Um Coração de Cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov

Um Coração de Cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov

um-coracao-de-cachorro-e-outras-novelas-mikhail-a-bulgakovFormado pelas novelas As Aventuras de Tchítchikov, Diabolíada, Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro, e com excelente tradução de Homero Freitas de Andrade, este volume da Edusp é uma verdadeira joia que reflete a literatura satírica dos primeiros tempos da União Soviética — e que depois foi morta por Gorki e pelo medonho realismo socialista. Aliás, Bulgákov, em sua “Carta ao Governo”, reclamou do que hoje é sabido por todos: “toda a sátira autêntica é absolutamente inadmissível na União Soviética”. A URSS era um regime que apenas admitia uma verdade única e inabalável e nenhuma “verdade” deste gênero resiste ao riso, principalmente ao riso inteligente e cheio de curvas e dúvidas como o criado pelo gênio de Bulgákov.

As quatro novelas deste livro formam um crescendo de virtuosismo arrebatador.

Pessoalmente, a leitura de As Aventuras de Tchítchikov teve pouca validade. Afinal, faz 40 anos que li Almas Mortas, de Gógol, e Bulgákov utiliza os personagens do romance como se fossem velhos conhecidos nossos. É claro que, como confirma a Elena, todo russo tem o livro de Gógol tão na memória quanto nós temos os principais contos e os cinco últimos romances de Machado. Mas eu mal lembrava de Tchítchikov…

Mas tudo mudou com a aceleradíssima e louca Diabolíada. Filha literária dos filmes pastelão dos anos 20, a novela está repleta de perseguições e transformações fantásticas com a finalidade de caracterizar a enorme máquina burocrática soviética. Pessoas deixam de existir, pagamentos são feitos através de caixas de fósforos que não funcionam em vez de dinheiro, todos passam fome e os pequenos chefes são verdadeiros diabos transformistas que antecipam a obra-prima de Bulgákov O Mestre e Margarida.

Os Ovos Fatais (1924) e Um Coração de Cachorro (1925) são novelas irmãs e das melhores coisas que já passaram frente a minhas retinas tão fatigadas. (Obrigado, Drummond). São duas longas e esplêndidas sátiras de ficção científica. Os Ovos Fatais tem uma longa introdução séria, com alguns curtos episódios cômicos, mas depois tudo se descontrola, virando um enorme vaudeville. Um vaudeville de terror, uma coisa realmente original. Já Um Coração é uma sátira de cabo a rabo e suas variações de foco narrativo — que são passadas de um para outro personagem e para o autor, depois que um cachorro abre a narrativa na primeira pessoa do singular –, valeria um estudo.

As duas novelas brincam de tal forma com o modus operandi da Revolução Bolchevique, fazendo tantas observações que se revelariam exatas décadas depois, que não surpreendem suas proibições na época. O que surpreende é o fato de Bulgákov escrever cartas e mais cartas para Stálin pedindo para sair do país, recebendo em troca telefonemas gentis do georgiano em várias madrugadas. Pelo visto, o chefe gostava do humor de Bulgákov, mas o queria apenas para si. O escritor faleceu em sua casa.

Mikhail Bulgákov
Mikhail Bulgákov

Os Ovos Fatais, de Mikhail Bulgákov

Os Ovos Fatais, de Mikhail Bulgákov

um-coracao-de-cachorro-e-outras-novelas-mikhail-a-bulgakovAnteontem, finalizei a leitura de uma novela de Mikhail Bulgákov (aqui, a resenha do romance O Mestre e Margarida, do mesmo autor) que está no livro Um Coração de Cachorro (Edusp). Seu título é Os Ovos Fatais. A indicação era da Elena que a tinha lido há anos, ainda na União Soviética, através do samizdat (*). Ela não lembrava bem da história, só que era muito apavorante e boa.

E é mesmo. Não que seja extremamente original, é que Bulgákov consegue colocar numa história simples de ficção científica todo um arsenal de elementos que contam também outras histórias, tornando a coisa realmente grandiosa. Vamos sem spoilers. Piérsikov é um cientista que descobre um raio que, incidindo sobre os ovos de rãs, tornarão os répteis enormes e hiperativos. Tudo aponta para uma daquelas histórias de cientista louco que enche o mundo de criaturas desconhecidas e perigosas. Mas por trás da máquina de escrever está um autor genial.

A desgraça acontece e é terrível, mas quem a causa não é Piérsikov, mas a burocracia soviética. O resultado final, porém, é um fenômeno de massas que saúda o estado soviético como grande herói. Ou seja, quem cria o problema acaba vencedor, recebendo a consagração popular. Como todo grande autor, Bulgákov conta sua história de forma polifônica. Mas… OK, é uma novela de terror, só que provavelmente o gênero em que Os Ovos Fatais melhor se enquadre seja o da literatura satírica, pois Bulgákov tripudia sobre tudo — e é muito engraçado. Do jornalismo à política, do mundo acadêmico aos correios, sobra para todos.

Gostei tanto do que li que resolvi fazer esta pré-resenha de um livro que não terminei. Ainda tenho que ler Um Coração de Cachorro, cujo narrador é um cão…

Ontem, assistimos ao filme russo baseado em Os Ovos Fatais. É daqueles casos que a Caminhante sempre cita: o livro é muito melhor.

Pergunta final: Por que o tradutor Homero Freitas de Andrade não enfrenta O Mestre e Margarida? As duas traduções existentes para o português deixam a desejar. Mesmo a da Alfaguara é estranha em muitos pontos. Bem, à leitura do resto do livro!

(*) Samizdat era uma prática nos tempos da União Soviética destinada a evitar a censura imposta pelos governos dos partidos comunistas nos países do Bloco oriental. Mediante esta prática, indivíduos e grupos de pessoas copiavam e distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais que haviam sido proibidos pelo governo.