Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Rafael Ortega Basagoiti

O personagem Leonard Bernstein era excessivo. Ele viveu em um conflito quase permanente sobre como administrar a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade, em tempos em que a tolerância (especialmente nos Estados Unidos) não era o que é agora, e além disso foi investigado pelo FBI por sua tendência esquerdista. Apaixonado, extrovertido, suas manifestações de efusividade seriam hoje objeto, no mínimo, de escândalo (sua própria filha declara em um dos documentários que beijava todos que estavam ao seu alcance, um músico da Filarmônica de Viena relata o assunto com ironia: “Disseram-me, não enxugue, afinal é suor de Bernstein”). Na época em que conheceu sua futura esposa, Felicia Montealegre, ele já havia tido seus namoros homossexuais, e Paul R. Laird, em sua excelente biografia (Life and Work of Leonard Bernstein , Turner, 2018), sugere que sua amizade com Aaron Copland provavelmente foi mais do que isso.

Mas o ambiente era o que era, e um de seus mentores, Serge Koussevitzky, então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, pressionou-o a mudar seu sobrenome (sugeriu Leonard Burns) para eliminar o toque judaico e a se casar. Ambas as coisas, a segunda destinada a reprimir os rumores de sua homossexualidade, ajudariam sua carreira. Lenny não mudou o sobrenome, mas se casou com Felicia. O conflito sobre sua sexualidade persistiu e ele acabou se separando da esposa para se juntar ao amante Tom Cothran. Mas quando Felicia foi diagnosticada com o câncer que acabaria com sua vida, ele voltou e ficou com ela até sua morte. Ele a amava, não há dúvida disso, por mais que sua tendência sexual o levasse para outras camas.

É esta relação única entre Lenny e Felicia, e o conflito sexual que lhe está subjacente, que é o foco do filme Maestro, protagonizado e realizado por Bradley Cooper, produzido pela Netflix e agora disponível na plataforma. Não entrarei no aspecto puramente cinematográfico neste artigo, mas vale a pena fazer algumas anotações que surgem depois de ter visto o filme. Não há nada de questionável, em princípio, no fato de o filme focar nessa relação, a ponto de Felicia (aliás, maravilhosamente interpretada por Carey Mulligan), ser praticamente o papel principal. Na verdade, é uma faceta pouco delineada em outros documentários. E, a julgar pela declaração da própria filha Jamie (protagonista de uma das cenas do filme, que motiva Felicia a pressionar Lenny a falar com ela e a negar os rumores sobre sua homossexualidade), é uma questão bem retratada. Acredito, no entanto, que existe um problema, e não de menor importância, em outros domínios.

Compositor, pianista, diretor, divulgador, ensaísta e professor. Talvez você possa encontrar pessoas que desenvolveram todas ou quase todas essas facetas, mas para elas terem feito isso no nível de excelência em que Leonard Bernstein fez, é, não acho que estou exagerando, muito difícil, se não impossível. Lenny foi uma das grandes personalidades musicais do século XX, sem dúvida. Muitos podem não gostar de sua música, ou pensar que ele não deveria ter ido além dos (ótimos) musicais. Para outros, seus modos no pódio podem parecer exagerados, teatrais, pouco ortodoxos e até caóticos (aqueles saltos, aquele balanço de braço, aquele movimento corporal, aquela técnica de batuta, no mínimo singular…). Talvez sua tendência, como maestro, para tempos realmente extremos — exceto o último Celibidache e algumas gravações de Bach de Scherchen, é difícil lembrar de lentidão mais no limite do que aquelas do último movimento da Nona de Mahler nas mãos de Bernstein — seja indigesto para alguns, porque foge ao cânone.

Mas esse caráter excessivo foi e continua sendo fascinante. Ele vivia a música com uma intensidade contagiante. Os seus critérios podem ser discutíveis, o seu gesto e o sus batura quebram toda a ortodoxia. Mas o que aquele homem transmitia… a paixão, a convicção, eram tais que era literalmente impossível não o seguir, não se sentir capturado pela sua mensagem, fosse ela música, interpretação ou divulgação. “Eu amo duas coisas: música e pessoas. Não sei qual dos dois eu prefiro.” Estas são as primeiras palavras de uma declaração um pouco mais longa que Leonard Bernstein, com a voz já muito rouca, em 1990, poucos meses antes de morrer, diz à câmera com comovente ternura. É o início de um estupendo documentário, The Gift of Music, narrado por Lauren Bacall e editado em DVD pela Deutsche Grammophon. Há outro documentário, Larger than life, também magnífico, creio que disponível na medici.tv.

Qualquer um desses documentários, ou qualquer uma das muitas entrevistas com Bernstein –entre elas, a que você pode ver aqui, da série Kennedy Center Honors Legend — deixa um retrato dele muito mais completo e fascinante do que o deste filme de Bradley Cooper.

Porque, na minha humilde opinião, é aí que reside o seu principal (embora não único) defeito: intitulado Maestro, espera-se encontrar um filme em que todas estas facetas estejam mais ou menos bem retratadas. Mas a música, apesar do título, parece uma companheira marginal. Aquela que é considerada sua principal obra, a Missa, aparece saindo na ponta dos pés. O mais conhecido, West Side Story, mal participa. Não há nada da sua relação, muito longa e profunda, com a Filarmónica de Israel, nem com a de Viena, a Baviera ou o Concertgebouw. Pior ainda, presume-se que o espectador conheça muito bem a vida de Bernstein antes de assistir ao filme, porque se não for o caso, a presença fugaz de pessoas tão essenciais na sua vida como Aaron Copland ou Koussevitzky é dificilmente identificável. Outros, igualmente importantes, como Dimitri Mitropoulos, o realizador grego que o impulsionou a ser compositor, ou Fritz Reiner, seu professor no Curtis Institute, em Filadélfia, nem sequer aparecem. Também passa despercebida, ou quase, a sua extraordinária atividade de divulgador que está no YouTube… Ver qualquer um destes vídeos explica de uma forma muito simples porque este homem conseguiu fisgar milhões de pessoas pela música clássica.

Mais difícil de traduzir em filme é seu papel como colunista, mas também é altamente recomendável aprofundar-se na inestimável descrição que faz de seu querido Mahler neste artigo: Mahler – Chegou a sua hora – na Alta Fidelidade, Vol 17 no. 9, setembro de 1967, posteriormente reproduzido em seu primeiro ciclo Mahleriano para CBS-Sony. É difícil explicar, sem meandros técnicos, o que é a música de Mahler, o que ela expressa e significa, com mais precisão e riqueza do que a escrita nesta coluna.

Além disso, interpretar um regente (e ainda mais um como Bernstein) é extremamente difícil, o que deve ser levado em conta ao julgar o trabalho de Cooper. O ator americano, treinado pelo diretor do Metropolitan, Yannick Nézet-Séguin, se sai razoavelmente bem em uma cena com o coro, mas quando tenta reproduzir a lendária gravação da Segunda Sinfonia de Mahler na Catedral de Ely (que faz parte do ciclo de Mahler gravado em DVD pela Deutsche Grammophon) vai longe demais. Lenny era, como já observei, excessivo. Cooper vai mais longe, mas o que em Bernstein parece um excesso natural, em Cooper parece beirar o grotesco. A sua caracterização, incluindo a controversa prótese nasal, é ótima. A dublagem presta um péssimo serviço, no entanto. A voz de Bernstein, especialmente a do Bernstein mais velho, parece demasiado melíflua (compare com o original da entrevista citada acima, mas também com o som original do filme).

Em suma, o mais problemático é que muitos virão esperando ver um retrato de Bernstein com aquelas múltiplas facetas ligadas à música que, além disso, teve uma relação única com a sua esposa, e que viveu um duro conflito com a sua tendência sexual. Mas o que você verá é o retrato de alguém que teve uma relação única com sua esposa, enquadrada em um duro conflito com sua tendência sexual… e que, além disso, também era músico. Mas como isso é pouco, o título é enganoso, porque não responde ao que se vê depois. O retrato esperado permanece incompleto.

O Bernstein de verdade

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‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

A pianista reflete sobre as extraordinárias exigências de memória demandadas dos solistas de concerto e como ela continua a treinar esse músculo

Por Angela Hewitt
Traduzido do The Guardian

Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota’… Angela Hewitt. Fotografia: Keith Saunders

Acontece com todos os pianistas: aquele momento aterrorizante quando você está no palco e não consegue se lembrar do que vem a seguir. Certa vez, meu ex-professor, Jean-Paul Sévilla, estava tocando as Variações Goldberg de Bach quando, ao final da Variação 7, não conseguia se lembrar como começava a Variação 8. No momento em que ele saiu do palco para encontrar sua partitura, ele lembrou, mas sua noite já estava arruinada. Depois aconteceu de Vlado Perlemuter sair de casa para a sala de concertos, quando questionado pela esposa se tinha esquecido de alguma coisa, um amigo lhe disse brincando: “O começo do concerto!” Quando, algumas horas depois, Vlado subiu ao palco em Paris para executar o Quarto Concerto para Piano de Beethoven (que começa com um solo de piano famoso), ele não conseguiu encontrar as notas. Minha própria vez chegou quando eu tinha 50 anos, tocando o Cravo Bem Temperado de Bach (todas as quatro horas e meia dele) de memória em Stuttgart. Foi parte de uma turnê mundial na qual toquei aquela obra gigantesca 56 vezes em 26 países. Naquela noite, no entanto, entrei errado na grande fuga em Lá menor do Livro 1 e não consegui encontrar como sair… Eu tive que levantar para ir buscar a partitura. Você se sente muito envergonhado — mas somos apenas humanos e às vezes isso acontece.

No geral, fui abençoada com uma memória excelente — suponho que alguns diriam até prodigiosa, já que executei as obras solo completas para teclado de Bach (com exceção de A Arte da Fuga), as 32 sonatas de Beethoven e quem sabe quantos milhões de outras notas da memória ao longo dos anos. Sempre pensei que seria uma boa ideia medir meu cérebro antes de memorizar todo aquele Bach e depois novamente para ver como ele havia se desenvolvido e mudado. Tarde demais agora. Aos 64 anos, ele definitivamente está diminuindo, e a memorização tornou-se uma atividade muito consciente, frustrante e demorada. Mas continuo nisso porque a memória é um músculo que precisa ser constantemente usado.

Quando você é um jovem pianista, a memória vem quase sem pensar. Uma grande parte dela é memória reflexa; acrescente a isso a memória auditiva (especialmente se, como eu, você tivesse ouvido absoluto), a memória visual (alguns pianistas, como Yvonne Loriod, que era casada com Olivier Messiaen, tinha uma peça memorizada depois de olhá-la apenas uma vez) e a memória de associação, e você tem um processo relativamente rápido.

Digo que eu “tinha” afinação perfeita porque ela diminuiu com a idade. Quando criança, eu conseguia nomear instantaneamente todas as notas, mesmo nos acordes mais complicados. Agora preciso de tempo para pensar nisso. A tonalidade perfeita está relacionada à memória: se uma fica fraca, o outra também. Todo mundo de uma certa idade que já encontrou esse problema. Isso torna a memorização uma tarefa muito mais complicada.

A memória é um assunto sobre o qual não gostamos de falar – é como o sexo, o amor e as crenças religiosas – muito provavelmente porque temos medo de perdê-la. É preciso coragem para admitir até para si mesmo que sua memória está falhando. Muitas vezes, amigos ou familiares percebem primeiro. Não devemos nos sentir envergonhados, mas sim abraçar esse sinal normal de envelhecimento e fazer tudo o que pudermos para manter nosso cérebro vivo. Fico chateada quando não consigo lembrar onde coloquei meu cartão de embarque, como aconteceu esta manhã em Heathrow (apenas para encontrá-lo no compartimento externo da minha mala, onde devo tê-lo colocado cinco minutos antes), quando não me lembro se tomei minha pastilha diária de TRH (terapia de reposição hormonal) — agora há algo que ajuda mulheres mais velhas com memória! –, e quando cometo o mesmo erro repetidamente ao aprender uma nova peça.

No verão passado, fui presidente do júri da competição de Bach em Leipzig, na qual os competidores podiam escolher se tocariam de memória ou com a partitura. (Com a partitura hoje em dia significa principalmente “com um iPad” acrescentado de um pedal para virar as páginas na tela, embora um concorrente tenha usado o aplicativo que permite fazer uma careta facial para virar a página – algo que achei profundamente desconcertante). Na idade deles, eu nunca teria sonhado em usar a partitura, mesmo para complicadas peças contemporâneas. No entanto, alguns deles o fizeram. Eles não poderiam ter gasto o tempo extra necessário para memorizar a música? Sei que a tendência hoje em dia é dizer que não importa, mas sei que quando consigo realizar algo com segurança de memória, isso me dá uma sensação maravilhosa de liberdade e realização.

Angela Hewitt se apresentando na sala de concertos St George em Bristol. Fotografia: Stephen Shepherd/The Guardian

Uma das falhas mais comuns dos pianistas é que passamos muito tempo tocando as notas e pouco tempo pensando no que estamos fazendo. “Pense 10 vezes e depois toque uma vez” já dizia o sábio Franz Liszt, que balbuciava mais notas por minuto do que qualquer outro (e que, junto com Clara Schumann, foi o primeiro pianista a tocar de memória – ato considerado arrogante pela público da época). Na verdade, o melhor trabalho de memória é feito longe do teclado – apenas olhando a partitura, memorizando seu dedilhado, as harmonias, os lugares onde é fácil errar, os intervalos, quantas notas há em um acorde, a dinâmica, o fraseado; nada é simples ou evidente demais para passar despercebido. Você deve se visualizar tocando a peça sem estar em um teclado. Então depois vá, toque e você ficará surpreso com o progresso que você fez.

Mesmo quando você está muito concentrado, o cérebro é constantemente assaltado por pensamentos estranhos e muitas vezes tolos. Como um pianista tocando de memória, você se treina para lidar com isso. Eu chamo isso de modo de dupla concentração. Tosse da plateia (as pessoas percebem que apenas uma tosse no lugar errado pode facilmente derrubar tudo?); o inevitável celular (sigo como se nada tivesse acontecido, senão piora as coisas); até uma vez tive um besouro subindo lentamente pelo meu braço nu durante uma fuga de Bach. Você tem que ser capaz de contar com sua concentração para passar, não importa o que aconteça.

Você também deve se treinar para pensar no que vem depois na partitura ou na memória — mesmo que apenas por uma fração de segundo. À medida que o cérebro envelhece, isso se torna ainda mais difícil, mas necessário. Acho que é por isso que os pianistas mais velhos em geral (Martha Argerich sendo a exceção) tendem a tocar mais devagar do que os mais jovens, para quem a velocidade costuma parecer o objetivo final. É também por isso que, como público, ficamos mais perturbados com os andamentos rápidos à medida que envelhecemos. É demais para nossos cérebros mais lentos processarem.

Aos 20 anos, morei no estúdio de um artista acima de uma filial do Banque Nationale de Paris por dois anos. O pessoal do banco sabia que eu era a única tocando no andar de cima, praticando, e eles afirmaram não se importar, exceto quando eu “tocava a mesma coisa repetidamente”. Para roubar uma observação do ator Roger Allam, a palavra francesa para ensaio é “répétition”, e é isso que você precisa fazer. Arranje um piano silencioso se isso deixar sua família ou vizinhos loucos; Costumo ter um em quartos de hotel quando estou em turnê.

Tocando com a Aurora Orchestra em Kings Place em Londres. Fotografia: www.kingsplace.co.uk/kplayer

Outra coisa que você pode fazer para treinar o cérebro é pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Você pode praticar isso estando em um restaurante lotado e ouvindo duas ou mais conversas simultaneamente. Você precisará disso se estiver tocando uma fuga de Bach, que pode ter até cinco vozes, cada uma tão importante quanto a outra. Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota; na verdade, quando pratico, estou constantemente cantando, tentando imitar a voz humana em um instrumento cujos sons são produzidos por martelos batendo nas cordas. Ao cantar, envolvo minha concentração e minhas emoções, assim como minha memória. Ao contrário do meu compatriota Glenn Gould, quando estou no palco ou em um estúdio de gravação, faço isso silenciosamente.

Se tudo isso soa muito cansativo então, acredite, é mesmo. Faça pausas quando sentir que seu cérebro está cansado e certifique-se de que ele receba todos os nutrientes de que precisa. Álcool e pílulas para dormir não ajudam – e é por isso que evito o primeiro e me recuso a usar o segundo. Nos bastidores das salas de concerto, tenho os alimentos para o cérebro prontos: sardinhas enlatadas, abacates, manteiga de amendoim, biscoitos de centeio, mirtilos, bananas e muita água.

Muitas vezes ouço as pessoas dizerem que não conseguem mais memorizar nada. Sim, mas você realmente tentou? Se você não é músico, pegue um poema, uma receita ou o telefone dos seus melhores amigos. Acima de tudo, não desista. Conheça o seu cérebro e trabalhe nele.

Sempre digo que não conseguiria decorar as obras completas de Bach e ter quatro filhos. Isso teria sido impossível. Eu não tenho nenhum. Mas tive uma vida maravilhosa na companhia de algumas das maiores mentes que já existiram, e para eles, e para meus pais músicos que me colocaram na frente de um piano de brinquedo aos dois anos de idade, eu sou para sempre grata.

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Nesta quarta (14/12), temos Mozart e Khachaturian gratuitos e de alto nível no Theatro São Pedro

Nesta quarta (14/12), temos Mozart e Khachaturian gratuitos e de alto nível no Theatro São Pedro

Nesta quarta-feira (14/12), às 12h30, teremos um recital muito especial e gratuito no Foyer Nobre do Theatro São Pedro, em Porto Alegre. O clarinetista Samuel Oliveira, a violinista Elena Romanov e o pianista André Carrara interpretarão o Kegelstatt Trio, K. 498, de Wolfgang Amadeus Mozart e o Trio para Clarinete, Violino e Piano, de Aram Khachaturian. Os três músicos são professores da Escola de Música da Ospa e membros da Orquestra.

As obras para clarinete de Mozart foram escritas para seu amigo clarinetista Anton Stadler e não foi diferente neste Trio K. 498. Nas primeiras execuções caseiras da obra, Franziska Jacquin tocava a parte do piano, o amigo Stadler tocava o clarinete e o próprio Mozart a viola, que era seu instrumento favorito para música de câmara. Para o recital de amanhã, Elena transcreveu a parte da viola para o violino.

Há algumas surpresas nesta obra. O primeiro movimento não é o tradicional Allegro, mas um Andante. O Minueto que o segue tem uma forma nada comum, porque o trio inserido ganha vida própria. Mozart deve ter ficado fascinado com as possibilidades do tema do trio e o desenvolve bastante, com grande poder expressivo. O clarinete apresenta o tema do Rondó final. A música “voa” para a conclusão de uma das melhores e menos conhecidas obras de câmara de Mozart.

Existe uma velha história de que Mozart teria escrito o Trio enquanto jogava boliche, daí o nome Kegelstatt. O fato se aplicaria mais para os Duetos para Trompas, K. 487, compostos uma semana antes. Mas nunca se sabe… No caso dos Duetos, Mozart realmente escreveu no manuscrito enquanto jogava boliche.

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Aram Khachaturian é geralmente celebrado como o principal compositor armênio do século XX, fazendo a junção da música clássica européia com elementos marcantes da música folclórica de seu país. Excelente maestro e professor, Khachaturian é lembrado hoje principalmente por sua música orquestral que compreende sinfonias, concertos, música para balé e filmes. Ele nasceu e foi criado em Tbilisi, Geórgia (então parte do império russo). Aos dezessete anos mudou-se para Moscou para buscar uma educação superior, primeiro em biologia, depois em performance de violoncelo e finalmente composição. Após anos de estudo e prática, Khachaturian alcançaria uma reputação internacional atraindo elogios de Prokofiev e Shostakovich, que, como o próprio Khachturian, ganhou prêmios e censuras fulminantes do estado soviético.

Embora tenha escrito pouca música de câmara, em 1932 Khachaturian compôs um maravilhoso trio em três movimentos para clarinete, violino e piano. Este é magistral e único, uma mostra perfeita da mistura de elementos folclóricos clássicos e exóticos de Khachaturian, particularmente enfatizados pela instrumentação colorida.

O primeiro movimento cujo título é Andante con dolore, con molto espressione, imediatamente evoca um novo mundo sonoro. Aqui e ao longo do trio, você ouve melodias ondulantes que evocam cantos emotivos e improvisados. O segundo movimento celebra a dança. O final mais moderado é um tema e variações baseadas em uma melodia folclórica uzbeque.

Não percam!

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O entusiasmo fundamentado (para o 80º aniversário de Maurizio Pollini)

O entusiasmo fundamentado (para o 80º aniversário de Maurizio Pollini)

Stefano Russomanno

Quando Maurizio Pollini venceu o Concurso Chopin de Varsóvia em 1960, fê-lo com uma maturidade musical que surpreendeu o júri. “Esse garoto toca melhor do que qualquer um de nós”, comentou Arthur Rubinstein na época. O controle técnico e intelectual que esse jovem pianista de 18 anos exibia em cada canto da partitura revelava uma capacidade de análise muito superior não apenas à média de seus contemporâneos, mas à de muitos talentosos intérpretes. Pollini aprofundou-se na essência do texto musical para revelar a lógica de sua construção, a coerência de sua estrutura e a precisão de seu ditado. Ainda assim, a música não era para ele um terreno governado pelas leis do determinismo impassível. Suas versões transmitiam um vigor na expressão de frases e ritmos que despertavam o entusiasmo do ouvinte.

Há algo de didático no estilo pianístico de Pollini no mais alto sentido da palavra. Interpretar, para o pianista italiano, implica ao mesmo tempo em esclarecer, explicar, fornecer ao público um fio condutor que lhe permite compreender os motivos pelos quais a música flui de uma determinada forma. O componente emocional, sempre essencial, deve vir acompanhado do elemento analítico e racional para alcançar a plenitude da mensagem na consciência auditiva.

Uma das marcas de Pollini é sua maneira de estabelecer seus programas de recitais. Neles, o pianista italiano tem-se caracterizado por misturar frequentemente peças do repertório clássico e romântico com obras do século XX (ou seja, de todo o século XX, não apenas das primeiras décadas). Para Pollini, a criação musical é um continuum que não conhece fraturas, uma forma de pensar os sons e, portanto, é errado isolar certas linguagens como se fossem compartimentos estanques. Seus esforços foram na direção oposta: mostrar o que é clássico nas páginas contemporâneas e o que é contemporâneo no repertório clássico. Assim surgem os chamados “Projetos Pollini”, nos quais o diálogo entre o passado e o presente ocorre da forma mais natural. Pode acontecer, por exemplo, que o público tenha ouvido na mesma noite o Hammerklavier de Beethoven e a Sonata para piano nº 2 de Boulez (uma obra que Pollini tocava de cor em sua época de ouro).

Precisamente o Hammerklavier, gravado em 1976, é uma amostra ideal das abordagens de Pollini. Principalmente a fuga final, que talvez seja o momento culminante de sua versão. Para além do espantoso controle técnico, à disposição de poucos pianistas, Pollini conduz o ouvinte pelos meandros do contraponto e revela toda a modernidade do pensamento beethoveniano, a forma revolucionária como o compositor molda os materiais (sublinhando, por exemplo, o carácter quase estrutural dos trinados) e seu revolucionário conceito sonoro, onde o discurso musical parece às vezes transfigurado em termos de pura energia.

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Daniil Trifonov: “Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo”

Daniil Trifonov: “Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo”

Nacho Castellanos e Rafael Ortega Basagoiti
Tradução livre de Milton Ribeiro

Ele saiu sem quase respirar. Ele havia acabado seu concerto com a OCNE (Orquesta y Coro Nacionales de España) e imediatamente se reuniu com a SCHERZO para esta entrevista. Daniil Trifonov voltou a Madrid inesperadamente para substituir Mitsuko Uchida. Ele ficou surpreso ao ver a sala com pessoas… Até sua voz falhou quando ele se referiu à emoção que sentiu ao ouvir aplausos. Um gesto tão simples, tão espontâneo, mas que agora é raro.

Em sua agenda, está o retorno ao Ciclo dos Grandes Intérpretes da Fundação Scherzo no dia 24 de março. A arte da fuga, aquele bastião intransponível da história do teclado, será o protagonista de um recital dedicado a J. S. Bach. Quando ele fala sobre Bach, sua voz fica aveludada, até soa solene. É um compositor que o acompanha desde pequeno. Chegou a hora de dialogar com o gênio de Eisenach, que por mais de 20 anos permaneceram em estúdio, em viagens pelos palcos pelo mundo. Trifonov encontra Bach,  ou  Bach encontra Trifonov . Julgue por si mesmo!

Como você se sente sobre a experiência de concerto neste mundo regido por máscaras e géis hidroalcoólicos?

É algo que muda de acordo com o destino. No final de janeiro, por exemplo, fiz um show na Alemanha sem plateia. Mas agora eu vim para a Espanha e posso tocar com uma orquestra sinfônica em um auditório lotado. Portanto, as circunstâncias são específicas de cada país e as medidas que são adotadas variam dependendo de onde você for. Há concertos que são cancelados, outros podem ser transmitidos e depois há a sorte de fazer concertos com público.

Há poucos minutos você tocou com a OCNE o Concerto para Piano e Orquestra Nº 1 de Beethoven. Coincidentemente, na última entrevista que você concedeu ao SCHERZO, em 2017, comentou que compositores como Beethoven, Bach ou Brahms ainda estavam distantes, não sentia que era chegado o momento de mergulhar na sua música. Em 24 de março você enfrentará A Arte da Fuga de Bach no Ciclo dos Grandes Intérpretes. O que mudou desde 2017 para que você de repente encontre a proximidade ou a perspectiva de mergulhar na sua música?

Bach é um compositor que sempre me acompanhou e acompanha. Quando eu era estudante em Moscou, lembro-me de passar horas e horas ouvindo sua música. Da mesma forma que Beethoven, é um compositor inevitável na carreira de qualquer músico. O fato de eu não tocar certos compositores em público não significa que não o faça na esfera privada. O que é novo para mim é Brahms. Recentemente, estive trabalhando no Primeiro Concerto para Piano que apresentei no ano passado em Rotterdam e agora estou me aprofundando em sua terceira sonata para piano, que gostaria de poder incluir em meu repertório nos próximos meses. A Arte da Fuga é um trabalho que venho desenvolvendo nos últimos dois anos, cujo estudo tem sido muito intenso. Pode-se dizer que é o primeiro grande trabalho em que realmente desenvolvi em estudo integral, passando dias e dias sem tocar mais nada, refletindo sobre a partitura. Isso é algo que só acontece comigo com Bach. Geralmente, meus ouvidos e mãos precisam de recessos quando estou estudando. Mudo a peça que é objeto de estudo e depois retorno. Mas com Bach o tempo não passa. Com Bach, o tempo não existe. Ou talvez aconteça tão rápido que nem sei.

Qual a importância da obra A Arte da Fuga em 2021?

Eu acredito fervorosamente que A Arte da Fuga é um ciclo. Há teóricos que acreditam que ela foi composta mais como um exercício composicional do que como uma obra a ser executada diante de um público. Para mim, é impossível pensar que Bach compôs uma de suas melhores criações como um mero exercício. Existem seções de tal calor que é difícil acreditar que seus propósitos fossem mais didáticos do que artísticos. É um dos ciclos mais complexos que existem. Sua estrutura beira a perfeição – se é que isso existe em nossa arte. A maneira pela qual os diferentes contrapontos ocorrem é esmagadoramente lógica: as primeiras onze fugas seguem a ordem estabelecida por Bach e as demais foram ordenadas por seus filhos após sua morte.

Você começa seu concerto em Grandes Intérpretes com a transcrição para a mão esquerda de Brahms de Ciaccona em Ré menor BWV 1004 de Bach. É curioso que você tenha escolhido esta transcrição em vez da de Busoni, mais difundida em nossos tempos …

Ambas as transcrições são maravilhosas, mas Brahms alcança algo que vai além da mera transcrição. Brahms pega a partitura original de Bach e, sem perder nenhum detalhe, a faz soar no piano como está. Sem adicionar mais virtuosismo do que o original. Mas vai além do fato musical e decide mergulhar no fisiológico: usa apenas a mão esquerda, como se as 88 teclas do piano se transformassem no braço de um violino. A distância entre notas e intervalos é diretamente proporcional à de um violino. É uma transcrição muito complexa, que chega a exaurir a mão esquerda. Todo o peso cai sobre ela. Não é uma peça que você pode tocar duas vezes seguidas. Brahms inclui esta transcrição em seus Estudos, porque realmente é um feito técnico para a mão esquerda.

Da mesma forma que Chopin adapta o bel canto ao piano, Brahms tenta adaptar o canto do violino ao piano …

Sim, mas neste caso a forma como Brahms se aproxima dos intervalos do violino, o caminho que ele decide seguir é muito visual. Se você ver um violinista tocar essa Chaconne e depois ver outro tocar a transcrição de Brahms, você encontrará inúmeras semelhanças na forma de interpretá-la: gestos, movimentos, posições… Tem algo que lhe diz que essa transcrição não é apenas música, vai além!

Quão importante você diria que a música de Bach, e mais especificamente A Arte da fuga, tem dentro da escola russa de piano?

Quando eu estava no conservatório, era nosso costume aprender pelo menos um prelúdio e fuga de Bach a cada ano. Ele foi o único compositor que, ano sim, ano também, fazia parte do nosso aprendizado. Muitos pianistas russos dedicaram parte da carreira à música de Bach: Sergei Babayan, Evgeni Koroliov, Konstantin Lifschitz… Todos eles encontraram em Bach um caminho a seguir na sua maturidade musical.

Nestes tempos, o solista costuma ter apenas um ou dois ensaios com as orquestras antes dos concertos. Existem intérpretes (por exemplo, o seu compatriota Sokolov) que consideram isso insuficiente para uma interpretação satisfatória. Como você vê essa situação? Você discute sua visão da peça de antemão com o diretor para aproveitar ao máximo o tempo de ensaio?

Sou um daqueles performers que gostam de experimentar no palco e também tenho a sorte de os diretores geralmente serem bastante flexíveis quanto a isso. Eu confio na interação. Não importa quantas tentativas sejam feitas, não importa quais restrições existam. O importante é conversar com a orquestra, ouvir os músicos e que eles te escutem. O resto é uma circunstância típica da época em que vivemos. Cada concerto tem seu universo e cada ensaio suas diretrizes a serem seguidas. Mas vamos confiar no diálogo entre músicos. É a única coisa que realmente importa.

Suponho que após esses meses de confinamento, você poderá desenvolver um pouco mais sua carreira de compositor …

Durante o confinamento, o que realmente me envolvi foi no trabalho e na aprendizagem de ser pai… Eu estava aprendendo um novo repertório e escrevia algo, mas não gastei muito tempo nisso.

Você acha que a indústria da música está pronta para essa dualidade intérprete-compositor ou exige produtos específicos e mais do mesmo?

Não é algo que eu tenha pensado. Ainda não tenho composições próprias o suficiente para gravar um álbum. Em um futuro? É possível, mas devo continuar a descobrir os grandes compositores, interpretá-los, estudá-los e, se tiver sorte, entendê-los. Escrever é algo que muitos intérpretes fazem em segredo. Mas daí para a publicação de um álbum com nossas composições, é um outro passo.

O que você diria que não funcionará na música clássica em 2021?

São tantas coisas que não funcionam e é tão complexo mudá-las… Acreditamos que a internet é uma coisa real, que o streaming é um futuro imediato, mas não sabemos se as pessoas querem assistir a um Concerto ao vivo. Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo. Há pouco tempo, antes de sair para tocar com a OCNE, eu estava em meu camarim assistindo a uma apresentação ao vivo que Martha Argerich estava dando de Hamburgo. É incrível pensar que a centenas de quilômetros de distância, posso desfrutar de um espetáculo ao vivo segundos antes de chegar a minha vez de fazer outro. É uma experiência maravilhosa. Mas isso nunca substituirá o real.

Como podemos ajudar a música clássica a estar mais próxima do público mais jovem?

Em primeiro lugar, suponha que não existe uma fórmula mágica que encha os cinemas com pessoas com menos de 30 anos. E também temos que perceber que nem todo mundo lê grandes obras da literatura, nem todo mundo gosta de passar as noites em museus olhando pinturas ou assistindo a filmes clássicos. E a partir disso, é hora de aceitar que nem todos os jovens vão ouvir música clássica. Temos que facilitar o acesso? Sim. Devemos trabalhar para que a música tenha um papel fundamental na educação? Também. Mas, além do que podemos fazer, cada um é livre para escolher. O gosto pela música clássica é uma escolha. Existem pessoas que sentem enorme curiosidade por ela e outras nunca a sentirão. A vida é uma busca contínua por experiências. Quem busca a beleza acaba encontrando. Tudo que você precisa descobrir é onde procurar.

Para concluir, o que você pediria do futuro?

Gostaria que, num futuro próximo, houvesse um acordo internacional para ajudar o setor cultural e musical em sua restauração. Neste momento, cada país faz o que pode, mas não existe um gesto comum que nos una. E é claro que as circunstâncias em cada país são diferentes, mas devemos parar por um momento e tentar colocar ideias e propostas em comum para alcançar a cooperação internacional.

Daniil Trifonov | Foto: Boston Symphony Orchestra

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