Um médico

Eu finjo que não tô nem aí, tento minimizar, mas estou aí sim. Fiquei em estado de choque com uma consulta a um oftalmologista. Não consigo pensar em outra coisa. A paciente era a Elena. Ela fez uns óculos. Não deram certo. Foi a um segundo médico. Deu mais certo, mas não totalmente. E retornou ao segundo médico. O diálogo foi curto.

— Doutor, eu não consigo ler partituras com clareza. Vejo muito bem longe, vejo como se estivesse com um binóculo, mas perto não consigo. Normalmente, a partitura fica mais ou menos aqui — disse ela, estendendo o braço e fazendo um ângulo de 90 graus com a mão.

— Olha, acho que a senhora quer me dar um migué — respondeu ele.

Foi uma reação pra lá de inesperada.

Em gauchês, “dar um migué” significa “enganar” ou “levar vantagem”. O que não dá para entender é qual seria a vantagem que a Elena obteria ao vê-lo e em ir à ótica pela terceira vez.

— Não, eu quero apenas conseguir trabalhar com algum conforto. Meu trabalho exige que eu enxergue bem.

— A senhora pediu um receita para longe e eu dei! — respondeu ele taxativo e com a voz mais alta.

Comecei a me mexer na cadeira pensando em como intervir.

— Não, eu pedi uma receita para trabalhar — disse Elena.

Eu estava presente na primeira consulta e foi isso mesmo o que ela solicitou. Assenti ao que ela disse.

— A senhora viu que eu fiz testes para perto e longe, não para visão intermediária! — rebateu ele quase aos gritos.

— Eu não conheço o seu trabalho. Não sei quais são os testes. Sempre fui clara, preciso ver bem as partituras. Elas ficam a certa distância. E lhe disse claramente isso — falou Elena com extrema lentidão e sem mudar o tom de voz calmo.

— EU NÃO ME IMPORTO COM O TEU TRABALHO! PRA MIM TANTO FAZ!

O homem estava histérico. Então, levantou e a chamou para novo exame. Começou a fazê-lo ainda agressivo, mas foi se acalmando aos poucos. Eu estava pasmo, mas tratei de ajudar o dotô no novo exame. Eu segurava as letras que a Elena deveria ler na posição onde ficaria uma partitura. Na receita anterior, ele fez questão de escrever no verso, em letras garrafais: RECEITA OK.

Quando uma mulher se comporta assim, costuma-se dizer que é mal comida.

Bem, recebemos a nova receita. A despedida foi quase cordial.

Eu acho que as pessoas estão ficando loucas. Não vou avançar, mas acho que todo mundo entende o que quero dizer.

A Elena saiu de lá dizendo que precisava chorar um pouco. E eu, ainda pasmo, pensei que tenho que ir ao médico preparado para brigar. Como raramente grito e brigar fisicamente eu não sei, talvez devesse apresentar uma faca, algo assim. Ou será que o Boçalnato tem razão e devo andar com arma de fogo? Costumo acompanhá-la nos médicos apenas para poder conversar a respeito depois. É uma atitude de carinho, consideração, etc. Será que vou ter que me transformar em guarda-costas? Nunca antes tinha visto médicos maltratando clientes. Foi uma novidade destes tempos sombrios.

(Sim, ela tem convênio).

Fala Luiz Pilla Vares: “Por uma Política Cultural Democrática”

Fala Luiz Pilla Vares: “Por uma Política Cultural Democrática”

Luiz Pilla Vares

Em 1989, ao assumir a Secretaria Municipal da Cultura, nomeado pelo prefeito Olívio Dutra, o grande Luiz Paulo Pilla Vares (1940-2008) escreveu um texto intitulado “Por uma Política Cultural Democrática”, que sintetizou em oito pontos o programa de sua gestão. Pilla Vares faleceu há dez anos e, talvez possamos dizer que ao morrer cedo, teve a vantagem de não ver a desmontagem da Cultura via Temer, Sartori e Marchezan. A seguir, os oito itens:

1. Responsabilidade do Estado: “Nunca, como nos dias de hoje, o Estado tem tanta responsabilidades para com a cultura. Vivemos numa época trágica, de sistemática destruição não apenas dos aparelhos e equipamentos culturais, mas da própria cultura (…) Procura-se, num país atrasado como o Brasil, deixar a cultura sujeita às leis do mercado, o que, em nossa caso, significa simplesmente negá-la”

2. Financiamento da Cultura: O Estado tem o dever de se portar como um Mecenas Moderno: “Temos necessidade de um pleno renascimento cultural e os órgãos estatais responsáveis devem criar o clima para isso em todas as áreas, das ciências humanas às artes plásticas”.

3. A cultura não é lazer: “Ela é muito mais do que isso: refere-se à condição humana e capacidade do ser humano de pensar sobre ela, isto é, pensar sobre si mesmo. A indústria cultural faz um movimento contrário. Move-se no sentido de neutralizar o pensamento”.

4. Cultura e cidadania: “cultura é um elemento essencial da cidadania. Chega de considerar a cultura como elemento secundário! (…) O desenvolvimento cultural traz consigo conteúdos críticos e reflexivos. Rompe o senso comum e tem incidência na própria política. Desenvolve a imaginação ativa em detrimento da imaginação passiva”.

5. Cultura e política: “Os órgãos do Estado não podem interferir na criação, concepção e posição dos sujeitos em qualquer nível. Pelo contrário, sua função é precisamente a de garantir a livre manifestação em sentido absoluto”.

6. Diálogo com a comunidade: “Nosso objetivo é criar uma política cultural permanente com a intromissão ousada e aberta da própria comunidade, de tal forma que as retrógradas tentativas de desmonte encontrem uma resistência eficaz na sociedade civil”.

7. Cultura erudita e cultura popular: “Existe apenas uma cultura na qual os elementos populares intervêm e proporcionam conteúdo (…) Uma política de descentralização cultural, como a que estamos começando a pôr em prática, pode derrubar o muro abstrato que foi erguido, inclusive com a ajuda de alguns setores da esquerda”.

8. Modernidade: “A cultura contemporânea é incompreensível sem o cinema, o vídeo, a televisão, o rádio, as ciências humanas (entre elas, a psicanálise), a poesia concreta, a fotografia, o teatro de rua, o rock and roll, as histórias em quadrinhos, que se conjugam às grandes criações várias vezes milenares da história da humanidade”.

Em grande parte, esta política foi implantada e contribuiu para que Porto Alegre se consolidasse como um polo cultural importante por muito tempo.

A Ponte dos Açorianos hoje

A Ponte dos Açorianos hoje

Hoje, estava indo para um compromisso no Centro Histórico e fotografei (abaixo) o que estavam fazendo na Ponte dos Açorianos. Eram 8h40. O tal lago que foi feito em 1970 terá seu chão cimentado. Dizem que a Ponte de Pedra já está pronta e que faltariam “apenas” as calçadas, passeios e bancos do entorno. A Ponte de Pedra foi tombada pelo município no ano de 1979. A história diz que foi construída por escravos em 1848.

Achei incrível o fato de pessoas estarem trabalhando ali. Há anos aquilo ali estava parado, a não ser pela vegetação desenfreada que tomara conta do local. É uma bela praça da cidade, verdadeiro cartão postal de nossa combalida capital.

Procurei saber se há uma nova data para ser entregue ao público. Tudo o que encontrei na rede diz que ficaria pronta e seria entregue em 2016, 2017 ou em fevereiro de 2018. Eram notícias velhas, claro. Os tapumes estão lá.

Acho que o prefeito Marchezan deveria explicar direitinho os repetidos atrasos, apesar de estes virem desde a época de Fortunati. Há justificativa? Haverá cobrança de multa às empresas? Quanto foi investido? Fala-se em 4,6 milhões.

Para saber: em 1825, no governo do Visconde de São Leopoldo, foi construída uma ponte de madeira para travessia do Arroio Dilúvio, na sua foz junto ao Guaíba. Sim, era ali que o Dilúvio iniciava. Depois de repetidos danos e reconstruções, essa precária ponte inicial foi substituída por uma ponte de pedra, entregue à população em 1848.

Nos anos 1970, com as modificações urbanas, foi feito um lago para ambientar a antiga ponte. Esse projeto, em conjunto com o monumento, recebeu a denominação de Largo dos Açorianos, em homenagem aos fundadores de Porto Alegre. Conhecido como Ponte de Pedra, esse importante monumento foi tombado como Patrimônio Cultural da cidade em 1979.

Foto: Milton Ribeiro
Foto: Milton Ribeiro