Os Ratos, de Dyonelio Machado

Os Ratos, de Dyonelio Machado

— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.

O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:

— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?

— Uma boa morte, pelo visto.

— Meu filho, não existe morte boa.

Comecemos pelo menos importante. Não sei o que Dyonelio Machado (1895-1985) cometeu contra a Editora Todavia para merecer uma capa tão idiota. Vejam a já velha capa da Planeta (abaixo), muito mais adequada. Mas hoje o que está disponível é a edição da Todavaia, editora que adoro, mas que desata vez merece… Vaias. Publicado em 1935, Os Ratos é uma das obras mais intensas e originais da literatura brasileira. É pra deixar e pânico qualquer pessoa dotada de empatia. Escrito em plena era Vargas, o romance abandona o tom épico e regionalista de boa parte da produção da época para mergulhar no labirinto mental de um homem comum — e endividado. É um romance urbano e, embora o autor não cite a cidade onde Naziazeno transita, sabemos que ele está em Porto Alegre. Aliás, dia desses aconteceu uma curiosa iniciativa. Um guia levou um grupo de pessoas pelos Caminhos de Naziazeno. Não pude ir, infelizmente. É que Dyonelio cita ruas e esquinas a cada momento. Todo o seu trajeto é muito claro para quem conhece o centro de nossa pobre cidade, tão castigada por nosso prefeito bolsonarista.

O protagonista, Naziazeno Barbosa, passa um único dia tentando conseguir dinheiro para pagar o leiteiro. Valor da dívida: 53 mil-réis. Tentei fazer uma conversão para os dias de hoje, 90 anos depois, e deu aproximadamente R$ 300,00. A partir deste ponto, Dyonélio constrói um retrato devastador da miséria e da culpa, conduzido por uma escrita tensa, febril, claustrofóbica. Eu tinha lido o romance ainda aluno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e, naquele tempo, não fiquei muito impressionado com o livro. Hoje, aos 68 anos, sua verossimilhança e a angústia de Naziazeno tomaram tais proporções que o romance foi-me difícil de suportar. E de largar.

O realismo de Dyonelio — influenciado pela psicanálise — faz de Os Ratos um romance de avassalador tumulto interior: pensamentos se embaralham, a razão se desfaz, o desespero toma forma. Uma das cenas mais marcantes nesta leitura é o momento em que o protagonista consegue fazer com que 5 mil-réis se tornem 75. Ele consegue a proeza jogando na roleta — permitida àquela época. Mas está tão mobilizado pelo desespero que nem se dá conta de que já tem os 53 mil-réis devidos ao leiteiro. Ele segue jogando até perder quase tudo. Age como o Alexei Ivanovich de O Jogador de Dostoiévski.

Além de médico psiquiatra, Dyonelio era do Partido Comunista Brasileiro. Foi até deputado constituinte, mas logo o partido foi posto novamente na ilegalidade e Dyonelio foi cassado junto com outros comunistas como Júlio Teixeira e Pinheiro Machado. Citei este fato para sair da área meramente psicológica e dizer que, sob esta, há uma crítica ao capitalismo e às humilhações sociais que ele impõe: em Os Ratos há o homem reduzido à dívida, o tempo medido pelo dinheiro, a dignidade corroída pela espera. O título é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. Seu triste papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto de Dyonelio, altamente coloquial.

Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Erico Verissimo. Ela datilografava o trabalho. Então, num dia, eu levava algumas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.

Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.

Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e foram presos em meados dos anos 30.

Os Ratos é um livro sobre o Brasil — mas também sobre qualquer lugar em que a miséria se disfarce de normalidade. Sua modernidade é tamanha que, quase um século depois, ainda fala de nós.

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Entrevista com László Krasznahorkai (verão de 2018)

Entrevista com László Krasznahorkai (verão de 2018)

Entrevistado por Adam Thirlwell para a The Paris ReviewLink para o original

László Krasznahorkai nasceu em 1954 em Gyula, uma cidade provinciana da Hungria, durante a era soviética. Publicou seu primeiro romance, Satantango, em 1985, seguido por A Melancolia da Resistência (1989), Guerra e Guerra (1999) e O retorno do barão de Wenckheim (2016). Esses romances, com seus gigantescos acréscimos de linguagem, erudição global (ele está tão familiarizado com os clássicos da filosofia budista quanto com a tradição intelectual europeia), personagens obsessivos e paisagens encharcadas pela chuva, podem dar uma impressão de altivez endurecida do modernismo tardio, mas também são pontilhistas, elegantes e delicadamente engraçados. Sua gravidade tem elegância — uma colisão de tons visível em outras obras que ele produziu junto com os romances, que incluem contos como Animalinside (2010) e textos geograficamente mais vastos como Destruction and Sorrow Beneath the Heavens (2004) e Seiobo There Below (2008). 

Krasznahorkai em 1990

Embora Krasznahorkai ainda tenha uma casa na Hungria, mora principalmente em Berlim. A primeira vez que tentei chegar a Berlim vindo de Londres para começar esta entrevista, no inverno de 2016, meu voo foi cancelado devido à neblina. Algumas horas depois, com meu novo voo na pista, fomos informados de que problemas técnicos atrasariam ainda mais nossa partida. Tendo finalmente chegado a Berlim e encontrado um táxi — dirigindo em uma velocidade assustadoramente alta porque, como o motorista me disse, precisava desesperadamente encontrar um banheiro —, encontrei Krasznahorkai em frente à entrada do metrô na Hermannplatz, doze horas depois de ter saído de Londres. Eu poderia muito bem tê-lo encontrado em Pequim. Essa farsa de viagem contemporânea prolongada, pensei, parecia incongruentemente cômica. Mas então reconsiderei: a arte de Krasznahorkai sempre foi hospitaleira ao absurdo, às maneiras como o mundo se personifica e se torna um oponente implacável. 

Krasznahorkai fala inglês com uma sedutora inflexão da Europa Oriental e um sotaque americano ocasional, resultado de sua estadia no apartamento de Allen Ginsberg em Nova York, nos anos 90. Krasznahorkai é um homem grande e gentil, frequentemente rindo ou sorrindo, e cheio de carinho e cuidado. Ele me emprestou um suéter quando eu parecia estar com frio, me presenteou com a coletânea de poesias Una Storia Vera, de Durs Grünbein , e me recomendou gravações de György Kurtág. Com seus cabelos longos e olhos tristes, ele parece um santo benevolente. Ele também é um homem de absoluta privacidade; portanto, nunca quis nos encontrar em seu apartamento. Em vez disso, conduzimos longas sessões em seus arredores, em vários cafés e restaurantes ao redor de Kreuzberg.

—Adam Thirlwell

ENTREVISTADOR

Vamos falar sobre seu início como escritor. 

KRASZNAHORKAI

Eu achava que a vida real, a vida verdadeira, estava em outro lugar. Além de O Castelo, de Franz Kafka, minha bíblia por um tempo foi Sob o Vulcão, de Malcolm Lowry . Isso foi no final dos anos 60, início dos anos 70. Eu não queria aceitar o papel de escritor. Queria escrever apenas um livro — e depois disso, queria fazer coisas diferentes, especialmente com música. Queria viver com as pessoas mais pobres — achava que essa era a vida real. Vivi em vilarejos muito pobres. Sempre tive empregos muito ruins. Mudava de lugar com muita frequência, a cada três ou quatro meses, para escapar do serviço militar obrigatório. 

E então, assim que comecei a publicar algumas coisinhas, recebi um convite da polícia. Talvez eu tenha sido um pouco impertinente demais, porque depois de cada pergunta eu dizia: “Por favor, acredite em mim, eu não lido com política.” “Mas sabemos algumas coisas sobre você.” “Não, eu não escrevo sobre política contemporânea.” “Nós não acreditamos em você.” Depois de um tempo, fiquei um pouco irritado e disse: “Você realmente imagina que eu escreveria algo sobre pessoas como você?” E isso os enfureceu, é claro, e um dos policiais, ou alguém da polícia secreta, quis confiscar meu passaporte. No sistema comunista da era soviética, tínhamos dois passaportes diferentes, azul e vermelho, e eu só tinha o vermelho. O vermelho não era tão interessante porque com ele você só podia ir para países socialistas, enquanto o azul significava liberdade. Então eu disse: “Você realmente quer o vermelho?” Mas eles ainda o tiraram, e eu não tive passaporte até 1987. 

Essa foi a primeira história da minha carreira de escritor — e poderia facilmente ter sido a última. Recentemente, nos documentos da polícia secreta, encontrei anotações onde eles discutem potenciais informantes e espiões. Eles tiveram alguma chance com meu irmão, escreveram, mas com László Krasznahorkai, seria absolutamente impossível, porque ele era extremamente anticomunista. Isso parece engraçado agora, mas na época não era tão engraçado. Mas eu nunca fiz nenhuma manifestação política. Eu apenas morava em pequenas vilas e cidades e escrevi meu primeiro romance. 

ENTREVISTADOR

Como você publicou isso? 

KRASZNAHORKAI

Era 1985. Ninguém — inclusive eu — conseguia entender como era possível publicar Satantango, já que se trata de um romance tudo menos inofensivo para o sistema comunista. Naquela época, o diretor de uma das editoras de literatura contemporânea era um ex-chefe da polícia secreta, e talvez quisesse provar que ainda tinha poder — poder suficiente para mostrar que tinha coragem de publicar este romance. Acho que essa foi a única razão pela qual o livro foi publicado.

ENTREVISTADOR

Que tipo de trabalho você estava fazendo?

KRASZNAHORKAI

Fui mineiro por um tempo. Era quase cômico — os verdadeiros mineiros tinham que me substituir. Depois, tornei-me diretor de várias casas de cultura em vilarejos distantes de Budapeste. Cada vilarejo tinha uma casa de cultura onde as pessoas podiam ler os clássicos. Essa biblioteca era tudo o que tinham no dia a dia. E às sextas ou sábados, o diretor da casa de cultura organizava uma festa musical, ou algo parecido, o que era muito bom para os jovens. Eu era diretor de seis vilarejos bem pequenos, o que significava que eu sempre me mudava de um para o outro. Era um ótimo trabalho. Eu adorava porque estava muito longe da minha família burguesa. 

O que mais? Eu era vigia noturno de trezentas vacas. Era o meu favorito — um estábulo em terra de ninguém. Não havia vila, cidade ou vilarejo por perto. Fui vigia por alguns meses, talvez. Uma vida pobre com Sob o Vulcão em um bolso e Dostoiévski no outro.

E, claro, nessas Wanderjahre, comecei a beber. Havia uma tradição na literatura húngara de que os verdadeiros gênios eram bêbados completos. E eu também era um bêbado louco. Mas chegou um momento em que eu estava sentado com um grupo de escritores húngaros que concordavam, tristemente, que isso era inevitável, que qualquer gênio húngaro tinha que ser um bêbado louco. Recusei-me a aceitar isso e fiz uma aposta — de doze garrafas de champanhe — que nunca mais beberia. 

ENTREVISTADOR

E você não fez isso? 

KRASZNAHORKAI

Não. Mas, ainda assim, naquela época, entre os prosadores contemporâneos, havia um escritor e bebedor em particular — Péter Hajnóczy. Ele era uma lenda viva e um alcoólatra completo e profundo, como Malcolm Lowry. Sua morte foi o maior acontecimento da literatura húngara. Ele era muito jovem, talvez quarenta anos. E essa era a vida que eu vivia. Eu não me preocupava com nada — era uma vida muito aventureira, sempre em trânsito entre duas cidades, em estações de trem e bares à noite, observando as pessoas, tendo pequenas conversas com elas. Lentamente, comecei a escrever o livro na minha cabeça. 

Era bom trabalhar assim, porque eu tinha uma forte sensação de que a literatura era um campo espiritual — que em outros lugares, na mesma época, Hajnóczy, János Pilinszky, Sándor Weöres e muitos outros poetas maravilhosos viveram e escreveram. A literatura em prosa era menos poderosa. Gostávamos muito mais de poesia porque era mais interessante, mais secreta. A prosa era um pouco próxima demais da realidade. A ideia de um gênio da prosa era alguém que se mantinha muito próximo da vida real. É por isso que, tradicionalmente, os prosadores húngaros, como Zsigmond Móricz, compunham em frases curtas. Mas não Krúdy, meu único escritor querido da história da literatura em prosa húngara. Gyula Krúdy. Um escritor maravilhoso. Certamente intraduzível. Na Hungria, ele era um Don Giovanni — dois metros de altura, um homem enorme, um homem fenomenal. Ele era tão sedutor que ninguém conseguia resistir.

ENTREVISTADOR

E suas frases? 

KRASZNAHORKAI

Ele usava frases de forma diferente de qualquer outro prosador. Sempre soou como um homem ligeiramente bêbado, muito melancólico, sem ilusões sobre a vida, muito forte, mas cuja força é totalmente desnecessária. Mas Krúdy não era um ideal literário para mim. Krúdy era uma pessoa para mim, uma lenda que me dava algum poder quando decidi escrever algo. János Pilinszky era minha outra lenda. Em um sentido literário, Pilinszky era muito mais importante para mim por causa de sua linguagem, seu jeito de falar. Tentarei imitá-lo. 

Caro Adam, não deveríamos esperar por um apocalipse, estamos vivendo agora em um apocalipse. Meu querido Adam, por favor, não vá a lugar nenhum, a lugar nenhum…

Muito agudo, lento, com todas essas pausas entre as palavras. E as últimas letras de cada palavra eram sempre expressas com muita clareza. Como um padre numa catacumba — sem esperança, mas com uma esperança enorme ao mesmo tempo. Mas ele era diferente de Gyula Krúdy. Pilinszky era como um cordeiro. Não um ser humano — um cordeiro.

ENTREVISTADOR

Havia muita coisa disponível em tradução? 

KRASZNAHORKAI

Houve uma época, nos anos 70, em que tínhamos muita literatura ocidental. William Faulkner, Franz Kafka, Rilke, Arthur Miller, Joseph Heller, Marcel Proust, Samuel Beckett — quase toda semana havia uma nova obra-prima. Como não podiam publicar suas próprias obras sob o regime comunista, os maiores escritores e poetas se tornaram tradutores. É por isso que tínhamos traduções maravilhosas de Shakespeare, Dante, Homero e de todos os grandes escritores americanos, de Faulkner em diante. A primeira tradução de O Arco-Íris da Gravidade, de Pynchon, foi realmente maravilhosa. 

ENTREVISTADOR

E Dostoiévski? 

KRASZNAHORKAI

Sim. Dostoiévski desempenhou um papel muito importante para mim — por causa de seus heróis, não por causa de seu estilo ou de suas histórias. Você se lembra do narrador de “Noites Brancas”? O personagem principal é um pouco como Mishkin em O Idiota , uma figura pré-Mishkin. Eu era um fã fanático desse narrador e, mais tarde, de Mishkin — de sua vulnerabilidade. Uma figura angelical e indefesa. Em todos os romances que escrevi, você pode encontrar uma figura assim — como Estike em Satantango ou Valuska em Melancolia , que são feridos pelo mundo. Eles não merecem essas feridas, e eu os amo porque eles acreditam em um universo onde tudo é maravilhoso, incluindo a existência humana, e eu honro muito o fato de que eles são crentes. Mas sua maneira de pensar sobre o universo, sobre o mundo, essa crença na inocência, não é possível para mim. 

Para mim, pertencemos mais ao mundo dos animais. Somos animais, somos apenas os animais que venceram. No entanto, vivemos em um mundo altamente antropomórfico — acreditamos que vivemos em um mundo humano, no qual há um lugar para os animais, para as plantas, para as pedras. Isso não é verdade. 

ENTREVISTADOR

Então você quer dizer que sua própria filosofia seria puro materialismo? 

KRASZNAHORKAI

Ah, não, Mishkin também é real. Desculpe.

ENTREVISTADOR

Não, conte-me mais.

KRASZNAHORKAI

Franz Kafka é uma pessoa. Ele é Franz Kafka, com sua história de vida, com seus livros. Mas K. está lá, em um espaço celestial no universo, e talvez alguns personagens dos meus romances também vivam lá. Por exemplo, Irimiás e o médico de Satantango, ou o Sr. Eszter e Valuska de Melancolia, ou, do meu novo romance, o Barão. Eles são absolutos — eles vivem. Eles existem no lugar eterno.

Você pode argumentar que Mishkin é apenas ficção? Claro. Mas não é a verdade. Mishkin pode ter entrado na realidade através de outra pessoa, através de Dostoiévski, mas agora, para nós, ele é uma pessoa real. Cada personagem na chamada ficção eterna surgiu através de pessoas comuns. Este é um processo secreto, mas tenho certeza absoluta de que é verdade. Por exemplo, alguns anos depois de ter escrito Satantango, eu estava em um bar e alguém tocou meu ombro. Era Halics de Satantango. Sério! Não estou brincando! É por isso que me tornei mais cuidadoso com o que escrevo. Por exemplo, o texto original de Guerra e Guerra era bem diferente da versão que publiquei. As primeiras cem páginas originalmente tratavam da autodestruição de Korin, mas eu tinha medo de encontrá-lo naquela condição mais tarde e não ser capaz de ajudá-lo. Eu tinha medo da possibilidade de que ele nunca mais deixasse sua pequena cidade. Foi por isso que escolhi tirá-lo de lá — com seu desejo de ir apenas uma vez, no fim da vida, para o centro do mundo. Eu não tinha decidido que seria Nova York, mas foi assim que me libertei da história de que ele viveria para sempre naquele lugar provinciano. 

ENTREVISTADOR

Estou pensando no que você disse sobre os humanos viverem em um mundo antropomórfico. Às vezes me ocorre que romances são tão alegremente antropocêntricos. Onde estão os polvos? Onde estão as algas? Uma das coisas que adoro nos seus romances é que eles tentam não ser tão, por assim dizer, provincianos humanos . Mas também parece um paradoxo. O que mais poderiam ser? 

KRASZNAHORKAI

Isso é muito importante. A estrutura do romance pode ser antropocêntrica demais. É por isso que o problema do narrador é o primeiro problema, e permanece assim para sempre. Como remover o narrador de um romance? No meu romance mais recente, em cada página há apenas pessoas conversando entre si — e essa é uma maneira de evitar o narrador, mas é apenas uma técnica. Porque concordo com você — a estrutura do romance e do mundo é antropocêntrica. Mas se eu tivesse que escolher entre o universo sem estrutura e a humanidade com estrutura, eu escolheria a humanidade. 

Não temos a mínima ideia do que é o universo. Pessoas sábias sempre nos disseram que isso é a prova de que não devemos pensar, porque pensar não leva a lugar nenhum. Você apenas constrói sobre essa enorme construção de mal-entendidos, que é a cultura. A história da cultura é a história dos mal-entendidos de grandes pensadores. Portanto, sempre temos que voltar ao zero e começar de forma diferente. E talvez dessa forma você tenha a chance de não entender, mas pelo menos de não ter mais mal-entendidos. Porque este é o outro lado da questão — sou realmente tão corajoso a ponto de cancelar toda a cultura humana? De parar de admirar a beleza da produção humana? É muito difícil dizer não. 

ENTREVISTADOR

Mas você ainda escreve romances. 

KRASZNAHORKAI

Sim, mas talvez isso seja um erro. Eu respeito a nossa cultura. Respeito a alta articulação humana em todas as suas formas. Mas a raiz dessa cultura é falsa. E se não fizermos nada, tudo continua do mesmo jeito. E talvez isso seja o mais importante. Tudo deve continuar sem pensar em essências, no que é, e outras questões semelhantes. 

ENTREVISTADOR

Como se a escrita, e toda forma de arte, devesse se tornar um ritual sem teologia? 

KRASZNAHORKAI

Talvez seja possível pensar na escrita como um ritual a ser realizado — algo repetido, palavra após palavra, frase após frase. Não no sentido da vanguarda clássica do início do século XX, como o Dadá, por exemplo, que não levou grandes artistas a lugar nenhum porque negligenciaram o conteúdo e esse foi, pobres gênios, o erro deles. Mas se você pensar na escrita como um ritual que você realiza, e se você for capaz de se ver ao mesmo tempo, que você está lá na Terra e escreve palavra após palavra após palavra… e então você tem um livro. Você para. Você fecha o livro. E você abre outro, com páginas em branco. E você escreve novamente, escreve novamente, escreve novamente. Palavra após palavra. Frase após frase. Fecha o livro. O próximo… Isso é um ritual. Talvez não seja como você pensa sobre sua escrita, mas talvez seja o que você faz. 

Mas este é o ponto em que devemos nos lembrar dos nossos leitores. Porque os leitores precisam, espero, dos nossos escritos. E neste pequeno espaço — onde escrevemos livros, romances, poemas — também há um lugar para os nossos leitores. Essa simpatia, esse sentimento é muito importante — encontrar uma essência comum entre escritores, que criam formas, e leitores, que precisam do que fazemos. Isso também dá algum sentido a este pequeno espaço, que de um nível mais alto vemos como um completo absurdo. Então, talvez o universo esteja cheio de pequenos espaços — cada um com seu próprio tempo, essência, personagens, criação, eventos e assim por diante. Diferentes ideias de tempo para diferentes espaços. Assim como estamos aqui, no universo, dentro do nosso pequeno espaço humano. 

ENTREVISTADOR

Como você chegou ao seu estilo — essas frases grandiosas e vastas? 

KRASZNAHORKAI

Encontrar um estilo nunca foi difícil para mim, porque eu nunca o procurei. Eu vivia uma vida reclusa. Sempre tive amigos, mas apenas um de cada vez. E com cada amigo, eu tinha um relacionamento em que falávamos um com o outro apenas em monólogos. Um dia, uma noite, eu falava. No dia ou noite seguinte, ele falava. Mas o diálogo era diferente a cada vez, porque queríamos dizer algo muito importante para a outra pessoa, e se você quer dizer algo muito importante, e se você quer convencer seu parceiro de que isso é muito importante, você não precisa de pontos finais ou pontos finais, mas de respirações e ritmo — ritmo, andamento e melodia. Não é uma escolha consciente. Esse tipo de ritmo, melodia e estrutura de frases veio, na verdade, do desejo de convencer outra pessoa. 

ENTREVISTADOR

Nunca foi literário? Nunca se relacionou com outros estilos, como o de Proust ou o de Beckett? 

KRASZNAHORKAI

Talvez quando eu era adolescente, mas isso era mais uma imitação da vida deles, não da linguagem, não do estilo deles. Tenho uma relação especial com Kafka porque comecei a lê-lo muito cedo, tão cedo que não conseguia entender do que se tratava, digamos, O Castelo. Eu era muito jovem. Eu tinha um irmão mais velho e queria ser como ele, então roubava os livros dele e os lia. É por isso que Kafka foi meu primeiro escritor — um escritor que eu não conseguia entender, mas também um sobre o qual eu me questionava como pessoa. Um dos meus livros favoritos quando eu tinha doze ou treze anos era Conversas com Kafka , de Gustav Janouch. Com este livro, eu tinha um canal especial para Kafka. 

E talvez tenha sido por isso que estudei Direito — para ser como Kafka. Meu pai ficou um pouco surpreso. Ele queria que eu fosse para a faculdade de Direito, mas tinha certeza de que eu recusaria, porque eu só me interessava por arte — literatura, música, pintura, filosofia, tudo, exceto Direito. Mas eu aceitei, em parte, acho, porque queria lidar com psicologia criminal. Naquela época, início dos anos 70, era uma ciência proibida na Hungria. Era ocidental e, portanto, suspeita. Mas o principal motivo, eu acho, foi Kafka. É claro que, depois de três semanas, eu não aguentava mais o clima e saí — não apenas da faculdade de Direito, mas da cidade em si.  

ENTREVISTADOR

Onde foi isso?

KRASZNAHORKAI

Uma cidade chamada Szeged. Por causa do sistema de serviço militar, não foi fácil sair. Se eu saísse, tinha que voltar para o serviço militar. Normalmente, o serviço militar durava dois anos, mas se você se formasse, só precisava cumprir um ano. No entanto, se você saísse da universidade mais cedo, tinha que voltar para o segundo ano. Então, morei por um tempo em Budapeste, estudando religião e filologia. Continuei meus antigos estudos de grego e latim, mas os exames eram difíceis porque eu não estava na universidade. Então, finalmente, depois de quatro anos, tive filhos. E com filhos, o problema do serviço militar estava resolvido, porque se você tivesse dois filhos, estaria livre dessa terrível obrigação. 

O serviço militar, para mim, era quase uma morte. Durante o ano inteiro, nunca obtive permissão para sair do campo. Eu não era um herói nem um pacifista, mas se você estivesse em um posto de observação, tinha que ficar lá com uma arma e não fazer nada. Às vezes, um oficial vinha me observar, e se eu estivesse lendo Kafka, não conseguia parar porque Kafka era mais interessante do que um oficial idiota, então eu sempre recebia punições na prisão do campo. Isso não era tão terrível, mas também significava que eu não conseguia permissão para sair do campo. E isso era terrível — estar lá, o tempo todo. 

O início do meu serviço foi o mais difícil. Quando entrei no trem noturno, com outros novos soldados, fiquei completamente destruído. Não conseguia falar com ninguém. Todos queriam fazer piadas, menos eu. Descobri outro rapaz, um rapaz jovem, que estava no mesmo estado, então conversamos um pouco. Conversamos sobre como, se tivéssemos a oportunidade, nos visitaríamos. E depois de cerca de uma semana, quando tive um tempinho livre, fui ao prédio onde ele trabalhava e perguntei: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse: “Terceiro andar”. No terceiro andar, perguntei novamente: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse que ele estava no depósito de munições por causa de uma punição. Ele estava limpando as armas e, quando abri a porta, ele deu um tiro na boca. Exatamente no mesmo momento. Abri a porta e meu amigo deu um tiro na própria boca. Eu era criança. Éramos crianças. Mal tínhamos dezoito anos. 

Qual era sua pergunta? 

ENTREVISTADOR

Estou apenas tentando fazer uma cronologia aproximada. Você nasceu em Gyula, depois prestou serviço militar, estudou em Szeged, fez Wanderjahre e publicou Satantango. Você chegou a Berlim em 1987 e retornou à Hungria em 1989. 

KRASZNAHORKAI

E sempre de volta para a Alemanha.

No início dos anos 90, comecei a escrever Guerra e Guerra. Originalmente, eu queria saber o que a fronteira significava para o Império Romano. Fui, por exemplo, à Dinamarca, à Grã-Bretanha, à França, à Itália, à Espanha, a Creta — tentando encontrar ruínas, vestígios de defesas militares. Eu estava sempre viajando. Foi só em 1996, eu acho, que comecei realmente a escrever Guerra e Guerra , enquanto estava em Nova York, no apartamento de Allen Ginsberg.  

ENTREVISTADOR

Como você conheceu Ginsberg? 

KRASZNAHORKAI

Tínhamos um amigo em comum. E Allen era um cara muito simpático. No apartamento dele, a porta e a fechadura eram completamente desnecessárias. As pessoas entravam e saíam, entravam e saíam. Era fantástico estar lá, mas também muito perturbador fazer parte do círculo de Ginsberg. Durante o dia, eu podia trabalhar, e à noite, que era quando Allen realmente ganhava vida, eu podia participar das festas, das conversas e da música. Nunca contei a eles que vim de Gyula, mas nunca consegui esquecer, sabe? Que eu era, na verdade, o mesmo garoto provinciano, só que sem cabelo e com alguns dentes faltando, que ficou em choque quando se sentou na cozinha ao lado de Allen e entraram aqueles músicos, poetas, pintores — pessoas imortais. 

ENTREVISTADOR

Lembro-me de você uma vez falando sobre a sensação de atemporalidade que você sempre sente e relacionando isso ao fato de ter crescido sob o império soviético, que havia acabado com a história. 

KRASZNAHORKAI

Era uma sociedade atemporal porque queriam que você pensasse que as coisas nunca mudariam. Sempre o mesmo céu cinza e árvores sem cor e parques e ruas e prédios e cidades e vilas, e as bebidas terríveis nos bares e a pobreza e as coisas que você era proibido de dizer em voz alta. Você vivia em uma eternidade. Era muito deprimente. Minha geração foi a primeira que não só não acreditava na teoria comunista ou no marxismo, mas achava isso ridículo, constrangedor. Quando vivi o fim deste sistema político, foi uma maravilha. Nunca esquecerei o sabor da liberdade política. É por isso que agora tenho cidadania alemã, porque para mim a União Europeia significa, acima de tudo, liberdade política contra a estupidez agressiva que agora é o deus da Europa Oriental. Eu vim de um mundo burguês, onde a teoria comunista nunca desempenhou qualquer papel. Éramos social-democratas, minha família. 

ENTREVISTADOR

E seus pais eram judeus, não é? 

KRASZNAHORKAI

Meu pai tinha raízes judaicas. Mas ele só nos contou esse segredo quando eu tinha uns onze anos. Antes disso, eu não fazia ideia. Na era socialista, era proibido mencioná-lo. 

ENTREVISTADOR

Como seu pai sobreviveu à guerra?

KRASZNAHORKAI

Nosso nome original era Korin, um nome judeu. Com esse nome, ele jamais teria sobrevivido. Meu avô era muito sábio e mudou nosso nome para Krasznahorkai. Krasznahorkai era um nome irredentista. Após a Primeira Guerra Mundial, a Hungria perdeu dois terços de seu território, e a principal linha política do governo nacionalista conservador após a guerra era restaurar esses territórios perdidos. Havia uma canção muito famosa, uma canção insuportavelmente sentimental, sobre o Castelo de Krasznahorka. Após a guerra, ele se tornou parte da Tchecoslováquia. A essência da canção é que o Castelo de Krasznahorka é muito triste e sombrio, e tudo é sem esperança. Talvez seja por isso que meu avô o escolheu. Eu não sei. Ninguém sabe, porque ele era um homem muito silencioso. Isso foi em 1931, antes das primeiras leis judaicas húngaras. 

ENTREVISTADOR

Vamos falar mais sobre sua escrita. Uma coisa que me intriga é que você parece ter deixado bem claro que escreveu apenas quatro romances. 

KRASZNAHORKAI

Há SatantangoA melancolia da resistênciaGuerra e guerra e O retorno do barão de Wenckheim.

ENTREVISTADOR

Onde você colocaria, digamos, um texto como Animalinside ?

KRASZNAHORKAI

Animalinside é um romance, embora não no sentido estrito. Mas se algo é um romance ou um conto não depende do número de páginas. Escrevi alguns contos no início da minha carreira, em Relações da Graça (1986). Esses contos se desenvolvem em um espaço muito pequeno, em um período de tempo muito confinado, no meio do qual há um único personagem. Um romance contém uma construção enorme, como uma ponte, um arco, do início ao fim. No caso de um conto, não há necessidade de um arco. Em vez disso, um conto é uma caixa-preta, na qual ninguém sabe o que aconteceu. 

ENTREVISTADOR

E então, sobre o que é o novo romance, O retorno do barão de Wenckheim? É uma espécie de odisseia? 

KRASZNAHORKAI

Sim. Para o personagem principal, este é um retorno ao lar no final da vida. Ele é um homem muito idoso que mora em Buenos Aires. É um homem muito sensível e muito alto, como Gyula Krúdy. Mas muito azarado — ele sempre comete erros. 

ENTREVISTADOR

Então ele é seu Mishkin, seu personagem indefeso? 

KRASZNAHORKAI

Sim, como Estike. Porque este romance é o meu resumo, na verdade, de todos os meus romances — você pode encontrar muitos paralelos com outros personagens, outras histórias. Faço piadas sobre a palavra “satantango” e assim por diante. Este é o meu melhor romance, eu acho. 

ENTREVISTADOR

O seu melhor? 

KRASZNAHORKAI

O mais engraçado. O livro mais engraçado. Não está cheio de mensagens apocalípticas. Em vez disso, este é o apocalipse. Ele já chegou. 

ENTREVISTADOR

Mas então, sinto, em todos os seus livros, que o apocalipse já chegou, secretamente. Eu me pergunto se existem dois tipos de romancistas. Aqueles que veem cada romance como um objeto separado, e aqueles que pensam que escreveram um romance, que todos os seus romances se encaixam. 

KRASZNAHORKAI

Já disse mil vezes que sempre quis escrever apenas um livro. Não fiquei satisfeito com o primeiro, e por isso escrevi o segundo. Não fiquei satisfeito com o segundo, então escrevi o terceiro, e assim por diante. Agora, com Barão, posso encerrar esta história. Com este romance, posso provar que realmente escrevi apenas um livro na minha vida. Este é o livro — SatantangoMelancoliaGuerra e Guerra e Barão . Este é o meu único livro. 

ENTREVISTADOR

Você já desejou escrever algo completamente fora dos termos dessas ficções? 

KRASZNAHORKAI

Não. Não me incomoda que Johann Sebastian Bach permaneça o mesmo a vida toda. 

ENTREVISTADOR

Você frequentemente retorna a Bach — e a outros compositores barrocos, como Rameau. Qual a importância do Barroco para você? 

KRASZNAHORKAI

A música de Bach é estruturalmente complicada por causa da harmonia, e é por isso que não suporto música romântica. Depois do Barroco tardio, a música tornou-se cada vez mais vulgar, e o auge dessa vulgaridade ocorreu na época dos românticos. Existem alguns compositores excepcionais, como Stravinsky, Shostakovich, Bartók ou Kurtág, que eu admiro muito, mas sempre os considero exceções. Para mim, a história da música é uma descida. E depois de dois mil anos, isso também está acontecendo na literatura. Mas é muito difícil analisar esse processo de vulgarização. A terrível revolução que sempre aconteceria nas sociedades modernas, de fato, aconteceu. Não que a cultura de massa tenha vencido, mas o dinheiro. Ocasionalmente, uma obra literária de altíssimo nível acaba dizendo algo no nível médio e alcançando mais leitores — e talvez esse seja o destino de muitos escritores contemporâneos.

ENTREVISTADOR

E seus romances?

KRASZNAHORKAI

Não, meus romances não funcionam de jeito nenhum no nível intermediário, porque eu nunca faço concessões. Escrever, para mim, é um ato totalmente privado. Tenho vergonha de falar sobre minha literatura — é o mesmo que se você me perguntasse sobre meus segredos mais íntimos. Nunca fiz parte da vida literária porque não conseguia aceitar ser escritor no sentido social. Ninguém pode falar sobre literatura comigo — exceto você e algumas outras pessoas. Não fico feliz se tiver que falar sobre literatura, especialmente sobre a minha literatura. Literatura é algo muito privado. 

Quando escrevo um livro, o livro já está pronto na minha cabeça. Desde pequeno, eu trabalhava assim. Na minha infância, minha memória era bastante anormal. Eu tinha memória fotográfica. Então, eu encontrava a forma exata, uma frase, algumas frases, na minha cabeça, e quando estava pronto, eu escrevia. 

ENTREVISTADOR

Você não revisa? 

KRASZNAHORKAI

Trabalho quase o tempo todo, como um moinho que não para de girar. Se estou doente, não consigo. E se estou bêbado, não consigo. Mas, com essas exceções, trabalho e trabalho, porque uma frase começa e, ao lado dela, cem mil outras frases, como fios finíssimos de uma aranha. E uma delas será, de alguma forma, um pouquinho mais importante do que todas as outras, e eu a extraio, o suficiente para poder trabalhar com a frase, corrigi-la. E é por isso que, embora existam traduções maravilhosas dos meus livros, gostaria que vocês pudessem lê-las no original, porque quando estou trabalhando, a primeira coisa que faço com uma frase na cabeça é aperfeiçoar o elemento rítmico. Quando trabalho, uso o mesmo mecanismo comum à composição musical e à composição literária. Música, literatura e artes visuais têm uma raiz comum — estruturas de ritmo e andamento — e eu trabalho a partir dessa raiz. O conteúdo é absolutamente diferente no caso da música e no caso dos romances. Mas a essência, para mim, é realmente semelhante. 

ENTREVISTADOR

Você era uma espécie de prodígio do jazz, não? E tocava em bandas de jazz quando era jovem? 

KRASZNAHORKAI

Fui músico profissional dos quatorze aos dezoito anos.

ENTREVISTADOR

E Thelonious Monk foi o seu grande herói como pianista. Por que Monk? 

KRASZNAHORKAI

Muitas vezes me faço a mesma pergunta. Olhando para trás, é difícil explicar por que nosso gosto musical sob o regime soviético era tão perfeito. Estou tentando não parecer vaidoso. Eu tocava não apenas em uma banda de jazz, mas também em uma banda de rock, regularmente. Nossos shows eram festas para pessoas da classe trabalhadora. Recentemente, encontrei um pedaço de papel com os títulos das músicas que tocávamos, e tínhamos, sem dúvida, o melhor gosto. Não o meu gosto, mas o gosto da nossa geração. Naquela época, as fontes de jazz ou rock eram muito pequenas. Havia duas estações de rádio — a Rádio Free Europe, de Munique, e a Rádio Luxemburgo. Nossas gravações eram de péssima qualidade, já que gravávamos diretamente do rádio — em segredo, é claro, porque era proibido. Eu tinha um conhecido, um médico em um hospital em Gyula, que tinha uma enorme coleção de LPs, e ele me permitiu fazer gravações da coleção dele. Mas como escolhi as melhores músicas, eu não sei. Tocávamos Cream, Them, Blind Faith, Jimi Hendrix, Aretha Franklin, Dusty Springfield. O grupo mais convencional era o Kinks. O que mais? Troggs, Animals, Eric Burdon. Rolling Stones, claro. Nada de Beatles. Não sei por quê, mas nada de Beatles. E muito blues. 

No trio de jazz, eu tocava com um baterista de cinquenta anos e um baixista que também tinha uns cinquenta. Eu tinha quatorze. Tocávamos com todo mundo, de Erroll Garner a Thelonious Monk. E não tenho explicação para o porquê de Monk ser o meu favorito. Porque agora sou um velho e ainda diria a mesma coisa. 

ENTREVISTADOR

E você cantou também? 

KRASZNAHORKAI

No grupo de rock, sim. Eu tinha uma voz muito aguda, como um contratenor. Então, eu só cantava músicas de mulheres — Dusty Springfield e Aretha Franklin. 

ENTREVISTADOR

E quanto à cena artística? Você estava ouvindo Bowie, Velvet Underground? 

KRASZNAHORKAI

Entrei para o fã-clube de Bowie tarde, depois que me tornei amigo de Béla Tarr. Béla morava em um apartamento pequeno e maravilhoso no centro de Budapeste. Ele andava pelo mesmo cômodo o dia todo, sempre ouvindo música. David Bowie, Lou Reed, Nico…

ENTREVISTADOR

Você começou a trabalhar com Tarr no filme Damnation logo após a publicação de Satantango , em 1985 — certo? E então fez duas adaptações dos seus romances, Satantango, em 1994, e Harmonias de Werckmeister , uma versão de A Melancolia da Resistência , em 2000. 

KRASZNAHORKAI

No começo, fizemos Damnation porque, sob os comunistas, fomos proibidos de fazer Satantango . Toda essa história começou em 1985, depois que o romance foi publicado. Béla, sua esposa, Ágnes, e eu queríamos fazer um filme de Satantango , mas Béla era um homem odiado no mundo do cinema húngaro. Ele foi para uma empresa cinematográfica e outra. Finalmente, alguém nos disse que era proibido fazer Satantango . E eu disse a Béla: Ok, você vai para casa, eu vou para casa, acabou. Talvez duas semanas depois, Ágnes veio até mim e me implorou para escrever um novo roteiro, porque senão Béla cometeria suicídio . Eu o conheço, ela disse. Ele vai cometer suicídio se não puder fazer um filme com você. Claro, isso era uma armadilha, uma história para me fazer trabalhar com ele. 

ENTREVISTADOR

Tarr é o único diretor com quem você trabalhou?

KRASZNAHORKAI

Eu só trabalhei com Béla. Com ele, foi mais do que uma colaboração. Eu dei tudo a ele, e ele levou tudo. Sempre trabalhamos juntos depois que eu escrevi os roteiros, mas eram filmes dele. O cinema é uma arte sem justiça. Se você é um escritor e um diretor de cinema quer adaptar sua obra, você deve aceitar que ele é o diretor. Este filme será dele. Caso contrário, você está cometendo um erro. 

Meus roteiros sempre foram obras literárias. Eu usava a forma, usava diálogos, mas quando escrevia sobre um personagem principal, “Ele pensa em um mundo sem Deus”, Béla dizia: “Isso não é um roteiro. Como posso mostrar isso?”. É por isso que eu tinha um pouco de medo durante esses projetos. Por exemplo, quando Estike sobe para o céu. Béla perguntava: “Como posso fazer uma tomada disso?”. No final, a única possibilidade era colocar a câmera talvez oitenta centímetros na frente do rosto de Irimiás. E se, no filme, pudéssemos ver em seu rosto o que aconteceu com Estike, então tudo bem, ganhamos. Se não, é um fracasso. Enquanto isso, eu posso escrever em um livro e é interessante e tem um fundo filosófico. O que é a realidade? O fantasma de Estike é real? Para a câmera, não.

ENTREVISTADOR

Mas para a linguagem, sim.

KRASZNAHORKAI

Exatamente. E isso significa que, se você tiver uma dúvida sobre o universo, sempre terá algumas possibilidades — em particular por meio da linguagem. O poder da palavra é, para mim, a única maneira de me aproximar dessa realidade oculta. Todo mundo é uma pessoa fictícia e, ao mesmo tempo, uma pessoa real. Eu pertenço ao mundo fictício e ao mundo real — estou presente em ambos os impérios. Você também. E todos neste restaurante. E também este objeto e tudo o que podemos perceber e também coisas que não podemos perceber, porque sabemos que, com nossos cinco sentidos, alguma parte da realidade é imperceptível. Não estou sendo esotérico. A realidade é tão importante para mim que sempre quero estar ciente de todas as possibilidades. 

ENTREVISTADOR

Eu me pergunto se é por isso que a tradução parece tão estranha. Como pode a realidade inventada pela versão húngara de Satantango ou Barão Wenckheim ser a mesma que a realidade inventada pelas palavras em inglês ou francês? Não há problema equivalente para outras formas de arte. Bach faz uma cantata e é uma tentativa, para ele, de expressar algum tipo de ideal transcendente…

KRASZNAHORKAI

Não, não. Bach é apenas um músico. Quando começou sua carreira e começou a compor suas próprias cantatas, ele lidava apenas com questões musicais — estrutura, a forma da fuga, o prelúdio, o falsobordone . Ouvimos sua música e temos uma imagem de Bach como um homem santo, sempre olhando para o céu. Mas, na verdade, todos os gênios se interessam apenas pelo físico, pela técnica. Se você olhar para a Turíngia, de onde Bach veio, a Turíngia estava cheia de Bachs — músicos, geração após geração. Bach era realmente sinônimo de um bom músico. 

Quando estive no Japão, fui a uma oficina onde esculturas de Buda estavam sendo restauradas por especialistas. Eram trabalhadores incríveis, gênios, verdadeiros artistas, mas estavam totalmente absortos na questão técnica: como posso consertar esta escultura quebrada? Então, quando o Buda restaurado foi devolvido ao seu lugar, ele agora era sagrado e alguém podia orar a ele. Você pode dizer que isso é uma contradição, mas não havia contradição para eles. O escultor e o restaurador são a mesma coisa. E quando alguém é um verdadeiro poeta, significa que sabe que a palavra tem poder e que sabe usar palavras. Se você tem essa habilidade, só precisa lidar com questões técnicas. 

ENTREVISTADOR

Então você quer dizer que as únicas verdadeiras questões artísticas são questões de técnica? 

KRASZNAHORKAI

Um artista tem apenas uma tarefa: dar continuidade a um ritual. E ritual é uma técnica pura.

ENTREVISTADOR

Acredito que deveríamos destacar uma obra específica para uma análise mais técnica…

KRASZNAHORKAI

Acho que isso se relaciona com outra questão. Se falamos de Homero, Shakespeare, Dostoiévski, Stendhal ou Kafka, todos eles estão neste império celestial. E uma vez que alguém cruza essa fronteira, é proibido dizer: O Idiota é maravilhoso, mas ‘Noites Brancas não é tão bom”. Ou Thelonious Monk — não nos é permitido dizer que sua interpretação não é tão boa em um lugar, ou em outro é muito dissonante. Essas são pessoas sagradas! Não devemos falar de detalhes, mas da totalidade da obra ou da pessoa. Se você criou uma vez, apenas uma vez, uma obra que é de gênio, depois disso, aos meus olhos, você é livre. Você pode fazer merda. Você continuará sendo absolutamente a mesma pessoa sagrada, e essa merda é uma merda sagrada, porque, tendo cruzado essa fronteira, essa pessoa é invulnerável. 

Estou convencido de que Franz Kafka é um fato em um império que eu, à distância, só posso admirar. Sinto alegria por esse império existir e por figuras como Dante, Goethe, Beckett e Homero terem existido, e ainda existirem, para nós. Tenho certeza de que todos os pensamentos sobre essas figuras, essas figuras sagradas, têm algo em comum. Minha imagem de Kafka não será tão diferente da sua imagem de Kafka.

Isso responde à sua pergunta? 

ENTREVISTADOR

Bem, só que é uma recusa em responder à minha pergunta! Posso colocar de outra forma? O que você está dizendo sobre Bach parece relacionado à sua ideia de que qualquer significado que uma obra possua será alcançado através da pura concentração na técnica. Você escreveu certa vez: “O mundo, se existir, tem que estar nos detalhes”. E talvez a obra, se existir, tenha que estar nos detalhes também — como se fossem aspectos diferentes da mesma coisa?

KRASZNAHORKAI

Para mim, os detalhes são os mais importantes, sim. Os menores detalhes são uma questão de vida ou morte. Um erro numa frase me mata. É por isso que não suporto ler meus livros, porque é quase impossível escrever um livro, em trezentas páginas, sem um único erro de ritmo. E talvez não seja uma questão de perfeição, mas sim um desejo de me importar com os menores detalhes, porque não há diferença de importância entre os menores detalhes e o todo. Qual é a diferença entre uma gota do oceano e o oceano como um todo? Nada. Nada.

ENTREVISTADOR

Isso também está relacionado ao que você disse antes — que você tem quase o livro inteiro na cabeça antes mesmo de começar o processo real de escrita?

KRASZNAHORKAI

Sim, mas há algo mais. Quem escreve os livros? Se você tem a sensação de que pode decidir algo no meio da obra, então você não está na obra — você está fora dela. Se você tem a sensação de que está escrevendo o livro, você está fora da obra em si.

ENTREVISTADOR

Há implicações para a interpretação da obra, para a crítica literária? Se eu perguntasse sobre o significado de A Melancolia da Resistência , seria uma pergunta estúpida? 

KRASZNAHORKAI

Estúpida? Não. Depende de quem pergunta. Falar com você é um tipo diferente de conversa. Eu honro o que você faz. Não é por acaso que estamos aqui, porque normalmente não me sento duas ou três vezes, durante dois ou três dias, com alguém. E, claro, presumo que você também tenha seu próprio interesse na resposta à sua pergunta — essa questão sobre significado. Ela sempre retorna ao problema do todo e dos detalhes, de como os detalhes se tornam um todo. 

ENTREVISTADOR

Você está dizendo que as duas coisas — os detalhes e o todo — são tão interdependentes que não se pode pensar em uma sem pensar na outra? De modo que, de certa forma, uma obra é uma terceira coisa, nem os detalhes nem o todo? 

KRASZNAHORKAI

Buda nunca permitiu que alguém falasse sobre totalidade porque era uma abstração — porque totalidade carece de realidade. Temos que ter muito cuidado ao usar a palavra totalidade . Por exemplo, acreditamos que o mundo, o universo, é infinito. Isso é um fiasco, porque se o mundo fosse realmente infinito, então este objeto [ apontando para um copo de chá ] não poderia existir. 

ENTREVISTADOR

Por que não?

KRASZNAHORKAI

Porque tudo o que você pode experimentar na existência é finito. Neste copo, há pequenas partes finitas, elementos subatômicos e assim por diante. Intangíveis para nós, mas não infinitos. 

ENTREVISTADOR

Há um momento no final de Satantango em que percebemos que o romance está em um loop — que os últimos versos são também os primeiros versos do romance, como escritos por um de seus personagens. Acho que é o único momento metaficcional em seus romances, a única regressão absoluta. Era óbvio para você desde o início que o livro teria essa estrutura circular?

KRASZNAHORKAI

De jeito nenhum. Quando trabalho, começo do começo e nunca sei mais do que meus personagens. No início de Satantango, eu não tinha ideia de que, no final, toda essa construção, como uma forma musical, voltaria e começaria novamente do começo — mas em outro nível, porque quando você relê este livro, você o lê com a consciência de que foi escrito por alguém que é um personagem do livro. Não, eu nunca trabalhei com essa concepção.

ENTREVISTADOR

Porque torna o romance infinito.

KRASZNAHORKAI

Ah, não. Não, acho que não. Só o incontável finito pode existir.  

ENTREVISTADOR

O que quero dizer é que, teoricamente, ele é capaz de ser lido infinitamente, ou infinitamente, em uma espécie de círculo. 

KRASZNAHORKAI

Você se lembra do que Buda nos disse sobre o círculo?

ENTREVISTADOR

Não. 

KRASZNAHORKAI

Se você seguir um círculo, depois de um tempo entenderá que um círculo não existe. É simplesmente um ponto que não existe. Há uma grande diferença entre o infinito e o finito incontável. Afinal, o que você acha que acontece quando o dançarino sufi se dissolve no nada? 

ENTREVISTADOR

Mas, para finalizar a questão dos finais, você disse que Barão Wenckheim seria seu último romance. Mas eu sei que você ainda está escrevendo. Isso significa que o que você está escrevendo agora não é um romance? 

KRASZNAHORKAI

Pequenas coisas, não uma grande construção. Já escrevi três pequenos livros desde o último romance. O primeiro, Projeto Manhattan (2017), é um prólogo para a segunda obra, meu livro sobre Nova York. Um título provisório poderia ser algo como “Trabalho de campo para um palácio”. E também terminei um livro que queria escrever desde o início, porque adoro Homero desde a minha juventude. Fiz uma viagem no outono passado à Dalmácia, na costa do Adriático. Essa jornada me levou a uma ilha no Adriático, e um mito da Odisseia subitamente retornou, e escrevi um livro sobre ele. Um pequeno livro, como uma novela.

ENTREVISTADOR

Você realmente não acha que escreverá outro romance depois do O retorno do barão de Wenckheim?

KRASZNAHORKAI

Romance? Não. Quando você ler, vai entender. O retorno do barão de Wenckheim, deve ser o último. 

 

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Pessoas Normais, de Sally Rooney

Pessoas Normais, de Sally Rooney

Eu procurei ler a irlandesa Sally Rooney (1991) logo após saber de suas  lógicas e firmes posições políticas, assim como de seu receio de ser presa ao entrar na Inglaterra, onde evitou ir até para receber premiações (vá se informar, prezado leitor!). Quando soube dela, logo pensei: aí está uma pessoa interessante. Tinha lido recentemente o extraordinário Pequenas coisas como estas, da também irlandesa Claire Keegan e achei que devia encarar a segunda irlandesa do ano. Valeu a pena.

Em Pessoas Normais (Normal People, 2018), Rooney constrói um romance de aparente simplicidade, mas que se revela uma análise bastante fina sobre o amor e, por assim dizer, a desigualdade emocional. A história é contada em ordem cronológica dando saltos temporais, o que pode parecer cinematográfico, mas que funciona no livro. A história acompanha Marianne e Connell, dois adolescentes irlandeses que vivem uma relação secreta. Explica-se: ele era popular, pobre e inseguro; ela, solitária, rica, confiante, mas emocionalmente ferida. Pode parecer uma fórmula já lida e vista, mas o tratamento de Rooney é muito inteligente e criativo. Com o tempo, já na universidade e depois, os dois se separam e se reencontram, a atração física permanece, mas o resto é tenso, ambíguo, inexplicável.

O mérito de Rooney é o de transformar matéria íntima em matéria filosófica e política. Não há gestos heroicos nem paixões arrebatadas, mas uma sucessão de pequenos mal-entendidos, mensagens não compreendidas, hesitações. O que ela narra, talvez, seja a dificuldade de ser fraco. Marianne e Connell se amam, mas não conseguem existir satisfatoriamente um diante do outro.

O estilo de Rooney é econômico. Sua prosa não tem floreios. Ela escreve como quem observa, e não como quem explica. Tal contenção esconde um pouco do subtexto emocional que pulsa em cada gesto. Nota-se que o que se diz, o que se cala e o que se escreve — a linguagem, principalmente a errada — é o campo de batalha das relações.

Sou obrigado a ir adiante. Pessoas Normais é também um romance sobre o cuidado — sobre como o amor é o único espaço onde se pode ensaiar a cura. Rooney escreve com empatia sobre a dor, mas sem ceder à tentação do consolo. Sua compaixão é lúcida, jamais sentimental.

O livro também é uma reflexão sobre classe social, um tema que a autora — formada em sociologia — trata com naturalidade e rigor. A diferença econômica entre Marianne e Connell não é mero pano de fundo: é a estrutura invisível que determina o modo como cada um se percebe e é percebido. Nesse sentido, Pessoas Normais é um romance político, ainda que sem slogans.

No final, o leitor entende que o “normal” do título é apenas uma ironia: de perto ninguém é normal, já dizia Caetano, e nada é normal quando se ama. O amor, em Sally Rooney, é a melhor forma de estar perdido — e quando não estamos?

Sally Rooney

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Um eco muito distante, de Muriel Spark

Um eco muito distante, de Muriel Spark

Gosto muito de Muriel Spark (1918-2006). Seus pequenos romances são inteligentes, bem-humorados e sinceros. Não é muito difícil se identificar com um outro personagem, mesmo que haja um crime ou um fato muito lúgubre. Um eco muito distante (A Far Cry from Kensington, 1988) é um dos romances mais refinados e enigmáticos de Muriel Spark, um livro que combina a leveza irônica de seu texto com uma reflexão profunda sobre ética, memória e poder — tanto o poder da linguagem quanto o das pequenas tiranias cotidianas.

A narradora, Mrs. Hawkins, é tranquila e sensata. É uma jovem viúva de guerra que trabalha numa editora londrina do pós-guerra. O cenário é de reconstrução: Londres ainda está em ruínas e as pessoas tentam retomar a vida entre empregos precários, além de morarem em pensões modestas e manterem aquele típico cinismo inglês. Mas Spark não chega a se interessar pelo pano de fundo social: o que a fascina é o comportamento humano sob pressão moral.

Mrs. Hawkins é tipicamente “sparkiana”: ao mesmo tempo serena e implacável. Passa por um período de sobrepeso e decide comer a metade do que comia de uma forma muito particular. Serve-se e deixa a metade. Emagrece, claro. Mas isto é apenas curiosidade. Quando, num impulso de franqueza, ela chama um escritor pretensioso de “pisseur de copie” — algo como “mijador de texto” ou, em português, um sujeito que escreve sob diarreia mental, um merda da palavra como tantos –, essa ofensa aparentemente trivial deflagra uma série de desdobramentos que alteram sua vida e a de todos ao redor. O livro se transforma, então, não apenas num retrato ferino da vaidade literária e da mediocridade editorial, mas também num estudo sobre como uma única expressão pode conter um juízo moral devastador.

Spark articula tudo isso com seu estilo inconfundível: economia de meios, ritmo preciso e ironia compassiva. Sua prosa é sempre enxuta — não há frase sem função, um detalhe que não revele nada. E, como em boa parte de sua obra, o humor é o bisturi com que disseca a hipocrisia.

Mas, pensando melhor, creio que o romance seja ainda mais uma meditação sobre integridade: a necessidade de manter-se fiel à verdade, mesmo quando isso nos custa conforto, emprego, ou relações. (Aliás, parece que tenho doutorado nisso e em me lascar por isso). Um eco muito distante é, nesse sentido, um livro sobre o preço da lucidez — e sobre o prazer, certamente secreto e nada adequado do ponto de vista econômico, de permanecer de pé num mundo que se curva.

Se A Primavera da Srta. Jean Brodie é o livro de Spark sobre a sedução da autoridade, Um eco muito distante é o livro sobre a responsabilidade do julgamento. No fim, o eco (ou o grito) do título é o da própria consciência — a distância entre quem fomos e quem nos tornamos quando, em nome da verdade, ousamos dizer o que pensamos.

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À margem do lago, de Naia Oliveira

À margem do lago, de Naia Oliveira

À margem do lago, de Naia Oliveira, é um pequeno livro de memórias, de afetos e resistência. Nascida nos anos 50 em Guaíba, do outro lado do lago que banha igualmente Porto Alegre, a autora nos convida a sentar à beira do tempo e escutar suas histórias que pulsam como uma coleção de instantâneos da vida, ou como “cristalizações do fugidio”, como dizia Erico sobre as fotografias. Naia transforma cada parágrafo em um pequeno caso — às vezes terno, às vezes duro — que revelam tanto a intimidade e os detalhes de uma infância à beira do lago quanto a intensidade de uma juventude vivida sob a sombra da ditadura militar. Lírico na simplicidade, forte na memória, é um testemunho delicado sobre viver, lembrar e não se calar. A prosa de Naia flui como as águas do Guaíba: calmas na superfície, mas carregadas de histórias no fundo.

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Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Acho que foi a Telma Scherer quem chamou este livro de “aula”. Ela tem razão. Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, é ideal para quem quer refletir sobre o romance como experiência escrita e lida. O livro é de 1979 e literalmente me deixou perplexo quando o li no século XX. Para minha nenhuma surpresa, logo tornou‑se um dos marcos da literatura pós‑moderna. É um romance sobre o ato de ler (e de escrever) um romance. “Você está prestes a começar a ler o novo romance de Italo Calvino…”. Já nessa primeira frase, o leitor é chamado a ser personagem de sua própria leitura — isso sem os apelos fáceis ao sobrenatural. A magia do texto nos chama. Se um viajante é absolutamente metaficcional, ou seja, faz-nos lembrar frequentemente — muitas vezes de forma irônica – de que estamos diante de uma obra de ficção. (E, não obstante, esta fato, sempre nos embrenhamos nas histórias e queremos saber mais).

A narrativa é dividida em 22 capítulos. Os ímpares são escritos em segunda pessoa (“você, Leitor”) e descrevem a tentativa do leitor de seguir sua leitura, que começa com um romance intitulado como o próprio livro. Os outros capítulos, os pares, são primeiros capítulos de outros romances que são interrompidos. Há diversos gêneros — realismo mágico, detetive, ficção científica, romance psicológico, amor –, sempre em fragmentos cortados abruptamente por uma “razão editorial” ou conspiração. Sim, é lúdico, mas totalmente decepcionante para quem quer mergulhar num fluxo ficcional contínuo. É um curioso livro sobre a estrutura e os mecanismos dos romances.

Assim, Se um viajante se desdobra em dez narrativas distintas — nenhuma delas concluída –, ao mesmo tempo avança o enredo central dos capítulos ímpares: a busca do Leitor (e da Leitora, Ludmilla) por um texto completo, assim como a busca do Leitor por Ludmilla.

Calvino explora o que chamou de “romances interrompidos”, operando por cortes sucessivos, mais ou menos o que Bolaño faz de forma menos explícita. Cada fragmento introduz um novo universo, cria uma expectativa, mas… Tchau. Essa frustração força o leitor real (sim, a gente) a se sair do conforto e da atenção de uma leitura linear. É um romance que propõe que “você” é o protagonista, fazendo com que o Leitor “real” (sim, a gente) seja confrontado com o Leitor do romance, num emaranhado de camadas. Calvino mistura leitores, narradores, autores e traduções apócrifas, questionando quem — ou o que — decide que a leitura terminou. Em cartas, Calvino confirmou que se reconhecia influenciado por Nabokov e Barthes, o que tornaria o romance também um ensaio sobre o romance.

Mas por que tudo isso é tão legal? Por que devemos nos submeter a este romance cheio de cortes? Porque nos mata — metaforicamente — como leitores. Porque nos corta o desejo. Porque é cômico ser maltratado e aqui nós não estamos falando em ser maltratado por um mau livro, mas por um muito bom. Porque os abismos narrativos não esvaziam o romance, mas tornam-se livros que ainda podem ser escritos. Porque pensa o fazer literário. Porque o monte de distrações, erros de impressão outros mistérios que cortam a fluidez, mostram que ler é viajar, mas também é se conhecer e se reconhecer. Porque é estilisticamente elegante e sutil. Porque Calvino está sempre bem humorado — é um gozador.

Se um viajante numa noite de inverno não é apenas inovador, é um convite à reflexão sobre o desejo que move a leitura. Não entrega histórias fechadas — oferece os cortes que tememos em cada bom livro. Autores falsificam, enganam. Leitores colaboram — a obra exige que você entenda que o livro só existe quando alguém se dispõe a lê-lo com atenção.

Não sei mais o que escrever sobre um livro tão fácil de ler e tão difícil. Estou comentando um romance sobre a leitura, que faz pensar que ler é resistir ao fim, é recusar o fechamento. Por isso, e por ser esteticamente sedutor, é que é tão difícil de resenhar…

P.S. — Curiosamente, nunca vi este livro ser analisado em Oficinas de Literatura. Mas isso é outro tema…

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O Presidente, de Georges Simenon

O Presidente, de Georges Simenon

O Presidente está catalogado como um dos “romances sérios” de Georges Simenon. Os do detetive Maigret estariam no escaninho dos não-sérios. E, com efeito, trata-se de um livro ambicioso, um exercício plenamente justificado e bem sucedido.

Em um chalé na Normandia, um homem idoso observa o mar e a passagem do tempo. Ele é Augustin Bouville, ex-presidente do Conselho de Ministros da França (um cargo equivalente ao de primeiro-ministro). Ele foi uma das figuras mais poderosas da França, aquele sujeito que é uma espécie de reserva moral do país, que é sempre consultado e entrevistado durante as crises e tal. Aos 82 anos, debilitado por uma saúde já frágil, blindado por serviçais e enfermeiras, ele remói suas lembranças enquanto acompanha pelo rádio uma grave crise política que ameaça a República. Está perfeitamente lúcido. O contraste entre a grandeza do passado e a fragilidade do presente é o pano de fundo para um mergulho na natureza do poder e na irrelevância final.

É um romance político, mas é principalmente um estudo psicológico muito íntimo sobre o esvaziamento que sucede o poder. Simenon, conhecido por sua prosa econômica, direta e atmosférica, abandona aqui qualquer resquício de suspense policial para se concentrar na mente de quem já comandou uma nação e agora mal comanda seu próprio corpo.

A narrativa alterna-se entre o presente claustrofóbico de Bouville — seus rituais, sua dependência da enfermeira, sua visão embaçada — e as memórias de suas manobras políticas. Não é herói nem vilão, é um pragmático. Relembra as traições, os acordos nos bastidores. A pergunta que Simenon sugere e não faz é: tudo isso valeu a pena? O que sobra de um homem quando o poder o abandona?

A crise do rádio serve como um espelho cruel. Ele vê seus sucessores, outrora seus subordinados, repetindo os mesmos jogos, cometendo os mesmos erros, enquanto ele, que pensa poder contribuir, está reduzido a um espectro irrelevante. O poder foi apenas um empréstimo temporário.

A caracterização do Presidente é uma perfeição. Simenon explora com precisão a vaidade bem escondida, o tédio e a lucidez de um homem no fim da linha. Claro, o livro é uma reflexão desencantada sobre a política. Sugere que os mecanismos são cíclicos e que os homens que os operam são, no fundo, intercambiáveis e vulneráveis. O som do mar, o clima cinzento da Normandia e a quietude da casa refletem o estado interior do protagonista.

É um livro introspectivo para quem aprecia histórias que exploram as complexidades morais e a condição humana. Não tem grande ação nem enredo movimentado. O Presidente é um dos romances mais sérios e ambiciosos de Simenon. É um livro triste e profundamente inteligente.

Recomendo, mas só tem em sebos.

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O amor é um monstro de Deus, de Luciana De Luca

O amor é um monstro de Deus, de Luciana De Luca

Muito bom livro. Lírico, cheio de ritmo e sensualidade, este romance argentino, muito bem traduzido por Sérgio Karam, constrói um cenário desolador em uma pequena vila do interior do país. Sob o olhar autoritário da mãe, a filha e narradora vive em uma casa sufocante. O pai nunca esteve verdadeiramente presente, o irmão vive com os porcos — parece ter problemas mentais. A mãe administra o destino da família com mão de ferro e crueldade. Ela não espera nada dos filhos, afastando-os por não corresponderem às suas expectativas. Além deste ambiente opressivo, há uma infestação de moscas, uma greve de coveiros e o calor sufocante e insalubre. Sim, parece que a nova e excelente literatura argentina não usa meias palavras. Ou usa? Usa sim. Pois há muita poesia e beleza na prosa de De Luca. Seu expressionismo não detalha muitas coisas e nem desenvolve grandemente personagens, antes torna a narrativa uma fonte de possíveis metáforas. A filha  é uma mulher gigante — sofre de acromegalia. –, o que dá mais um passo em direção ao expressionismo.

O amor é um monstro de Deus é um romance curto e de grande impacto. O texto de De Luca nos lembra outras vozes femininas intensas, também vindas da Argentina, como a de Mariana Enríquez. Os personagens, todos mais ou menos anômalos, compõem um cenário e tanto que é amplificado por uma prosa poética e perturbadora, dando enorme substância ao que é contado. Tal como nos livros de Mariana Enríquez, ficamos hipnotizados.

Quando dois missionários mórmons chegam à cidade com suas pequenas Bíblias e lábia, a novela toma ares — ao menos para mim — um pouco cômicos. Tudo explode com a súbita demonstração de sexualidade da moça gigante, fato que não devo detalhar por causa dos inevitáveis spoilers.

Como disse, o livro serve à diversas metáforas e interpretações. A protagonista é vista como um “monstro” e isso serve para ser posta à margem por suas características físicas. A chegada dos missionários abre questões sobre espiritualidade, amor e violência. Mas, querem saber?, acho tudo isso meio bobo. Li o livro pela história e pelo texto grudento de De Luca.

Recomendo para quem busca literatura que provoca e desconcerta.

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Os Óculos de Ouro, de Giorgio Bassani

Os Óculos de Ouro, de Giorgio Bassani

Espécie de ensaio para o O Jardim dos Finzi-Contini (1962), transformado em (bom) filme por Vittorio De Sica, Os Óculos de Ouro (1958) é uma novela curta, mas densa, parte daquilo que ficou conhecido como o ciclo dos “Romances de Ferrara”, no qual o autor disseca, com elegância e dor contida, a vida moral na Itália fascista, no período de entreguerras. É uma narrativa onde a intimidade do indivíduo e a violência da sociedade lutam em silêncio.

A história gira em torno do Dr. Fadigati, um respeitado otorrinolaringologista que se estabelece em Ferrara — ele é culto, educado, solitário. Traz à cidade um certo glamour, uma elegância que seus colegas não tinham. Mas há algo nele que escapa aos códigos burgueses da cidade. Por que ele não casa com uma das moças da cidade? Já sentiram o problema, né? Os círculos sociais fingem não ver aquilo.

Narrada por um jovem judeu (alter ego do próprio Bassani), a novela alterna o olhar sobre Fadigati e a experiência pessoal do narrador, que também vai se marginalizando por ser judeu num regime que começa a institucionalizar o antissemitismo. Quando Fadigati se envolve com um rapaz da cidade, sua reputação desmorona. O escárnio torna-se implacável. O narrador observa — e se vê espelhado na derrocada do médico. Ambos estão condenados não por suas ações, mas por aquilo que são, diante de um mundo que exige hipocrisia.

(As cenas passadas no trem, onde Fadigati frequentemente viaja com estudantes a fim de passar uns dias em Bolonha — para ver óperas e ter encontros –, são extraordinárias).

Sim, é um livro sobre o preconceito: tanto contra judeus quanto contra os homossexuais. Também sobre a classe média fascista: respeitável e cruel.

Giorgio Bassani (1916-2000) escreve com prosa clara, elegante e melancólica, como quem tenta conter a violência com formas perfeitas. O ritmo é calmo, mas carregado de tensão e afetividade. Nada explode — tudo apodrece. Não é apenas um livro sobre um médico homossexual e um jovem judeu. É, sobretudo, um livro sobre a postura de uma sociedade diante da diferença — e sobre o sofrimento de quem insiste em ser quem é.

Giorgio Bassani (1916-2000)

 

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Daniel Deronda, de George Eliot

Daniel Deronda, de George Eliot

Daniel Deronda (1876) foi publicado no Brasil pela Paz e Terra em 1997. Mesmo sendo um livro de George Eliot (1819-1880) — autora daquele que é, para a maioria, o melhor livro da literatura inglesa, o notável Middlemarch (1871-2) –, não deve ter vendido nada e caiu na Grande Vala Nacional dos Livros Mortos, a qual é lotada de joias. Deronda é o último romance de Eliot, que parou de escrever após a morte de seu marido-amante George Henry Lewes. Aos desavisados, alerto que George Eliot era uma mulher, de nome oficial Mary Ann Evans.

O livro, de 700 páginas na edição brasileira, tem mais de 1000 nas edições com tamanho de letra normal, e é lento, meditativo, com longas passagens repletas de pensamentos e argumentações. É confortável de ler. Não é Tolstói mas traz enormes problemas morais que os personagens se debatem para resolver. Eliot gostava de unir narrativas aparentemente desconexas e repete o feito neste livro: há a tragédia aristocrática de Gwendolen Harleth e a busca identitária de Daniel Deronda, um jovem que foi criado por um “tio” e que desconhece suas origens. Mais do que um ousado romance social, a obra é uma exploração filosófica sobre culpa, redenção e a força do legado cultural.

Então, no primeiro dos eixos está Gwendolen, a bela heroína antiética e egoísta, cujo casamento falido com o sádico Grandcourt leva-a a um desespero moral. Sua vida é descrita com puro realismo psicológico, mostrando o funcionamento da opressão feminina numa sociedade que a ensinou a ser ornamental, mas não humana. Já Daniel Deronda é o protagonista enigmático, criado como um aristocrata inglês, mas atraído pelo misticismo judaico após salvar a judia Mirah Lapidoth. Sua história é uma espécie de alegoria, vinculando a desconhecida identidade a uma intuição de dever coletivo. A assimetria de ambos os personagens é justamente o cerne do livro: Eliot contrasta o vazio da elite britânica com a riqueza da tradição judaica, então marginalizada.

Falar elogiosamente em judaísmo e sionismo em dias de real genocídio palestino é quase proibido, mas neste romance, escrito há 149 anos atrás, uma autora não-judia retratava pela primeira vez na literatura inglesa a cultura judaica com profundidade e respeito. O sionismo de Daniel (antes mesmo do termo existir) e o sofrimento de Mordecai, um intelectual judeu — bem chato, aliás –, refletem o debate sobre a diáspora e a terra prometida. Eliot sugere que o pertencimento, a herança e a escolha poderiam ser antídotos para a superficialidade.

Enquanto Daniel encontra o judaísmo, Gwendolen é a vítima de uma sociedade que a educou para ser frívola. Seu casamento com Grandcourt (um verdadeiro vilão que se comporta com típico hômi machista) é a perfeita representação do preço pago pela dependência feminina. Sua jornada — ou sua tentativa — de ir da arrogância para a humildade é das mais comoventes. “Eu vejo o que sou… Uma mulher que errou em tudo”.

A texto é denso, quase filosófico, mas seus diálogos afiados antecipam claramente o modernismo. Li que, na época da publicação, os judeus agradeceram, os críticos acusaram o livro de didático e o público não gostou. Mas hoje, Daniel Deronda é visto como um precursor do romance multicultural e do feminismo literário. Mesmo com suas imperfeições e com o chatíssimo Mordecai, é efetivamente um romance à frente de seu tempo.

Por que é imperfeito? A trama de Daniel e Mordecai pode parecer forçada, e o final de Gwendolen é abrupto. Mas a ousadia em discutir etnia, gênero e espiritualidade num período de nacionalismos estreitos o torna essencial. Como escreveu o crítico Harold Bloom: “Eliot não quis escrever um grande romance; quis escrever um livro que mudasse consciências”. Daniel Deronda é uma espécie de farol torto escondido no cânone vitoriano.

Sobre os judeus do romance

O amante de Eliot, o jornalista e filósofo George Henry Lewes, previra: “O elemento judaico não vai satisfazer ninguém”. O tema é bastante incomum para a época: a posição dos judeus na sociedade britânica e europeia. Deronda é um jovem aristocrata idealista que resgata uma jovem judia e, em suas tentativas de ajudá-la a encontrar sua família, acaba se envolvendo cada vez mais na comunidade judaica e na efervescência da política sionista inicial.

A aparição deles no livro foi tão indesejada para alguns dos leitores quanto para alguns dos personagens. Enquanto Lady Mallinger lamenta o fato de Daniel “enlouquecer dessa forma pelos judeus”, um amigo de Eliot, John Blackwood, observou: “Os judeus deveriam ser as pessoas mais interessantes do mundo, mas nem mesmo sua caneta mágica consegue torná-los imediatamente um elemento popular em um romance”. Muitos anos depois, um crítico alucinado pediu que as seções judaicas do romance fossem completamente eliminadas, criando um romance chamado Gwendolen Harleth, em homenagem à gentia fatalmente egocêntrica que se apaixona por Deronda.

Falemos sério, um Daniel Deronda sem judeus teria sido impossível – mas parece que as pessoas continuaram tentando. Li que na elogiada adaptação da BBC de 2002 , o foco – além de uma breve cena da judia Mirah às margens do Tâmisa – é o romance entre Daniel e Gwendolen.

Por que Eliot se interessava tanto pela vida judaica? Ela foi criada como anglicana, mas desde cedo interessou-se pela história das religiões e, aos vinte e poucos anos, se integrou a um grupo de livres-pensadores em questões políticas e religiosas. A diversidade e a mistura de raças também era um assunto de seu interesse após a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.

Na década de 1860, Eliot conheceu Emanuel Deutsch, um estudioso judeu e um dos primeiros sionistas. O personagem Mordecai — o estudioso e místico judeu — parece ter sido parcialmente baseado nele. Eliot escreveu a Harriet Beecher Stowe após a publicação de Deronda que “para com os hebreus, nós, ocidentais, que fomos criados no cristianismo, temos uma dívida peculiar e, quer reconheçamos ou não, uma especial profundidade de comunhão em sentimentos religiosos e morais”. Ela permaneceu interessada no judaísmo ao longo de sua vida, publicando um ensaio contra o antissemitismo três anos depois.

O que Daniel Deronda nos mostra sobre o lugar dos judeus na Grã-Bretanha no final do século XIX? Primeiro, que eles eram impopulares, sofrendo preconceito mesmo durante o governo do judeu Benjamin Disraeli. Eliot faz questão de nos mostrar o que ela considera a visão típica dos judeus — desde as classes altas (que se referem arrogantemente a Mirah como uma “pequena judia”), às classes médias (a Sra. Meyrick imediatamente presume que Mirah possa ter “pensamentos malignos”), até as classes trabalhadoras (cena do homem no bar).

Mas Eliot não está isenta de preconceitos contra um certo tipo de judeu. Ela presume que o leitor não se identificará com a família Cohen, chefiada por dono de uma loja de penhores, e até se desculpa no último capítulo por permitir que eles comparecessem a um determinado casamento. Enquanto isso, sua representação da inocente Mirah oscila para o outro lado. Ela é tão santa que tem nuances de bom selvagem. É tão infantil que, quando finalmente encontra um romance, este soa estranho. Achei muito esquisito quando ela beijou…

No entanto, Mordecai, o intelectual visionário que encanta Daniel, é um personagem complexo com lados simpáticos e antipáticos, e revela o fascínio da autora pelos detalhes do judaísmo, suas práticas religiosas e cultura. O fato de Daniel se tornar discípulo de Mordecai e concordar em continuar seu trabalho de busca de uma pátria para os judeus após sua morte — uma ideia tão desconcertante para os leitores de Eliot quanto para a maioria dos personagens do livro — também demonstra um real comprometimento da autora com o tema.

Hoje, o sionismo está manchado pelo governo do direitista Benjamin Netanyahu e seu apartheid. Já Mordecai é o judeu errante, eternamente estrangeiro em terra estrangeira, nunca em casa, “um povo que conservou e ampliou seu estoque espiritual justamente na época em que era caçado com um ódio tão feroz quanto os incêndios florestais que afugentam os animais de seus esconderijos”. A visão otimista de Mordecai de um futuro Israel como “uma nova Judeia, situada entre o Oriente e o Ocidente — uma aliança de reconciliação — um ponto de parada para inimizades, um território neutro para o Oriente” não pode deixar de ser lida como sombriamente irônica hoje.

George Eliot

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Sobre o Capítulo XXIII de Daniel Deronda

Sobre o Capítulo XXIII de Daniel Deronda

Ontem, lemos um capítulo absolutamente arrebatador de “Daniel Deronda” (1876). Trata-se da cena (Cap. XXIII) em que Herr Klesmer desencoraja Gwendolen a seguir uma carreira artística. É um momento especialmente incômodo, revelando muito sobre os temas da ilusão da emancipação feminina na obra de George Eliot (não esqueçam que Eliot era uma mulher).

Gwendolen, uma jovem bonita, orgulhosa e na pindaíba, considera se tornar uma cantora ou atriz profissional para manter seu status e independência. Ela acredita que seu talento amador e beleza sejam suficientes para o sucesso. No entanto, Klesmer, um pianista e compositor rigoroso (talvez inspirado em Liszt), desmonta suas expectativas com uma crítica honesta, fria e implacável.

Ele diz que o talento de Gwendolen é medíocre e que o mundo artístico exige disciplina e sacrifício — algo que ela não possui. Ele diz que fazer sucesso entre amigos e parentes provincianos é uma coisa, outra coisa é o mundo e suas disputas. Ele sugere que a sociedade não respeita as mulheres de talento medíocre, associando-as ao sexo fácil. Ainda mais quando são bonitas.

E volta aos méritos inexistentes da bela moça: você já tem 21 anos, deveria ter começado a estudar disciplinadamente há mais de sete anos. Está tarde.

Gwendolen fica humilhada, pois percebe claramente que a imagem que tinha de si era uma fantasia. Este banho de realidade fará com que ela arranje um casamento rico ligeirinho, aposto.

Mas George Eliot é genial e deixa um subtexto social: o da frivolidade da educação feminina da época, que preparava mulheres para serem “ornamentos” da sociedade, jamais para profissões sérias. Mesmo que Gwendolen quisesse independência, as opções para mulheres sem talento excepcional eram poucas — muitas vezes, apenas o casamento ou a pobreza.

Eliot, que vivia como escritora profissional, pode estar destacando parte do que viveu. Gwendolen, sem talento, sem opões, certamente acabará presa em um casamento. Já Eliot sempre foi a outra, a amante. Só casou bem mais velha, com um jovem, quando o primeiro morreu.

Voltemos. A intervenção de Klesmer não é apenas sobre arte — é sobre a dura verdade de que nem todos podem escapar de suas circunstâncias apenas pela vontade. Gwendolen, ao contrário de heroínas como Jane Eyre, não tem um talento salvador, e sua tragédia reside nessa limitação.

P.S. — O que faz Romola Garai ornamentando o post? Ora, ela atuou como Gwendolen numa série da BBC.

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Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Este é um livro curioso. Parece leve, parece que não chegará a lugar nenhum, mas é poderoso, muito poderoso. Pequenas coisas como estas foi finalista do Booker em 2022 e figurou na célebre lista dos 100 melhores livros do século XX publicada pelo New York Times. A autora Claire Keegan é irlandesa e, como tantos de seu país, tem uma escrita cheia de beleza e suavidade.

O romance é centrado no personagem Bill Furlong. O ano é 1985. Furlong é um pequeno empresário que vende carvão e madeira, mas que não gosta de ficar no escritório, prefere trabalhar num caminhão caindo aos pedaços, fazendo as entregas. É pai de 5 filhas e casado com Eileen. Todos vão à igreja aos domingos. Na superfície de tudo isso, Bill parece estar contente com sua vida e destino. No entanto, conforme Keegan vai desenvolvendo a história, aprendemos que as coisas não são bem assim.

Na cidade há uma Lavanderia de Madalena — também chamadas de Asilos de Madalena –, instituições comuns na Irlanda no século XX. O que eram? Eram essencialmente casas de trabalho para mulheres, especialmente para mulheres jovens e adolescentes que engravidavam fora do casamento. As Lavanderias eram administradas pela Igreja Católica e as famílias lá deixavam suas mulheres para que pudessem esconder suas gestações da sociedade. Uma vez que a criança nascia, ela era frequentemente retirada à força da mãe e posta para adoção. (Após investigações realizadas antes da desativação dessas casas, houve a certeza de que muitas das crianças nascidas nessas lavanderias eram simplesmente mortas). Embora as Lavanderias de Magdalena fossem particularmente severas na Irlanda, estabelecimentos semelhantes existiam em todo o mundo. Como revela o nome, essas casas prestavam serviços de lavanderia para os locais onde estavam implantadas.

Certo dia, quando Bill deixa lenha e carvão na igreja local, ao lado da lavanderia, ele encontra uma adolescente trancada no galpão de carvão. Ela está coberta de sujeira, passa frio e está aterrorizada. Ele a leva para dentro e as freiras recebem a garota e abafam tudo, agindo estranhamente. Tudo o que Bill consegue arrancar da garota é que seu nome é Sarah — o mesmo de sua mãe.

A mãe de Bill, Sarah, era adolescente quando engravidou de Bill. A família Wilson a acolheu e a deixou trabalhar como empregada da casa pagando-lhe uma pequena quantia, além de quarto e alimentação. Todos dizem a Bill que ele deveria ser grato pela gentileza da família Wilson — especialmente quando a alternativa poderia ter sido uma Lavanderia Madalena para sua mãe. No entanto, Bill parece meio cansado de ser grato. Sua frustração parece palpável ​​ao longo do romance.

Enquanto ele constrói uma vida respeitável para si com sua esposa e filhos, a mãe adolescente de Bill é algo de que ele não consegue escapar. De muitas maneiras, ela parece seguir Bill por toda a sua vida e todos, incluindo sua esposa, usam a gravidez adolescente de sua mãe como uma resposta para qualquer momento em que Bill diga algo fora da linha da calma e da paz.

Quando ele vê Sarah no galpão de carvão, aquilo torna-se um fato importante para ele. Não havia serenidade naquele homem tão cordato, mas há paz no romance de Keegan até o final. Aliás, o final é uma joia de tão bem realizado.

Claire Keegan é uma mestra. Ela equilibra tristeza, delicadeza e perplexidade de uma forma extremamente bela. Os ressentimentos de Bill saem das páginas e parecem vivos, pulsantes. Porém, embora o assunto tenso e doloroso, ele alguma forma não é pesado.

Uma frase ecoa em nossa cabeça após a leitura. Ela aparece quando Furlong, meio perdido após suas entregas, pergunta a um homem na beira da estrada onde vai dar aquela estrada:

— Esta estrada vai dar onde você quiser, filho.

Um tremendo pequeno romance.

.oOo.

Obs.: há um filme homônimo baseado no livro. Bill Furlong é vivido por Cillian Murphy, porém o filme é bem ruinzinho.

Claire Keegan (1968-)

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Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber é um romance do suíço Max Frisch (1911-1991) publicado pela primeira vez na Alemanha em agosto de 1957 — o melhor mês do melhor ano. É narrado em primeiríssima pessoa pelo protagonista Walter Faber, um engenheiro brilhante que viaja a trabalho pela Europa e pelas Américas. Mais ou menos como o Ricardo Branco era e fazia. Sua visão de mundo — lógica, probabilística e científica — é desafiada por uma série de coincidências incríveis, fazendo com que o passado ressurja. (Você, que está na minha TL e portanto é inteligente, já sentiu a jogadinha entre Homo Faber e Homo Sapiens, né? Se não se deu conta, fora daqui!)

O livro foi editado pela Guanabara em 1986 e relido por mim agora em voz alta para a Elena. É ótimo. Minha cara-metade também aprovou e queria que eu lesse mais a cada noite. Gostei muito das duas vezes que o li, apesar de algumas reflexões antiquadas.

É uma obra importante e curiosa, pois se fala de um tema bem comum — o de nossa fragilidade — também fala de outro mais incomum — da ilusão do controle que temos sobre nossas vidas. É um livro de uma introspecção também pouco usual: a de um engenheiro. Faber é um homem de meia-idade, especializado em engenharia mecânica, que acredita piamente na lógica, na ciência e no controle técnico sobre a vida. Ele viaja constantemente a trabalho, vivendo uma existência organizada e aparentemente imune ao caos emocional. No entanto, durante uma viagem de negócios tudo começa a se descontrolar, como não aconteceu com o Ricardo Branco.

A narrativa se desenrola em duas partes: na primeira, Faber viaja para a América Central e se envolve em um acidente de avião. Na segunda parte, numa viagem de navio, Faber encontra Sabeth, embarcando numa relação cujo caráter é melhor deixarmos de lado.

Faber representaria o homem moderno, que confia na tecnologia e na razão. No entanto, o acaso o força a se desequilibrar de sua posição. Pode-se dizer que Sabeth é filha de uma ex-namorada sua e acaba por expor sua fragilidade emocional e incapacidade de lidar com complexidades “das humanas”. Frisch critica a crença de que a ciência e a técnica podem resolver todos os problemas humanos, mostrando que a vida é cheia de ambiguidades e incertezas.

Max Frisch foi um arquiteto e escritor influenciado pelo existencialismo e por Brecht. O final do livro é de grande categoria, Frisch sabia mesmo como deixar a gente pensando.

Tradução de Herbert Caro.

Max Frisch

 

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXXI – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXXI – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Eu tento, tento, mas não consigo escapar dos calhamaços. Com aproximadamente 1000 páginas no mundo inteiro e 784 na edição de 1985 da Nova Fronteira, este livro me foi indicado por uma excelente e compreensiva leitora-amiga-cliente da Livraria Bamboletras. Ela lera o original em francês. Respondi que eu tinha um exemplar comprado em 1986 que jamais fora aberto por mim… Ela nem sabia que havia a tradução brasileira. Tive que obedecê-la, li o romance com enorme atenção e não me arrependo. Quando iniciei a leitura, ela reapareceu na livraria. Seu nome não é segredo: é Karina Maria. E ela reafirmou: “esse livro merece um monumento”.

Bela do Senhor (originalmente “Belle du Seigneur”), publicado em 1968, é um romance do escritor suíço, nascido na Grécia, Albert Cohen (1895-1981). Mas por que eu tinha o livro? Ora, porque Bela do Senhor fora elogiadíssimo em 1985 pela crítica brasileira (sim, tínhamos crítica literária), além de ter vencido o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa de 1968 e também o Goncourt. A história gira em torno de dois personagens centrais que, estando juntos, vão pouco a pouco se isolando do restante do mundo.

A primeira é Ariane, a bela esposa do medíocre e arrivista diplomata Adrien Deume. O outro é Solal, um judeu grego brilhante e carismático, que é alto funcionário da Liga das Nações em Genebra. Solal é chefe de Deume na Liga das Nações. Ele fica obcecado por Ariane e, depois da mais estratégica e cínica das seduções, inicia um quentíssimo caso de amor com ela, chegando a uma relação que oscila entre a paixão sublime e o destrutivo.

Talvez seja importante saber que Albert Cohen era um judeu grego que trabalhou na Organização Mundial do Trabalho de 1926 a 1932, em Genebra. Ou seja, ele conhecia profundamente o ambiente onde Deume circulava. E, na primeira parte do livro o foco é dado a Adrien Deume, o marido traído. Ele é o perfeito puxa-saco. Não faz nada em seu trabalho, passando todo o tempo tratando de esquemas para subir de cargo na organização. Ele se vale de tudo, até da beleza da esposa, para obter destaque e galgar cargos. Em casa, a vida do casal Adrien e Ariane é um inferno, com os parentes de Adrien tentando se imiscuir em tudo, criticando a esposa que só dorme e toca piano, enquanto Adrien a protege. A vida de Solal, com um bando de folclóricos tios judeus, também não é muito fácil, mas ele consegue escapar deles com maior facilidade. É uma parte hilariante do romance: o livro satiriza a hipocrisia e o vazio da alta sociedade europeia, especialmente no contexto diplomático da Liga das Nações. O humor e a ironia expõem as falhas morais e éticas desta elite.

Então, começa o caso Solal-Ariane. A história de amor entre eles é avassaladora e, uma vez iniciada, eles realmente são empurrados um em direção ao outro. O ambiente político antissemita tira tudo de Solal, menos seu dinheiro: ele perde posição e reputação. O ambiente moral torna-se opressivo para Ariane e só lhe resta agarrar-se a Solal. E aí nós temos o amor, o grude total. o ciúme, as brigas e o enfado. Há momentos brilhantes em que Solal e Ariane não se suportam mais e mantém a relação apenas devido à situação lá fora. Temos uma análise franca e implacável das ilusões e desilusões que as relações podem trazer. Nunca havia lido um romance que descrevesse com tanto detalhe o tédio a dois, as necessidades de variações — sejam elas quais forem — e o silêncio histérico, por assim dizer.

O livro é uma mistura de paixão, tragédia, ironia e profunda reflexão sobre as identidades. Cohen cria um universo grandioso e íntimo. O relacionamento entre Solal e Ariane é marcado por uma força quase mítica, podendo ser tanto uma fonte de transcendência quanto de autodestruição.

Há um capítulo onde Solal passeia sozinho por Paris observando as paredes dos prédios cheias de pichações antissemitas. Ele até compra um jornal que defende a eliminação dos judeus para poder passear mais despercebido. Deixa-o visível sob o braço. Às vezes, enfia o nariz nele. Sua identidade não é aceita. Sua busca por amor, a necessidade de ser novamente reconhecido — agora que ele não é mais nada — reflete uma luta mais ampla contra a marginalização e o exílio. Por trás dos múltiplos detalhes, há inteligentes reflexões sobre a solidão e a incomunicabilidade. Solal e Ariane, apesar de sua conexão intensa, estão presos em suas próprias angústias e inseguranças. É notável como Ariane tenta mantê-los juntos com diversos estratagemas enquanto Solal apenas observa pensando “coitadinha, inventou essa agora, será que vamos nos divertir ou vamos seguir fingindo?”.

Albert Cohen é um mestre. Sua prosa é cheia de digressões poéticas, diálogos afiados e descrições verossímeis. O estilo varia muito, indo desde o vaudeville para o erótico, passando por fluxos de consciência sem pontuação. É Joyce e, ao mesmo tempo, um Proust meio alucinado. O lírico e o satírico convivem bem, criando um texto comovente e estimulante do ponto de vista intelectual.

Deixo-lhes sem dizer o final, claro.

Lendo outras resenhas, soube que Bela do Senhor é frequentemente comparado a clássicos como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, e O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, devido à sua profundidade psicológica e à sua exploração do erotismo e do amor. No entanto, nenhum dos citados tem o humor ácido, a visão desencantada e profundamente humana da vida. Poderia falar em uma ode ao nosso desespero, medos, amor… Enfim, uma ode à nossa complexidade.

P.S. — Até pelo tamanho e lentidão com que a história se desenvolve, Bela do Senhor é infilmável. Mas foi filmado. Fujam. É um horror. Acho cômico que Ariane, descrita no livro com bunda grande e tudo grande, tenha sido vivida pela modelo russa Natalia Vodianova, uma mulher magérrima e, a despeito da beleza, 100% anti-Ariane, cujas formas são bem descritas. Também a escolha de Jonathan Rhys Meyers para o papel de Solal é uma piada. O mesmo, aliás, ocorreu com Keira Knightley vivendo a arredondada Anna Kariênina. Por que a caracterização de personagens fictícios não é respeitada como as caracterizações de personagens reais? Parece brincadeira com os leitores.

Recomendo!

Albert Cohen (1895-1981)

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Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Eu lia pouco durante a infância, muito pouco. Queria era jogar futebol. Lia revistinhas da Disney nos dias de chuva e olhe lá. Observava minha irmã parada, totalmente concentrada com um livro aberto, mas não tinha vontade de fazer o mesmo. Quem me acordou para a literatura foi Erico Verissimo com seu O Tempo e o Vento. Só depois dos 15 ou 16 anos, passei a avaliar se era melhor permanecer em casa ou me divertir com os amigos. E normalmente ficava em casa enfiado num livro. Meus pais achavam que eu tinha que sair mais, ver pessoas, só que eu preferia ficar lendo. Por ter começado tarde, meu conhecimento de literatura infanto-juvenil é mínimo. Comecei pelos livros dos adultos, por aqueles que minha irmã e pais valorizavam. Começo esta resenha assim porque não sei como classificar este Kafka e a boneca viajante. A estrutura do livro é de uma fábula. O tema é a infância, mas também é a elaboração de uma perda. Por outro lado, não podemos esquecer que há Kafka, já muito doente, levando a sério o fato de uma menina ter perdido sua boneca. Vou tentar explicar melhor.

A história entre Franz Kafka e a menina Elsi é um episódio tocante e pouco conhecido da vida do tcheco. Esse evento ocorreu nos últimos anos de vida de Kafka, quando ele já estava gravemente doente (sofria de tuberculose) e vivia em Berlim, em 1923-1924. Kafka, durante seus passeios por um parque em Berlim, viu uma menina chorando, muito triste pela perda de sua boneca preferida. Seu nome era Elsi e estava inconsolável. Kafka decidiu fazer alguma coisa. Inventou uma história, disse que a boneca não tinha desaparecido, mas viajado. Ele explicou que a boneca lhe enviara uma carta e que sua profissão a de “carteiro das bonecas”. No dia seguinte, ele traria uma carta da boneca Brígida para Elsi. E durante três semanas, Kafka escreveu cartas diárias para Elsi, supostamente, é claro, enviadas pela boneca. Esforçou-se muito para escrevê-las sem que Elsi desconfiasse de nada. Nessas cartas, ele descrevia as aventuras da boneca em suas viagens pelo mundo, sempre em tom poético. Essas cartas não apenas confortaram a menina, mas também a fizeram acreditar que sua boneca estava vivendo uma vida emocionante e cheia de descobertas.

Esse episódio revela alguma coisa sobre Kafka. Apesar de sua obra literária estar associada ao absurdo, à angústia e ao pessimismo, ele demonstrou empatia e capacidade de se conectar com o mundo de uma criança. E tentou transformar a dor de Elsi em uma experiência feliz. Porém, as cartas que Kafka escreveu para Elsi não foram preservadas, e o episódio só foi conhecido graças ao relato de Dora Diamant, companheira de Kafka na época. Houve muitas tentativas de localizar Elsi e as cartas, mas nada foi encontrado. Houve um historiador que passou décadas atrás dos textos.

Kafka e a Boneca Viajante (no original, Kafka y la muñeca viajera) reconta essa história comovente entre o escritor e a menina Elsi. É uma ficção inspirada pelo episódio real. Claro que o livro é enormemente emocionante e mesmo este calejado leitor teve vontade de se desmanchar lendo o relato.  Há uma sensação de estranheza — os excertos das cartas não são nada Kafka! –, porém como ele escreveria para uma criança? Alguém sabe? De forma esperta, Sierra i Fabra tenta capturar a essência do gesto de Kafka, destacando a empatia e a criatividade para transformar a dor de uma criança em uma experiência mágica. E também sobre o problema de um adulto que precisa parar de escrever diariamente para uma criança e voltar a sua obra. O livro é uma homenagem ao poder consolador da literatura. É como uma janela para um momento íntimo.

Creio que é um livro que visa um público mais amplo, incluindo jovens leitores. O autor usa uma linguagem simples e poética — algumas vezes verbosa –, com flechadas certeiras e piegas que me atingiram sem piedade. Claro que me senti injustamente traído ao ver meu sombrio e pessimista autor — também muitas vezes cômico, na minha opinião de leitor — ser tratado como um ser cheio de bondade. AMO Franz Kafka de uma forma que só eu sei. AMO aquele mais obscuro Kafka. Mas não há porque pensar que o Kafka dos livros que conhecemos não fosse capaz de um ato de consolo como o relatado. Sensibilidade não lhe faltava.

Jorvi Sierra i Fabra (1947) é um conhecido escritor infanto-juvenil catalão, mas, sabem?, este livro não me pareceu ser um típico exemplar do gênero.

Recomendo!

Jordi Sierra i Fabra

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Operação Impensável, de Vanessa Barbara

Operação Impensável, de Vanessa Barbara

O título faz referência a um plano militar secreto (e maluco) de Winston Churchill concebido ao final da Segunda Guerra Mundial. Churchill era um ser bastante raro: um conservador anticomunista que sabia escrever e se expressar com brilho. Ele queria que os aliados ocidentais combatessem a ocupação soviética da Europa Oriental. O objetivo era impor a vontade dos Estados Unidos e do Império Britânico à União Soviética. Foi o início da Guerra Fria. Essa malfadada ideia sugere o tom do livro: uma história onde o impensável e o absurdo acabam com qualquer lucidez remanescente, gerando uma superfetação de mentiras. (Superfetação? Vá ao dicionário, ué).

Importante dizer  que este é o livro que conta, nos mínimos detalhes, mas como se fosse ficção, o rumoroso caso Vanessa Barbara versus André Conti e seu Conselho Consultivo de 14 machos.

Como Vanessa Barbara costuma fazer, há uma mistura entre a “ficção” que é contada — a ascensão e debacle de um caso amoroso — com casos políticos da Segunda Guerra e críticas resumidíssimas dos filmes vistos pelo casal. Tudo isso caminha de forma paralela, regido pelo ritmo intenso de Vanessa. O texto é ultra fragmentado, com seções curtas e constantes mudanças temáticas. Difícil de saber que virá depois, se fatos políticos, o dia a dia, e-mails, citações, notas esparsas, sinopses de filmes, etc. A própria diagramação do livro contribui para esta impressão de fragmentação. Há mudanças de fontes e vazios. Para o meu gosto, o trecho da felicidade do casal é longo demais, mas talvez minha sede de sangue estivesse em alta devido às redes sociais. Nesta parte, que poderia chamar de ascensão, há a mais bela crítica que li de Se meu apartamento falasse (The Apartment), de Billy Wilder. Eu quase chorei lendo. Adoro este filme tanto quanto Vanessa.

Mas voltando, a parte do amor é meio longa mesmo. São várias declarações de parte a parte. É como estar ouvindo a Primavera de Vivaldi e ver um pássaro pousar na sua janela. Não dá, é muito açúcar, melhor enxotar logo o bichinho. Claro que isto serve como contraste para o que virá, mas achei exagerado.

Porém, o livro cresce espetacularmente quando a paranoia toma conta de “Lia”. O pior da paranoia é quando ela — que seria impensável para as pessoas equilibradas — se comprova e se amplifica até o inconcebível. Pois o pior é o paranoico ter razão e dar-se conta de que até minimizou as coisas. É para enlouquecer de vez e Vanessa descreve brilhante e acumulativamente o processo de descoberta. A comprovação revela-se pouco a pouco, alterando-se como um caleidoscópio a cada mentira e chegando efetivamente a uma traição inacreditável, definitiva, bem mais grave do que ir a um motel repetidamente com uma conhecida ou um monte delas. Lemos a descrição de uma traição completa, cabal, radical, profissional, dessas que obriga o traído a se esconder no meio da selva e lá desaparecer. Dessas que deveria obrigar o algoz trocar de lugar com a vítima.

Vanessa expõe os fatos, mas não cria um dramalhão mexicano. Em uma das epígrafes da última parte, ela usa Boris Vian: “O humor é a delicadeza do desespero”. Sim, ela o mantém. E ainda conta curiosidades como o fato de a lei de Hong-Kong permitir que uma mulher traída mate seu marido adúltero, desde que o faça com as próprias mãos, ao passo de que o homem pode usar qualquer coisa, até um lança-foguetes. E conhecemos a expressão “névoa do infiel”, cuja definição você conhecerá logo que comprar o livro na Livraria Bamboletras (WhatsApp 51 99255 6885).

A forma pública que o caso tomou nos últimos tempos surpreende, o que não surpreende que ele permaneça ainda na cabeça de “Lia”, apesar do prazo máximo para traumas de 13 anos e meio estabelecido pela sumidade Pedro Dória.

Tá, vai ler o livro e não me enche. Tem na Bamboletras, já disse.

Vanessa Barbara

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Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara

Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara
Version 1.0.0

É importante começar dizendo que o tema deste livro não tem nada a ver com o atual rolo relacionado ao podcast de Vanessa Barbara na Rádio Novelo (ouçam!). O livro onde este aparece é Operação Impensável, já lido por mim e a ser resenhado quando voltar às livrarias. Sobre o caso, já me manifestei nas redes sociais pouco antes de ele se tornar o atual vaudeville. Sou #TeamVanessa e não abro.

Sou leitor de Vanessa desde 2010, quando li seu famoso texto O Louco de Palestra. Desde então tenho acompanhado sua carreira. Também li o extraordinário e hoje raro O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify). Por escrever muito bem — gosto muito! — e de uma forma quase sempre hilária — gosto mais ainda! –, Vanessa não me era uma desconhecida quando da recente celebridade. Ou seja, não sou um neófito da autora.

Três Camadas de Noite é um romance que trata com inteligência e leveza de depressão em geral e da depressão pós-parto em particular. (Esta frase não foi uma tentativa de piada. Vanessa penetra em becos escuros com medo e graça. É como ler as desventuras de Lucia Berlin, entendem?). Pior, tudo começa em 2020, durante a pandemia. Pior ainda, a personagem principal do romance não dorme porque o bebê é “difícil”. E Vanessa consegue ser muito séria e fazer humor com ambos os temas. O livro é narrado na primeira pessoa e, como poderíamos imaginar, a personagem principal tem um filho — um menino chamado Heitor que passa de um bebê com dificuldades para dormir para uma criança agitada e muito inteligente. Vanessa não costuma contornar situações e o drama é drama, mesmo que crivado de boas piadas. Ela chora segundas, quartas e sextas, às vezes nos outros dias também. Como uma Rosa Montero brasileira, ela intercala a narrativa com seções de não ficção que contêm histórias reais de grandes autores que sofreram com a depressão. São eles Sylvia Plath, Clarice Lispector — belamente inserida na história –, Alice e Henry James, Natalia Ginzburg e Franz Kafka.

As três camadas podem ser (1) a da depressão da narradora, (2) o Diário de Campo, tomado pelas peripécias de Heitor e (3) a dos escritores que sofreram de depressão. A expressão “três camadas de noite” é citada no livro, mas não a reencontrei… (sempre ler com uma caneta ou lápis, Milton!). Talvez seja importante dizer que a narradora não se compara aos autores focalizados, apenas traça paralelos. Também há uma forte presença de efeitos causados pelo covid, capturando a atmosfera de incerteza e isolamento. O trabalho frequentemente transita entre a ficção e a não ficção, sempre com um olhar interessado aos detalhes da vida moderna, muitas vezes desconhecidos do velho de 67 anos que sou.

Como disse, não creio que seja um livro difícil de ler, a não ser para quem é experiente em depressão e tema gatilhos. Vanessa não narra uma viagem da vida normal ao desespero — também não narra uma história do fundo do poço à luz –, mas a personagem principal chega a uma situação aceitável para seguir a vida. Adorei as crônicas dos autores depressivos. Afinal, sou como Ingmar Bergman –, investigo o inferno com curiosidade, mas sem pedir ingresso.

Recomendo!

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Razão de Deus, de Muriel Spark

Razão de Deus, de Muriel Spark

Traduzido do New York Times

Razão de Deus é a inacreditável tradução para The Only Problem.

Como Effie o fez sofrer

O único problema para Muriel Spark, ao que parece, é que há muitas perguntas para poucas respostas. Este é o tema de seu novo romance, como pode muito bem ter sido de todos os outros. Seus leitores devotados sempre estiveram cientes de que há um componente metafísico em sua ficção, e é um alívio que ele finalmente tenha sido revelado na presente obra, que é tanto um relato extremamente sofisticado dos perigos que cercam nossas vidas desavisadas no mundo de hoje quanto uma disputa sobre o assunto do Livro de Jó, que ela chama de ”o livro fundamental da Bíblia”. Jó e sua situação desconcertante desafiam toda crença otimista que se deseja aceitar, alojando-se como uma dura massa de contenção na consciência do crente esperançoso. O mesmo tipo de angústia existencial é experimentado pelo atual protagonista de Muriel Spark, Harvey Gotham, mas Spark é uma escritora sábia demais para impor essa metáfora aos seus leitores, e sua narrativa é tão perfeita, tão enervante e tão especializada quanto seus leitores esperam dessa excelente contadora de histórias.

Pois há, como sempre, muita história para contar. Ela diz respeito a Harvey Gotham, um expatriado canadense extremamente rico, que escolheu viver no alojamento de um castelo vazio perto de Epinal, no distrito de Vosges, na França. Harvey se mudou para este retiro para trabalhar em sua monografia sobre o Livro de Jó. Ele abandonou sua esposa distraidamente, pensando que tinha o direito de fazê-lo, já que certa vez a pegou roubando duas barras de chocolate de um supermercado italiano. Ela fez isso por razões ideológicas, sendo uma anarquista renascida — pois ela tem uma consciência social muito moderna. Harvey ama sua esposa, que é uma beldade chamada Effie, mas ela é muito animada para ele, e ele detecta nela um traço de selvageria com o qual sua personalidade grave não se sente à vontade. Harvey, na verdade, é um estudioso, um fundamentalista. Ele é um homem que questiona e que está ao mesmo tempo resignado — talvez estoicamente, pelo menos impassivelmente, resignado — a não receber nada em termos de afirmação, por mais séria que seja a investigação.

A monografia progride. Harvey trabalha e trabalha, ocasionalmente se submetendo a visitas de seu cunhado, de sua cunhada e, no devido tempo, da polícia local e de seu advogado, que é obrigado a voar de Londres. Harvey está muito menos interessado nessas pessoas do que na bela imagem de Jó por Georges de La Tour no museu de Epinal. A visão da esposa de Jó em seu vestido vermelho brilhante, sua cabeça com turbante curvada em preocupação e advertência sobre seu marido em transe, desperta os pensamentos de Harvey sobre sua esposa ausente Effie, por quem ele sente um amor crescente e, mais profundo ainda do que o amor, nostalgia. Effie é de fato a razão de todos os visitantes (ou consoladores) que vão até ele: Effie quer o divórcio, Effie arruma um amante, Effie tem um bebê. Tudo isso provoca discussão sobre os direitos e erros do caso. Mas finalmente o personalidade arrojada de Effie irrompe de maneira particularmente favorecida por Spark. De roubar barras de chocolate, Effie evoluiu para plantar bombas terroristas em supermercados e lojas de departamento. Effie se juntou à FLE, a Front de la Liberation de l’Europe. Um policial é morto em Montmartre, e o grupo de Effie é o responsável. Finalmente, a própria Effie está morta em um necrotério de Paris, sua cabeça com turbante deitada inclinada no mesmo ângulo inquisitivo que a da esposa de Jó no filme La Tour em Epinal.

Durante todo o curso das investigações, Harvey trabalha em sua monografia. Ele está tão absorto em sua tarefa que discursa sobre Jó para os repórteres que comparecem à sua coletiva de imprensa, dada ostensivamente para explicar o desaparecimento de sua esposa:

”Estou feliz em finalmente chegar ao assunto desta conferência: qual foi a resposta à pergunta de Jó? A pergunta de Jó era: por que Deus me faz sofrer quando não fiz nada para merecer isso? Agora, Jó não tinha a mínima dúvida de que seus sofrimentos vinham de Deus e de nenhuma outra fonte. A rapidez com que uma calamidade se seguiu à outra, destruindo o mundo de Jó, deixando-o destituído, desolado e doente, tudo em um curto espaço de tempo, deu evidências dramáticas de que a causa não era natural, mas sobrenatural. O sobrenatural, com poder para agir tão forte e desastrosamente, só poderia, na mente de Jó, ser Deus. E sabemos que ele estava certo no contexto do livro, porque no Prólogo, você lê especificamente que foi Deus quem trouxe o assunto de Jó a Satanás. Foi Deus, de fato, quem tentou Satanás a atormentar Jó, não Satanás que tentou Deus.”

Os repórteres acham que ele é louco, é claro. Talvez ele seja. Mas os personagens de Spark, embora frequentemente loucos, nunca são desonestos. De fato, eles entregam muitas verdades impressionantes com um olhar impassível ou um sorriso descuidado. Boas maneiras literárias são observadas na precisão de seu discurso… Spark, cujo ponto de vista é frequentemente inescrutável, compartilha com esses personagens uma certa liberdade da convenção que sanciona suas excursões à anarquia. O Livro de Jó e as terríveis reviravoltas implícitas na narrativa bíblica — terríveis porque é Deus quem faz as perguntas e Jó quem parece ter as respostas — são um assunto adequado para esta escritora destemida e meticulosa e seu protagonista pensativo. E o fracasso desanimador dos consoladores de Jó e dos amigos de Harvey em responder às perguntas agonizantes está de alguma forma ligado à percepção de que eles estão apenas fazendo o que têm que fazer. Está na própria natureza da amizade provar-se inadequada às demandas de uma catástrofe prolongada. A grande conquista deste romance é que Spark não cai na mesma armadilha. Ela não é consoladora de Jó, e duvido que alguém possa lhe fazer um elogio mais verdadeiro do que declarar esse fato enganosamente brando.

Em todos os seus romances, Muriel Spark dá a impressão de que, embora tenha superado o problema do mal, a luta foi grande. O esforço a deixou na plena de certo desespero, uma ironia às vezes dolorosa — dolorosa precisamente porque é eficaz. Às vezes, ansiamos pelo que não está lá, como se a vitória da superação tivesse exigido uma perda muito pesada. Às vezes, parecia que o cerne da questão havia sido extirpado e apenas as transações nefastas registradas. Em ”The Only Problem” esta omissão foi corrigida. Há emoção aqui, desespero e desejo, mantidos em seu lugar por uma escrita precisa e imediata. Talvez a pedra de toque para o estilo extraordinário de Spark seja encontrada em uma frase de um romance anterior, ”Territorial Rights”. Diz-se de um personagem naquele romance: ”Naquela tarde, ela saiu com a coragem de suas convicções selvagens e a insatisfação que não tem nome.” Qualquer um que possa apreciar a alarmante e bela completude dessa frase apreciará ”The Only Problem ”. É o melhor romance de Spark desde ”The Driver’s Seat” e é, mais uma vez, uma experiência perturbadora e estimulante.

ECOS DA BRIGADA VERMELHA

A personagem central está escrevendo uma monografia sobre o Livro de Jó. Quando liguei para ela nas colinas da Toscana perto de Arezzo, onde ela está passando o verão, perguntei sobre o significado disso. ”O Livro de Jó sempre me fascinou”, disse Spark. ”Jó era um homem rico, uma figura do establishment, que suportou todo aquele sofrimento. Apareceram seus amigos que lhe disseram que ele devia ter feito algo errado, mas ele disse não. Acho que meu personagem é bem doce, na verdade.” Havia ecos das Brigadas Vermelhas da Itália na mulher terrorista que aparece no romance? ”Sim — ela era desse tipo. Acho que o terrorismo às vezes começa com uma generosidade de espírito, mas algumas pessoas têm uma violência embutida — quase como se houvesse um cromossomo terrorista. Ninguém consegue simpatizar com os verdadeiros terroristas. Acredito que o movimento falhou. Mas eu não moralizo em meus romances — talvez eu devesse, mas não faço isso.” Spark disse uma vez que a literatura do ridículo selvagem é ”a única arma honrosa que nos resta.” Alguns leitores notaram armas escondidas em seus romances, incluindo ”The Prime of Miss Jean Brodie”, ”Memento Mori” e ”The Abbess of Crewe”, um conto de moralidade sobre o escândalo de Watergate. E era verdade que ela estava escrevendo seu próximo romance em um processador de texto? ”Não”, ela disse. ”Eu ainda escrevo com uma caneta, em cadernos que encomendo de James Thin, o papeleiro, na Chambers Street em Edimburgo, minha cidade natal. Cada caderno tem 72 páginas. Eu escrevo em cada duas linhas, em um lado da página.” – Herbert Mitgang

Muriel Spark (1918-2006)

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Vera, de José Falero

Vera, de José Falero

O Rio Grande do Sul não é Minas Gerais, mas costuma ter bons autores e, quando fui escolher os melhores livros que li em 2024, apareceram dois gaúchos no meu desequilibrado pódio de 4: Falero e Luiz Antônio de Assis Brasil, respectivamente com Vera e Leopold, além de Bela do Senhor, do francês Albert Cohen, e de Sátántangó, do húngaro László Krasznahorkai. O húngaro já foi comentado por mim, Assis Brasil também — ele escreveu uma indiscutível obra-prima — logo Bela do Senhor terá sua vez, mas agora é o momento de comentar Vera.

Falero tem quatro livros publicados e todos são diferentes e têm enormes qualidades. O homem não erra. É um escritor muito sofisticado e, apesar da camiseta do Grêmio que costuma usar, sabe o que faz. Difícil encontrar textos com tal oralidade e fluidez. Falero faz uma literatura onde deslizamos facilmente pelo texto, mesmo que este por vezes descreva fatos truculentos. E há sempre um perceptível substrato de fino humor. Vera é o primeiro de três volumes que examinam a masculinidade tóxica a partir do opressor. A Bamboletras teve ínfima participação, pois, quando Falero concebia aquilo que chamava de seu calhamaço, pediu-me uma boa referência de romance de fôlego e eu lhe dei o mais óbvio dos títulos, o do maior romance que conheço: Anna Kariênina. Dia desses, ele me escreveu no Facebook:

“Lembra quando fui comprar o Anna (Kariênina), porque queria mais referências de romance de fôlego? Pois é, a minha ideia era caminhar por aí: Vanderson, da infância à vida adulta. A ideia ainda é a mesma, mas decidimos separar a história em três volumes, em vez de publicar um livro gigante. Vera é o primeiro volume. O segundo sai ano que vem.”

Anna deve ter cumprido seu papel, porém, se eu soubesse, teria-lhe sugerido um romance de formação tipo Os Buddenbrook. Em Vera, Falero constrói lenta e calmamente seus personagens. Mas não com eles congelados, ao estilo Balzac. São mulheres que se ajudam como se vivessem num formigueiro que, mesmo constantemente ameaçado ou pisoteado, deve seguir em funcionamento, principalmente para que elas estejam prontas para trabalhar para quem tem grana. São capítulos curtos e matadores, colocando o foco aqui e ali. Uma das maiores qualidades de Vera é a colocação lado a lado de duas realidades, a da vila e a da cidade burguesa, muitas vezes em capítulos alternados. São contextos chocantemente diversos, o que explica certa (ou a total) incompreensão de lado a lado. O que os ensaios sociológicos dificilmente conseguem, parece ser obtido facilmente por Falero: ele toca a realidade.

A ação acontece na vila, dentro da grande família de Vera, e na cidade, no prédio onde Vera trabalha como doméstica. Se as diferenças de ambiente são grandes, os homens demonstram que o machismo tem várias faces — eles somem, desrespeitam, são sutis, assediam, batem e até pagam pelo silêncio. São como na vida real — figuras sensivelmente mais idiotas do que as mulheres, com destaque para a impagável cena onde o porteiro descobre um preservativo no lixo, escondido dentro de uma embalagem de biscoito. Ele conclui, evidentemente, que a mulher na qual estava de olho dava pra todo mundo.

Após a apresentação vem a parte mais acelerada do romance, onde as várias histórias convergem para algum desenlace. Há momentos muito bonitos: a ida de Davi ao circo, a falta de jeito de Aroldo para abordar Vera, a negação e certeza da mãe de Camila, a TV de Vanderson. E outros momentos lamentáveis em que a opressão, a loucura e o preconceito aparecem. A tentativa do patrão com Vera e o receio dele de ser denunciado — coisa que jamais pensamos que Vera iria fazer — são grandes momentos do livro. Se Falero diz que Vanderson é o personagem principal do livro, não vamos discutir, mas esta primeira parte é de Vera.

A oralidade e a verossimilhança de tudo é absoluta, ainda mais para quem mora em Porto Alegre. São personagens vívidos e próximos, com quem nos encontramos todo dia. Não adianta, Falero é um mestre. Nasceu assim. Sabe e obtém o que precisa para contar suas histórias, desta vez uma inteiramente diversa do que fizera anteriormente. Ele consegue ser delicado e forte, tudo no momento certo. O resultado é vigoroso e impactante. O problema é esperar o segundo volume.

 

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De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

Depois da estrondosa repercussão de O Avesso da Pele, o próximo livro de Jeferson Tenório seria certamente um desafio. Afinal, O Avesso recebeu o Jabuti de melhor romance e ainda ganhou escândalos totalmente injustificados de bolsonaristas escabelados do interior gaúcho. Posso ter uma ideia do quanto De onde eles vêm foi retrabalhado, pois casualmente participei de um evento com Tenório em 2021, no qual ele leu alguns trechos de seu “próximo romance”. Notei grandes mudanças naquilo que lera e ouvira.

Uma das características de Tenório é o fato de ele partir da subjetividade para o social. É um autor pausado, de ar clássico, que não parece disposto a grandes palavras ou frases que depois virarão citações verdadeiras ou falsas de Clarice Lispector ou Mia Couto. Sem pressa, ele envolve o leitor. Descreve tudo com calma, com uma linguagem envolvente na qual a gente cai para receber a paulada. E mesmo a paulada é macia, articulada. Em vez de gritar “olha aqui o que acontece, seu idiota”, ele demonstra tranquilamente o que é a vida de Joaquim, como é ser um cotista e, principalmente, como é ser um negro pobre. Talvez o que assuste algumas pessoas seja uma de suas maiores qualidades — ele não desvia sua narração para evitar o sexual ou o visceral.

De onde eles vêm é um romance de formação. Joaquim é um cara inteligente, negro e pobre que é recebido como cotista por uma universidade totalmente despreparada para ele. Joaquim se retrai — é tudo muito estranho. Ele tem dificuldades até para chegar fisicamente à universidade, pois as passagens são caras, enquanto outros chegam às salas de aula frescos e cheirosos (palavras minhas). Ele não se sente um idiota, mas sabe que tem que provar que tem capacidade e que merece estar ali. São gerações de dor, pobreza e espezinhamento a serem vencidas.

É claro que Joaquim — órfão, sem emprego e tendo que cuidar da avó com Alzheimer — sofre ao ser puxado de volta a seu mundo de pobreza. (Isto não é um spoiler, queridinhos). Afinal, falta dinheiro e é um problema usar o grana curta da aposentadoria da avó para beneficiar-se modestamente. O fato de sua namorada branca pagar seu consumo nos bares não melhora muito as coisas. Tudo o chama de volta.

Joaquim tem aspirações literárias, mas sente que não dá para tudo isso — a universidade, a literatura, a necessidade de ganhar alguma grana, a avó e a namorada tornam-no um personagem de Dostoiévski correndo de lá para cá, tentando reparar todos os males e as injustiças de seu mundo. E eu, leitor, fiquei pensando na avó dele que não sabia o que pensar de seu neto que queria ser escritor:  “Olha, guri, a gente se fodeu a vida toda. Meus avós se foderam. Meus pais se foderam. A sua mãe se fodeu. Uma geração inteira se fodeu. Por séculos os negros se foderam pra que você chegasse até aqui. E agora é isso que você vai fazer da sua vida? Um curso de letras? Um curso que não vai ajudar os negros a sair dessa merda toda? Não se tornará um advogado? Um médico? Um engenheiro? Até onde você vai com isso?”.

Pois é.

Recomendo muito!

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