! – pessoalíssimo. À guisa de um pequeno exemplo, que se veja alguns personagens secundários, os quais, vêem se repetindo nos filmes de Bergman de filme a filme: o casal dos artistas ambulantes (presentes desde Noites de Circo até O Rosto”; a controvérsia estabelecida entre o ferreiro e sua mulher – contraponto e complemento. Nas palavras do ensaista Claude Beylie (no indispensável “As obras-primas do cinema, Martins Fontes): “A mensagem é clara. Continuamos ameaçados pela peste, que se chama, hoje, guerra nuclear, e, diante deste perigo, não há outro recurso além dos corações puros. Bergman opõe ao fanatismo e à intolerância, “O leite da ternura humana”. No entanto, seu filme nada tem de dogmático. Ele joga o jogo da ingenuidade iconográfica, desenvolve livremente o imaginário medieval. Faz-nos pensar em Durer, nas xilogravuras de Hans Beham, na “dança macabra” de Orcagna. A reflexão filosófica é irrigada sem cessar por um onirismo límpido e, até, por traços de humor, notadamente através do personagem do escudeiro.”

André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

O Ataque do Presente ao Restante do Tempo (*)

Não vogando já na doce ilusão de uma sociedade sem classes, concordei em viver numa sociedade sem classe.

Do extinto blog português BOMBYX MORI

O cinema é, atualmente, nosso único bem cultural comum, aquele que pode mais facilmente tornar-se assunto de conversa. Se você, por exemplo, desejar discutir um livro, só conseguirá fazê-lo se for um daqueles bem clássicos e olhe lá; se for um livro novo ou um que poucos leram, esqueça, você terá de “discutir” com um crítico ou procurar uma alma gêmea, como o Charlles Campos. Porém, é muito mais fácil trocar idéias sobre cinema, já que quase todos vêem os principais filmes. Por isso, tenho a opinião de que a crítica cinematográfica profissional é a atividade que hoje requer a maior das competências, pois é certamente a mais contestada. E temos excelentes críticos de cinema, seja em blogs, seja em jornais, mas há outros autenticamente ridículos.

Conheci um desses na última sexta-feira à noite. O autor, bastante lido, me assustou. É  análogo a certa casta de meninos que era obrigado a suportar na minha infância e adolescência: os que adoravam jogar futebol, não obstante serem irremediáveis pernas-de-pau. O pior é que, tal como o citado (ou não citado) blogueiro, aqueles meninos eram realmente fanáticos pelo jogo, eram os primeiros a chegar à nossa pracinha e muitas vezes eram os donos das melhores bolas. Estratégia.

Esse perna-de-pau — cujo nome não vou revelar e que não é o único — simplesmente não compreende o que vê na tela, possivelmente por falta de conhecimento e de bordel. Para escrever a respeito de determinados filmes são necessárias algumas interpretações e para tanto é imprescindível o conhecimento e/ou vivências e/ou referências e/ou esperteza; ou seja, cultura e algo mais.

Chutando para todo lado e pontificando sobre conceitos fundamentais suspeitos, usa uma arma que costuma ser sedutora aos crédulos: a arrogância sem justificativa. Este novo candidato a representante da ignorântzia escreve frases curtas e definitivas sobre todos filmes e é capaz de emitir involuntariamente os juízos mais cômicos. Patético. O único mérito que vejo neste blog de casa nova é o fato do homem realmente gostar de cinema; ele vê quase todos os filmes, dedica-se comovedoramente a correr de sala em sala, bem como fazia o menino perna-de-pau de minha infância — aquele que nos esperava para correr atrás da bola, raramente logrando tocá-la… Outro mérito, este mais duvidoso, é que ele parece ter o sério compromisso de resenhar todos os filmes. Aliás, é instado a isso por seus leitores nos comentários. Ou seja, há toda uma leva de jovens prontos para serem “orientados”.

Gostaria MESMO de explicitar algumas pérolas que andei lendo lá, mas tenho certeza que não devo fazer isso. O Google funciona muito bem e chega de confusões. Mas digo-lhes ao pé do ouvido que há coisas engraçadíssimas, se não fossem antes tristes. O que me deixa desconcertado é que um sujeito desses possa ter muitos leitores e que auxilie, sob aplausos, a confundir. Mas por que estou tão preocupado com isso quando há a Veja fazendo coisas piores em todas as áreas? Puff!

(*) Título copiado de outro título: o do filme de Alexander Kluge.

Uma personagem de Os homens que não amavam suas mulheres, filme de Niels Arden Oplev

Não vou contar o filme, certo? Filme de suspense não se conta e a Caminhante me mataria.

Também não li a tal trilogia Millennium de Stieg Larsson e nem lerei. É um fenômeno de vendas e penso que não tenho tempo para coisas provavelmente perecíveis. Mas vi o filme e fiquei apaixonado pelas possibilidades da personagem Lisbeth Salander — protagonizada pela excelente Noomi Rapace — , a genial hacker que acompanha o jornalista Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist) na sua tentativa de descobrir quem matou Harriet. É uma personagem muito moderna e sua postura expressa mais do que laudas ou manuais explicativos. Lisbeth é ressentida e agressiva, mas o que efetivamente interessa a mim é o fato de que ela se nega a falar de si. É um paradoxo, pois tudo o que há no filme é sua figura, de cuja biografia somos informados indiretamente. A montagem do quebra-cabeça Lisbeth Salander vai pouco a pouco tomando conta do filme. Sabemos pouco do jornalista (e nem nos interessa  saber), ao passo que sabemos tudo a respeito de quem não fala nada. Mas acabo de descobrir que não sou nada original. Na Europa há até uma lisbethmania… Bem, voltemos a nosso tema.

Cheia de tatuagens e piercings — o nome do filme nos EUA é The Girl With the Dragon Tattoo — , Lisbeth Salander é a mais enigmática e clara personagem da trama. Trata-se de uma intensa punk revoltada, antissocial, com corpo de criança, teimosa e silenciosa. É estranho que alguns comentaristas tenham se atrapalhado e reclamado das cenas de entre Lisbeth e seu curador. Elas são absolutamente fundamentais para caracterizar a personagem da qual precisamos saber tudo, inclusive o motivo da curatela. Dona de um sentido de justiça primário, ela é um resultado muito caótico de nosso tempo e mais não devo dizer.

O filme é um charmoso Who done it? com todos os clichês habituais e um final alongado e desnecessário, porém demonstrativo de que a lentidão do cinema europeu pode não prejudicar uma narrativa deste gênero, ao contrário. Os homens que não amavam suas mulheres é muito europeu no tratamento e construção das personagens, apesar de tratar da violência, da corrupção e da indiferença, temas caros aos cinema americano. Longe das qualidades do filme de Antonioni, não há poucos ecos de Blow-up na trama. E mais não devo dizer. Um amigo que leu o livro ficou muito surpreso com a fidelidade deste ao livro. Mais um motivo para não lê-lo… E mais não devo dizer.

Obviamente, os estúdios de Hollywood já compraram os direitos de refilmagem. Leio que há uma verdadeira guerra pelo papel de Lisbeth: a atrizinha com cara de quem comeu e não gostou Kristen Stewart (de, argh, Crepúsculo), a bonitinha Ellen Page (de Juno) e a inglesa Carey Mulligan (de Educação) brigam pelo papel. Posso garantir desde já que nenhuma terá o impacto de Noomi Rapace pelo simples fato de que a qualidade da produção está no modo filmar e na postura daquele bando de europeus tranquilos e “educados”. E mais não devo dizer.

A Crise do Guion e o próximo Godard

SOS GUION – UM CINEMA VIVE DE SEUS ESPECTADORES

.

Amanhã completa uma semana que noticiamos a difícil situação dos Cinemas Guion.

Recebemos muitas mensagens de apoio, que nos motivam a seguir em frente e reverter a situação.

Agora, a permanência dos CINEMAS GUION depende de todos!

Nos CINEMAS GUION todo dia é dia de cinema!

Carlos Schmidt

Não adianta, eu sigo gostando muito de Godard, mesmo do mais recente. O trailer de seu último filme, Socialisme, de 2010, vem sendo amplamente divulgado pela rede. Vi todos, mas achei mais bonita a versão curta. Nos outros, fica claro que Godard segue explorando o som — o filme efetivamente parece uma música contínua, como se o diretor fosse um compositor cujas obras fossem constituídas de colagens de trechos musicais, de ruídos e falas — e as imagens são cada vez mais belas e em perspectivas surpreendentes. Fiquem então com o trailer de que mais gostei:

E com um maiorzinho, também sensacional, que mostra o porte e o caráter de Socialisme:

Os Melhores Filmes de 2009

Dos 57 filmes que vi NO CINEMA em 2009 — conforme anoto em Últimos Filmes Assistidos (acima) — dei nota máxima apenas a 6:

2009/18 – Violência Gratuita – Funny Games – 2007 – EUA – Michael Haneke – 5
2009/29 – O Casamento de Rachel – Rachel Getting Married – 2008 – EUA – Jonathan Demme – 5
2009/35 – Stella – Stella – 2008 – França – Sylvie Verheyde – 5
2009/41 – O Grupo Baader Meinhof – Der Baader Meinhof Komplex – 2008 – Alemanha / França / República Tcheca – Uli Edel – 5
2009/49 – Anticristo – Antichrist – 2009 – Alemanha / Dinamarca / França / Itália / Suécia – Lars Von Trier – 5
2009/57 – Partir – Partir – 2009 – França – Catherine Corsini – 5

E, destes, dois são um pouco maiores que os quatro restantes. Como ninguém está me obrigando a escolher um deles como “o melhor do ano”, aqui vão meus dois melhores de 2009:

Foram filmes que apresentaram efetivas novidades, seja de linguagem (Rachel) ou temática (Anticristo). Também foram os únicos que me motivaram a sentar e escrever a respeito. Em 5 de maio, escrevi Eu não quero um deus que possa perdoar o que fiz, resenha insuficiente sobre o grande filme que é O Casamento de Rachel e, em 13 de outubro, voltei a demonstrar minha incompetência no post Anticristo, de Lars von Trier, com a diferença de que, no último, fui salvo pelos comentaristas.

Curiosamente, O Casamento de Rachel foi recebido friamente ou ignorado pelas pessoas e pela crítica, fato que me deixou desconcertado, enquanto que com Anticristo ocorreu justamente o contrário, mas algumas pessoas o viram de forma tão periférica ou tola que voltei a ficar desconcertado. Houve exceções, claro, mas a maioria nem pareceu ter passado perto do filme… Uma pena.

Kill Bill, o pop que satisfaz

Estava examinando meu blog anterior — que não está mais disponível na rede — e encontrei estes posts de 2004 e 2005. Visto de hoje, meu entusiasmo e o da maioria das pessoas por Kill Bill é algo surpreendente. No texto, falo um pouco sobre meus fillhos que tinham, na época, 13 e 10 anos.

Penso que, no cenário pop contemporâneo, não haja ninguém mais competente que Quentin Tarantino. (Retiro deste time o Almodóvar dos últimos filmes.) Seu quarto filme, Kill Bill, é entusiasmante, apesar de inferior a Pulp Fiction. Fui vê-lo duas vezes: a primeira serviu para que conferisse se meus filhos poderiam vê-lo e a segunda para a diversão em família. Há sangue prá todo lado, mas não há situações de grande terror psicológico. Também não há lugar para comentários existenciais ou morais — ops, alguém esperava isto? Tarantino conhece seu respectivo tamanho e área de atuação, e o produto final é um pop deslumbrante. Seu senso de estilo é o que deveria ser analisado e não… Bem, mas não vamos adiantar as coisas.

Segunda-feira fiz um spam cujas vítimas foram os coitados que habitam meu “Catálogo de Endereços”. Abaixo, estendo a polêmica aos 7 leitores deste blog, colocando primeiramente o conteúdo de meu e-mail, seguido de algumas respostas, todas muito boas, inteligentes, diferentes, engraçadas, fechando com as explicações da Meg a alguns críticos. Alterei-as um pouco a fim de retirar as observações e recados destinados apenas a mim. Divirtam-se!

Meu e-mail:
Amigos (Atenção, Ivonete!). Vi Kill Bill duas vezes para me certificar. Mas não precisava tanto para voltar a me surpreender com a burrice interpretativa da maioria dos críticos dos jornais brasileiros. Hoje, após ler o César Miranda, criei coragem. O que o César escreveu? Ora, o óbvio. Kill Bill é uma cidade onde se encontram Sérgio Leone, o tigre e o dragão, Poquemon e Uma Thurman maravilhosa. O filme é sobre a vingança de uma mãe, não de uma noiva… O que tinha lido antes? Ora, que era um filme de ação e grande violência baseado em histórias em quadrinhos, que a estranheza do filme era a presença de uma mulher dando porrada em todo mundo e depois sobre um monte de detalhes técnicos divertidos. Violência? Pelamordedeus! O filme é protagonizado por uma mulher porque só mulheres são mães; os pais são, no máximo, pães. É incrível que “os espectadores profissionais de filmes” tenham ignorado a cena na qual Uma Thurman acordando desesperada do coma, apalpa sua barriga vazia e o que ela diz para Bill antes do tiro e a cena final, onde Bill — preocupado — fala na filha. E por que o apelido de Uma é “A Noiva”? Ora, pela mesma razão que Psicose não se chama O Filho Que Também Era Mãe! Prá que contar a principal parte do filme chamando a personagem de Uma de “A Mãe”? Não li ninguém escrever sobre isto, só sobre os 1600 litros de sangue falso utilizados e sobre Bruce Lee, Jaspion e outras coisas que há no filme mas que são secundárias. Quem discordar que discorde mas creio que Kill Bill é uma ode à mulher que briga por seu filho.

Algumas respostas:

Andréa, do Literatus: Posso botar lá na minha comunidade do Orkut, Milton? Estamos discutindo justo isso. Se vc deixar coloco, tá? bjim querido, angel.
Réplica: Claro que pode!
Tréplica: Meu herói! 🙂 bjimm angel

César Miranda: Grande Milton, obrigado pelo elogio assim na frente de tanta gente. Quem seria tão parvo a ponto de fazer aquele barulho todo por causa de um “casamento”?!?! Tem que ser muito idiota, né não? Já uma mãe por um filho, faria até mais. Outro segredo é não ler crítica de filmes, segundo o Millôr a principal função de um crítico de cinema é nos fazer de bobos. Sei do que uma mãe é capaz (para o bem e para o mal), inclusive essa bobagem que é uma vingança sanguinária daquelas, eu, particularmente torço contra a Uma. Se o Tarantino tiver alguma coisa na cabeça, vai fazer aquela saga ser um uma comédia de erros do meio para frente. Não é bom fazer apologia da vingança. Não há nada mais inútil do que uma vingança. Um grande abraço, César.

Ivonete Pinto: Exato, Milton. O mesmo que propunha Alien (o último, se não me engano). Com a diferença que este (Kill Bill) é divertido e não se leva a sério. Vc gostou de Diários de Motocicleta? Vou escrever sobre ele pra próxima Teorema. Tô com vontade de chamar de Kill Walter…

Tiagón, do Bereteando: O que me surpreendeu em Kill Bill – ah, peraí, muita coisa me surpreendeu, tenta outra vez – o que mais me surpreendeu em Kill Bill foi constatar que, depois de horas de luta e espadas, as cenas mais chocantes do filme não têm sangue: são as que tu citaste e o encontro de Uma com a filha de Vernita Reid, a recém-órfã. E concordo contigo. Mas também acho que “Kill Bill vol. 1: A Mãe” não seja exatamente um bom título… Embora quem costuma assistir Tarantino vai até se o filme se chamar “O Urso que Comeu meus Escorpiões”. No mais, saí do cinema extasiado. Não tem uma cena que não seja linda; a luz, os contraplanos, a sonoplastia de videogame… ih, nem vou começar a falar, porque me empolgo. Quinta-feira eu vou rever, e vou levar a família. Então escrevo um post enorme no Berê. Abraço!

Gustavo Souto Maior: Concordo plenamente com você, apesar de não ter conseguido “juntar as pedras” quando assisti ao filme pela primeira vez. Porém, agora, ao ler a sua análise, aquilo que tinha ficado no ar tornou-se certeza! Obrigado! Um abraço, do Gustavo.

Roberto Maxwell: KILL BILL VOL. 1 foi uma grata surpresa. E poderia comparar, no meu universo cinematográfico, Tarantino a Lars Von Trier. Ambos sádicos e cínicos. Claro que a mocinha tarantinesca não é vista penando como a de Von Trier. Este último é dos piores, daqueles que gostam de torturar os bonzinhos. Identifico-me com ele. Tarantino parece acreditar na justiça, concessão a qual Von Trier se entregou em DOGVILLE. Mas ambos acreditam na justiça-feita-com-as-próprias-mãos e, nesse sentido, são implacáveis. Mas não se deve comparar A Noiva/Grace a Chuck Norris. As mulheres vingativas são muito mais sangrentas. Além de terem uma dose de charme. Isso sem contar o fetiche de vê-las embebidas de sangue e com armas nas mãos. Aí acabam as semelhanças entre Tarantino e Von Trier, entre KILL BILL VOL. 1 e DOGVILLE. O americano entrega as armas a sua mocinha desde a primeira seqüência e, melhor ainda para os púberes, seu primeiro adversário é outra mulher, a vitaminada Vivica A. Fox. Indescritível, sob pena de estar fazer a descrição incompleta, a primeirona é uma das melhores de seqüências de um filme recheado de bons exemplos delas. Todas repletas de clichês (o que é a seqüência de animação com a origem da personagem da Lucy Liu?) muito bem colocados por sinal. Dificilmente se verá um filme com tantas referências cinéfilas escancaradas e sutis. Tarantino é o papa do pop. Nem Andy Warhol foi tão longe. (Perdão, Senhor, por este pequeno pecado!) Frustrante é saber que KILL BILL VOL. 2 só estará entre nós em outubro. Nem preciso dizer que as locadoras-ao-ar-livre já estão abertas e o mesmo se pode dizer para os bits & bytes. Mas eu só vou ver no cinema. Garanto que é muito mais programa!

Meg, do Sub Rosa: Nem é preciso dizer o quanto o filme de Tarantino me deixou feliz… E o que me diverte mais ainda, se é que é possível, é a inveja e a má-vontade dos críticos (?!) com o awesome “SAN” Quentin. E como se não bastasse, graças aos Céus, Tarantino gosta de mulher , I mean, as mulheres são fortes, poderosas, lindas, e sabem manejar uma espada… hohoho. Aliás, Uma Thurman está lindíssima – o tempo todo – e Daryl Hannah -a Elle Driver – quase numa ponta neste v. 1 – nos poucos minutos em que aparece…uau!!!!!! Um amigo meu disse que Tarantino revela uns fetiches: pés, por exemplo…:-) Só uma coisa me irrita: é quando dizem que o filme é violento… Não este! Oh my! Não me façam recorrer aos gregos para explicar que uma das formas de se descaracterizar um tópico é recorrer à hipérbole, ou seja intensificá-lo até o inconcebível… Exagero, figura tão conhecida dos lógicos:-). Vão por mim (hohoho) o filme é uma delícia… A turma que esteve comigo, matemáticos, filósofos e pessoal da Science Po, pisc* – se divertiu a valer… Eu, como não entendo de assunto nenhum, fiquei vidrada naquela inacreditavel…hahahah… Gogo Yubari. Go…gorgeous ! Hoho! Aliás, em matéria de cinema, Tarantino sabe tu-dê-ó-dó, tudinho: fotografia, montagem, MÚSICA, oh my gosh!… e até o cast é sempre impecável. Ou haveria melhor Jackie Brown que Pam Grier ?:-) De modo que o sangue que jorra (para não dizer mais) torna tudo absolutamente *fake*. Como diria e disse – em comentário a um dos posts, o também crítico, um dos melhores, as matter of fact, Julio Gomes. Gente, violento é o Mel Gibson 😉 Kill Bill violento? Na-na-nè-re!

Agradeço a todos os que colaboraram neste post. Pedi a quase todos os citados permissão para fazê-lo. Eu escrevi QUASE… Se alguém quiser retirar seu texto ou alterá-lo, me avise.

-=-=-=-=-

Se você chegou aqui desavisado e não gosta do cinema de Quentin Tarantino, aconselho-o a abandonar este post exatamente neste ponto. Um abraço e volte sempre! Os outros, os que gostam de Quentin, também recebem meu abraço e devem voltar sempre aqui; porém, neste momento, gostaria que continuassem a ler este post.

Bem, já que estamos entre fãs, começo dizendo que também gostei demais do segundo filme da série. Saí do cinema dizendo que era melhor que o primeiro. Lá, tínhamos mais ação e poucos diálogos; aqui, temos o contrário. Tarantino, em Kill Bill II, deu o espaço necessário para a Noiva tornar-se humana. O filme é mais lento, dando um tempinho tempo para os personagens se darem a conhecer, dialogando e tergiversando da forma curiosa que Tarantino já utilizava em Pulp Fiction. O que mais me surpreendeu no Volume 2 foi o fato de este ser totalmente diferente do primeiro. Estilística e visualmente é outro filme, tem personalidade própria. Dizem que haverá em DVD uma junção dos dois filmes, formando uma espécie de “versão do diretor”, o qual teria sido dobrado pelos produtores não apenas para diminuir a parte 2, como também não lançar um só filme de imensas proporções. Depois de ver a continuação, não acredito muito venhamos a ver esta versão única.

Talvez Kill Bill seja um filme para cinéfilos. Claro que ele se sustenta mesmo para aquele espectador que, como eu, não reconhece nem 10% do referencial utilizado pelo diretor, mas sentimos enorme prazer quando vemos colocadas dentro do filme citações de A Noiva Estava de Preto de François Truffaut, Rastros de Ódio de John Ford — que recebe não apenas uma citação, mas do qual vemos cenas na TV de Bill — e outros. Uma Thurman disse que cada cena de luta, que cada golpe é retirado de algum daqueles “clássicos” filmes de luta orientais pelos quais Tarantino tem fixação. Como não vi nenhum deles — nem os de Bruce Lee — fico imaginando o que alguém “mais erudito” possa fruir.

Kill Bill II não é tão oriental quanto o primeiro. Só voltamos ao oriente durante o flash-back que mostra o treinamento da futura Noiva, isto se aquilo ocorreu mesmo no Japão, ou na China, sei lá… mas estou atropelando as coisas. O filme recomeça de onde parou o primeiro e o próximo a ser morto é o irmão de Bill, Budd (Michael Madsen). Durante a vingança, há duas grandes interrupções em flash-back: a primeira para voltarmos detalhadamente ao casamento frustrado e a segunda para vermos o citado treinamento a que a Noiva havia se submetido antes de tornar-se aquela fera.

A seqüência do treinamento com o mestre Pai Mei (Chia Hui Liu) é sensacional. Utilizando um rigor absoluto e caricatural, Pai Mei submete Beatrix Kiddo (sim, a Noiva tem este nome) a uma longa série de torturas. Apesar de tal postura, Pai Mei está decididamente entre os personagens cômicos do filme, pois Tarantino passa todo o tempo sublinhando seus trejeitos com exageradíssima sonoplastia e com aqueles súbitos zooms tão caros às produções baratas japonesas.

Voltemos a Budd. No começo, ele leva grande vantagem, chegando a enterrar Beatrix num cemitério próximo. Neste ponto, há mais uma seqüência notável. Quando o caixão é pregado, “entramos” nele junto com Uma Thurman, a tela fica escura e ouvimos o caixão caindo no buraco, depois ouvimos a terra caindo sobre no caixão e os sons externos cada vez mais indistintos; no final, só resta o silêncio. É uma espantosa e original repetição daquilo que fez Lars von Trier no começo de Dançando no Escuro.

Não vou contar como ela sai desta, mas a continuação da cena ao estilo “A Volta dos Mortos Vivos” é engraçadíssima. O cinema vem abaixo quando ela atravessa a estrada. Então, ela volta para “assombrar” Budd, mas só tem a chance de encarar Elle Driver (Daryl Hannah), pois esta já tinha feito presunto daquele. O enfrentamento com Elle Driver é o grande momento de luta da segunda parte. Todos esperávamos por esta cena e Tarantino não nos decepciona. Surpreendentemente, a Noiva não a mata, apenas deixa-a mutilada, acompanhada de uma cobrinha venenosa. A atuação de Hannah é digna de menção. Ela está terrível, tudo nela é ódio e força. O fato de não termos visto sua morte talvez seja o grande gancho para um Kill Bill III. (Outro gancho seria a filha de Vernita Green (Vivica A. Fox) contra a filha d´A Noiva, mas isto já seria muito delirante…)

Depois disto, vamos à procura de Bill (David Carradine). Aí, há algo inesperado. O encontro é tenso, mas não há grande violência. Beatrix conhece a filha com 4 anos (ela lhe pede para ver Ninja Assassino antes de dormir…) e mantém um diálogo com Bill que é um estranho simulacro de um casal discutindo a relação.

O filme é finalizado num quarto de hotel onde Beatrix e a filha BB Kiddo (a gracinha Perla Haney-Jardine), ambas com roupas de dormir, assistem a um filme infantil. Antes disto, Beatrix entrega-se a uma crise de choro no banheiro.

Depois, ainda temos a surpresa dos créditos, onde o “estilo Truffaut” é revisto, servindo para que lembremos de cenas do filme (Vols.1 e 2). Bem no final, depois do último crédito, há um extra meio bobo, mas que não perdemos, pois ficamos no Arteplex – só nós e os faxineiros -, tentando ler, entre uma varrida e outra, todos os créditos.

P.S.- Outra coisa. Carro bonito, para mim, sempre foi sinônimo de Karmann-Ghia, o resto é bobagem. Agora, adivinhem qual é o carro de Uma Thurman?

Melhor programa cultural para hoje: Cineclubismo nos Anos de Chumbo

Recebi este e-mail:

Olá,

estou organizando uma sessão de cinema na Sala Redenção (UFRGS) no dia 07/05, em que será passado o filme Uma cidade sem passado. A proposta é de que a autora do livro “Cineclubismo – Memória dos anos de chumbo” – Rose Clair Matela – comente, após a sessão, a importância do movimento cineclubista no período da ditadura (não era ditabranda) não só como um espaço de resistência político-cultural, mas também de formação para os sujeitos que dele participaram. Rose Clair paricipou diretamente da organização dos cineclubes no Rio de Janeiro naquela época, viu e viveu de perto a repressão. No dia 08/05, a proposta é de realizar um debate entre ela e Luiz Alberto Cassol – que trabalha com o cineclubismo hoje – para que seja debatida a importância do cineclube naquela época e na atualidade, também como um espaço de resistência político-cultural e de formação para os sujeitos, mas em contextos diferentes. Gostaria de saber se é possível fazer a divulgação no blog quando a data se aproximar. Se puder contribuir de alguma forma, ficamos gratos. Desde já agradeço a atenção.

Att.,
Carla Hirt

Uma Cidade sem Passado (Das Schreckliche Mädchen), de Michael Verhoeven, é um dessas pequenas obras-primas muito pouco vistas. É um filme alemão de 1990. A história: na década de 70, Sonja, uma jovem estudante, inscreve-se num concurso “Minha Cidade Durante o Terceiro Reich“. Porém não são todos que querem colaborar para que ela tenha acesso aos antigos arquivos da cidade. Muita gente entra em pânico e então mais do que nunca Sonja quer descobrir a verdade sobre os que viveram sob o regime da época. Deliciosa mistura de comédia e drama, o filme é baseado em fatos reais. Ganhou vários prêmios e chegou a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Com inteira justiça. (Adaptado desta página).

A Cordialidade Desnecessária & A Salvação por Clint Eastwood

Por uma questão de “teologia e simetria”, como diria o grande escritor e gozador John Kennedy Toole, Clint Eastwood fez da cena final de Gran Torino uma grande exceção em sua carreira. É seu último filme como ator. Menos pior que segue diretor.

Faz algum tempo, o escritor português Francisco José Viegas escreveu em seu blog:

O ressentimento apoderou-se da blogosfera nos últimos tempos sob a máscara do debate. Não, não é que deva existir um debate «frouxo», inócuo — falo dos termos do debate. Mas, como tenho dito várias vezes, longe de mim tentar propor «um tom», seja lá isso o que for, uma espécie de norma bem-educada de dizer as coisas. Às vezes, basta ler os adjectivos — quando não há nome (designação, pessoa, outro, coisa) que não tenha um adjectivo por perto. Evidentemente que o «ressentimento» é outra coisa, uma espécie de marca da cultura oficial contemporânea. Por exemplo: todo o texto que nos é estranho passa por ser a manifestação de um pecado original; os outros transportam sempre um vírus. Nesses casos, até o riso é feito de ressentimento. E o ressentimento está ligado à vigilância permanente, às comparações abusivas, ao controle à distância, ao patrulhamento ideológico. E se não está, é meio caminho.

Em meu blog, com raras exceções, o debate tem sido leve e tranquilo. Porém, noto ranço em várias outras plagas virtuais. Uma vez, há uns quatro anos, escrevi um post sobre a Rádio da Universidade que foi distribuído entre professores do Instituto de Artes e profissionais da rádio. Nunca li tantas ofensas! Quanta descortesia e ressentimento, ainda mais que eu flagrantemente conhecia a rádio, conhecia música e tinha razão. Depois daquilo, a rádio mudou. Claro, não sou santo, fiz analogias que queria engraçadas, mas que certamente soaram agressivas por lá. Poderia desculpar-me de meus excessos se o pessoal da rádio se manifestasse com calma. A discordância permaneceria. Será que também entrei no jogo?

Este tema pode ser expandido para fora do mundo dos blogues. De forma geral, a vida está muito “gritada”. Podem ser gritos literais ou podem ser insistências cujo efeito é o mesmo. Ontem, um vendedor de seguros me telefonou e, após apresentar-se, procurou vender seu produto. Tratei de explicar com simplicidade que já tenho seguro para o carro, para a saúde, para a vida, para a morte e não desejava pagar outro. (Não usei estas palavras, fui gentil.) Isto provocou o sarcasmo do vendedor Vinícius, que me felicitou por ser tão feliz e não precisar de nada. (Na verdade eu preciso de tudo).

Outro exemplo: no final de semana, fui a uma “comemoração” na qual houve discussões sobre futebol que ultrapassaram os limites do objeto da controvérsia. Rapidamente, um gremista estava chamando de palhaço um colorado. Eu peguei meu copo de cerveja e dei meia volta. Eles que se matassem.

Porém à noite assisti à uma entrevista de Clint Eastwood na TV (Actor`s Studio). Foram duas horas de uma pessoa encantadora, alegre, inteligente e fundamentalmente inteira (*)! Fiquei engolindo cada palavra com a certeza de que meu objetivo de velhice seria o de tornar-me um cara parecido, em humor, com ele. Meu filho Bernardo também ficou cativado pelo homem Clint Eastwood.

(*) Pessoa inteira: jargão da área psi. Trata-se de uma pessoa centrada, mas não auto-centrada ou em faixa própria. Alguém que possui uma trajetória com um conceito, com uma essência que o apóia. Pessoa de ética inabalável, tolerante e que não pula de galho em galho. Simplificando, o “inteiro” é o mesmo em qualquer circunstância, não diz uma coisa e faz outra, nem tem duas caras.

O comentário de Charlles Campos merece vir para o post:

Há alguns anos, deprimido diante ao que me afigurava ser um constante fracasso emocional, escrevi alguns cartázes de urgência com a frase”Jamais, em qualquer ocasião, magoe as pessoas!”, e afixei em pontos estratégicos pela casa. Quando retornei, ao final da tarde, encontrei-os empilhados sobre a estante, e imaginei que a moça da limpeza deveria ter sentido um constrangimento quase igual ao meu por não saber onde colocar aqueles frutos do meu esquecimento. Uma das histórias dolorosamente inesquecíveis e redentoras do meu avô, que ele a contava sempre à atenção dos constantes pedidos da família, foi quando, em uma de suas idas da fazenda à cidade, parou sua caminhoneta para auxiliar um homem que se encontrava com o carro danificado ao lado, na estrada de chão. Meu avô não se lembra que peça sobressalente de sua caminhoneta ele dispôs para sanar o avario do veículo, ele só se lembra da para sempre incompreensível resposta que deu quando o desconhecido lhe perguntou quanto havia sido a ajuda, e meu avô respondeu:”Uns dez reais e morre o assunto”. Como haveria de ser, um mês depois, meu avô se viu com o pneu do carro retalhado, em uma estrada de terra de pouquíssimo movimento, sozinho e sem macaco sob o sol a pino… e quem aparece? Para-lhe do lado aquele mesmo desconhecido, com um sorriso cordial e uma disposição de erguer o carro com os braços, se fosse preciso. Mas não foi; ele retirou seus acessórios do porta malas, trocou o pneu de aro espesso e trabalhoso, detectou que se perdera um dos parafusos e usou um dos seus. No final, diante o homem suado e sujo de terra, meu avô profere aquela já por ele intuída sentença de condenação:”quanto foi?”, ao que o homem responde:”ô compadre!, coisas assim a gente não cobra não. Somos um pelo outro.” Foi a maior vergonha da vida de meu avô, ele contava. Ele nunca desejou tanto um tapa na cara. Imagino que, numa escala continental, ele se sentiu como a companhia imperial inglesa diante todos aqueles indianos seminus sentados em posição de lotus e não reagentes, que conseguiram a independência nacional através de uma arma inédita na història: o constrangimento do lado que detêm o poder, pela súbita consciência explícita da desarrazoada desproporção do uso do poder.

Esse não é um assunto superficial, e é uma surpresa encontrá-lo em seu blog logo cedo ao acordar. Minha preocupação constante continua sendo o de não magoar as pessoas com o que digo, por várias razões. Piegas dizer isto? É; mas não sei dizê-lo de uma forma menos convencional, menos lyaluftiniana. Ao mesmo tempo, acho salutar expressar o pensamento, com toda a afronta a enorme tendência ao senso comum que nos domina, com seu poder de atração quase irrefutável. Por isto a surpresa de, após um noite de insônia diante o micro, aterrorizado diante o passeio alucinógino por tantos endereços cheios de pretensões, vaidades, inocuidade de espírito e de intelecto, com “ensaios” literários atravessados em colunas opressivas de propaganda de varejo e últimas novidades tecnológicas (textos que sempre me lembram aqueles coitados sentados em pleno centro urbano, com um colete amarelo no qual se lê ”Compra-se Ouro”), retorno ao seu espaço e vejo essa confluência cigana de medos intimamente arraigados sobre fúria, necessidade de calma, e ainda a necessidade da crença desesperada na palavra.

Vou ter um filho daqui a quatro meses, o que me faz temerosamente feliz. E a maior lição que prevejo pela frente, a passar para ele, é o exercício salutar e superestimadamente sofrível de engolir sapos, e ao mesmo tempo incentivá-lo ao contato com mortos ilustres que nunca fizeram outra coisa senão expulsar anuros a grito. Ensina-lo que a gentileza possui uma estética muito sui generis, às vezes não tão catártica quanto acompanhar aos berros “God Save the Queen” dos Sex Pistols, mas mais verdadeira e compensadora na hora de saber o valor de favores desabnegados e aceitar o dedo em riste no trânsito até que se desgaste por total inapetência a vontade onanística de matar. Por que, no primeiríssimo momento que precede à reação, nós somos uns serezinhos cruéis. Mas só nesse enorme e libidinoso momento inicial.

Para terminar, uma lembrança de uma grande palestra do Joseph Bródski ( no livro de ensaios “Menos que Um”), que versa sobre a interpretação do dito “ofereça a outra face”. Bródski diz que ignora-se, a maioria das vezes, o que vem depois neste vaticínio, que é: “e se alguém lhe solicita acompanhá-lo por uma jarda,vá com ele mais cem”. e cita o exemplo de um prisioneiro de um gulag, que, oprimido por um guarda à tarefa inócua de remover um monturo de pedras de um lado para outro do pátio da prisão, o faz inúmeras vezes, durante um dia e uma noite inteiras, durante muito mais tempo que o guarda levou para se humanizar e olhar aquilo como o reflexo de seu brutal constrangimento.

Uma semana, um texto: A publicidade venceu, por Luiz Carlos Oliveira Jr.

O melhor texto que li esta semana foi, DISPARADO, uma indicação do escritor Fernando Monteiro, que me mandou o seguinte e-mail:

Milton:

Gostaria de chamar sua atenção para este texto que eu considero o MELHOR QUE EU LI, SOBRE CINEMA, NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS (PELO MENOS).

Em tempo: “nunca antes” eu ouvira falar de Luiz Carlos Oliveira Jr. — o seu autor. Confesso esta ignorância imperdoável — porque quem pensa (e escreve) assim, deveria ser conhecido dentro e fora “deste país” etc. É um texto da revista Contracampo.

Abraço,

Fernando

Não precisaria escrever mais nada, mas vou meter minha colher para dizer que considero o cinema o gênero cultural mais passível de tornar-se assunto de conversa: a cultura comum, aquela que com maior frequência vários numa roda de amigos tiveram contato, é o cinema – e olhe lá –, não a literatura ou outra arte. Talvez por esta razão eu considere a crítica cinematográfica tão importante. Talvez por isso não aceite a montanha de blogs escrevendo tolices a respeito. Há blogs escritos por pessoas que conhecem pouco sobre as possibilidades daquilo que analisam e que se denunciam ao colocar coisas como O Senhor dos Anéis entre os “melhores de todos os tempos”… Tais blogs consideram que a qualidade de seus sites é diretamente proporcional à quantidade de novidades “analisadas” e adoram emitir julgamentos curtos e afirmativos sobre as obras… Por pura impossibilidade de explicar seus gostei / não gostei, é claro. Se isso vale para o deletério Chico Fireman e seus congêneres, não vale absolutamente para a Revista de Cinema Contracampo.

O artigo que Fernando Monteiro destaca não é otimista nem elogioso; o que ele faz é uma belíssima, frutífera (depende de quem ler) e esclarecedora reflexão sobre os dois filmes mais discutidos no país no ano de 2008: Ensaio sobre a cegueira e Linha de Passe. Ele está originalmente aqui e o copiei a seguir para meus sete leitores.

No louvável espaço criado pelo blog Dicionários de Cinema, pode-se ler o clássico texto “O cinema e a memória da água”, escrito há vinte anos por Serge Daney, e agora traduzido para o português. Selecionei um trecho desse artigo, que continua sendo um dos melhores já escritos sobre a relação entre cinema e publicidade, como ponto de partida para a pergunta que lanço em seguida: “O interesse de Imensidão Azul é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a vizinhança, durante muito tempo estimulante ainda que turva, entre ‘cinema’ e ‘publicidade’ não tem já talvez razão de ser. Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade demasiado forte. O início dos anos oitenta terá visto a legitimação cultural e depois estética da publicidade”.

E os anos 2000? Terão visto o quê?

Terão visto a crítica, que tinha por missão guardar a fronteira, marcar as diferenças (atitude traduzida em textos como esse do Daney), sucumbir à publicidade. Primeiro porque nunca soube definir o que era a tal “estética publicitária”, criando um rótulo impreciso, nuns casos, equívoco, em outros, e ineficaz, na maior parte das vezes. Um rótulo, mas nunca um conceito. A crítica errou, em primeiro lugar, por essa imprecisão. Em segundo, porque aceitou o jogo, caiu na dança. Sempre achei que a crítica seria a última trincheira, a última barricada antes do triunfo publicitário. Mas não: de uns tempos pra cá ela parou de se revoltar contra a publicidade. Após deixar de se incomodar, começou a achar que a publicidade não só não era tão má quanto se pensava, como ainda trazia coisas boas. E agora veio o pior: nem sabe mais distinguir o que é e o que não é publicidade. Perdeu o olhar. Responde de modo favorável, ou complacente, ou negligente. No caso da negligência, é assustador: simplesmente não consegue mais perceber o mundo se trocando por signo publicitário. Olha para um papel de parede e vê o mundo. E escreve sobre o papel de parede como se falasse do mundo. A publicidade e suas práticas mais hediondas se naturalizaram no cinema (brasileiro, mas não só). Nessa visão de cinema, o “criar” não é mais identificado a um trabalho dinâmico com a matéria; é um retrocesso simbólico, onde a idéia passeia livre, leve e solta – a idéia sobrevive à perda de vínculo com o pensamento e com o olhar. É o mar sendo substituído por “um grande azul de síntese”; o ator servindo de portfólio para o preparador de elenco. O filme sendo uma embalagem para uma idéia de filme. E essa idéia é sempre rasa, sempre retrógrada, não tem como ser de outro jeito.

No cinema brasileiro, 2008 foi um ano não muito diferente dos anteriores: ruim na média, porém salvo da apatia pelos cineastas de exceção (Bressane, Carlão, Mojica, Tonacci – tudo que se pôde ver de realmente criativo e brilhante veio exclusivamente de veteranos). Mas olhando para a recepção da crítica, constatando quais foram os filmes mais discutidos, Ensaio sobre a cegueira e Linha de Passe liderando com folga, a impressão que tenho é que está tudo bem, o cinema brasileiro está fazendo os filmes que os críticos pediram alguns anos atrás (ao menos é assim com Linha de Passe: o cinema que não julga personagens, fala dos problemas do Brasil pelo filtro justo da câmera afetiva e do final aberto), então eles estão satisfeitos. Como estrutura de produção, a publicidade já tinha vencido no país há pelo menos dez anos (salvo exceções, as mentalidades que regem os projetos, desde o orçamento à organização do set, são inteiramente derivadas da publicidade). Depois venceu também como estética. E agora, como se não bastasse, recebeu a última medalha que lhe faltava, a da crítica. Esse título conquistado pela publicidade significa que finalmente os filmes conseguiram que nós não os acusemos mais de parecerem publicitários. Eles pedem para que não sejam julgados e atendemos ao pedido.

Pois os dois líderes de holofotes em 2008 representam dois tipos antagônicos de publicidade; filmes em total sintonia com uma época pouco afeita ao espírito crítico, porém muitíssimo afeita à retórica e ao pensamento institucionalizado. De um lado, o excesso, o exagero, o esteta histriônico, a publicidade enérgica, que impõe a concatenação rápida de signos ululantes, um filme perfeito para quem gosta de “ler” filmes (Ensaio sobre a cegueira). Do outro, a retração, a afasia, a concha segura do olhar voluntarista, inofensivo, a publicidade bem intencionada, que parte da fórmula “o universal é o mais local possível” (Linha de Passe). Em ambos, o humanismo lúdico como válvula de escape.

A mise en scène como forma de inteligência, como linguagem unificada da percepção sensível e do conhecimento objetivo do mundo, essa mise en scène está em baixa por aqui.

Analogamente, na crítica, onde um mínimo de atrito se deveria produzir, encontra-se a complacência, o consensualismo, o olhar não-provocativo, confortado pelas imagens, consolado pelo fato de que filmes ainda existem e estes se levam a sério o suficiente para merecer um texto dedicado. O olhar que não cobra, não provoca, não afronta os filmes mesmo em face de sua mediocridade, esse olhar parece dizer: façam qualquer filme, bom ou ruim, consistente ou leviano, fascista ou humanista, mas me dêem o que escrever.

A crítica brasileira não ligou muito para o fato de que em Ensaio sobre a cegueira – cujas imagens estouradas constituem um efeito visual profundamente óbvio enquanto transposição da significação para a forma – faltou a Meirelles a desconfiança do bom artista, que hesita diante do caminho mais fácil (não confundir com o mais simples) e termina por rejeitá-lo, e sobrou-lhe a convicção do bom publicitário, que se regozija de suas idéias paquidérmicas, de seu modo de significação agressivo, descarado, que renuncia à criatividade sem crise de consciência, já que amparado pelo bom funcionamento das imagens. Os filmes, hoje em dia, precisam acima de tudo funcionar. O verbo invadiu os sets de filmagem e agora também a crítica: atrás da câmera ou na frente da tela, todos procuram a imagem que funciona. Eis porque a crítica não se incomodou com Blindness e no geral aprovou, pois reconheceu ali um bom discurso-através-de-imagens, uma boa transcrição visual do texto. Reconheceu um filme que funciona, e isso, cada vez mais, é o que lhe basta. Miséria da crítica.

Mas questionemos também o filme, sua estética, e não apenas sua recepção: desde quando a isquemia da forma é a melhor expressão de um mundo espiritualmente gangrenado? Será que tudo aquilo que regeu a obviedade estética de Ensaio sobre a cegueira era mesmo fruto de um pensamento sobre a forma, ou não passou de uma frivolidade, de uma falta de objetivos outros que não a excitação, o choque, o conteúdo leviano das mensagens? Houve quem enxergasse no filme – sem dúvida alguma tendo em mente o aval de Saramago – o protesto de uma alma nobre contra a corrupção moral de sua época. Partindo dessa perspectiva, e fingindo que Meirelles acertou no tom, concluiríamos que ele atingiu o terreno da sátira, gênero no qual os romanos, perante as vicissitudes de seu império, foram mestres. Ora, para conduzir a sátira ele precisaria dispor de uma sabedoria aguda, de uma zombaria elegante, de uma raiva sarcástica, ou seja, ele precisaria de tudo aquilo que falta a seu filme.

Houve também quem narrasse a experiência de assistir a Ensaio sobre a cegueira como de grande intensidade, sempre flertando com o desagradável das imagens. Essa mesma intensidade deve existir em uma propaganda de cartão de crédito, pois ontologicamente se trata da mesma coisa, e o que define em grande parte a natureza da experiência é o teor ontológico das imagens, para além de seus enunciados (que, de todo modo, seriam também os mesmos, as propagandas de cartão de crédito nada mostram senão um mundo igualmente degradado, cujo verniz de superfície nos é entregue sob a forma de mercadoria visual, apenas confundindo essa degradação com bem-estar social e financeiro).

Onde esteve a crítica nisso tudo? Não se pode dizer que esteve ausente. Pelo contrário: esteve, na maior parte das vezes, e num bom número de veículos, entregue a discussões (prolixas). Porque se o filme funciona, ele dá o que falar. E a crítica está menos preocupada em ver uma obra que a obrigue a pensar a forma e manifestar o gosto (essa ferramenta indispensável do crítico, ultimamente tratada como opcional e, não raro, afastada do “oficio”) do que em ter o que discutir. Quanto menos um filme sacudir sua posição de analista de discurso, quanto menos o impelir a reavaliar seus parâmetros, mais longe vai a discussão (nunca mais fundo), pois tende ao vazio, e o que tende ao vazio dura indeterminadamente. Às vezes me ocorre, lendo boa parte dos textos e dos debates, que os críticos de cinema no Brasil estão cada vez mais parecidos com os comentaristas de futebol: analisam os jogos em repetitivas e enfadonhas mesas redondas, mas não arriscam dizer para que time torcem. Em teoria, isso seria uma espécie de profissionalismo, de maturidade, uma certa imparcialidade sóbria. Na prática, isso representa o esvaziamento do espaço crítico e a iminência de um estado acrítico. Calar o juízo estético e gerar infinitas análises, debates, opiniões; viver em paz mesmo com os filmes mais medíocres, ou mais publicitários; abandonar a provocação, o rigor; tornar-se imune a gostos ou desgostos profundos: tudo isso é no mínimo muito perigoso, se quisermos manter viva não uma postura intelectual dentre outras, mas uma postura crítica.

No limite, os especialistas estariam procurando nos filmes não mais a beleza, as emoções ou o sentido geral da obra. Eles estariam procurando compreender o que o diretor está dizendo – sentindo-se até mais generosos ao fazê-lo, mas essa generosidade é traiçoeira e num segundo momento se revela o disfarce predileto da complacência –, captar a mensagem (e, através disso, cultuar sua própria sensibilidade, sua percepção, sua capacidade de articulação, em suma, sua “personalidade crítica”), pescar as idéias que motivaram as imagens fora das imagens (fugindo, assim, da evidência do filme). Procurando o projeto, o produto, não a obra. Derrota da mise en scène, triunfo dos efeitos de enunciação – publicidade de novo.

O próprio personagem não importa mais. Importa o autor, o olhar do autor (Godard há mais de dez anos já tinha mandado uma carta-bricolage para a Cahiers du Cinéma falando dos efeitos nefastos da procura constante pelo autor). Parece inconcebível, mas ninguém se importa mais com o fato de alguns filmes mostrarem personagens desinteressantes, em ações desinteressantes, nulas, vazias, estúpidas. Os críticos estão preocupados em saber se o olhar do diretor é justo ou não, carinhoso ou não, articula um bom discurso ou não, etc. A perda de conexão com o personagem denota a perda de conexão com o mundo dos filmes. Não interessa mais o mundo, interessa a mensagem e seu dono (seu proprietário). Morte da fascinação.

O cativante da ação de um personagem, cabe aqui expor, não está necessariamente no seu potencial de espetáculo, nem na sua qualidade de intriga. Em alguns dos melhores filmes de John Ford, por exemplo, os personagens passam 90% do tempo sem fazer nada de intrigante. Só que alguma coisa acontece quando vemos John Wayne pilotando seu jipe em Donovan’s Reef, ou falando sobre os males de mascar tabaco em Legião Invencível, ou comparando sua altura com a do seu filho em Rio Grande. Alguma coisa acontece porque estamos vendo um mundo, e isso nos fascina. Estamos vendo um gesto e um espaço, e a mise en scène desse gesto nesse espaço.

Nos filmes brasileiros mais debatidos em 2008, faltou a presença de um mundo. E que tipo de mise en scène se faz sem um mundo? Não se faz mise en scène, se faz publicidade. É a enésima manifestação (que, como uma alergia, vem pior a cada vez que se manifesta) de tudo aquilo que Godard foi o primeiro a constatar com melancolia (cf. Duas ou três coisas que eu sei dela: redução violenta da imagem em função da superfície, o mundo sendo achatado pelos signos da publicidade, e o cinema à procura do arrière-monde que essas imagens-clichê escondem, negam, apagam terrivelmente – mas Godard é astuto o suficiente para, como observou Bonitzer, encontrar a via-láctea numa xícara de café expresso).

O problema de Linha de Passe, portanto, não é a ausência de intriga ou as ações “pequenas” de seus personagens, mas é um fator anterior, um mal difícil de curar, desencadeado no momento em que seus eventos se tornam simulacros de significações (como, aliás, já ocorria desde Central do Brasil), em que seu mundo se troca por um painel publicitário que mostra São Paulo pela ótica do marketing social: campanha eleitoral (o cineasta agindo como o candidato que vai lá na periferia, abraça os pobres, passa a mão na cabeça de todos, posa de bom moço, depois volta pro lugar confortável de onde veio e do qual nunca saiu, a vida segue como ao final de uma eleição que deixou tudo em suspenso, por mais que se tenham alimentado expectativas, crenças) e campanha de conscientização (lembrar daquela asquerosa câmera subjetiva do rapaz que quer ser jogador de futebol “fritando” na cena da festa, comparável às piores vinhetas antidroga da MTV, ou mesmo do ministério da saúde).

Quando penso na gênese de filmes como Linha de Passe e Ensaio sobre a cegueira, imagino uma sala fechada, com pessoas discutindo uma idéia que expulsa para longe de si toda exterioridade, em favor de uma operação puramente abstrata, que não encontra satisfação senão em si mesma. Essa cena imaginária seria apenas mais um capítulo da “retomada”, não fosse o dado novo, o da crítica que quer debater, mas não quer criticar. A diferença entre uma atividade e outra, assim como a diferença entre o cinema e a publicidade, é o que precisa urgentemente ser resgatado.

Feliz 2009 e Filmes de 2008

Copiado de um e-mail recebido em 31 de dezembro de 2005, destas pessoas aqui.

Pessoas!

Quase qualquer coisa que se diga ou deseje nessa época corre o risco de soar lugar comum, de ser óbvio, de parecer pouco ou meramente protocolar. Corra-se o risco.

Existe uma quantidade expressiva de pessoas para quem o Natal é desprovido de sentido religioso e, portanto, está muito mais associado aos propósitos da sociedade consumista na qual estamos inevitavelmente mergulhados: movimentação do mercado. Não pensem nesse comentário apenas como uma crítica ácida. A movimentação do mercado pode ser bem utilizada como festividade e como meio para distribuir, na forma de presentes – grandes e caros ou simples, não importa – afeto às pessoas queridas (mas vale frisar que o gasto não basta; há o tempo!).

Não deveria ser assim? Este não é o ideal? Certamente cada um tem o seu próprio conceito de ideal. E para quê toda essa lenga-lenga? É apenas porque eu não enviei mensagem de natal a ninguém e não estou me desculpando, apenas embasando. Foi deliberado e planejado porque prefiro imensamente o significado e efeito da comemoração do Ano Novo.

Sim, todos sabemos que o primeiro dia do ano que começa não difere em absolutamente nada do dia 31 de dezembro. Mas dentro de nós pode ser totalmente outra coisa. O ser humano precisa de símbolos e ritos – isso é fato – e eles podem cumprir um papel importante na nossa saúde emocional e ser um bom motor para mudar o mundo à nossa volta! Enfim: gosto do ano novo! E comemoro-o a rigor desejando com veemência que todas as pessoas de quem gosto possam usufruir de uma bela sensação nessa data.

De mensagem fica mesmo a máxima sempre válida do Walter Franco: “Tudo é uma questão de manter / a mente quieta / a espinha ereta / e o coração tranquilo”. Meta nada simples de se atingir, mas válida como base para qualquer outra coisa que se queira na vida. E que venha 2006(9) e nos encontre fortes e contentes, para que sejamos inteiros e maiores a cada passo.

Laura Paz

Assino embaixo e por todos os lados (como diria o Inagaki).

-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-

Assisti poucos filmes em 2009, mas foram até demais.

Acho que nunca vi tantos filmes regulares como em 2008. Pouca coisa era agressivamente ruim e quase nada era indiscutivelmente bom. Mas acho que dá para salvar 4,5 filmes. Podemos começar por O Segredo do Grão, de Abdel Kechiche, um filme de visceral realismo que tem como tema a singela inauguração de um restaurante dentro de um barco numa cidade portuária da França. Trata do choque cultural entre a comunidade árabe e a francesa, mas é universal ao descrever detalhadamente conflitos familiares. A câmara móvel de Kechiche é apenas aparentada dos filmes do Dogma 95, pois ela não serve para demonstrar movimento ou despojamento, estando mais a serviço da busca de ângulos oiginais, muitas vezes aproximando-se dos atores como se quisesse penetrá-los ou acariciá-los. Outro grande filme foi o romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, Palma de Ouro de 2007. Ele conta a história de duas colegas de quarto obrigadas a uma verdadeira odisséia para que uma delas pudesse realizar um aborto ilegal na Romênia de Ceaucescu. É um filme sem a menor preocupação moral ou religiosa. Descreve como as duas fizeram para livrar-se de uma incomodação. Gabita, a grávida, deixa a operacionalização do aborto para Otilia, sua amiga. Gabita parece indiferente enquanto Otilia faz contatos com aborteiros, porteiros — todos pequenos ditadores cheios de mistérios — e depois trata de livrar-se do corpo do inquilino da amiga. Estes dois filmes têm algo em comum: ambos têm longas cenas que causam enorme angústia ao espectador.

E sim, os dois filmes dos irmãos Coen foram excelentes. Em No Country for old men (Este país não é para velhos em Portugal e um título qualquer no Brasil), a acidez dos Coen cai adequadamente para narrar com frieza uma história amalucada e violenta. Meio western, meio thriller, quase sem trilha sonora e com cenas antológicas, é um grande filme. Já Burn after reading (surpreendentemente Queime depois de ler no Brasil) tem a paranóia americana como alvo. É um filme que conta muita coisa em círculos, não chega a lugar algum e nem quer, mas nos arranca boas risadas. A cena de George Clooney em pânico por motivos que o espectador sabe serem falsos vai para minha galeria pessoal de momentos inesquecíveis.

Disse 4,5 filmes? Pois é, o 0,5 é do excelente Vicky Cristina Barcelona de Woody Allen.

E o Prêmio de MAIOR MICO DE 2009 vai para o discursivo homem de cuecas: Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight).

Abaixo, a lista completa:

2008/56 – Ainda Orangotangos – Ainda Orangotangos – 2007 – Brasil – Gustavo Spolidoro – 2
2008/55 – O Segredo do Grão – La Graine et le Mulet – 2007 – França – Abdel Kechiche – 5
2008/54 – Luz Silenciosa – Sellet Licht – 2007 – México / França / Alemanha / Holanda – Carlos Reygadas – 3
2008/53 – 007 – Quantum of solace – Quantum of solace – 2008 – EUA / Inglaterra – Marc Forster – 2
2008/52 – Queime depois de ler – Burn After Reading – 2008 – EUA – Ethan e Joel Cohen – 5
2008/51 – Lemon Tree – Etz Limon – 2008 – Israel / Alemanha / França – Eran Riklis – 4
2008/50 – Caos calmo – Caos Calmo – 2008 – Inglaterra / Itália – Antonio Luigi Grimaldi – 3
2008/49 – Vicky Cristina Barcelona – Vicky Cristina Barcelona – 2008 – Espanha / EUA – Woody Allen – 5
2008/48 – Estômago – Estômago – 2007 – Brasil / Itália – Marcos Jorge – 3
2008/47 – Fatal – Elegy – 2008 – Estados Unidos – Isabel Coixet – 5
2008/46 – O pequeno tenente – Le petit lieutenant – 2005 – França – Xavier Beauvois – 3
2008/45 – Ensaio sobre a cegueira – Blindness – 2008 – Canadá / Brasil / Japão – Fernando Meirelles – 3
2008/44 – Reflexos da Inocência – Flashbacks of a fool – 2008 – Inglaterra – Baille Walsh – 4
2008/43 – No Such Thing – No Such Thing – 2001 – EUA – Hal Hartley – 5
2008/42 – Quem disse que é fácil? – ¿Quién dice que es fácil? – 2007 – Argentina / Espanha – Juan Taratuto – 3
2008/41 – Ao Entardecer – Evening – 2007 – EUA / Alemanha – Lajos Koltai – 4
2008/40 – Quando estou amando – Quand j`étais chanteur – 2006 – França – Xavier Giannoli – 3
2008/39 – A Questão Humana – La Question Humaine – 2007 – França – Nicolas Klotz – 2
2008/38 – O Balão Vermelho / O Cavalo Branco – Le Balon Rouge / Crin Blanc: Le Cheval Sauvage – 1956 / 1953 – França – Albert Lamorisse – 4
2008/37 – Meu irmão é filho único – Mio fratello è figlio único – 2007 – Itália – Daniele Luchetti – 4
2008/36 – Amar… Não tem preço – Hors de prix – 2008 – França – Pierre Salvadori – 1
2008/35 – Batman – O Cavaleiro das Trevas – The Dark Knight – 2008 – EUA – Christopher Nolan – 1
2008/34 – Do Outro Lado – Auf der anderen Seite – 2006 – Alemanha / Turquia – Faith Akin – 5
2008/33 – Antes que o diabo saiba que você está morto – Before the devil knows you´re dead – 2007 – EUA – Sydney Lumet – 4
2008/32 – O Banheiro do Papa – El Baño del Papa – 2007 – Uruguai / Brasil / França – Enrique Fernández e César Charlone – 4
2008/31 – O Labirinto do Fauno – El Laberinto del Fauno – 2006 – Espanha / EUA / México – Guillermo del Toro – 3
2008/30 – Jornada da Alma – Prendimi L`Anima – 2003 – França / Itália – Roberto Faenza – 3
2008/29 – Bella – Bella – 2006 – México / EUA – Alejandro Gomez Monteverde – 3
2008/28 – Control – Control – 2007 – Inglaterra – Anton Corbijn – 4
2008/27 – Longe dela – Away from her – 2006 – Canadá – Sarah Polley – 3
2008/26 – A Outra – The Other Boleyn Girl – 2008 – Grã-Bretanha – Justin Chadwick – 2
2008/25 – Sex and the City – Sex and the City – 2008 – EUA – Michael Patrick King – 3
2008/24 – Bloom – Bloom – 2003 – Irlanda – Sean Walsh – 3
2008/23 – Confiança – Trust – 1990 – EUA / Inglaterra – Hal Hartley – 4
2008/22 – A Vida é um Milagre – Zivot je cudo – 2004 – Bósnia / França – Emir Kusturica – 5
2008/21 – A Casa de Alice – A Casa de Alice – 2007 – Brasil – Chico Teixeira – 3
2008/20 – Uma Canção de Amor para Bobby Long – A Love Song for Bobby Long – 2004 – EUA – Shainee Gabel – 3
2008/19 – Margot e o casamento – Margot at the Wedding – 2007 – EUA – Noah Baumbach – 2
2008/18 – Os Amantes – Les Amants – 1958 – França – Louis Malle – 5
2008/17 – 4 meses, 3 semanas e 2 dias – 4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile – 2007 – Romênia – Cristian Mungiu – 5
2008/16 – Tomates Verdes Fritos – Fried Green Tomatoes – 1991 – EUA / Inglaterra – Jon Avnet – 3
2008/15 – Em Paris – Dans Paris – 2006 – França – Christophe Honoré – 4
2008/14 – A Era da Inocência – L`Âge de Ténèbres – 2007 – Canadá – Denys Arcand – 5
2008/13 – O Sonho de Cassandra – Cassandra`s Dream – 2007 – EUA / Inglaterra / França – Woody Allen – 3
2008/12 – Um Beijo Roubado – My Blueberry Nignts – 2007 – China / França / EUA – Kar Wai Wong – 2
2008/11 – Desejo e Reparação – Atonement – 2007 – Inglaterra – Joe Wright – 4
2008/10 – Três Mulheres – Three Women – 1977 – EUA – Robert Altman – 4
2008/9 – M.A.S.H. – M.A.S.H. – 1970 – EUA – Robert Altman – 4
2008/8 – O Caçador de Pipas – The Kite Runner – 2007 – EUA – Marc Forster – 1
2008/7 – Mutum – Mutum – 2007 – Brasil – Sandra Kogut – 5
2008/6 – Maria – Maria – 2005 – EUA / França / Itália – Abel Ferrara – 2
2008/5 – Onde os fracos não têm vez – No Country for Old Men – 2007 – EUA – Ethan e Joel Cohen – 5
2008/4 – Juno – Juno – 2007 – EUA – Jason Reitman – 3
2008/3 – Meu nome não é Johnny – Meu nome não é Johnny – 2008 – Brasil – Mauro Lima – 2
2008/2 – A Desconhecida – La Sconosciuta – 2006 – França – Giuseppe Tornatore – 2
2008/1 – Coisas que perdemos pelo caminho – Things we lost in the fire – 2007 – EUA / Grã-Bretanha – Susanne Blier – 3

Legenda para as notas:
5 – Não deixe de ver
4 – Muito bom
3 – Vale a tentativa
2 – Medíocre
1 – Uma bomba
0 – Além de bomba, mal-intencionado

Vá e veja, a obra prima absoluta dos filmes de guerra

Finalmente, Vá e Veja ganhou edição nacional em DVD. Filme que nunca foi apresentado em circuito comercial no Brasil (*), tornou-se objeto de culto de uns poucos quando de seu lançamento em VHS, na década de 80. Meu amigo S. — o mesmo deste post – disse-me que os três maiores filmes de guerra já realizados teriam sido Stalingrado, de Joseph Vilsmaier; Glória feita de sangue, de Stanley Kubrick, e Vá e veja, de Elem Klimov (1933-2003). Tenho os três em casa, vi muitos outros e creio que a escolha de S. não é apenas muito boa como inclui o maior filme de guerra de todos os tempos: o espantoso Vá e Veja.

Meu exemplar foi batalhadíssimo. Enfrentei a doída conversão de um VHS milenar para DVD no único intuito de mostrá-lo aos amigos. Quando passei o filme para eles, voltei a constatar o efeito que teve sobre mim ao vê-lo pela primeira vez. Alguns diziam: “é muito bom, é muito, mas muito forte, nunca tinha visto algo assim”. Tal efeito, meus amigos, só se consegue com uma poética muito especial, só se consegue com a narrativa de uma história focada num homem comum e que logra chegar a tal grau de realismo que o filme gruda-se a ele, ao personagem principal, um adolescente. Quando estoura uma bomba muito perto de Fliora, passamos ouvindo por momentos todos os sons distorcidos, como se estivéssemos igualmente ensurdecidos, afetados pelo estouro. Se fosse um romance, seria escrito na primeira pessoa do singular.

O filme trata da história de Fliora, o adolescente que pega o rifle da família a fim de juntar-se aos guerrilheiros soviéticos para expulsar o que sobrava do exército alemão no período final da guerra. O problema do filme é que o ódio dos soviéticos é respondido por um estranho inimigo que não tem nada a perder e que está de qualquer forma retirando-se, só que esta retirada é a de quem está desesperado por voltar a um país que não é mais aquele que deixou mas outro, totalmente destruído. Ou, pior, sabem que retornam para a morte ou para a prisão, ou seja, é uma retirada para o nada. E os nazistas vão torturando e matando o que podem à medida que vão embora de uma União Soviética a qual dedicam todo seu rancor, pois foi ela, afinal, quem lhes ganhou a guerra. Fliora, por seu lado, também perdeu tudo: familiares, amigos, juventude e chão. Esta espiral de ódio respondido por mais ódio é tal forma represada, a loucura é de tal forma armazenada por Klímov que o final do filme é a maior catarse cinematográfica que já vi e senti.

É um filme onde a loucura e a mortandade da guerra é mostrada de forma absolutamente artística e que, paradoxalmente, resulta clara, sem estilizações. Todos perdem neste épico sem heróis e inteiramente destituído de triunfalismo. Toda a arte de Klímov está trabalhando para o maior impacto sobre o espectador. Guerra é loucura, violência e raiva. O rosto do adolescente Fliora ao final do filme — um velho prematuro — é o mais inadequado rosto de vencedor que o cinema já mostrou. E o fato de apresentar documentários nazistas de trás para frente, mostrando — novamente unido ao personagem principal — toda a vontade de Fliora de desfazer a guerra e seu sofrimento é o achado final de Vá e Veja. Espero que agora o filme saia de seu restrito círculo de admiradores e seja finalmente visto, como seu nome recomenda.

Abaixo, todo o filme, mas gostaria de referir-me àquela parte que começa a 1h05min30seg, aos oito minutos finais. Tudo já aconteceu e quase nada é dito. Vale pelo significado das imagens. A música da primeira parte é, naturalmente, de Wagner, misturada a hinos nazistas e discursos; a segunda tem como trilha o Réquiem de Mozart. No ano do lançamento, Vá e Veja teve cerca de 29 milhões de espectadores na ex-União Soviética (como comparação, Titanic, o recordista do mercado brasileiro, teve 16,3 milhões). Portanto, sua relevância não é somente artística.

Vá e Veja (Idi i Smotri/Come and See URSS 1985) de Elem Klimov com Aleksei Kavchenko:

O filme ‘Vá e Veja’ é um dos mais duros e sensoriais retratos da Guerra. Ela vem pelo olhos de um menino camponês de 12 anos, convocado para a batalha entre a resistência e os nazistas pelo domínio da Bielorrússia. É o fim da Guerra, os alemães estão voltando para um país que não há mais e vão destruindo o que lhes passa pela frente. O ódio é incontrolável. Poucas vezes a Guerra no cinema foi retratada com imagens e sons tão impressionantes. Um verdadeiro filme de horror, onde toda ameaça pode surgir a qualquer momento. O roteiro são memórias da infância do próprio roteirista Ales Adamovich, um sobrevivente. ‘Vá e Veja’ pouco faz uso de imagens explícitas, mas a forma como Elem Klímov usa a câmera causa um dano emocional sem paralelos no espectador. (Aquela cena do retorno à aldeia natal onde o espectador vê o que o personagem ainda não viu… O que é aquilo?). É um pesadelo entre o surreal e o onírico, com um impressionante senso de SOM, ESPAÇO e ATMOSFERA.
É o pai dos filmes de guerra. Desde o começo, quando o filme “fica surdo” no momento em que uma bomba explode ao lado do menino, até os minutos finais. É a Sinfonia de Klímov.

(*) Informação contestada provavelmente com razão pela Helen nos comentários.