Foi num 16 de setembro que o tenente Bianchi reconheceu Víctor Jara

Uma morte de violência inaudita no Estádio Chile

Publicado em 16 de setembro de 2012 no Sul21

É muito difícil encontrar um adjetivo para qualificar a morte de Víctor Jara. Hedionda, aterradora, as palavras parecem fracas quando comparadas aos fatos. Sua morte foi de inverossímil maldade. Uma das formas de se descaracterizar um tópico é recorrer à hipérbole, que é a intensificação do mesmo até o inconcebível, até o paroxismo. Pois a morte de Jara confronta este conceito tão caro aos lógicos. O inconcebível exagero do fato não o descaracteriza, apenas o intensifica.

Na manhã de 12 de setembro de 1973, Jara foi detido, juntamente com milhares de chilenos. No dia 16 de setembro de 1973, cinco dias após o golpe militar, ele encontrava-se preso no Estádio Chile, atual Estádio Víctor Jara (não confundir com o Estádio Nacional do Chile, onde também havia presos). Trata-se de um ginásio multi-esportivo. Mas passemos a palavra ao jornalista brasileiro Paulo Cannabrava Filho, autor de No Olho do Furacão:

Aspecto exterior do atual Estádio Víctor Jara | Foto: Mono González

Em um dado momento, Víctor desceu para a plateia e se aproximou de uma das portas por onde entravam os detidos. Ali topou – cara a cara – com o comandante do campo de prisioneiros que o olhou fixamente e fez o gesto mímico de quem toca um violão. Víctor assentiu com a cabeça, sorrindo com tristeza e ingenuidade. O militar sorriu, contente com sua descoberta. Levaram Víctor até à mesa e ordenaram que pusesse suas mãos em cima dela. Rapidamente surgiu um facão. Com um só golpe, cortaram seus dedos da mão esquerda e, com outro, os da mão direita. Os dedos cairam no chão de madeira, enquanto o corpo de Víctor se movia pesadamente. Depois choveram sobre ele golpes, pontapés e os gritos: ‘canta agora… canta…’ (…) De improviso, Víctor se levantou trabalhosamente e, com o olhar perdido, dirigiu-se às galerias do estádio… fez-se um silêncio profundo. E então gritou:

— Vamos lá, companheiros, vamos fazer a vontade do senhor comandante.

Firmou-se por alguns instantes e depois, levantando suas mãos ensanguentadas, começou a cantar o hino da Unidade Popular (Coligação de partidos de esquerda que apoiavam o governo de Allende), a que todos fizeram coro. Aquele espetáculo era demasiado para os militares. Soou uma rajada e o corpo de Víctor começou a se dobrar para a frente, como se fizesse uma longa e lenta reverência a seus companheiros. Depois caiu de lado e ficou ali estendido.

 

O tenente Edwin Dimter Bianchi, também conhecido como “O Príncipe” | Foto: Grupo Funa

O responsável pela identificação e morte de Jara foi o tenente Edwin Dimter Bianchi. A exumação do corpo de Jara, realizada em junho de 2009, não confirmou o corte dos dedos — o texto de Cannabrava é anterior ao fato. Na verdade, ele provavelmente teve suas mãos esmagadas por coronhadas dos soldados. Havia múltiplas fraturas nos punhos e mãos, além do corpo perfurado por 44 balas. Múltiplos relatos confirmam a veracidade do restante dos acontecimentos. Ele, de forma desafiadora, efetivamente cantou parte do hino da Unidade Popular até o momento dos tiros. Só em 1990, o Estado chileno, através da Comissão da Verdade e da Reconciliação, reconheceu que Víctor Jara foi assassinado a tiros no dia 16 de setembro de 1973 no Estádio Chile e depois teve seu corpo lançado num matagal. Identificado pela esposa. Seus restos foram enterrados no Cemitério Geral de Santiago do Chile.

O homem

Víctor Jara era cantor popular, compositor, educador, diretor de teatro, poeta e ativista político. Ele fazia parte do movimento Nueva Canción Chilena que tinha em Jara e Violeta Parra (1917-1967) seus principais intérpretes. A Nueva Canción ganhou enorme popularidade durante o governo da Unidade Popular — governo de Salvador Allende — , que foi ativamente apoiado por Jara.

Jara em foto tirada para a contracapa de um de seus discos | Foto: Divulgação

Víctor nasceu em 1932 e foi o primeiro filho dos camponeses Manuel Jara e Amanda Martínez. O pai era analfabeto e não queria que seus filhos estudassem. Alcoólatra, acabou por abandonar a família. Amanda criou Víctor e seus quatro irmãos sozinha, insistindo que todos eles estudassem. Amanda — uma mestiça com raízes mapuche, vinda do sul do país — não era analfabeta. Era uma autodidata em música, tocava violão, piano e cantava em casamentos e funerais. Ela conseguiu progredir da economicamente, de modo a manter a família com dignidade, mas como não ficava muito tempo em casa, deixava o violão disponível para o pequeno Víctor e seu amigo e parceiro Omar Pulgar. Em 1950, Amanda mãe morreu repentinamente. Ato contínuo, Víctor Jara entrou para um seminário.

Foi uma decisão muito importante entrar para o seminário. Quando penso agora, acho que fiz aquilo por razões íntimas e emocionais, pela solidão e o desespero com um mundo que até aquele momento tinha sido sólido, simbolizado por um lar e o amor da minha mãe. Eu já estava envolvido com a Igreja, e, naquela altura, procurei refúgio nela. Então pensava que esse refúgio iria guiar-me até outros valores e ajudar-me a encontrar um amor diferente e mais profundo, que porventura compensasse a ausência do amor humano. Julgava que talvez achasse esse amor na religião, dedicando-me ao sacerdócio.

Te recuerdo Amanda, canção de Víctor Jara dedicada a seus pais:

Dois anos mais tarde, em 1952, abandonaria o seminário, mas lembraria positivamente do canto gregoriano e da liturgia. Ingressou na universidade, onde estudou atuação e direção de teatro. Sua biografia indica hesitações entre a música e o teatro até 1957. Ele pensava que tinha que optar por uma das carreiras, quando Violeta Parra o convenceu a manter paralelamente ambas as carreiras. Pelas excursões e tempo das temporadas, pode-se dizer que as peças de teatro que dirigia não eram nada insatisfatórias. Em 1959, excursionou pela América espanhola com Parecido a la Felicidad de Alejandro Sieveking. No mesmo ano, gravou seu primeiro disco de música folclórica, Dos Villancicos. E seguiu as duas carreiras, apesar de que a música foi pouco a pouco tomando mais seu tempo, assim como a política. Até a vitória da Unidade Popular, em 1970, foram cinco LPs e, até 1973, mais três. Depois disso foram muitos os discos ao vivo e as edições póstumas.

Victor Jara: música e poesia revolucionária latino-americana. Herói da resistência à ditadura militar no Chile

Sua atuação política durante o governo Allende teria justificado o ódio do tenente Bianchi. Era uma época em que poucos artistas eram indiferentes à política. Thomas Mann dizia que “Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido”. No início dos anos 70, ser “indiferente” ou “alienado” era falha grave. Jara nunca chegou perto de ser um apolítico. Foi nomeado embaixador cultural do Governo da Unidade Popular, viajou à Cuba e à União Soviética, participou de muitos atos durante as eleições de 1973, dirigiu a homenagem a Pablo Neruda — membro do Partido Comunista Chileno — quando da obtenção do Prêmio Nobel. Ou seja, naquele 16 de setembro, Bianchi viu um artista perfeitamente identificado com o governo que caíra.

Primeiro volume de uma coleção da Caratula Discos dedicada a Nueva Canción Chilena

A Nova Canção Chilena

A Nova Canção Chilena foi um movimento mais amplo do que seu nome sugere, pois não se tratava apenas de uma questão de abrangência musical. A intenção era a de recuperar e traduzir as raízes culturais do Chile e dos povos originários da América Latina. Apesar de ter a música folclórica como carro-chefe, a Nueva Canción abarcava também o teatro, a dança, as artes plásticas e tudo o que fosse cultura.

Grupos universitários passaram a estudar as manifestações da cultura popular chilena e andina. Como consequência, sugiram grupos como o Quilapayun, do qual Jara foi diretor artístico, e o Inti-Illimani. Víctor Jara divulgava o canto mapuche, o canto quéchua, o canto aymará,  e a fronteira entra a política e as artes foram extintas, tanto que a Juventude Comunista financiava gravações de discos e espetáculos dos artistas do movimento. A Nova Canção Chilena, que começou com os artistas e cresceu nas universidades, foi a trilha sonora da revolução, sendo adotada pelos trabalhadores.

Desde o início do século XX, os artistas chilenos imiscuíram-se na política, é uma tradição do país exprimir o político através da cultura. Dentro desta tradição, o trabalho de Víctor Jara foi exemplar: sua obra sempre emergiu da própria vida, fator que a faz universal e que, neste caso específico, uma das maiores representantes das vítimas da ditadura.

El Cigarrito, de Víctor Jara:

Edwin Bianchi durante a Funa | Foto: Grupo Funa

A funa

Funa (do mapudungun Funa, que significa podre, ou Funan, podridão) é o nome dado no Chile a uma manifestação de repúdio público contra uma pessoa ou grupo. Normalmente é utilizado em protestos contra os participantes de atos de violações dos direitos humanos durante o regime militar, e geralmente ocorre na casa ou no local de trabalho dos autores. É nosso “esculacho”, talvez se pudesse dizer.

Edwin Dimter Bianchi, também conhecido como “El Príncipe”, tenente do exército chileno em 1973, trabalhava impune e tranquilamente no Ministério do Trabalho do Chile em 2007, no governo de Bachelet. La Funa foi até lá e o surpreendeu. Ele foi demitido e hoje responde a processo. Vale a pena assistir o pequeno filme abaixo. Inicia comicamente contrastando James Bond e a manifestação lá fora mas, a partir dos 3min20, fica muito sério.