Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Este é um livro curioso. Parece leve, parece que não chegará a lugar nenhum, mas é poderoso, muito poderoso. Pequenas coisas como estas foi finalista do Booker em 2022 e figurou na célebre lista dos 100 melhores livros do século XX publicada pelo New York Times. A autora Claire Keegan é irlandesa e, como tantos de seu país, tem uma escrita cheia de beleza e suavidade.

O romance é centrado no personagem Bill Furlong. O ano é 1985. Furlong é um pequeno empresário que vende carvão e madeira, mas que não gosta de ficar no escritório, prefere trabalhar num caminhão caindo aos pedaços, fazendo as entregas. É pai de 5 filhas e casado com Eileen. Todos vão à igreja aos domingos. Na superfície de tudo isso, Bill parece estar contente com sua vida e destino. No entanto, conforme Keegan vai desenvolvendo a história, aprendemos que as coisas não são bem assim.

Na cidade há uma Lavanderia de Madalena — também chamadas de Asilos de Madalena –, instituições comuns na Irlanda no século XX. O que eram? Eram essencialmente casas de trabalho para mulheres, especialmente para mulheres jovens e adolescentes que engravidavam fora do casamento. As Lavanderias eram administradas pela Igreja Católica e as famílias lá deixavam suas mulheres para que pudessem esconder suas gestações da sociedade. Uma vez que a criança nascia, ela era frequentemente retirada à força da mãe e posta para adoção. (Após investigações realizadas antes da desativação dessas casas, houve a certeza de que muitas das crianças nascidas nessas lavanderias eram simplesmente mortas). Embora as Lavanderias de Magdalena fossem particularmente severas na Irlanda, estabelecimentos semelhantes existiam em todo o mundo. Como revela o nome, essas casas prestavam serviços de lavanderia para os locais onde estavam implantadas.

Certo dia, quando Bill deixa lenha e carvão na igreja local, ao lado da lavanderia, ele encontra uma adolescente trancada no galpão de carvão. Ela está coberta de sujeira, passa frio e está aterrorizada. Ele a leva para dentro e as freiras recebem a garota e abafam tudo, agindo estranhamente. Tudo o que Bill consegue arrancar da garota é que seu nome é Sarah — o mesmo de sua mãe.

A mãe de Bill, Sarah, era adolescente quando engravidou de Bill. A família Wilson a acolheu e a deixou trabalhar como empregada da casa pagando-lhe uma pequena quantia, além de quarto e alimentação. Todos dizem a Bill que ele deveria ser grato pela gentileza da família Wilson — especialmente quando a alternativa poderia ter sido uma Lavanderia Madalena para sua mãe. No entanto, Bill parece meio cansado de ser grato. Sua frustração parece palpável ​​ao longo do romance.

Enquanto ele constrói uma vida respeitável para si com sua esposa e filhos, a mãe adolescente de Bill é algo de que ele não consegue escapar. De muitas maneiras, ela parece seguir Bill por toda a sua vida e todos, incluindo sua esposa, usam a gravidez adolescente de sua mãe como uma resposta para qualquer momento em que Bill diga algo fora da linha da calma e da paz.

Quando ele vê Sarah no galpão de carvão, aquilo torna-se um fato importante para ele. Não havia serenidade naquele homem tão cordato, mas há paz no romance de Keegan até o final. Aliás, o final é uma joia de tão bem realizado.

Claire Keegan é uma mestra. Ela equilibra tristeza, delicadeza e perplexidade de uma forma extremamente bela. Os ressentimentos de Bill saem das páginas e parecem vivos, pulsantes. Porém, embora o assunto tenso e doloroso, ele alguma forma não é pesado.

Uma frase ecoa em nossa cabeça após a leitura. Ela aparece quando Furlong, meio perdido após suas entregas, pergunta a um homem na beira da estrada onde vai dar aquela estrada:

— Esta estrada vai dar onde você quiser, filho.

Um tremendo pequeno romance.

.oOo.

Obs.: há um filme homônimo baseado no livro. Bill Furlong é vivido por Cillian Murphy, porém o filme é bem ruinzinho.

Claire Keegan (1968-)

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Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber é um romance do suíço Max Frisch (1911-1991) publicado pela primeira vez na Alemanha em agosto de 1957 — o melhor mês do melhor ano. É narrado em primeiríssima pessoa pelo protagonista Walter Faber, um engenheiro brilhante que viaja a trabalho pela Europa e pelas Américas. Mais ou menos como o Ricardo Branco era e fazia. Sua visão de mundo — lógica, probabilística e científica — é desafiada por uma série de coincidências incríveis, fazendo com que o passado ressurja. (Você, que está na minha TL e portanto é inteligente, já sentiu a jogadinha entre Homo Faber e Homo Sapiens, né? Se não se deu conta, fora daqui!)

O livro foi editado pela Guanabara em 1986 e relido por mim agora em voz alta para a Elena. É ótimo. Minha cara-metade também aprovou e queria que eu lesse mais a cada noite. Gostei muito das duas vezes que o li, apesar de algumas reflexões antiquadas.

É uma obra importante e curiosa, pois se fala de um tema bem comum — o de nossa fragilidade — também fala de outro mais incomum — da ilusão do controle que temos sobre nossas vidas. É um livro de uma introspecção também pouco usual: a de um engenheiro. Faber é um homem de meia-idade, especializado em engenharia mecânica, que acredita piamente na lógica, na ciência e no controle técnico sobre a vida. Ele viaja constantemente a trabalho, vivendo uma existência organizada e aparentemente imune ao caos emocional. No entanto, durante uma viagem de negócios tudo começa a se descontrolar, como não aconteceu com o Ricardo Branco.

A narrativa se desenrola em duas partes: na primeira, Faber viaja para a América Central e se envolve em um acidente de avião. Na segunda parte, numa viagem de navio, Faber encontra Sabeth, embarcando numa relação cujo caráter é melhor deixarmos de lado.

Faber representaria o homem moderno, que confia na tecnologia e na razão. No entanto, o acaso o força a se desequilibrar de sua posição. Pode-se dizer que Sabeth é filha de uma ex-namorada sua e acaba por expor sua fragilidade emocional e incapacidade de lidar com complexidades “das humanas”. Frisch critica a crença de que a ciência e a técnica podem resolver todos os problemas humanos, mostrando que a vida é cheia de ambiguidades e incertezas.

Max Frisch foi um arquiteto e escritor influenciado pelo existencialismo e por Brecht. O final do livro é de grande categoria, Frisch sabia mesmo como deixar a gente pensando.

Tradução de Herbert Caro.

Max Frisch

 

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXX – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXX – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Eu tento, tento, mas não consigo escapar dos calhamaços. Com aproximadamente 1000 páginas no mundo inteiro e 784 na edição de 1985 da Nova Fronteira, este livro me foi indicado por uma excelente e compreensiva leitora-amiga-cliente da Livraria Bamboletras. Ela lera o original em francês. Respondi que eu tinha um exemplar comprado em 1986 que jamais fora aberto por mim… Ela nem sabia que havia a tradução brasileira. Tive que obedecê-la, li o romance com enorme atenção e não me arrependo. Quando iniciei a leitura, ela reapareceu na livraria. Seu nome não é segredo: é Karina Maria. E ela reafirmou: “esse livro merece um monumento”.

Bela do Senhor (originalmente “Belle du Seigneur”), publicado em 1968, é um romance do escritor suíço, nascido na Grécia, Albert Cohen (1895-1981). Mas por que eu tinha o livro? Ora, porque Bela do Senhor fora elogiadíssimo em 1985 pela crítica brasileira (sim, tínhamos crítica literária), além de ter vencido o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa de 1968 e também o Goncourt. A história gira em torno de dois personagens centrais que, estando juntos, vão pouco a pouco se isolando do restante do mundo.

A primeira é Ariane, a bela esposa do medíocre e arrivista diplomata Adrien Deume. O outro é Solal, um judeu grego brilhante e carismático, que é alto funcionário da Liga das Nações em Genebra. Solal é chefe de Deume na Liga das Nações. Ele fica obcecado por Ariane e, depois da mais estratégica e cínica das seduções, inicia um quentíssimo caso de amor com ela, chegando a uma relação que oscila entre a paixão sublime e o destrutivo.

Talvez seja importante saber que Albert Cohen era um judeu grego que trabalhou na Organização Mundial do Trabalho de 1926 a 1932, em Genebra. Ou seja, ele conhecia profundamente o ambiente onde Deume circulava. E, na primeira parte do livro o foco é dado a Adrien Deume, o marido traído. Ele é o perfeito puxa-saco. Não faz nada em seu trabalho, passando todo o tempo tratando de esquemas para subir de cargo na organização. Ele se vale de tudo, até da beleza da esposa, para obter destaque e galgar cargos. Em casa, a vida do casal Adrien e Ariane é um inferno, com os parentes de Adrien tentando se imiscuir em tudo, criticando a esposa que só dorme e toca piano, enquanto Adrien a protege. A vida de Solal, com um bando de folclóricos tios judeus, também não é muito fácil, mas ele consegue escapar deles com maior facilidade. É uma parte hilariante do romance: o livro satiriza a hipocrisia e o vazio da alta sociedade europeia, especialmente no contexto diplomático da Liga das Nações. O humor e a ironia expõem as falhas morais e éticas desta elite.

Então, começa o caso Solal-Ariane. A história de amor entre eles é avassaladora e, uma vez iniciada, eles realmente são empurrados um em direção ao outro. O ambiente político antissemita tira tudo de Solal, menos seu dinheiro: ele perde posição e reputação. O ambiente moral torna-se opressivo para Ariane e só lhe resta agarrar-se a Solal. E aí nós temos o amor, o grude total. o ciúme, as brigas e o enfado. Há momentos brilhantes em que Solal e Ariane não se suportam mais e mantém a relação apenas devido à situação lá fora. Temos uma análise franca e implacável das ilusões e desilusões que as relações podem trazer. Nunca havia lido um romance que descrevesse com tanto detalhe o tédio a dois, as necessidades de variações — sejam elas quais forem — e o silêncio histérico, por assim dizer.

O livro é uma mistura de paixão, tragédia, ironia e profunda reflexão sobre as identidades. Cohen cria um universo grandioso e íntimo. O relacionamento entre Solal e Ariane é marcado por uma força quase mítica, podendo ser tanto uma fonte de transcendência quanto de autodestruição.

Há um capítulo onde Solal passeia sozinho por Paris observando as paredes dos prédios cheias de pichações antissemitas. Ele até compra um jornal que defende a eliminação dos judeus para poder passear mais despercebido. Deixa-o visível sob o braço. Às vezes, enfia o nariz nele. Sua identidade não é aceita. Sua busca por amor, a necessidade de ser novamente reconhecido — agora que ele não é mais nada — reflete uma luta mais ampla contra a marginalização e o exílio. Por trás dos múltiplos detalhes, há inteligentes reflexões sobre a solidão e a incomunicabilidade. Solal e Ariane, apesar de sua conexão intensa, estão presos em suas próprias angústias e inseguranças. É notável como Ariane tenta mantê-los juntos com diversos estratagemas enquanto Solal apenas observa pensando “coitadinha, inventou essa agora, será que vamos nos divertir ou vamos seguir fingindo?”.

Albert Cohen é um mestre. Sua prosa é cheia de digressões poéticas, diálogos afiados e descrições verossímeis. O estilo varia muito, indo desde o vaudeville para o erótico, passando por fluxos de consciência sem pontuação. É Joyce e, ao mesmo tempo, um Proust meio alucinado. O lírico e o satírico convivem bem, criando um texto comovente e estimulante do ponto de vista intelectual.

Deixo-lhes sem dizer o final, claro.

Lendo outras resenhas, soube que Bela do Senhor é frequentemente comparado a clássicos como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, e O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, devido à sua profundidade psicológica e à sua exploração do erotismo e do amor. No entanto, nenhum dos citados tem o humor ácido, a visão desencantada e profundamente humana da vida. Poderia falar em uma ode ao nosso desespero, medos, amor… Enfim, uma ode à nossa complexidade.

P.S. — Até pelo tamanho e lentidão com que a história se desenvolve, Bela do Senhor é infilmável. Mas foi filmado. Fujam. É um horror. Acho cômico que Ariane, descrita no livro com bunda grande e tudo grande, tenha sido vivida pela modelo russa Natalia Vodianova, uma mulher magérrima e, a despeito da beleza, 100% anti-Ariane, cujas formas são bem descritas. Também a escolha de Jonathan Rhys Meyers para o papel de Solal é uma piada. O mesmo, aliás, ocorreu com Keira Knightley vivendo a arredondada Anna Kariênina. Por que a caracterização de personagens fictícios não é respeitada como as caracterizações de personagens reais? Parece brincadeira com os leitores.

Recomendo!

Albert Cohen (1895-1981)

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Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Eu lia pouco durante a infância, muito pouco. Queria era jogar futebol. Lia revistinhas da Disney nos dias de chuva e olhe lá. Observava minha irmã parada, totalmente concentrada com um livro aberto, mas não tinha vontade de fazer o mesmo. Quem me acordou para a literatura foi Erico Verissimo com seu O Tempo e o Vento. Só depois dos 15 ou 16 anos, passei a avaliar se era melhor permanecer em casa ou me divertir com os amigos. E normalmente ficava em casa enfiado num livro. Meus pais achavam que eu tinha que sair mais, ver pessoas, só que eu preferia ficar lendo. Por ter começado tarde, meu conhecimento de literatura infanto-juvenil é mínimo. Comecei pelos livros dos adultos, por aqueles que minha irmã e pais valorizavam. Começo esta resenha assim porque não sei como classificar este Kafka e a boneca viajante. A estrutura do livro é de uma fábula. O tema é a infância, mas também é a elaboração de uma perda. Por outro lado, não podemos esquecer que há Kafka, já muito doente, levando a sério o fato de uma menina ter perdido sua boneca. Vou tentar explicar melhor.

A história entre Franz Kafka e a menina Elsi é um episódio tocante e pouco conhecido da vida do tcheco. Esse evento ocorreu nos últimos anos de vida de Kafka, quando ele já estava gravemente doente (sofria de tuberculose) e vivia em Berlim, em 1923-1924. Kafka, durante seus passeios por um parque em Berlim, viu uma menina chorando, muito triste pela perda de sua boneca preferida. Seu nome era Elsi e estava inconsolável. Kafka decidiu fazer alguma coisa. Inventou uma história, disse que a boneca não tinha desaparecido, mas viajado. Ele explicou que a boneca lhe enviara uma carta e que sua profissão a de “carteiro das bonecas”. No dia seguinte, ele traria uma carta da boneca Brígida para Elsi. E durante três semanas, Kafka escreveu cartas diárias para Elsi, supostamente, é claro, enviadas pela boneca. Esforçou-se muito para escrevê-las sem que Elsi desconfiasse de nada. Nessas cartas, ele descrevia as aventuras da boneca em suas viagens pelo mundo, sempre em tom poético. Essas cartas não apenas confortaram a menina, mas também a fizeram acreditar que sua boneca estava vivendo uma vida emocionante e cheia de descobertas.

Esse episódio revela alguma coisa sobre Kafka. Apesar de sua obra literária estar associada ao absurdo, à angústia e ao pessimismo, ele demonstrou empatia e capacidade de se conectar com o mundo de uma criança. E tentou transformar a dor de Elsi em uma experiência feliz. Porém, as cartas que Kafka escreveu para Elsi não foram preservadas, e o episódio só foi conhecido graças ao relato de Dora Diamant, companheira de Kafka na época. Houve muitas tentativas de localizar Elsi e as cartas, mas nada foi encontrado. Houve um historiador que passou décadas atrás dos textos.

Kafka e a Boneca Viajante (no original, Kafka y la muñeca viajera) reconta essa história comovente entre o escritor e a menina Elsi. É uma ficção inspirada pelo episódio real. Claro que o livro é enormemente emocionante e mesmo este calejado leitor teve vontade de se desmanchar lendo o relato.  Há uma sensação de estranheza — os excertos das cartas não são nada Kafka! –, porém como ele escreveria para uma criança? Alguém sabe? De forma esperta, Sierra i Fabra tenta capturar a essência do gesto de Kafka, destacando a empatia e a criatividade para transformar a dor de uma criança em uma experiência mágica. E também sobre o problema de um adulto que precisa parar de escrever diariamente para uma criança e voltar a sua obra. O livro é uma homenagem ao poder consolador da literatura. É como uma janela para um momento íntimo.

Creio que é um livro que visa um público mais amplo, incluindo jovens leitores. O autor usa uma linguagem simples e poética — algumas vezes verbosa –, com flechadas certeiras e piegas que me atingiram sem piedade. Claro que me senti injustamente traído ao ver meu sombrio e pessimista autor — também muitas vezes cômico, na minha opinião de leitor — ser tratado como um ser cheio de bondade. AMO Franz Kafka de uma forma que só eu sei. AMO aquele mais obscuro Kafka. Mas não há porque pensar que o Kafka dos livros que conhecemos não fosse capaz de um ato de consolo como o relatado. Sensibilidade não lhe faltava.

Jorvi Sierra i Fabra (1947) é um conhecido escritor infanto-juvenil catalão, mas, sabem?, este livro não me pareceu ser um típico exemplar do gênero.

Recomendo!

Jordi Sierra i Fabra

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Operação Impensável, de Vanessa Barbara

Operação Impensável, de Vanessa Barbara

O título faz referência a um plano militar secreto (e maluco) de Winston Churchill concebido ao final da Segunda Guerra Mundial. Churchill era um ser bastante raro: um conservador anticomunista que sabia escrever e se expressar com brilho. Ele queria que os aliados ocidentais combatessem a ocupação soviética da Europa Oriental. O objetivo era impor a vontade dos Estados Unidos e do Império Britânico à União Soviética. Foi o início da Guerra Fria. Essa malfadada ideia sugere o tom do livro: uma história onde o impensável e o absurdo acabam com qualquer lucidez remanescente, gerando uma superfetação de mentiras. (Superfetação? Vá ao dicionário, ué).

Importante dizer  que este é o livro que conta, nos mínimos detalhes, mas como se fosse ficção, o rumoroso caso Vanessa Barbara versus André Conti e seu Conselho Consultivo de 14 machos.

Como Vanessa Barbara costuma fazer, há uma mistura entre a “ficção” que é contada — a ascensão e debacle de um caso amoroso — com casos políticos da Segunda Guerra e críticas resumidíssimas dos filmes vistos pelo casal. Tudo isso caminha de forma paralela, regido pelo ritmo intenso de Vanessa. O texto é ultra fragmentado, com seções curtas e constantes mudanças temáticas. Difícil de saber que virá depois, se fatos políticos, o dia a dia, e-mails, citações, notas esparsas, sinopses de filmes, etc. A própria diagramação do livro contribui para esta impressão de fragmentação. Há mudanças de fontes e vazios. Para o meu gosto, o trecho da felicidade do casal é longo demais, mas talvez minha sede de sangue estivesse em alta devido às redes sociais. Nesta parte, que poderia chamar de ascensão, há a mais bela crítica que li de Se meu apartamento falasse (The Apartment), de Billy Wilder. Eu quase chorei lendo. Adoro este filme tanto quanto Vanessa.

Mas voltando, a parte do amor é meio longa mesmo. São várias declarações de parte a parte. É como estar ouvindo a Primavera de Vivaldi e ver um pássaro pousar na sua janela. Não dá, é muito açúcar, melhor enxotar logo o bichinho. Claro que isto serve como contraste para o que virá, mas achei exagerado.

Porém, o livro cresce espetacularmente quando a paranoia toma conta de “Lia”. O pior da paranoia é quando ela — que seria impensável para as pessoas equilibradas — se comprova e se amplifica até o inconcebível. Pois o pior é o paranoico ter razão e dar-se conta de que até minimizou as coisas. É para enlouquecer de vez e Vanessa descreve brilhante e acumulativamente o processo de descoberta. A comprovação revela-se pouco a pouco, alterando-se como um caleidoscópio a cada mentira e chegando efetivamente a uma traição inacreditável, definitiva, bem mais grave do que ir a um motel repetidamente com uma conhecida ou um monte delas. Lemos a descrição de uma traição completa, cabal, radical, profissional, dessas que obriga o traído a se esconder no meio da selva e lá desaparecer. Dessas que deveria obrigar o algoz trocar de lugar com a vítima.

Vanessa expõe os fatos, mas não cria um dramalhão mexicano. Em uma das epígrafes da última parte, ela usa Boris Vian: “O humor é a delicadeza do desespero”. Sim, ela o mantém. E ainda conta curiosidades como o fato de a lei de Hong-Kong permitir que uma mulher traída mate seu marido adúltero, desde que o faça com as próprias mãos, ao passo de que o homem pode usar qualquer coisa, até um lança-foguetes. E conhecemos a expressão “névoa do infiel”, cuja definição você conhecerá logo que comprar o livro na Livraria Bamboletras (WhatsApp 51 99255 6885).

A forma pública que o caso tomou nos últimos tempos surpreende, o que não surpreende que ele permaneça ainda na cabeça de “Lia”, apesar do prazo máximo para traumas de 13 anos e meio estabelecido pela sumidade Pedro Dória.

Tá, vai ler o livro e não me enche. Tem na Bamboletras, já disse.

Vanessa Barbara

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Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara

Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara
Version 1.0.0

É importante começar dizendo que o tema deste livro não tem nada a ver com o atual rolo relacionado ao podcast de Vanessa Barbara na Rádio Novelo (ouçam!). O livro onde este aparece é Operação Impensável, já lido por mim e a ser resenhado quando voltar às livrarias. Sobre o caso, já me manifestei nas redes sociais pouco antes de ele se tornar o atual vaudeville. Sou #TeamVanessa e não abro.

Sou leitor de Vanessa desde 2010, quando li seu famoso texto O Louco de Palestra. Desde então tenho acompanhado sua carreira. Também li o extraordinário e hoje raro O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify). Por escrever muito bem — gosto muito! — e de uma forma quase sempre hilária — gosto mais ainda! –, Vanessa não me era uma desconhecida quando da recente celebridade. Ou seja, não sou um neófito da autora.

Três Camadas de Noite é um romance que trata com inteligência e leveza de depressão em geral e da depressão pós-parto em particular. (Esta frase não foi uma tentativa de piada. Vanessa penetra em becos escuros com medo e graça. É como ler as desventuras de Lucia Berlin, entendem?). Pior, tudo começa em 2020, durante a pandemia. Pior ainda, a personagem principal do romance não dorme porque o bebê é “difícil”. E Vanessa consegue ser muito séria e fazer humor com ambos os temas. O livro é narrado na primeira pessoa e, como poderíamos imaginar, a personagem principal tem um filho — um menino chamado Heitor que passa de um bebê com dificuldades para dormir para uma criança agitada e muito inteligente. Vanessa não costuma contornar situações e o drama é drama, mesmo que crivado de boas piadas. Ela chora segundas, quartas e sextas, às vezes nos outros dias também. Como uma Rosa Montero brasileira, ela intercala a narrativa com seções de não ficção que contêm histórias reais de grandes autores que sofreram com a depressão. São eles Sylvia Plath, Clarice Lispector — belamente inserida na história –, Alice e Henry James, Natalia Ginzburg e Franz Kafka.

As três camadas podem ser (1) a da depressão da narradora, (2) o Diário de Campo, tomado pelas peripécias de Heitor e (3) a dos escritores que sofreram de depressão. A expressão “três camadas de noite” é citada no livro, mas não a reencontrei… (sempre ler com uma caneta ou lápis, Milton!). Talvez seja importante dizer que a narradora não se compara aos autores focalizados, apenas traça paralelos. Também há uma forte presença de efeitos causados pelo covid, capturando a atmosfera de incerteza e isolamento. O trabalho frequentemente transita entre a ficção e a não ficção, sempre com um olhar interessado aos detalhes da vida moderna, muitas vezes desconhecidos do velho de 67 anos que sou.

Como disse, não creio que seja um livro difícil de ler, a não ser para quem é experiente em depressão e tema gatilhos. Vanessa não narra uma viagem da vida normal ao desespero — também não narra uma história do fundo do poço à luz –, mas a personagem principal chega a uma situação aceitável para seguir a vida. Adorei as crônicas dos autores depressivos. Afinal, sou como Ingmar Bergman –, investigo o inferno com curiosidade, mas sem pedir ingresso.

Recomendo!

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Razão de Deus, de Muriel Spark

Razão de Deus, de Muriel Spark

Traduzido do New York Times

Razão de Deus é a inacreditável tradução para The Only Problem.

Como Effie o fez sofrer

O único problema para Muriel Spark, ao que parece, é que há muitas perguntas para poucas respostas. Este é o tema de seu novo romance, como pode muito bem ter sido de todos os outros. Seus leitores devotados sempre estiveram cientes de que há um componente metafísico em sua ficção, e é um alívio que ele finalmente tenha sido revelado na presente obra, que é tanto um relato extremamente sofisticado dos perigos que cercam nossas vidas desavisadas no mundo de hoje quanto uma disputa sobre o assunto do Livro de Jó, que ela chama de ”o livro fundamental da Bíblia”. Jó e sua situação desconcertante desafiam toda crença otimista que se deseja aceitar, alojando-se como uma dura massa de contenção na consciência do crente esperançoso. O mesmo tipo de angústia existencial é experimentado pelo atual protagonista de Muriel Spark, Harvey Gotham, mas Spark é uma escritora sábia demais para impor essa metáfora aos seus leitores, e sua narrativa é tão perfeita, tão enervante e tão especializada quanto seus leitores esperam dessa excelente contadora de histórias.

Pois há, como sempre, muita história para contar. Ela diz respeito a Harvey Gotham, um expatriado canadense extremamente rico, que escolheu viver no alojamento de um castelo vazio perto de Epinal, no distrito de Vosges, na França. Harvey se mudou para este retiro para trabalhar em sua monografia sobre o Livro de Jó. Ele abandonou sua esposa distraidamente, pensando que tinha o direito de fazê-lo, já que certa vez a pegou roubando duas barras de chocolate de um supermercado italiano. Ela fez isso por razões ideológicas, sendo uma anarquista renascida — pois ela tem uma consciência social muito moderna. Harvey ama sua esposa, que é uma beldade chamada Effie, mas ela é muito animada para ele, e ele detecta nela um traço de selvageria com o qual sua personalidade grave não se sente à vontade. Harvey, na verdade, é um estudioso, um fundamentalista. Ele é um homem que questiona e que está ao mesmo tempo resignado — talvez estoicamente, pelo menos impassivelmente, resignado — a não receber nada em termos de afirmação, por mais séria que seja a investigação.

A monografia progride. Harvey trabalha e trabalha, ocasionalmente se submetendo a visitas de seu cunhado, de sua cunhada e, no devido tempo, da polícia local e de seu advogado, que é obrigado a voar de Londres. Harvey está muito menos interessado nessas pessoas do que na bela imagem de Jó por Georges de La Tour no museu de Epinal. A visão da esposa de Jó em seu vestido vermelho brilhante, sua cabeça com turbante curvada em preocupação e advertência sobre seu marido em transe, desperta os pensamentos de Harvey sobre sua esposa ausente Effie, por quem ele sente um amor crescente e, mais profundo ainda do que o amor, nostalgia. Effie é de fato a razão de todos os visitantes (ou consoladores) que vão até ele: Effie quer o divórcio, Effie arruma um amante, Effie tem um bebê. Tudo isso provoca discussão sobre os direitos e erros do caso. Mas finalmente o personalidade arrojada de Effie irrompe de maneira particularmente favorecida por Spark. De roubar barras de chocolate, Effie evoluiu para plantar bombas terroristas em supermercados e lojas de departamento. Effie se juntou à FLE, a Front de la Liberation de l’Europe. Um policial é morto em Montmartre, e o grupo de Effie é o responsável. Finalmente, a própria Effie está morta em um necrotério de Paris, sua cabeça com turbante deitada inclinada no mesmo ângulo inquisitivo que a da esposa de Jó no filme La Tour em Epinal.

Durante todo o curso das investigações, Harvey trabalha em sua monografia. Ele está tão absorto em sua tarefa que discursa sobre Jó para os repórteres que comparecem à sua coletiva de imprensa, dada ostensivamente para explicar o desaparecimento de sua esposa:

”Estou feliz em finalmente chegar ao assunto desta conferência: qual foi a resposta à pergunta de Jó? A pergunta de Jó era: por que Deus me faz sofrer quando não fiz nada para merecer isso? Agora, Jó não tinha a mínima dúvida de que seus sofrimentos vinham de Deus e de nenhuma outra fonte. A rapidez com que uma calamidade se seguiu à outra, destruindo o mundo de Jó, deixando-o destituído, desolado e doente, tudo em um curto espaço de tempo, deu evidências dramáticas de que a causa não era natural, mas sobrenatural. O sobrenatural, com poder para agir tão forte e desastrosamente, só poderia, na mente de Jó, ser Deus. E sabemos que ele estava certo no contexto do livro, porque no Prólogo, você lê especificamente que foi Deus quem trouxe o assunto de Jó a Satanás. Foi Deus, de fato, quem tentou Satanás a atormentar Jó, não Satanás que tentou Deus.”

Os repórteres acham que ele é louco, é claro. Talvez ele seja. Mas os personagens de Spark, embora frequentemente loucos, nunca são desonestos. De fato, eles entregam muitas verdades impressionantes com um olhar impassível ou um sorriso descuidado. Boas maneiras literárias são observadas na precisão de seu discurso… Spark, cujo ponto de vista é frequentemente inescrutável, compartilha com esses personagens uma certa liberdade da convenção que sanciona suas excursões à anarquia. O Livro de Jó e as terríveis reviravoltas implícitas na narrativa bíblica — terríveis porque é Deus quem faz as perguntas e Jó quem parece ter as respostas — são um assunto adequado para esta escritora destemida e meticulosa e seu protagonista pensativo. E o fracasso desanimador dos consoladores de Jó e dos amigos de Harvey em responder às perguntas agonizantes está de alguma forma ligado à percepção de que eles estão apenas fazendo o que têm que fazer. Está na própria natureza da amizade provar-se inadequada às demandas de uma catástrofe prolongada. A grande conquista deste romance é que Spark não cai na mesma armadilha. Ela não é consoladora de Jó, e duvido que alguém possa lhe fazer um elogio mais verdadeiro do que declarar esse fato enganosamente brando.

Em todos os seus romances, Muriel Spark dá a impressão de que, embora tenha superado o problema do mal, a luta foi grande. O esforço a deixou na plena de certo desespero, uma ironia às vezes dolorosa — dolorosa precisamente porque é eficaz. Às vezes, ansiamos pelo que não está lá, como se a vitória da superação tivesse exigido uma perda muito pesada. Às vezes, parecia que o cerne da questão havia sido extirpado e apenas as transações nefastas registradas. Em ”The Only Problem” esta omissão foi corrigida. Há emoção aqui, desespero e desejo, mantidos em seu lugar por uma escrita precisa e imediata. Talvez a pedra de toque para o estilo extraordinário de Spark seja encontrada em uma frase de um romance anterior, ”Territorial Rights”. Diz-se de um personagem naquele romance: ”Naquela tarde, ela saiu com a coragem de suas convicções selvagens e a insatisfação que não tem nome.” Qualquer um que possa apreciar a alarmante e bela completude dessa frase apreciará ”The Only Problem ”. É o melhor romance de Spark desde ”The Driver’s Seat” e é, mais uma vez, uma experiência perturbadora e estimulante.

ECOS DA BRIGADA VERMELHA

A personagem central está escrevendo uma monografia sobre o Livro de Jó. Quando liguei para ela nas colinas da Toscana perto de Arezzo, onde ela está passando o verão, perguntei sobre o significado disso. ”O Livro de Jó sempre me fascinou”, disse Spark. ”Jó era um homem rico, uma figura do establishment, que suportou todo aquele sofrimento. Apareceram seus amigos que lhe disseram que ele devia ter feito algo errado, mas ele disse não. Acho que meu personagem é bem doce, na verdade.” Havia ecos das Brigadas Vermelhas da Itália na mulher terrorista que aparece no romance? ”Sim — ela era desse tipo. Acho que o terrorismo às vezes começa com uma generosidade de espírito, mas algumas pessoas têm uma violência embutida — quase como se houvesse um cromossomo terrorista. Ninguém consegue simpatizar com os verdadeiros terroristas. Acredito que o movimento falhou. Mas eu não moralizo em meus romances — talvez eu devesse, mas não faço isso.” Spark disse uma vez que a literatura do ridículo selvagem é ”a única arma honrosa que nos resta.” Alguns leitores notaram armas escondidas em seus romances, incluindo ”The Prime of Miss Jean Brodie”, ”Memento Mori” e ”The Abbess of Crewe”, um conto de moralidade sobre o escândalo de Watergate. E era verdade que ela estava escrevendo seu próximo romance em um processador de texto? ”Não”, ela disse. ”Eu ainda escrevo com uma caneta, em cadernos que encomendo de James Thin, o papeleiro, na Chambers Street em Edimburgo, minha cidade natal. Cada caderno tem 72 páginas. Eu escrevo em cada duas linhas, em um lado da página.” – Herbert Mitgang

Muriel Spark (1918-2006)

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Vera, de José Falero

Vera, de José Falero

O Rio Grande do Sul não é Minas Gerais, mas costuma ter bons autores e, quando fui escolher os melhores livros que li em 2024, apareceram dois gaúchos no meu desequilibrado pódio de 4: Falero e Luiz Antônio de Assis Brasil, respectivamente com Vera e Leopold, além de Bela do Senhor, do francês Albert Cohen, e de Sátántangó, do húngaro László Krasznahorkai. O húngaro já foi comentado por mim, Assis Brasil também — ele escreveu uma indiscutível obra-prima — logo Bela do Senhor terá sua vez, mas agora é o momento de comentar Vera.

Falero tem quatro livros publicados e todos são diferentes e têm enormes qualidades. O homem não erra. É um escritor muito sofisticado e, apesar da camiseta do Grêmio que costuma usar, sabe o que faz. Difícil encontrar textos com tal oralidade e fluidez. Falero faz uma literatura onde deslizamos facilmente pelo texto, mesmo que este por vezes descreva fatos truculentos. E há sempre um perceptível substrato de fino humor. Vera é o primeiro de três volumes que examinam a masculinidade tóxica a partir do opressor. A Bamboletras teve ínfima participação, pois, quando Falero concebia aquilo que chamava de seu calhamaço, pediu-me uma boa referência de romance de fôlego e eu lhe dei o mais óbvio dos títulos, o do maior romance que conheço: Anna Kariênina. Dia desses, ele me escreveu no Facebook:

“Lembra quando fui comprar o Anna (Kariênina), porque queria mais referências de romance de fôlego? Pois é, a minha ideia era caminhar por aí: Vanderson, da infância à vida adulta. A ideia ainda é a mesma, mas decidimos separar a história em três volumes, em vez de publicar um livro gigante. Vera é o primeiro volume. O segundo sai ano que vem.”

Anna deve ter cumprido seu papel, porém, se eu soubesse, teria-lhe sugerido um romance de formação tipo Os Buddenbrook. Em Vera, Falero constrói lenta e calmamente seus personagens. Mas não com eles congelados, ao estilo Balzac. São mulheres que se ajudam como se vivessem num formigueiro que, mesmo constantemente ameaçado ou pisoteado, deve seguir em funcionamento, principalmente para que elas estejam prontas para trabalhar para quem tem grana. São capítulos curtos e matadores, colocando o foco aqui e ali. Uma das maiores qualidades de Vera é a colocação lado a lado de duas realidades, a da vila e a da cidade burguesa, muitas vezes em capítulos alternados. São contextos chocantemente diversos, o que explica certa (ou a total) incompreensão de lado a lado. O que os ensaios sociológicos dificilmente conseguem, parece ser obtido facilmente por Falero: ele toca a realidade.

A ação acontece na vila, dentro da grande família de Vera, e na cidade, no prédio onde Vera trabalha como doméstica. Se as diferenças de ambiente são grandes, os homens demonstram que o machismo tem várias faces — eles somem, desrespeitam, são sutis, assediam, batem e até pagam pelo silêncio. São como na vida real — figuras sensivelmente mais idiotas do que as mulheres, com destaque para a impagável cena onde o porteiro descobre um preservativo no lixo, escondido dentro de uma embalagem de biscoito. Ele conclui, evidentemente, que a mulher na qual estava de olho dava pra todo mundo.

Após a apresentação vem a parte mais acelerada do romance, onde as várias histórias convergem para algum desenlace. Há momentos muito bonitos: a ida de Davi ao circo, a falta de jeito de Aroldo para abordar Vera, a negação e certeza da mãe de Camila, a TV de Vanderson. E outros momentos lamentáveis em que a opressão, a loucura e o preconceito aparecem. A tentativa do patrão com Vera e o receio dele de ser denunciado — coisa que jamais pensamos que Vera iria fazer — são grandes momentos do livro. Se Falero diz que Vanderson é o personagem principal do livro, não vamos discutir, mas esta primeira parte é de Vera.

A oralidade e a verossimilhança de tudo é absoluta, ainda mais para quem mora em Porto Alegre. São personagens vívidos e próximos, com quem nos encontramos todo dia. Não adianta, Falero é um mestre. Nasceu assim. Sabe e obtém o que precisa para contar suas histórias, desta vez uma inteiramente diversa do que fizera anteriormente. Ele consegue ser delicado e forte, tudo no momento certo. O resultado é vigoroso e impactante. O problema é esperar o segundo volume.

 

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De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

Depois da estrondosa repercussão de O Avesso da Pele, o próximo livro de Jeferson Tenório seria certamente um desafio. Afinal, O Avesso recebeu o Jabuti de melhor romance e ainda ganhou escândalos totalmente injustificados de bolsonaristas escabelados do interior gaúcho. Posso ter uma ideia do quanto De onde eles vêm foi retrabalhado, pois casualmente participei de um evento com Tenório em 2021, no qual ele leu alguns trechos de seu “próximo romance”. Notei grandes mudanças naquilo que lera e ouvira.

Uma das características de Tenório é o fato de ele partir da subjetividade para o social. É um autor pausado, de ar clássico, que não parece disposto a grandes palavras ou frases que depois virarão citações verdadeiras ou falsas de Clarice Lispector ou Mia Couto. Sem pressa, ele envolve o leitor. Descreve tudo com calma, com uma linguagem envolvente na qual a gente cai para receber a paulada. E mesmo a paulada é macia, articulada. Em vez de gritar “olha aqui o que acontece, seu idiota”, ele demonstra tranquilamente o que é a vida de Joaquim, como é ser um cotista e, principalmente, como é ser um negro pobre. Talvez o que assuste algumas pessoas seja uma de suas maiores qualidades — ele não desvia sua narração para evitar o sexual ou o visceral.

De onde eles vêm é um romance de formação. Joaquim é um cara inteligente, negro e pobre que é recebido como cotista por uma universidade totalmente despreparada para ele. Joaquim se retrai — é tudo muito estranho. Ele tem dificuldades até para chegar fisicamente à universidade, pois as passagens são caras, enquanto outros chegam às salas de aula frescos e cheirosos (palavras minhas). Ele não se sente um idiota, mas sabe que tem que provar que tem capacidade e que merece estar ali. São gerações de dor, pobreza e espezinhamento a serem vencidas.

É claro que Joaquim — órfão, sem emprego e tendo que cuidar da avó com Alzheimer — sofre ao ser puxado de volta a seu mundo de pobreza. (Isto não é um spoiler, queridinhos). Afinal, falta dinheiro e é um problema usar o grana curta da aposentadoria da avó para beneficiar-se modestamente. O fato de sua namorada branca pagar seu consumo nos bares não melhora muito as coisas. Tudo o chama de volta.

Joaquim tem aspirações literárias, mas sente que não dá para tudo isso — a universidade, a literatura, a necessidade de ganhar alguma grana, a avó e a namorada tornam-no um personagem de Dostoiévski correndo de lá para cá, tentando reparar todos os males e as injustiças de seu mundo. E eu, leitor, fiquei pensando na avó dele que não sabia o que pensar de seu neto que queria ser escritor:  “Olha, guri, a gente se fodeu a vida toda. Meus avós se foderam. Meus pais se foderam. A sua mãe se fodeu. Uma geração inteira se fodeu. Por séculos os negros se foderam pra que você chegasse até aqui. E agora é isso que você vai fazer da sua vida? Um curso de letras? Um curso que não vai ajudar os negros a sair dessa merda toda? Não se tornará um advogado? Um médico? Um engenheiro? Até onde você vai com isso?”.

Pois é.

Recomendo muito!

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A professora que perdeu o réu primário, de Astúria Vasconcelos

A professora que perdeu o réu primário, de Astúria Vasconcelos

Este é um livro que merece atenção. É um livro sobre uma professora do ensino médio da rede pública de Porto Alegre. Ela trabalha como uma condenada para poder fazer frente a seus modestos gastos e ser muitas vezes atacada por colegas e alunos. Há também seu passado: ela não suporta que estranhos venham colocar a mão no seu ombro, tal intimidade faz-lhe lembrar do tio asqueroso. Às vezes do ex-marido.

Os alunos são difíceis de controlar, apesar das eventuais manifestações de carinho. Não é uma vida fácil, as tentativas de se distrair com o vinho, com a amiga, com a bicicleta, sempre com ajuda de antidepressivos e de terapia não dão muito certo. Tu tens que ter tua vida… É algo assim que dizem para a professora que trabalha 60 horas semanais.

Este é um livro de ódio muito original. Não fala na nobreza da profissão de educador, não fala na formação da juventude do país, fala é do desespero de uma professora de artes para suportar a vida e fazer seu trabalho como pode. Eu, Milton, trabalho atrás de um balcão ouvindo muitas pessoas, muitas delas professoras, e sei bem que a vida desta professora está longe de ser ficcional. Há um cansaço monumental que antidepressivo nenhum vence. Ganham pouco, trabalham muito, e silenciar adoece.

A história de Astúria tem pontos em comum com o filme de John Waters “Mamãe é de Morte”, mas sem seu registro trash-cômico. A relação da professora com as pessoas de seu trabalho está muito mais para Thomas Bernhard, mas sem a minúcia descritiva do austríaco. Talvez ela nem tenha tempo para odiar tão minuciosamente. Já a repetida sensação de estar num beco sem saída se aproxima de cenas “O Ateneu”, de Raul Pompeia.

E a professora perde o réu primário de uma forma que eu jamais contaria aqui. O livro está catalogado como romance psicológico / suspense. Está correto.

Por fim, recomendo este A professora que perdeu o réu primário que será lançado aqui na Livraria Bamboletras nesta sexta-feira (29), entre 17 e 20h.

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Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor, de Carlos Guimarães

Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor, de Carlos Guimarães

Resenha escrita para a revista Parêntese.

Há no RS algum apreciador de futebol com mais de 30 anos que não tenha ouvido, visto ou lido Ruy Carlos Ostermann? Não creio. Pedir distância crítica a qualquer um deles é impossível. Eu, por exemplo, comecei a ouvi-lo na Rádio Guaíba no distante ano de 1967 e de lá para cá o contato foi muito frequente. Para deixar ainda maior a proximidade, passei boa parte de minha vida trabalhando em dois empregos e eles me obrigavam a um deslocamento a partir das 16h, bem no horário do Gaúcha Entrevista, onde o Ruy, produzido por longo tempo pelo saudoso Paulo Moreira, entrevistava pessoas ouvindo-as com curiosidade e sem interrompê-las. Pois ele foi um comunicador multitemático, multimídia e aparentemente ubíquo.

Li Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor (436 páginas), em 3 dias e não me considero masoquista, ou seja, o livro e a extensiva pesquisa de Carlos Guimarães me prenderam por completo. São 35 capítulos diagramados com inteligência, deixando claros os depoimentos, as crônicas do biografado e o próprio texto de Guimarães, o que torna o livro um longo diálogo em que as comprovações do que está sendo dito aparecem de forma fluida.

O começo não promete muito. As origens familiares não são, digamos, fascinantes, mas isto dura pouco. Logo o texto ganha em velocidade e interesse. Também pudera! Seus pais tomam a atitude incompreensível de colocá-lo num internato a poucos metros de casa. E Ruy não parecia ser um problema. Ali parece nascer uma revolta que faria nascer outra pessoa, uma que, inclusive, teria dificuldades na escola e que aprenderia a dirigir seus interesses apenas para o que lhe interessava — a linguagem, a escritura, o pensamento e o esporte.

Ruy foi dos primeiros intelectuais que quebraram a falsa impossibilidade de alguém ser conhecedor de futebol e, ao mesmo tempo, uma pessoa de amplo conhecimento em áreas como arte, filosofia, literatura, história, ciências e música. De forma muito pessoal, ele foi o jornalista que trouxe a linguagem culta e elegante para o rádio, ao mesmo tempo que destronava o achismo reinante. Foi Ruy quem implantou as planilhas em seus comentários. Ele não dizia apenas que um time jogou melhor que o outro, depois enfiando um blá-blá-blá qualquer — nosso homem “de humanas” tratava de informar o número de chutes e de chances de gol, os escanteios, as defesas difíceis dos goleiros, etc. E tudo isto traduzido numa linguagem ausente de aridez. Imagino a festa que ele faria com as estatísticas de posse de bola e os mapas de calor que temos hoje.

Além disso, Ruy era um interessado observador de esquemas táticos, ou seja, ele podia descer alguns degraus em direção ao campo sem passar vergonha. Podia conversar com um técnico sem que este sugerisse a ignorância do jornalista.

O livro de Guimarães também oferece um belo e atraente painel da história do rádio e dos jornais de Porto Alegre, com destaque para o apogeu e declínio da Caldas Junior e a tomada de liderança pela RBS, através de uma administração mais sensata e da paulatina contratação das mesmas figuras que antes brilhavam na Guaíba. As fofocas, hesitações e desafios estão todos muito bem contados, inclusive a rivalidade entre Ruy e Lauro Quadros. Por muito tempo, Ruy foi chefe do departamento de esportes da Rádio Gaúcha e âncora de programas com a participação de Lauro.

Lauro e Ruy, de 85 e 90 anos de idade, parecem dois embaixadores. Eles negam quaisquer confusões, mas não era o que se dizia na época. De um lado e de outro, Guimarães tenta furar o bloqueio dos dois velhos, sem sucesso. São amigos. E as amizades são um importante ponto na vida de Ruy, Ele as cultivava com uma tão especial dedicação que elas foram o que impediu sua ida para a Globo, que lhe ofereceu “rios de dinheiro” para se transferir e que recebeu sempre a mesma resposta: a vida dele, a família e os amigos estavam aqui.

Recomendo o livro de Guimarães. E não apenas para os amantes do futebol.

Carlos Guimarães e Ruy Carlos Ostermann | Foto: Rogério Fernandes / Matinal

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Apresentando Middlemarch

Apresentando Middlemarch

Middlemarch é um mistério. Muitos clássicos do século XIX são de conhecimento quase geral entre leitores contumazes, mas o livro de George Eliot — que era uma mulher, nascida Mary Anne Evans — permanece ignorado pela maioria.

Acertando como sempre, Virginia Woolf escreveu que Middlemarch era “um dos poucos romances ingleses escritos para adultos”. Eu diria: “escrito exclusivamente para adultos”. O livro aborda temas muito atuais: o status das mulheres perante à sociedade, a ascensão da classe média e a crítica da moralidade, da religião e do casamento.

Sem exagero, trata-se de um livro estupendamente inteligente, publicado em 1871.

Middlemarch é o nome de uma cidade fictícia do interior da Inglaterra a a ação se passa lá volta de 1830. Como Anna Kariênina, o livro tem enredo múltiplo, centrando-se em dois casais, montando um quadro da vida rural inglesa e uma análise dos relacionamentos humanos em geral, especialmente das relações amorosas e do casamento.

O núcleo são os casais Dorothea e Edward Casaubon, Rosamond e Tertius Lydgate.

Dorothea, mulher excepcionalmente independente, politizada para sua época e de grande sede intelectual, casa-se com Casaubon, homem erudito e quase 30 anos mais velho. Ela o admirava, ele prometia muito, mas se revelou frio e chato. Um desastre.

Por outro lado, Lydgate é um médico entusiasmado, amante da ciência, que casa com a fútil Rosamond, que o faz gastar o que não tem. Outro desastre.

O curioso é o afastamento dos dois casais. algo muito semelhante novamente à Anna Kariênina. Um drama aqui, outro lá.

Mas nada desta apresentação faz sentido se não levarmos em conta as intervenções da narradora, com comentários cheios de ideias, pensamentos revolucionários e a colocação de situações morais muito originais.

Nas suas 800 páginas, há um bom número de personagens e tramas que encontram os temas subliminares, incluindo a situação das mulheres, a natureza do casamento, o idealismo e o interesse pessoal, religião e hipocrisia, reforma política e educação. Esse livro é maravilhoso!

Ah, tem algo que não era uma novidade no romance vitoriano, mas que Eliot professa como ninguém: sua profunda simpatia pelos personagens secundários, pelas pessoas simples, feias e pobres,

Vamos a um pouco mais de Virginia Woolf?

“A luta das heroínas de George Eliot, por conta da suprema coragem do empreendimento a que se dedicavam, termina em tragédia ou num compromisso que é ainda mais melancólico”.

Tudo porque, ainda nas palavras de Woolf, “o fardo e a complexidade da condição feminina não lhes era suficiente. Elas desejavam sair do santuário e colher para si mesmas os estranhos frutos da arte e do conhecimento”.

Temos Middlemarch na Livraria Bamboletras. Sim, a tradução da Martim Claret é boa.

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Compre o livro na Livraria Bamboletras, na Av. Venâncio Aires, 113. Ah, não mora em Porto Alegre? Use o WhatsApp 51 99255 6885. A gente manda!

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A mulher de dois esqueletos, de Julia Dantas

A mulher de dois esqueletos, de Julia Dantas

Este é um exemplar do chamado romance híbrido, isto é, aquele que mistura gêneros. Cada capítulo nos surpreende e não somente por seus saltos temporais. Começa com um (bom) conto escrito pela personagem principal, segue com a vida  da mesma durante a pandemia, há um capítulo-catálogo todo de medos e desejos relacionados à gravidez, etc. Na verdade, o romance parece um livro de contos com a mesma personagem em quase todos eles.

Não pretendo estragar a leitura de ninguém, mas digo que o capítulo-conto de abertura é bastante pânico, seguido por outro que traz uma discussão puxada pelo namorado da escritora a respeito do conto do primeiro capítulo. E aqui o livro segue já de outra forma. O chamado “namorado” não é abusivo, mas digamos que tende a ser. Ele não apenas complica a vida como pode, como vai invadindo o espaço físico da autora dentro do pequeno apartamento que dividem durante a pandemia. Ele é hábil nisso. Julia também é muito hábil e sutil ao descrever o relacionamento. Parece que ela também cede a ele. Se a personagem evita o conflito, Julia evita a crítica direta. Paradoxalmente, a contenção é um catalisador feminista fortíssimo para quem lê. (Posso dizer que estava lendo este capítulo durante a madrugada e que ele me acordou totalmente. Putz, achei o tal namorado um baita chato).

Há um capítulo que lembra o Ítaca, do Ulysses de Joyce, mas sem as perguntas. É um interessante catálogo ou catecismo de medos e desejos da personagem-escritora a respeito de engravidar. Ela está com quase 40 anos e, se não tiver filhos agora, a biologia logo decidirá por ela. Muitos dos medos são irreais e lá vamos nós para mais uma intervenção do resenhista gonzo. (Afinal, um obstetra que leu o livro inteiro numa tarde — prova de sua alta qualidade — voltou aqui na Bamboletras e deu risadas sobre algumas das suposições da personagem. Elas seriam totalmente fantasiosas. Conheço um pouco o problema: minha ex teve dois filhos de mim e, se eu tinha mil receios do que poderia acontecer, imagine uma portadora imaginativa).

Para aumentar a dúvida, nos capítulos seguintes Julia passa a tratar seu parceiro não mais como “namorado” e sim como “companheiro”. Ora, parece que o cara é outro e este é bem legal, mais digno de ser pai, creio eu. (Sim, quem lhes escreve é um homem cuja barriga só cresce por ser glutão, mas achei o sujeito digno de uma paternidade, fazer o quê?).

Importante ressaltar que há muito humor no texto de Julia. Não vou contar o final, vou deixar para vocês saberem como Vitor Ramil, Caio Fernando Abreu e suas runas entram na história, mas afirmo que Julia Dantas leva brilhantemente sua história até a última página com um texto inteligente, interessante, leve… E dubitativo.

Recomendo!

Se eu fosse o “namorado”, jamais desalojaria Julia de sua cadeira de balanço. Tenho uma igual. Foto: Renan Mattos / Agencia RBS

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As Willis: Sexo, Morte e Escaravelhos, de Carlos Gerbase

As Willis: Sexo, Morte e Escaravelhos, de Carlos Gerbase

Não há nenhum problema em um livro ser divertido, né?, desde que seja bem escrito e com bons artifícios para a gente ficar preso à leitura. Um escritor não precisa tentar sempre escrever a bíblia. Por exemplo, várias histórias da incensada Mariana Enriquez — e eu sou dos que a adoram — são apenas isso: divertidos. Eu gostei demais deste As Willis, de Carlos Gerbase. Largava e pegava o livro novamente, para ler mais um capítulo. É preciso que haja livros assim, capazes de desviar nossa atenção da loucura diária e, se eles forem intrigantes e inteligentes, melhor. Ainda melhor se tiverem uma pitada de humor negro. E se incluir sexo, magnífico! Aqui tem tudo isso.

Originalmente, as Willis são espíritos de virgens que morreram antes de casarem e que aparecem no balé Giselle ou Les Willis, de Adolphe Adam. Giselle é um dos mais famosos balés românticos e costuma ser dançado na ponta dos pés, como manda a tradição. No argumento original, as Willis saem de suas tumbas à noite para atrair homens com a dança e levá-los à morte. O balé tem música bastante chata, mas, se esquecermos desta e dos bailarinos nas pontas dos pés, vai sobrar uma história perfeitamente gótica.

O gótico literário foi uma vertente do romantismo voltada para o obscuro. Fala de morte, insanidade, sonhos e demônios, coisas assim do tipo Frankenstein (1818), de Mary Shelley. A origem das Willis parece estar em Heine (1797-1856) que escreveu sobre uma lenda alemã em que os espíritos das noivas que morreram antes do casamento atraem seus noivos para a floresta, a fim de fazê-los dançarem até a morte. Acho que o nome deveria ser dito vilís (francês) ou vilis (alemão?) e não como o nome do ex-deputado Jean Wyllys, que não foi ameaçado exatamente por virgens.

As Willis tem quase tudo do gótico — claro, os cemitérios também se fazem presentes, no caso, o da Santa Casa em Porto Alegre. Não se preocupem, ninguém dança até morrer, não foi um spoiler, mas, obviamente, o autor baseou-se na história original e faz referências à tradição, apesar de desobedecê-la. Há uma Giselle na trama, há um Alberto apaixonado por ela — no original ele é Albrecht –, e há a Rainha das Willis, que se chama Myrtha em ambas as histórias. Tem também uma bailarina que se chama Margot (Fonteyn?).

Faço este “intermezzo culto” não para me mostrar nem para dizer que Gerbase copiou uma história existente. A história original é ínfima e há muito de invenção nas Willis de Gerbase, que também são virgens que morreram antes do casamento e que podem, sim, matar. E matam facilmente por serem belas e por se alimentarem de suas conquistas através de mecanismos não antropofágicos que não irei explicar por motivos óbvios. Estaria contando parte fundamental da história.

As Willis é um tremendo livro de entretenimento, passado todo em Porto Alegre. Eu me diverti bastante com a boa trama criada sobre a base que expliquei acima, A coisa funciona maravilhosamente. O livro não é sanguinolento, o bom humor perpassa toda a história. Há uma interessante dupla de policiais, uma dupla de irmãs Willis sensacionais e um pastor evangélico que é exatamente aquilo que se espera dele. E, já disse, a coisa funciona.

O livro é uma espécie de tese acadêmica muito livre, escrita por Irina, uma willi. Sabe-se que Gerbase é ou foi professor na PUCRS e que deve ter sofrido horrores com alunos e com o formato insípido das teses (opinião minha). Além de professor, Gerbase dirigiu e fez o roteiro de vários filmes e isto está claro no livro. Como numa boa série, ele consegue envolver o leitor, deixando para o final o desenlace de várias tramas. Eu engoli o livro rapidinho. E curti.

Recomendo!

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Que romance é tão essencial que até os mortos querem saber do que se trata? Descobri que no início do livro de Jean Giraudoux, Bella (1926, jamais traduzido para o português), o narrador, ao participar de um serviço funeral para os colegas de escola que caíram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, passa a ouvir as vozes de seus amigos mortos. A maior parte deles falam sobre coisas mundanas e militares: os desconfortos da guerra, os insuportáveis oficiais comandantes. Mas a última voz é a de um jovem atormentado pelo pensamento de que nunca teve a chance de ler certo romance. O que o jovem morto quer é que o narrador resuma A Cartuxa de Parma. Sim, este é um livro que você deve ler antes de morrer, para usar um lugar comum.

A Cartuxa de Parma, de Stendhal, é um belíssimo épico político, além de uma história muito íntima de intrigas amorosas e sérias frustrações eróticas, ambientado na corte principesca de Parma, durante a época do próprio autor. Desde o momento em que apareceu, em 1839, o último romance completo de Stendhal foi considerado uma obra-prima. Apenas um ano após sua publicação, Balzac o elogiou em uma longa resenha que imediatamente estabeleceu a reputação do romance. ”Vejo perfeição em tudo” foi apenas um dos louros que Balzac deu à Cartuxa, no que foi certamente um dos maiores atos de generosidade literária que se conhece. Sessenta anos depois de Balzac, André Gide classificou o livro como o maior de todos os romances franceses e uma das duas únicas obras em língua francesa que poderiam ser contadas entre as 10 melhores da literatura mundial. (O outro seria As Ligações Perigosas). E há mais: em um artigo de 1874, Henry James colocou Cartuxa “entre os dez melhores romances de todos os tempos”. Eu, pequeno e humilde, faço o mesmo.

À primeira vista, o esqueleto da história de Stendhal sugere um simples romance histórico. A história começa com a tentativa do jovem e obstinado aristocrata italiano Fabrício del Dongo de ter uma vida coerente consigo mesmo como soldado no exército de Napoleão. Ele não sabe nada de guerra ou de armas e a cena cômica de que ele participa em Waterloo sem saber bem onde está, o que deve fazer e sentindo nojo de tudo aquilo, ensinou o Tolstói de Guerra e Paz. O russo confessou que sabia este capítulo de cor e salteado. Mas sigamos o Cartuxa sem dar muitos spoilers. Depois, de forma absolutamente cínica, Fabrício tenta estabelecer-se como prelado na Igreja Católica Romana sem desgrudar de suas muitas amantes. Há as tentativas de sua bela tia Gina, duquesa de Sanseverina, e de seu amante, o astuto (e casado) primeiro-ministro conde Mosca, para ajudar a estabelecer Fabrício na corte. Há a prisão de Fabrício na temida Torre Farnese. Há também seu caso de amor infeliz com a linda — e um tanto chata — filha de seu carcereiro, Clélia.

Então o que, exatamente, torna o Cartuxa tão indispensável para o soldado de Giraudoux? Ora, parece-me que Cartuxa exala um ar incomparável do qual todo ser humano precisa absolutamente ter respirado pelo menos uma vez. Não que este ar seja puro… Em nossos dias, estamos quase tão longe do romance de Giraudoux quanto os personagens de Giraudoux estavam da publicação de Stendhal. Por que o romance continua tão novo?

Em 4 de novembro de 1838, Stendhal (o mais famoso dos mais de 200 pseudônimos usados ​​por Henri-Marie Beyle, um diplomata de carreira nascido em Grenoble e amante de todas as coisas italianas, principalmente das mulheres) sentou-se em sua mesa no número 8 da Rue Caumartin em Paris, deu ordens para que não fosse incomodado mesmo que a cidade estivesse pegando fogo e começou a ditar um romance. O manuscrito foi concluído em apenas sete semanas, no dia seguinte ao Natal — um feito impressionante, quando você pensa que uma edição típica tem 500 páginas. A rapidez de sua composição se reflete na vivacidade narrativa pela qual o livro é tão bem conhecido. (Há momentos onde a velocidade claramente cobrou seu preço. Duas ou três vezes, Stendhal volta para explicar fatos que deixou para trás, mas até isso faz com grande charme).

A ideia do livro estava martelando a cabeça de Stendhal há algum tempo. Seus diários do final da década de 1820 estão cheios de anotações sobre as histórias complicadas da nobreza italiana. Os esboços do romance devem muito a uma crônica do século XVII sobre a vida de Alessandro Farnese, mais tarde Papa Paulo III, que Stendhal conhecia. (Farnese, que se tornou Papa em 1534, tinha uma linda tia, Vandozza Farnese que era amante do astuto Rodrigo Borgia. Ele assassinou o criado de uma jovem. Foi preso e escapou. Finalmente, manteve como amante uma mulher chamada Cléria.) Então, embora a extraordinária velocidade da composição do romance possa ser atribuída a um lampejo quase sobrenatural de inspiração, ela também pode ser vista como resultado de um longo processo.

Assim como as circunstâncias de sua criação, o romance parece espontâneo. O ritmo rápido da narrativa é compensado por uma avaliação fria e sarcástica da natureza humana e, em particular, da política. Stendhal era um liberal que, como jovem idealista, seguiu Napoleão para a Itália, Áustria e Rússia. Depois, viu-se como diplomata em uma época de alto cinismo político. O desgosto com a complacência burguesa de seus compatriotas desempenhou um papel importante em sua admiração pelos italianos, que considerava mais autênticos — mais profundos e mais suscetíveis a emoções violentas –, como ele escreveu em seu diário. A paixão italiana está evidente no livro, mas é o ímpeto, a velocidade do romance, que o faz uma leitura tão boa.

O que torna incontornável A Cartuxa de Parma não é seu estilo urgente, até mesmo impaciente (“Aqui pediremos permissão para passar, sem dizer uma única palavra sobre eles, por um intervalo de três anos”). O livro é uma lição de política, da linha tortuosa da política. Mosca e Gina são craques. Gina é também uma hábil manipuladora amorosa, mas parece desejar o impossível. Os personagens são vítimas de emoções incontroláveis. Há também o herói do romance, Fabrício, que, quando adolescente, desobedece seu pai conservador e foge para lutar por Napoleão. O que mais ressoa para os leitores não é o idealismo de Fabrício — que é, afinal, endêmico entre os protagonistas de romances românticos –, é que ele é sistematicamente desmentido pelas duras e ocasionalmente ridículas realidades da vida. (Fabrício, para nossa alegria como leitores, dorme durante boa parte de Waterloo). Mas há mais alguma coisa moderna: a forma com que o bom senso lhe escapa, às vezes disfarçado de inteligência…

Fabrício tenta se moldar a algum plano — um plano que, como o romance demonstra, nunca é capaz de seguir. Isto mais parece século XXI do que XIX. Não é de se admirar que ele se expresse tão frequentemente na interrogativa: “O que vi foi uma batalha? Essa batalha foi Waterloo?”, “Sou tão hipócrita?”. Uma medida irônica da incapacidade de Fabrício de dominar a arte de viver é que ele encontra a verdadeira felicidade apenas na segurança uterina de sua cela de prisão na Torre Farnese (como muitos notaram, ele está preso por exatamente nove meses), da qual ele reluta em escapar depois de se apaixonar por Clélia.

Fabrício não é o único personagem vívido e estranhamente contemporâneo aqui; você poderia facilmente argumentar que os verdadeiros heróis são sua tia e seu amante. Mestres políticos e sociais, eles são muito mais complicados e interessantes do que o jovem que eles passam tanto tempo tentando, em vão, estabelecer numa vida adulta. (Mosca para Gina: “Podemos encontrar para você um marido novo e acomodado. Ele teria que ser extremamente avançado em anos, pois por que você deveria me negar a esperança de eventualmente substituí-lo?”) Gina, em particular, é uma das grandes criações da imaginação romanesca do século XIX: brilhante, sedutora, astuta, vulnerável, apaixonada e, ainda assim, impotente, presa de uma paixão proibida por seu lindo sobrinho. Nós a conhecemos aos 13 anos, tentando conter uma risadinha diante da aparência esfarrapada de um oficial napoleônico que foi alojado no opulento palácio de seu irmão e daquele momento em diante nunca conseguimos tirar os olhos dessa mulher que, apesar de sua posição social e do dilema em que se encontra, nunca é menos do que totalmente humana. Mosca, também, que, na geometria perfeita do amor não correspondido, adora Gina desesperadamente de uma forma que ele sabe que nunca será correspondido, é uma criação intrincada, complexa e conflituosa em sua vida pública e privada. Além disso, é vítima de paixões eróticas que o agarram, na prosa extraordinária de Stendhal, “como uma cãibra”.

Não podemos esquecer que o ímpeto narrativo é claramente o trabalho de um escritor que, como seu herói, se rebelou em sua juventude contra sua família estupidamente convencional, um homem que queria ser conhecido como um artista e amante de mulheres. (O epitáfio de Stendhal, em italiano, que ele concebeu quando ainda tinha 30 anos, diz: “Ele viveu. Ele escreveu. Ele amou.”) Mas A Cartuxa também é o trabalho de um diplomata experiente, muito familiarizado com a política e os compromissos que a vida impõe. A voz mais velha do autor aparece no destino que ele escolhe para seus personagens.

Então, o romance é parte Fabrício e parte Mosca e Gina. Ou, para colocar de outra forma, ele contém as melhores qualidades de seus rivais franceses contemporâneos: ele tem as conspirações de Balzac, com assassinatos, documentos forjados, disfarces e a hipocrisia motivada pela política, e também o estilo glacial de Flaubert. Em outras palavras, tem algo para todos.

A Cartuxa transmite claramente o que Henry  James chamou de ”inquietação” da ”mente superior” de Stendhal por meio de uma série de escolhas sutis, mas bastante concretas. Há romantismo, mas há o estilo muito francês que Proust chamou de “voltairiano”, o estilo de ironia do século XVIII.

Antes de explicar o que significa, afinal, cartuxa, posso tentar dizer o que há no mundo de A Cartuxa de Parma? Há acertos públicos e erros privados, erros públicos e acertos privados, banquetes com inimigos, velocidade, história épica com detalhes jornalísticos, amores desastrosamente insatisfeitos, idealismo, cinismo, negligência da juventude satisfeita, tristes sabedorias da velhice, minutos dos quais a gente lembra em detalhes e três anos que não interessam, grandeza, desordens, magnificência.

Não é de se admirar que o jovem soldado de Giraudoux tenha sentido que precisava conhecer A Cartuxa de Parma. O que mais os mortos desejariam que não fosse a vida?

P.S. — Stendhal gostava de títulos estranhos. Ele jamais explicou o motivo pelo qual outra obra-prima sua se chamava O Vermelho e o Negro. Já a tal A Cartuxa de Parma é citada de passagem apenas no antepenúltimo parágrafo do livro… O que é? É um convento da ordem religiosa dos cartuxos. Esta ordem religiosa de grande austeridade foi fundada por São Bruno em 1066.


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O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

Este livro é um torpedo, uma obra-prima. Simenon era um mestre da análise psicológica. Em O homem que via o trem passar, acompanhamos Kees Popinga, um sujeito de lógica nada normal. Normal, Popinga assim parece nas primeiras páginas. Em sua bela vila em Groningen, na Holanda, ele leva uma vida pacífica e previsível com sua esposa, a quem chama de “mãe” — exceto na cama, espero — e seus dois filhos, Frida e Carl. Popinga exerce uma importante posição na melhor casa de importação e exportação da região, a de Julius de Coster en Zoon. Em suma, está tudo certo, tudo está bem planejado e certinho nesta vidinha enfadonha. Kees proíbe-se de entrar em certos bares que são taxados de inadequados. Quanto ao bordel local, onde, durante anos, estivera Pamela, a mulher que ele considerava a mais atraente que existia, Popinga nunca colocaria seu pé. Por nada no mundo. Pamela era uma das amantes de de Coster.

Sem spoilers. Tudo que contarei agora está no início do livro. Um dia, ocorre um problema na firma e Popinga precisa falar com o chefe à noite.  Não o encontra, mas, finalmente, por acaso, ao passar por um bar, Popinga o vê pacificamente instalado numa mesa de bar. O chefe também o vê e gesticula mui gentilmente para que Popinga entre. Com total tranquilidade e cinismo, Julius anuncia ao seu encarregado de negócios que a Companhia será declarada em liquidação muito em breve porque, entre outras coisas, ele, Julius, contrabandeia e contrabandeia há vinte anos. Então, Julius conta-lhe que decidiu desaparecer discretamente, naquela mesma noite, para se refugiar na Inglaterra, onde uma poupança o espera. E aconselha Popinga a fazer algo semelhante. Ali mesmo, de Coster lhe entrega uma graninha e faz uma vaga promessa de retomar futuramente seus negócios com Popinga.

E o mundo de Kees cai. Em primeiro lugar, com o dinheiro que lhe foi dado por de Coster, Popinga compra uma passagem para Amsterdam. Acontece que de Coster abandonou ali, no Carlton Hotel, a famosa Pamela, que ali mantinha há algum tempo. Popinga se apresenta a ela e, sem preâmbulos, por achar natural seu pedido (“afinal, era o trabalho dela, não era?”), exige passar uma hora de sexo com ela. A jovem cai na gargalhada na cara dele. Azar dela.

Depois, ele vai para Paris. Embora os personagens que o rodeiam — principalmente Jeanne Rozier, seu amante Louis e um bando de bandidos — pertençam à realidade, existe, para Popinga, apenas uma realidade: a sua. Kees Popinga reina supremo, está nas manchetes, escreve aos diretores de certos jornais para corrigir o que, segundo ele, é falso nas matérias a seu respeito. Ele até se dá ao luxo de escrever ao Comissário que o persegue. Aos poucos, ele se deleita com a fama, mas sobretudo com a habilidade excepcional com que escapa de seus perseguidores, pessoas que vivem dentro das normas. Ele acaricia, lisonjeia e constantemente insiste no valor de sua inteligência. Kees Popinga escapa de todos porque é o mais esperto.

O livro é enormemente envolvente. Kees é de enorme verossimilhança. Simenon explora seu personagem em profundidade, lá de dentro de seu cérebro de psicopata. O resultado é espetacular. Não pensem em um livro sangrento, nada disso. Sangue não é com Simenon, seu negócio são seres humanos. E, apesar do desvio e da perversão e da megalomania, é a impressão de um ser humano que o leitor leva de Kees Popinga, O homem que via o trem passar.

Georges Simenon (1903-1989)

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Na praia, de Ian McEwan

Na praia, de Ian McEwan

Este é um dos melhores McEwan que já li. O livro localiza-se num ponto muito curioso dos costumes do século XX, pouco antes da liberação sexual dos anos 60, bem no final da repressão na Inglaterra, coisa que seguiu aqui no Brasil por mais alguns anos, conforme meu corpo pode testemunhar com certa tristeza.

Edward Mayhew e Florence Ponting acabaram de casar. Ele é um historiador de uma família mais pobre, ela é uma talentosa violinista principal de um quarteto de cordas com aspirações a Wigmore Hall — diga-se de passagem, o melhor lugar do mundo. Ambos tem 22 anos. Sua história de amor cresce muito a partir da primeira frase do livro, que antecipa o que leitor lerá depois: “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente  impossível”.

A lua de mel acontece na praia Chesil, em um hotel. Eles comem a ceia nupcial sob a guarda de dois garçons, como intrusos. Logo eles irão embora, deixando-os com os problemas de uma retidão moral que só os atrapalha. Florence parece preferir nunca ter ninguém a tocando, nem mesmo esse homem que ela verdadeiramente ama. Ela ficou muito preocupada após a leitura de um manual de casamento que só falava em mucosas, glande e penetração, jamais em prazer. Enquanto isso, Edward sonha silenciosamente com o deleite sem fim que será possuir Florence. Esses dois mundos já colidiram (ou colidem) várias vezes, e não costuma dar certo. Poderia dar uma bela comédia, mas o momento é grave e o tratamento de McEwan também, além de poético e compreensivo.

Como já disse, os dois se amam, mas a inexperiência de Edward e aquilo que Florence sente como um ataque à sua virtude, serão um drama verdadeiro. McEwan acha o tom perfeito para lidar com esse relacionamento, transformando-o em algo muito perturbador. Tanto Edward quanto Florence temem que ela seja “frígida”, essa palavra antiga, e veem esse estado como espécie de maldição para todo o sempre.

McEwan interrompe a narrativa com dois capítulos longos e maravilhosos que detalham seus passados e o encontro de Florence e Edward, junto às pequenas mitologias que eles estabelecem um com o outro. O idílio na aldeia da infância de Edward é perturbado por um acidente sofrido por sua mãe quando a guerra termina. Florence é sufocada em uma casa burguesa, por uma mãe filosófica e um pai rico. As implicações dessas diferentes educações reverberam neles. Nos romances de McEwan, sabemos, ninguém escapa de sua classe social.

O final, belo e triste, traz uma qualidade de conto de fadas à novela. Claro, seria horrível contá-lo aqui. McEwan é o malvado de sempre. O olhar de Florence pelo Wigmore Hall na cena final é puríssima (e boa) literatura.

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Memento Mori, de Muriel Spark

Memento Mori, de Muriel Spark

É inacreditável que Muriel Spark (1918-2006) tenha escrito o divertido Memento Mori em 1959, com apenas 41 anos. Seu conhecimento sobre as pessoas velhas já era enorme! A expressão Memento mori significa “lembre-se de que é mortal” ou “lembre-se de que vai morrer”. (Na antiguidade, era usada pelos filósofos estoicos como expressão de reflexão. Nos mosteiros católicos, é uma saudação utilizada pelos monges como um exercício diário de aceitação da morte.) E é isso que ouve um grupo de velhinhos ingleses  quase todos os dias de um anônimo que lhes telefona. Alguns estão em clínicas geriátricas, outros flanando por aí, alguns ricos, outros não. E chamam a polícia para descobrir o autor das mensagens, sempre ditas assim, sem mais. Este mote filosófico e brilhante é o estopim para um belo livro de Dame Muriel.

Eles suspeitam que quem telefona é um de seus inimigos ou parentes hostis. Quem estaria tentando assustá-los? Ou estariam interessados nas heranças? Mas o chamador fala com vozes e sotaques diferentes para pessoas diferentes e tem um conhecimento inexplicável de seus movimentos. Várias explicações sobre a origem das ligações são propostas, mas nenhuma se encaixa em todas as evidências. A polícia fica perplexa, e o inspetor aposentado Mortimer, ele mesmo um suspeito aos olhos de alguns, conclui: “na minha opinião, é a própria Morte”. Quem será?

Embora o assunto seja a inevitabilidade da morte e as várias aflições, físicas e mentais, da velhice, o romance está longe de ser mórbido ou deprimente. Pelo contrário, é maravilhosamente engraçado do começo ao fim.

Um romance sobre a morte pode ser engraçado? Sim, se ele for sobre como sobre a morte é percebida, temida, negada e antecipada de várias maneiras pelos idosos. À medida que o tratamento médico e a tecnologia continuam a melhorar, a morte é adiada cada vez mais para mais e mais pessoas, mas isso é uma bênção mista. Temos que viver mais com todas as indignidades e aflições da velhice, da incontinência ao Alzheimer, enquanto aguardamos o fim inevitável, sobre o qual só a fantasia das pessoas tem algo de reconfortante a dizer.

A ficção inglesa dos anos 50 é muito boa. Lembro agora apenas de Lucky Jim e de Sábado à noite, domingo de manhã, duas obras-primasDeve ser o Alzheimer. Ops, o telefone está tocando. Já volto.

Muriel Spark

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Bambino a Roma, de Chico Buarque

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Bambino a Roma é um livro escrito com leveza, narrando as aventuras do menino Chico Buarque na Itália durante os dois anos em que seu pai deu aulas na Universidade de Roma — entre 1953 e 1955. Sérgio Buarque de Hollanda viajou de navio com a esposa e os sete filhos do Rio de Janeiro até Gênova e de lá para Roma. Eu achei uma delícia ler o livro. O texto tem a dimensão do tema tratado, além de não se desviar de temas espinhosos. Há, por exemplo, alguns abusos, como os cometidos por Mr. Welsh, um professor de inglês que gostava de passar a mão na bunda dos alunos por dentro de suas cuecas, Chico incluído.

Mas o abuso não é o principal, o principal é a amizade com Amadeo (o filho do quitandeiro com o qual jogava futebol), a relação com as meninas, sua paixão por algumas delas, a relação com os irmãos, a apendicite, as fugas da escola, as correrias por Roma de bicicleta e o pai sempre distante como eram os pais do passado — alguns ainda o são, certo? E as coisas de guri… Afinal, levante a mão quem teve uma irmã mais velha e não a observou pelo buraco da fechadura para ver como era! Tive duas.

O humor do relato nos deixa espreitar as fragilidades daquele menino que dançou numa festa com Alida Valli, quase sufocado por seus seios. Ele tinha 10 dez anos. Durante a narrativa, Chico algumas vezes põe em dúvida o que conta, riscando partes daquelas imagens saudosas e nos fazendo abordar certas partes com um olhar oblíquo.

O tom do livro me parece perfeito — sem ser exageradamente nostálgico ou piegas, lemos uma visita compreensiva de um velho a uma parte de sua infância. Os capítulos finais do livro (sem spoilers, apesar de que estou louco para contar) são extremamente sutis e bonitos. E um tanto angustiantes.

É biografia ou autoficção? Certamente é autoficção. Chico modifica detalhes, enrola a gente com humor e perspicácia e… Entrega elegantemente o jogo, mas apenas para os leitores atentos. Ah, o livro tem algumas fotografias de família assim como de alguns bilhetes da época.

Recomendo!

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O Banquete, de Muriel Spark

O Banquete, de Muriel Spark

Um belo divertimento. O Banquete, da escocesa Muriel Spark (1918-2006), começa e termina em um jantar. Os anfitriões ricos servem mousse de salmão e têm criados que não permitem que suas taças de vinho esvaziem.  Conversam sobre um assalto (me senti estuprado!), uma lua de mel em Veneza e um casamento. Margaret Murchie e William Damien se casaram recentemente (eles se conheceram na seção de frutas da Marks & Spencers, como é repetido ironicamente no livro) e se tornaram tema de muitas especulações. A moça é esquisita, mas eles parecem se gostar. O anfitrião não dá um ano para o casamento. Margaret parece atrair incidentes infelizes e Hilda Damien, sua sogra também ricaça, simplesmente não consegue superar um sentimento desconfortável a respeito dela. É instinto maternal ou simplesmente suspeita infundada?

O Banquete é um Spark clássico. Embora use um evento aparentemente despreocupado como ponto de partida, ele traz uma riqueza de situações estranhas, incluindo violências, maldade em um convento, uma clínica de loucos e uma conspiração criminosa. Começa com conversa fiada e de repente revela os pensamentos mais profundos e sombrios de seus personagens. Como em muitos romances de Spark, você tem a sensação de que alguém vai morrer. O que é antecipado sem problemas pela autora. Ela diz ao leitor quais coisas desagradáveis ​​vão acontecer e, em seguida, deixa-o por vários capítulos descobrindo como e quando.

O Banquete tem muitos personagens, mas não está lotado. É um texto inteligente e provocativo, atravessado por uma veia diabólica de humor negro. Como sempre, Spark consegue colocar muita coisa em seus pequenos romances. Durante a narrativa, há roubos, assassinatos, rixas familiares e todo tipo de comportamento desonesto. Conhecemos servos suspeitos, tios loucos e um convento de freiras, uma das quais é muito comuna. Tudo é tratado com a segurança característica. Este é um romance afiado de Muriel Spark, que destaca como as pessoas podem não ser tão inocentes quanto parecem à primeira vista. Um deleite.

Trevor Leighton / National Portrait Gallery, London

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