Da classe de uma senhora

Da classe de uma senhora

Detesto a palavra classe, até porque uma dos piores chagas de nossa sociedade é o preconceito de classe, mas vá lá. Aqui cabe.

Eu e Elena fomos ao cinema no último sábado à tarde para ver o excelente Pedalando com Molière. Compramos os lugares E08 e E09. Na hora de sentar, a Elena pensou que nosso lugar estivesse ocupado. Porém, estava errada e a senhora de cabelo brancos que ocupava a cadeira, sorriu e mostrou seu ingresso, dizendo:

— O meu é o E10.

Ao ouvir aquela voz, fui remetido a não sei quantos anos atrás, talvez 40. Era a voz de Jacqueline ou Jaqueline Monteiro, uma das maiores amigas de minha mãe. Olhei para a ela, era uma senhora muito bonita, como a tia Jac sempre fora. Analisando o rosto, só podia ser ela. Sentamos ao lado e eu disse para a Elena, que me incentivou a fazer minha apresentação. Fiquei tímido e confuso por dois minutos — não queria dar para ela a notícia da morte de minha mãe no ano passado –, mas depois tomei coragem e perguntei se o nome dela não era Jacqueline. Ela me olhou com um belo sorriso de surpresa.

— Ah, sim, não tinha te visto… Não. Meu nome é Jacquely, com ípsilon no final, e tu deves ser o filho da Maria Luiza, não?

— Sim. Sou o Milton.

— E eu sou a tia Jac, que era como tu e tua irmã Iracema me chamavam.

Introduzi a Elena na conversação e o encantamento que a tia Jac ficou ao saber que ela era violinista talvez só tenha sido superado pelo meu ao ver que pusera em funcionamento duas pessoas da mais alta elegância e educação. E cultura. Não sei como, chegaram logo ao último filme do Woody Allen, sobre o qual a tia Jac parecia saber tudo (e de uma forma bastante crítica), e depois aos Quintetos de Schubert. Só me restava observar — além de dizer que o Quinteto de que elas estavam falando era aquele com dois violoncelos –, porque, se sou um silvícola perto da Elena, com aquelas duas juntas passo a visigodo. Não saberia me comportar. Senti que o momento de ela se referir a minha mãe estava chegando… Ela perguntou:

— Talvez a Maria Luiza já tenha infelizmente falecido…? — e, ao ver que eu confirmava com a cabeça, continuou.

— Vi-a há uns dez anos e ela estava confusa. Acho que não me reconheceu, que estava apenas sendo gentil. Telefonei algumas vezes e as notícias não eram boas. Deve ter sido doloroso para vocês.

Claro que ela sabia da morte. O vínculo com minha mãe estava estampado no português perfeito, com todas as conjugações certinhas, o mesmo de minha mãe. Mudou de assunto, dizendo que eu era parecido com os meus dois pais, uma mistura deles. É óbvio que me orgulhei de que a tia Jac — que demonstrara em cinco minutos elegância ímpar, vida cultural ativa e excelente memória — fora uma pessoa que convivera com minha mãe, cada vez mais irreconhecível em seus últimos anos de vida.

O filme — que se revelou extraordinário — começou. A Elena se aconchegou a mim e me disse no ouvido:

— Que senhora agradável! Ela é o máximo! Viu como eu estava certa?

Claro que estava. No final do filme, comentamos a três sobre o brilhantismo da história sobre o ator aposentado que é convidado a voltar aos palcos e entra em confronto com quem tenta contratá-lo. A tia Jac desceu as escadas segurando-se no corrimão, mas depois acelerou, caminhando na mesma velocidade que nós. Permanecemos sob o seu efeito.

(Voltamos para a casa a pé. Eu pensava na influência que as pessoas têm umas sobre as outras e no que dissera o queridíssimo Arthur, filho de dez anos do meu amigo Augusto Maurer:

— Com a classe da Elena, o Milton ficou muito mais educado).

Como não tenho fotos da Tia Jac, eu e Augusto Maurer
Como não tenho fotos da Tia Jac, eu e Arthur Bertuol Maurer | Foto: Augusto Maurer