O Casamento de Rachel (Rachel Getting Married), de Jonathan Demme (2008)

O Casamento de Rachel (Rachel Getting Married), de Jonathan Demme (2008)

Por Tim Brayton.
Traduzido por Milton Ribeiro

Cada família infeliz é infeliz à sua maneira

A curiosa carreira de Jonathan Demme passou de um thriller espalhafatoso sobre mulheres na prisão a comédias peculiares e pânicas. Também criou o vencedor do Oscar O Silêncio dos Inocentes, documentários de esquerda e remakes de grande orçamento de Hollywood. A única coisa que a gente pode dizer é que há uma probabilidade incomumente alta de Demmer ser, no mínimo, uma pessoa interessante. “Interessante” certamente descreve Rachel Getting Married. É um excelente filme, dadas as suas modestas ambições. Este é um ótimo exemplo de um “pequeno” filme, tanto na história quanto na estética; é também um lembrete de que a pequenez não impede um filme de tocar a grandeza.

A história não se centra realmente em Rachel (Rosemarie DeWitt), mas em sua irmã Kym (Anne Hathaway). Liberada por alguns dias da reabilitação para ir ao casamento de sua irmã, a necessidade muitas vezes transparente de Kym de ser o centro das atenções ameaça explodir a já delicada harmonia familiar entre sua irmã ciumenta e desdenhosa e seu pai irritantemente amoroso, Paul (Bill Irwin), que parece quase teimosamente inconsciente do crescente atrito entre suas duas filhas. Um irmãozinho morto e uma mãe e ex-esposa emocionalmente ausente (Debra Winger) apenas tornam uma situação difícil ainda mais insuportável. Superficialmente, é muito parecido com Margot at the Wedding, de Noah Baumbach, embora, se você tirar o cenário do casamento e os detalhes de que o drama gira em torno de duas irmãs, não há realmente nada que conecte os dois filmes mais do que qualquer par aleatório de filmes sobre a dinâmica familiar. Enquanto Margot combinava uma linguagem visual fria e precisa com uma abordagem francamente clínica para o estudo dos personagens, Rachel é um pouco mais confuso e infinitamente mais caloroso — se Baumbach meio que odeia todos os seus personagens, Demme e a roteirista Jenny Lumet os amam descaradamente, embora praticamente todos os personagens principais tenham pelo menos uma cena em que você realmente deseja chegar à tela e estrangulá-los.

Basicamente, Rachel Getting Married é um daqueles filmes generosos que aparecem apenas uma ou duas vezes por ano, onde os cineastas espalham um monte de personagens profundamente imperfeitos na tela e, em seguida, através de uma série suave de cutucadas aqui e ali, nos guiam para o entendimento que sejam quais forem suas falhas, ninguém realmente quer ser o vilão. Consequentemente, o filme dedica tempo para nos mostrar os personagens em momentos de relativa paz e cortesia, para cercá-los de um grupo ricamente detalhado de figuras que só precisam de uma ou duas aparições diante das câmeras para parecerem boas pessoas. Demme e Lumet não estão tentando fazer um psicodrama — embora a representação do ressentimento familiar latente e da raiva no filme seja muitas vezes bastante brutal, salvando Rachel de qualquer coisa parecida de um sentimentalismo pegajoso –, mas sim uma celebração dos momentos felizes da vida. É um algo fundamental para o filme, resgatando-o do banal “irmãs querem se amar porque são irmãs”. Como sabemos o que elas estão buscando, é ainda mais doloroso que raramente o consigam.

Por passar tanto tempo no mundo fora do conflito principal, o filme se deixa aberto a críticas fáceis e ocasionalmente merecidas de ser um pouco fora de foco; e como a comunidade idealizada de Demme e Lumet é tão encantadoramente idiossincrática, ela também se expõe a acusações de estranheza injustificada. Não tenho muito prazer em admitir que ambas as reclamações, embora às vezes irrelevantes, tenham muita validade. Às vezes, os dois problemas surgem ao mesmo tempo: um dos pontos baixos do filme é uma cena prolongada em que o noivo Sydney (Tunde Adebimpe), tem uma disputa bem-humorada com Paul sobre quem consegue carregar a máquina de lavar louça com mais rapidez e eficiência, com vários espectadores bem-humorados os animando. É totalmente tedioso e, em última análise, nada mais que uma maneira torturada de trazer à tona os sentimentos não resolvidos de Paul em relação ao filho morto.

Essencialmente, tudo que está errado e tudo que está certo sobre Rachel Getting Married tem algo a ver com Demme se libertando para perseguir seus interesses. Seu conhecido amor pela música está na maior parte do filme, na forma com que os músicos vagam nos dias anteriores ao casamento, ensaiando ou apenas proporcionando entretenimento para os convidados (um deles é Brooklyn Demme, filho do diretor). A maneira como ele deixa muitas das cenas se desenrolarem no que parece ser um diálogo improvisado é outra (às vezes isso funciona extremamente bem, às vezes apenas testa a paciência, e uma vez — na longa cena do jantar de ensaio, que consiste principalmente em uma série de brindes — são as duas coisas ao mesmo tempo). Claro, Demme tem uma longa história como diretor de ator, e o espaço que ele dá ao elenco para encontrar seus personagens é sem dúvida uma coisa boa, mesmo que ocasionalmente signifique que o filme caia em momentos de “ator”, nos quais nada acontece. Nem avança a história, nem cresce o teor emocional do filme.

Sobre esses atores: é claro, Hathaway ganhou a maior parte dos elogios ao filme, e fico feliz em dizer que ela é fantástica aqui. Melhor do que eu teria imaginado ser possível. De qualquer forma, fiquei ainda mais impressionado com seus colegas de elenco, que foram obrigados a expressar o que seus personagens estavam escondendo, do que com Hathaway, cuja personagem exterioriza tudo o que sente. DeWitt, em um papel quase grande o suficiente para ser considerada uma co-protagonista, tem um nervosismo forte que é um contrapeso perfeito para a bagunça de Kym, enquanto Irwin faz um trabalho fantástico ao esconder os sentimentos de seu personagem por trás de um véu de bobagem e alegria falsa. Mas o destaque é absolutamente Winger, que faz uma atuação de sutileza indescritível; o suficiente para que seja apenas em seus momentos finais na tela (em um papel que não pode somar dez minutos, no total) que entendemos completamente que tipo de mulher monstruosa era essa. Em um filme que se contenta principalmente em deixar tudo acontecer, Winger é a grande exceção, uma presença misteriosa e não um ser humano, o único ponto em que o filme reconhece que existem verdadeiros pontos escuros que o amor e o companheirismo realmente não conseguem penetrar.

Sobre a estética visual do filme pouco falei; isso ocorre porque não há muito a dizer. É filmado em um estilo violentamente despojado que sugere o movimento Dogma 95: praticamente sem iluminação fora do palco, absolutamente nenhuma música além da banda na tela, e tudo feito com câmeras digitais portáteis. Até agora, essa estética de falso documentário foi infinitamente além do mero clichê, mas estou surpreso que realmente funcione em Rachel Getting Married, o primeiro filme portátil em muitos anos que não me irritou. Acho que é porque o estilo minimalista se encaixa muito bem no cenário doméstico do filme; parece um filme caseiro dos dias imediatamente anteriores ao casamento. É uma coisa banal de se dizer, deixe-me tentar novamente: a linguagem visual do filme é tão básica que diminui as defesas do público, tanto quanto a estrutura narrativa extremamente simples faz. Assim, o filme consegue se contorcer sem ser bombástico, e sua eficácia é o resultado de sua simplicidade. Parece muito modesto para ter qualquer efeito, e só horas depois percebemos o quão profundamente o filme foi capaz de penetrar em nossas mentes.

O Casamento de Rachel: “Eu não quero um deus que possa perdoar o que fiz”

O Casamento de Rachel: “Eu não quero um deus que possa perdoar o que fiz”

Jonathan Demme, falecido hoje, é o grande autor de O Silêncio dos Inocentes, Totalmente Selvagem, De caso com a Máfia e Filadélfia, mas nada do que fez, em minha opinião, compara-se com O Casamento de Rachel. Uma grande obra de arte.

A cena final de 'O Silêncio dos Inocentes' | Clique para ampliar
O final de ‘O Silêncio dos Inocentes’ | Clique para ampliar

Curiosidade: Jonathan Demme usou a frase “A luta continua” para encerrar quatro de seus filmes, entre eles os conhecidos Filadélfia, de 1993, e O Silêncio dos Inocentes, de 1991. “A luta continua” foi um grito de guerra usado pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) durante a guerra que levou à independência do país, em 1975. A primeira ocorrência da frase parece ser um discurso de Eduardo Mondlane, líder revolucionário e ideólogo da nação moçambicana, em 1967: “Não há antagonismo entre as realidades da existência de vários grupos étnicos e a Unidade Nacional. Nós lutamos juntos, e juntos reconstruímos e recriamos o nosso país, produzindo uma nova realidade – um Novo Moçambique, Unido e Livre. A luta continua!”

O final de "De Caso com a Máfia'
O final de “De Caso com a Máfia’

.oOo.

A personagem Kym (Anne Hathaway) parece carregar todos os pecados do mundo em O casamento de Rachel, imenso filme do diretor Jonathan Demme. Sim, o mesmo Demme de O Silêncio dos Inocentes, o mesmo do Hannibal Lecter inaugural, passou a investir num cinema menor, de caráter autoral e finalmente acertou a mão neste pequeno e originalíssimo filme.

O filme inicia quando o pai de Kym a busca na clínica de reabilitação para drogados — onde está “limpa” há nove meses — a fim de que ela vá ao casamento de sua irmã Rachel. Quando chegam na casa da família, onde a festa será realizada, Rachel começa a sentir a pressão. O pai é extremamente solícito, solícito ao exagero. Oferece-lhe tudo, comida, carona, é todo atenção para com Kym, a filha querida que retorna à casa. Mas é óbvio que ele está apenas exercendo controle sobre ela, informando-se onde está, oferecendo carona para que ela não dirija em hipótese alguma, observando o que consome. Quando Kym encontra-se com a irmã, fica sabendo que não é mais a “madrinha principal” do casamento. Rachel a substituíra por uma amiga. Explode o primeiro desentendimento e ela consegue voltar ao posto perdido. Então Demme estabelece algumas regras.

O diretor tem personagens muito claros e bem construídos, tem o conflito montado; enfim, tem um esqueleto, e escolhe preenchê-lo por uma série de cenas improvisadas. Por exemplo, os discursos dos personagens no ensaio para a festa são realmente atrapalhados, vivos, naturais — um ator chega ao ponto de encarar a câmera –, baseados naquilo que foi definido para cada um deles. É um grande momento do filme. Outra é a esplêndida cena do ensaio dos músicos, onde os atores parecem, e estão, jogados na frente da câmera, divertindo-se a valer dentro de seus personagens. A disputa entre o genro e o sogro sobre quem consegue colocar mais pratos na lavadora de louça é outro momento brilhante de Demme, que capta a brincadeira de modo inesquecível.

O mesmo vale para as reuniões do grupo de reabilitação de drogados. Na primeira vez, Kym não fala nada; na segunda, expõe que está há nove meses sem drogas — é aplaudida — e conta sua história: o vício, o descontrole e o acidente de carro que causara, matando o irmão menor. As pessoas ficam abismadas com o relato. É neste momento que ela diz a frase que uso como título deste post. O controle que ela sofre é correto? Sim e não. Afinal, ela está limpa. Está conseguindo controlar a si mesma.

Mas a família segue pressionando. Rachel fica histérica porque o discurso de Kym no ensaio foi autocentrado e pontuado de ironias e pedidos de desculpas. O pai (Bill Irwin em atuação perfeita, sempre um passo atrás da intenção dos outros) tenta acalmar a situação, mas Rachel está em pleno acerto de contas e, em meio a ele, surpreende ao estabelecer nova vantagem sobre a irmã problemática: revela estar grávida. O pai será avô, fica enternecido; Kym fica furiosa, com razão. Todo o filme gira sobre a incapacidade de Kym atentar efetivamente ao que ocorre a seu redor, ela passa pelas coisas e não interfere, pois está inteiramente voltada para dentro de si mesma, no trabalho de Sísifo de “viver mais um dia” sem usar drogas. O que todos querem que ela consiga é, paradoxalmente, combatido pelos familiares. O papel de Kym é complicadíssimo. E Anne Hathaway é digna dele. Porém o time de atores é parelho. É impressionante a cena em que Rachel (a excelente Rosemarie DeWitt) negocia os lugares na mesa. Ela deseja ver Kym longe, em outra mesa. O rosto de Rachel, ao defender sua formação de mesa é exatamente o rosto que vi numa mulher quando falava sobre a parte monetária de sua separação: com o mesmo esgar, o mesmo sorriso cristalizado com olhos sérios, Rachel naquele momento é pura maldade e atenção. E Kym reage. Ou seja, o filme é um abrir feridas sem fim, quando tudo o que Kym deseja é fechá-las.

E é para entender o que lhe aconteceu que ela visita a mãe (Debra Winger). Ela quer fazer A Pergunta: por que foi deixada cuidando do irmão menor Ethan quando a mãe a sabia uma louca 100% drogada? Como resposta, recebe um tapa na cara de significado muito claro: “fique com sua culpa e seus problemas, não piore minha vida”.

O que impressiona no filme é que as cenas improvisadas empurram a narrativa, alterando-a e enriquecendo a realidade de forma arrebatadora. Várias vezes Anne Hathaway aparece em sua imensa solidão. Num determinado momento ela deseja dançar, mas dá a impressão que tem medo de soltar-se. Começa e para, recomeça e vai fazer outra coisa. A presença de músicos ensaiando e improvisando dá a senha e a dimensão da enorme (e perigosa) liberdade dada aos atores.

O filme é finalizado com coerência: o pai aparece com uma conviva e a apresenta a Kym, que ouve uma proposta de emprego. Ela não recusa, mas no outro dia retorna à clínica. Pois se Kym sabe que não quer um deus que possa perdoar seus atos, sabe também que ainda não é possível viver com sua família e amigos.

Demme não nega que suas maiores influências para a realização de O casamento de Rachel foram Robert Altman e o pessoal do Dogma 95. É flagrante. Eu acrescentaria que há um perfume, uma música, um ritmo de Tchékhov neste grande filme sem solução.

Jonathan Demme (1944-2017)
Jonathan Demme (1944-2017)

Os Melhores Filmes de 2009

Dos 57 filmes que vi NO CINEMA em 2009 — conforme anoto em Últimos Filmes Assistidos (acima) — dei nota máxima apenas a 6:

2009/18 – Violência Gratuita – Funny Games – 2007 – EUA – Michael Haneke – 5
2009/29 – O Casamento de Rachel – Rachel Getting Married – 2008 – EUA – Jonathan Demme – 5
2009/35 – Stella – Stella – 2008 – França – Sylvie Verheyde – 5
2009/41 – O Grupo Baader Meinhof – Der Baader Meinhof Komplex – 2008 – Alemanha / França / República Tcheca – Uli Edel – 5
2009/49 – Anticristo – Antichrist – 2009 – Alemanha / Dinamarca / França / Itália / Suécia – Lars Von Trier – 5
2009/57 – Partir – Partir – 2009 – França – Catherine Corsini – 5

E, destes, dois são um pouco maiores que os quatro restantes. Como ninguém está me obrigando a escolher um deles como “o melhor do ano”, aqui vão meus dois melhores de 2009:

Foram filmes que apresentaram efetivas novidades, seja de linguagem (Rachel) ou temática (Anticristo). Também foram os únicos que me motivaram a sentar e escrever a respeito. Em 5 de maio, escrevi Eu não quero um deus que possa perdoar o que fiz, resenha insuficiente sobre o grande filme que é O Casamento de Rachel e, em 13 de outubro, voltei a demonstrar minha incompetência no post Anticristo, de Lars von Trier, com a diferença de que, no último, fui salvo pelos comentaristas.

Curiosamente, O Casamento de Rachel foi recebido friamente ou ignorado pelas pessoas e pela crítica, fato que me deixou desconcertado, enquanto que com Anticristo ocorreu justamente o contrário, mas algumas pessoas o viram de forma tão periférica ou tola que voltei a ficar desconcertado. Houve exceções, claro, mas a maioria nem pareceu ter passado perto do filme… Uma pena.

A Decadência do Cinema e de seus Comentaristas

Building upon each other’s knowledge is exactly what Newton meant when he said he can see further because he stands on the shoulders of giants.

BERTRAND RUSSELL

Tenho absoluta certeza da decadência do cinema. Deveria generalizar e falar em decadência das artes em geral? Bom, hoje meu assunto é cinema ou ao menos pretendo partir dele. E começo dizendo que acredito que a crescente intervenção dos produtores tem efeitos desastrosos nos filmes. Neste domingo, por exemplo, fiquei surpreso ao ver num canal pago a comédia romântica Procura-se um Amor que Goste de Cachorros, filme lá de 2005. Deu-me a impressão de que a personagem vivida por Diane Lane repetia os diálogos que a mesma Diane tivera antes no simpático Sob o Sol da Toscana. Pude assegurar-me do fato ao ligar a TV ontem na HBO e dar de cara com Diane Lane na Toscana: ela usava as mesmas palavras e vivia a mesma situação do filme que vira! Só que, em vez de falar ao advogado, falava à irmã. Algum produtor sentiu no bolso que o filme anterior dera bom lucro e resolveu repetir minuciosamente a fórmula. Diane concordou em ficar mais rica e, em compensação, corre o risco de obter o duvidoso título de “A Namoradinha dos Divorciados da América”. Deve estar preocupadíssima. E assim caminha a humanidade, ao menos a cinematográfica.

Os filmes parecem estar cada vez mais indulgentes para com um público supostamente emburrecido. Como contrapartida, poderia lembrar que, em 1974, fui a um programa duplo no extinto cinema Marabá. Às 14h, vi Gritos e Sussurros e, às 16h, Amarcord. Se não era normal, era uma coisa possível de se fazer na época. Afinal, eram lançamentos.

Uma vez, fui convidado por Fernando Monteiro a fazer listas dos 10 melhores filmes e livros de todos os tempos. Ele publicou suas listas e as minhas na Rascunho. Por e-mail, me provocava mais ou menos assim: “Quero ver quantas obras recentes constarão nelas”. Fiz a lista cinematográfica forçando a entrada de um filme de Peter Greenaway de que gosto muito — Afogando em Números… Mas confesso ter forçado a barra. Mais recentemente, escrevi uma relação de filmes maior e mais bem mais pensada e o fenômeno repetiu-se.

Poderia colocar nela os recentes e excelentes Dogville e Anticristo (Lars von Trier), Os Bons Companheiros (Martin Scorcese), Cidade dos Sonhos (David Lynch), A Vida é um Milagre (Emir Kusturica), As Confissões de Henry Fool (Hal Hartley), O Casamento de Rachel (Jonathan Demme), A Vida dos Outros (Von Donnersmark) ou Os Imperdoáveis (Clint Eastwood)? Até poderia, são belos filmes, mas quais tiraria?

(Um diabo chega por trás para fazer uma massagem em meus ombros e lê o que escrevo. Comenta: Não dramatiza, Milton, estamos numa época em que deixaram de fazer filmes de arte para fazer entretenimento. Antes que eu lhe diga que o cinema de entretenimento sempre existiu e que antes havia espaço para todos, ele vai embora. Se eu lhe respondesse, talvez ela fizesse referências à infantilização do cinema e de alguns adultos. Não vês as filas para Matrix? Não te lembras daquele quarentão que tcompra e sua diariamente seu videogame? Bom, diabo, esta é outra história e, na verdade, a decadência pessoal tem sua poesia e esta, dependendo das circunstâncias e de sua qualidade, pode até ser adorável.)

E, com os maus filmes, apareceu uma geração de críticos adequada a eles. Com mínimas noções de história do cinema, parecem não entender as alusões às vezes existentes nos filmes, sejam as de um ser mais complexo como Theo Angelopoulos, sejam as do pop Quentin Tarantino. E alguns que escrevem na Internet — onde, naturalmente, o amadorismo é mais presente — conseguem mais: conseguem transformar os fatos históricos narrados pelos filmes em ficção. É constrangedor lê-los. Isaac Newton e o roqueiro quase-hooligan-de-mentirinha Noel Gallagher sabiam estar Standing on the Shoulders of Giants, e que, só por isto, viam mais longe. Alguém deveria avisar a estes críticos que eles também estão lá e que deveriam delirar menos em seu suposto brilhantismo e olhar em torno. E um crítico cita o outro e todos juntos… Céus! Lembro de críticos que, ao comentarem um filme baseado numa obra de literatura, sabiam avaliar as alterações feitas por roteiristas nessa espinhosa questão de adaptar uma linguagem para outra. Agora, as críticas são rasteiras, ignorantes.

Eu estou convencido de que houve mesmo uma época (e um lugar) de ouro do cinema, que foi Hollywood na década de 1950, e talvez isso não se volte a repetir, porque se conjugaram várias coisas: o domínio da técnica cinematográfica, uma indústria próspera mas bastante aberta à inovação e a falta de concorrência da TV. Penso que depois disso tornou-se muito mais difícil ver-se filmes simultaneamente muito bons, inovadores e populares, como alguns de Hitchcock ou Nicholas Ray. Os Cahiers du Cinema vieram em auxílio a estes cineastas, porque até então o cinema americano era desprezado pelos intelectuais, e esses jovens (gente como Truffaut ou Rohmer) idolatravam John Ford e outros realizadores de Hollywood. Talvez o último herdeiro espiritual dessa época gloriosa seja Scorsese — o Good Fellas está ao nível dos melhores Nicholas Ray. O que aconteceu nas últimas décadas é que o cinema europeu começou a circular com grande dificuldade, esmagado pelos circuitos de distribuição americanos.

Hoje, não só o cinema se rendeu à linguagem fácil e banal dos filmes de entretenimento. TODA a cultura se transformou em produto de consumo popular. A reflexão cedeu espaço ao evento, tudo é evento. Tudo tem luz, produção, maquiagem até reunião de condomínio acabará tendo roteiro e cenografista. Mas e as idéias? E os ideais, as intenções? Para que fazer pensar se o que importa é faturar? Que discussão vou querer promover se o que quero promover é o sucesso de bilheteria e basta? O cinema sumiu junto com as utopias e quem sabe não está aqui a raiz da decadência? Claro que para toda ação, corresponde uma reação. Por que as Bienais não tratam do tema da arte como espetáculo vazio? Seria uma bela provocação.

Para finalizar este post deixado em aberto, cito Ivan Lessa — que pertence a uma geração anterior à minha — de memória:

Nós íamos ao cinema — definitivamente. Nós víamos filmes — indubitavelmente.

Atenção, cinéfilos de Porto Alegre!

Hoje vou fazer uma propaganda gratuita do Cinema Guion de Porto Alegre. Um dos melhores negócios que fazemos anualmente eu e minha mulher é a assinatura anual do Guion. Quase todos os melhores filmes passam lá, raramente tenho que enfrentar um shopping com gente cheia de pipocas e com aquele cheiro nauseabundo de manteiga. Por quê? Ora, porque 90% do cinema relevante passa lá.

Deste modo, acabo indo no mínimo uma vez por semana a uma das oito salas do Guion. Entro gratuitamente. Bem, não é bem assim: pago R$ 180,00 e entro em todos os filmes que quero, quantas vezes quiser, por um ano. Façamos alguns cálculos:

Se eu for uma vez por semana pagando ingresso: R$ 12 x 52 = R$ 624,00
Se eu for uma vez a cada 15 dias: R$ 12 x 26 = R$ 312,00

Mas pago R$ 180,00. Querem saber a relação de filmes desta semana, por exemplo?

VALSA COM BASHIR, de Ari Folman
A JANELA, de Carlos Sorín
CHE – O ARGENTINO, de Steven Soderbergh
ENTRE OS MUROS DA ESCOLA, de Laurent Cantet
O CASAMENTO DE RACHEL, de Jonathan Demme
DUVIDA, de John Patrick Shanley
A BELA JUNIE, de Christophe Honoré
O LEITOR, de Stephen Daldry
FOI APENAS UM SONHO, de Sam Mendes
X-MEN ORIGENS: WOLVERIN, de Gavin Hood
ELE NÃO ESTA TÃO A FIM DE VOCÊ, de Ken Kwapis

Excetuando-se Gran Torino e ignorando os dois últimos da lista, todo o restante dos filmes “suportáveis” estão aí. Então deixe de ser burro, tá? Ah, e no AeroGuion o estacionamento é grátis!

Resposta a uma dúvida surgida nos comentários: São R$ 180,00 por pessoa. Obviamente, não há promoção para casais, essas coisas.