Claudia Tajes é uma escritora que sabe fazer rir como poucos. Neste Macha, o humor é em parte substituído pela leveza ao tocar em temas não tão fáceis. Li este livro em voz alta durante 4 noites para minha mulher. No início nós ríamos muito, depois a coisa ficou mais séria e as risadas foram substituídas por sorrisos.
Em capítulos curtos, Tajes vai acrescentando dados sobre o caos que se instala na vida de Celina. Esta é uma bancária de 48 anos que, numa manhã, após sonhos intranquilos, acorda inadvertidamente metamorfoseada em uma estranha criatura que faz xixi em pé e coça as partes íntimas em público. Ou seja, acorda com um pênis, com mais barriga e menos bunda, com mais pelos e mais peso. Quando acorda e vai ao quarto do filho pegar uma camiseta maior, acaba agredida, pois o filho acha que um ladrão entrara em casa. OK, sem spoilers. E não preciso falar no óbvio parentesco da história com Kafka.
Celina é separada de Roney, um sujeito escroto que fica abismado e profere todo gênero de preconceitos frente a transformação da ex. O emprego é outro problema, a forma de vestir é mais um — o fio de consequências parece não ter fim. E os amigos? Tajes trata o tema de forma leve e coloca Celina — que a esta altura talvez já queira ser Afonso (nome do pai de Celina) ou sabe-se lá quem — em várias situações que nos faz pensar nos problemas de adequação de gays e de transsexuais a um mundo machista e dominado pelas Leis de Damares do binarismo rosa e azul. É realmente um atrevimento mudar de sexo ou expressar-se através das roupas… E como demonstrar seu carinho para o filho todo desconfiado?
Li o livrinho de Tajes porque um muito qualificado grupo de leituras escolheu-o para iniciar seus trabalhos em março de 2024. Entendo perfeitamente o motivo. São poucas páginas e muito pano pra manga.
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Este é o melhor dos romances do detetive Mario Conde. Dizer isto não é dizer pouca coisa. Em mais esta novela policial, Padura trata do assassinato de um ex-ministro cubano num momento de grande efervescência em Cuba, com a visita de Barack Obama e dos Rolling Stones. O assassinado é Reynaldo Quevedo, uma pessoa absolutamente asquerosa. Muita gente gostaria de ter a honra de por fim a seus dias, pois era o Jdanov cubano, o homem que perseguia os artistas a fim de colocá-los na linha, o cara que acabou com a carreira de vários deles e que também não facilitava a vida de gays e lésbicas. Porém, apesar de estar quase feliz com a morte do sujeito, cabe a um Mario Conde já aposentado dar uma mão a seus ex-colegas policiais. Afinal, eles estavam atarefados com Obama e os Stones. Para quem não sabe, Conde é uma espécie de alter ego dos desencantados cubanos, um cético que perdeu toda a esperança. Já o morto é um filho da puta sob todos os aspectos e, através da busca de seu assassino, é revisto todo um processo histórico obscuro da revolução.
Mas há outra história e outro crime. Como muitos de vocês sabem, Padura gosta de contar duas histórias em capítulos alternados. Vamos a elas, sem spoilers.
Havana, 1910. Naquele tempo, Havana era chamada a Nice da América. Significava dizer uma cidade de festa, alegria, álcool e prazeres. Lá vivia o cafetão mais famoso e querido de Havana, Alberto Yarini y Ponce de León, grande amigo do detetive Arturo Saborit. Havia uma bonita história de amizade e fidelidade entre ambos, entre o “cafetão bom”, que tinha aspirações mais elevadas do que administrar jogos de azar e suas prostitutas, e o policial. Um caso de assassinato de duas mulheres em Havana Velha expõe a luta entre Yarini, refinado e de boa família, e seu rival Lotot, um francês, que contesta sua posição de proeminência. O desenvolvimento destes acontecimentos terá uma ligação com a história do presente de uma forma que nem o próprio Mário Conde suspeita. Ah, importante: Alberto Yarini foi um personagem real, ele existiu.
Havana, 2016. Um acontecimento histórico abala Cuba: a visita de Barack Obama no que foi chamado de “Degelo Cubano” – a primeira visita oficial de um presidente dos EUA desde 1928 –, acompanhada de eventos como um show dos Rolling Stones e de desfile da Chanel, vira o ritmo pachorrento da ilha de cabeça para baixo. Assim, quando um ex-líder do Governo cubano é encontrado assassinado no seu apartamento, a polícia, ocupada com a visita presidencial, recorre a Mario Conde para auxiliar na investigação. Como já disse, o morto tinha muitos inimigos, pois no passado atuara como censor para que os artistas não se desviassem dos slogans da Revolução. Fora um homem despótico e cruel que encerrara a carreira de muitos artistas que não queriam ceder a seus pedidos e extorsões. Quando aparece um segundo corpo assassinado com o mesmo método poucos dias depois, Conde deve descobrir se as duas mortes estão relacionadas e o que está por trás desses assassinatos.
Como sempre, Padura remonta acontecimentos históricos e políticos. No caso de 2016, revemos a arte dos contrarrevolucionários e os excessos do processo de Inquisição. A conjuntura é o assassinato de um daqueles inquisidores que, como sempre, se beneficiou de abusos de poder. O cenário das duas histórias é bastante peculiar e funcional à narrativa, com muito cubanismo e bom humor. Porém, em ambas as ficções prevalece um tom melancólico — o entusiasmo dos amigos de Conde pelas degelo que vivem não o atinge e, a certa altura, falando sobre essas mudanças, conta ao amigo e irmão de vida, o magrelo Carlos: “Claro que é necessário, muito necessário. Deixe que as coisas aconteçam… Mas não creio que aconteça nada além do que está acontecendo. E a qualquer momento tudo volta e a gente se ferra”. Sim, foi o que aconteceu. Houve um grande revés nos anos seguintes, em grande parte graças às decisões teimosas de Donald Trump.
A estratégia narrativa de alternar as duas histórias funciona muito bem, os diálogos são trabalhados detalhadamente, as cotas humorísticas são entregues fundamentalmente nessas conversas dos personagens. Havana é a protagonista do romance, o ambiente que existia em Cuba em 2016 é transmitido com grande precisão e há uma elaborada reconstrução daquela cidade em 1910.
Será que eu deveria manter a primeira frase desta resenha? Padura tem 14 romances, 10 com Mario Conde. Talvez eu não devesse me atrever a fazer uma avaliação de todas as obras do grande escritor cubano, mas afirmo com segurança que Pessoas Decentes está entre as melhores. Não tem como não estar.
Recomendo muito.
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Mesmo para uma pizzaria popular como a Domino’s, a postura da mulher era por demais à vontade. Sentada, com as costas encostadas na parede e com os pés descalços sobre outra cadeira, ela parecia estar em casa.
Estava com, supostamente, seu companheiro e eu sentei bem na frente dela, em outra mesa. Ele falou primeiro.
— Até que horas a gente vai ficar aqui?
Ela respondeu:
— Até eles fecharem à meia-noite.
Eram 20h15. Eu olhei para ela, que passou a falar comigo:
— É que estamos sem luz em casa, então é melhor ficar beliscando uma pizza e bebendo cerveja — riu. — Aqui pelo menos tem luz e ar condicionado.
Lênin morreu há exatos 100 anos, em 24 de janeiro de 1924. Seu corpo permanece embalsamado em um mausoléu na Praça Vermelha. Dizem que o custo de mantê-lo é de 200 mil dólares anuais e os Eduardos Leites de lá querem enterrá-lo. Ou talvez privatizá-lo.
Mas Putin afirmou: “De jeito nenhum. Não devemos tocar nisso”.
Até 1961, o corpo de Lênin esteve acompanhado do corpo também embalsamado de Stálin, mas então Kruschev decidiu que Lênin não poderia ficar em companhia de alguém que fez tanto mal ao Partido e o georgiano foi parar num cemitério para finalmente decompor-se.
Alguns de vocês sabem que eu sou um livreiro que lê e escreve bastante. Alguns sabem que eu, hoje um jornalista cultural em estado de latência, faço minhas resenhazinhas. Deste modo, por ser isto ou aquilo, às vezes recebo livros autografados de presente. Infelizmente, apesar da vontade, não leio todos, pois não faria mais nada além disso. Porém, muitas vezes leio e, se é o caso, trato de elogiá-los aqui. É o caso.
Ao Sul da Fronteira, do gaúcho Rogério Brasil Ferrari, é um livro que envereda por diversos caminhos sem se perder em nenhum deles. No início, parece o retrato de um casal porto-alegrense cujo casamento matou o sexo — cuidem-se meninos! — e onde a mulher vai procurar diversões sensuais em outras plagas. Parece que tudo se dirige a uma história erótica como tantas. Mesmo com a diferença entre o que foi procurado na internet e o que acabou encontrando, Helena vai à Montevidéu para um encontro. Estava precisando. Afinal, diversão era tudo o que faltava em casa.
Quando chega ao país vizinho, ela encontra o que busca e muito mais. Encontra sexo, álcool, aventura e alguém com uma história incompleta devido a fatos ligados à Operação Condor, alguém que insiste em incomodar quem não quer remexer no passado. E, bem, então teremos um thriler erótico? Não, ainda não expus todos os elementos. Há uma pesada questão familiar ocorrendo com a pessoa de Montevidéu, muito mais pesada do que as bebedeiras do marido de Helena que, obviamente, descobriu-se apaixonado pela esposa assim que ela cruzou o Chuí.
Rogério Ferrari mistura tudo isso num livro de grande competência. Nada de discursos inflamados ou palavras de ordem, nada de espasmos, a tragédia e a tristeza de nosso continente vem chegando como uma secreção que embebe tudo lentamente e que por fim sufoca. É daqueles livros que o leitor primeiramente estranha a forma do texto — com uma estranha notação para as falas e outras originalidades — e depois não desgruda mais.
Como nova intervenção gonzo, digo que, no primeiro dia contei para minha mulher o que tinha lido. Estava, claro, no começo do livro, quando ele dá sua primeira virada. Na noite seguinte, ela me pediu a continuação e assim fomos até o final. Ela conheceu todos os personagens principais e a história sem ler o livro. O que prova isto? Prova que a história é boa, pois minha Elena não é trouxa como o marido daquela Helena.
Recomendo. O livro está esperando por você aqui na Bamboletras.
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O personagem Leonard Bernstein era excessivo. Ele viveu em um conflito quase permanente sobre como administrar a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade, em tempos em que a tolerância (especialmente nos Estados Unidos) não era o que é agora, e além disso foi investigado pelo FBI por sua tendência esquerdista. Apaixonado, extrovertido, suas manifestações de efusividade seriam hoje objeto, no mínimo, de escândalo (sua própria filha declara em um dos documentários que beijava todos que estavam ao seu alcance, um músico da Filarmônica de Viena relata o assunto com ironia: “Disseram-me, não enxugue, afinal é suor de Bernstein”). Na época em que conheceu sua futura esposa, Felicia Montealegre, ele já havia tido seus namoros homossexuais, e Paul R. Laird, em sua excelente biografia (Life and Work of Leonard Bernstein , Turner, 2018), sugere que sua amizade com Aaron Copland provavelmente foi mais do que isso.
Mas o ambiente era o que era, e um de seus mentores, Serge Koussevitzky, então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, pressionou-o a mudar seu sobrenome (sugeriu Leonard Burns) para eliminar o toque judaico e a se casar. Ambas as coisas, a segunda destinada a reprimir os rumores de sua homossexualidade, ajudariam sua carreira. Lenny não mudou o sobrenome, mas se casou com Felicia. O conflito sobre sua sexualidade persistiu e ele acabou se separando da esposa para se juntar ao amante Tom Cothran. Mas quando Felicia foi diagnosticada com o câncer que acabaria com sua vida, ele voltou e ficou com ela até sua morte. Ele a amava, não há dúvida disso, por mais que sua tendência sexual o levasse para outras camas.
É esta relação única entre Lenny e Felicia, e o conflito sexual que lhe está subjacente, que é o foco do filme Maestro, protagonizado e realizado por Bradley Cooper, produzido pela Netflix e agora disponível na plataforma. Não entrarei no aspecto puramente cinematográfico neste artigo, mas vale a pena fazer algumas anotações que surgem depois de ter visto o filme. Não há nada de questionável, em princípio, no fato de o filme focar nessa relação, a ponto de Felicia (aliás, maravilhosamente interpretada por Carey Mulligan), ser praticamente o papel principal. Na verdade, é uma faceta pouco delineada em outros documentários. E, a julgar pela declaração da própria filha Jamie (protagonista de uma das cenas do filme, que motiva Felicia a pressionar Lenny a falar com ela e a negar os rumores sobre sua homossexualidade), é uma questão bem retratada. Acredito, no entanto, que existe um problema, e não de menor importância, em outros domínios.
Compositor, pianista, diretor, divulgador, ensaísta e professor. Talvez você possa encontrar pessoas que desenvolveram todas ou quase todas essas facetas, mas para elas terem feito isso no nível de excelência em que Leonard Bernstein fez, é, não acho que estou exagerando, muito difícil, se não impossível. Lenny foi uma das grandes personalidades musicais do século XX, sem dúvida. Muitos podem não gostar de sua música, ou pensar que ele não deveria ter ido além dos (ótimos) musicais. Para outros, seus modos no pódio podem parecer exagerados, teatrais, pouco ortodoxos e até caóticos (aqueles saltos, aquele balanço de braço, aquele movimento corporal, aquela técnica de batuta, no mínimo singular…). Talvez sua tendência, como maestro, para tempos realmente extremos — exceto o último Celibidache e algumas gravações de Bach de Scherchen, é difícil lembrar de lentidão mais no limite do que aquelas do último movimento da Nona de Mahler nas mãos de Bernstein — seja indigesto para alguns, porque foge ao cânone.
Mas esse caráter excessivo foi e continua sendo fascinante. Ele vivia a música com uma intensidade contagiante. Os seus critérios podem ser discutíveis, o seu gesto e o sus batura quebram toda a ortodoxia. Mas o que aquele homem transmitia… a paixão, a convicção, eram tais que era literalmente impossível não o seguir, não se sentir capturado pela sua mensagem, fosse ela música, interpretação ou divulgação. “Eu amo duas coisas: música e pessoas. Não sei qual dos dois eu prefiro.” Estas são as primeiras palavras de uma declaração um pouco mais longa que Leonard Bernstein, com a voz já muito rouca, em 1990, poucos meses antes de morrer, diz à câmera com comovente ternura. É o início de um estupendo documentário, The Gift of Music, narrado por Lauren Bacall e editado em DVD pela Deutsche Grammophon. Há outro documentário, Larger than life, também magnífico, creio que disponível na medici.tv.
Porque, na minha humilde opinião, é aí que reside o seu principal (embora não único) defeito: intitulado Maestro, espera-se encontrar um filme em que todas estas facetas estejam mais ou menos bem retratadas. Mas a música, apesar do título, parece uma companheira marginal. Aquela que é considerada sua principal obra, a Missa, aparece saindo na ponta dos pés. O mais conhecido, West Side Story, mal participa. Não há nada da sua relação, muito longa e profunda, com a Filarmónica de Israel, nem com a de Viena, a Baviera ou o Concertgebouw. Pior ainda, presume-se que o espectador conheça muito bem a vida de Bernstein antes de assistir ao filme, porque se não for o caso, a presença fugaz de pessoas tão essenciais na sua vida como Aaron Copland ou Koussevitzky é dificilmente identificável. Outros, igualmente importantes, como Dimitri Mitropoulos, o realizador grego que o impulsionou a ser compositor, ou Fritz Reiner, seu professor no Curtis Institute, em Filadélfia, nem sequer aparecem. Também passa despercebida, ou quase, a sua extraordinária atividade de divulgador que está no YouTube… Ver qualquer um destes vídeos explica de uma forma muito simples porque este homem conseguiu fisgar milhões de pessoas pela música clássica.
Mais difícil de traduzir em filme é seu papel como colunista, mas também é altamente recomendável aprofundar-se na inestimável descrição que faz de seu querido Mahler neste artigo: Mahler – Chegou a sua hora – na Alta Fidelidade, Vol 17 no. 9, setembro de 1967, posteriormente reproduzido em seu primeiro ciclo Mahleriano para CBS-Sony. É difícil explicar, sem meandros técnicos, o que é a música de Mahler, o que ela expressa e significa, com mais precisão e riqueza do que a escrita nesta coluna.
Além disso, interpretar um regente (e ainda mais um como Bernstein) é extremamente difícil, o que deve ser levado em conta ao julgar o trabalho de Cooper. O ator americano, treinado pelo diretor do Metropolitan, Yannick Nézet-Séguin, se sai razoavelmente bem em uma cena com o coro, mas quando tenta reproduzir a lendária gravação da Segunda Sinfonia de Mahler na Catedral de Ely (que faz parte do ciclo de Mahler gravado em DVD pela Deutsche Grammophon) vai longe demais. Lenny era, como já observei, excessivo. Cooper vai mais longe, mas o que em Bernstein parece um excesso natural, em Cooper parece beirar o grotesco. A sua caracterização, incluindo a controversa prótese nasal, é ótima. A dublagem presta um péssimo serviço, no entanto. A voz de Bernstein, especialmente a do Bernstein mais velho, parece demasiado melíflua (compare com o original da entrevista citada acima, mas também com o som original do filme).
Em suma, o mais problemático é que muitos virão esperando ver um retrato de Bernstein com aquelas múltiplas facetas ligadas à música que, além disso, teve uma relação única com a sua esposa, e que viveu um duro conflito com a sua tendência sexual. Mas o que você verá é o retrato de alguém que teve uma relação única com sua esposa, enquadrada em um duro conflito com sua tendência sexual… e que, além disso, também era músico. Mas como isso é pouco, o título é enganoso, porque não responde ao que se vê depois. O retrato esperado permanece incompleto.
“Sinto-me muito grato aos fundamentalistas religiosos”, disse John Cleese em 1999, 20 anos após o lançamento de A Vida de Brian, “graças a eles sou um homem muito rico.” Cleese assume que, pelo menos neste caso, a melhor campanha de marketing foi a hostilidade brutal e impiedosa dos seus detratores. As ações odiosas a que o filme foi submetido acabaram por contribuir substancialmente para o seu enorme sucesso. Acima de tudo, nos Estados Unidos, país que, até ao verão de 1979, resistiu aos planos de domínio mundial do coletivo de comédia do qual Cleese fazia parte, o Monty Python.
Já em 1975 tentaram a sorte com o lançamento quase simultâneo em ambos os lados do Atlântico do seu segundo filme, Monty Python em Busca do Cálice Sagrado. No entanto, aos quase dois milhões de libras arrecadadas nas ilhas juntaram-se apenas algumas centenas de milhares de dólares nos Estados Unidos e no Canadá. Álbuns de esboço como The Monty Python Instant Record Collection ou a série de televisão que deu início a tudo, Monty Python’s Flying Circus, não se saíram muito melhor, eram produtos requintados de importação britânica recebidos com certo desdém pelo público americano.
Mas A Vida de Brian atingiu, talvez sem intenção, a chave para as guerras culturais, tão intensas nos Estados Unidos do final da década de 1970 como são agora. Foi lançado em cinco cinemas em agosto de 1979 e estava programado para ser exibido em cerca de 200 antes de chegar ao Reino Unido em novembro, antes da temporada de Natal. Os primeiros protestos não partiram de grupos cristãos, mas sim da Associação de Rabinos Ortodoxos de Nova Iorque, que se incomodou com o xale de oração (talit) que John Cleese usava na primeira cena do filme, no que consideraram um “uso desrespeitoso” de uma vestimenta cerimonial judaica no contexto de “um espetáculo blasfemo”.
Ligas de decência
Eric Idle recorda que “os rabinos logo desapareceram sem deixar rastros, mas foram substituídos por um inimigo muito mais teimoso”, os fundamentalistas cristãos, “que começaram por manifestar-se junto à sede da Warner Bros. Alegaram que A Vida de Brian era obra do diabo.” Como explica Kliph Nesteroff, autor de três livros dedicados à história da comédia cinematográfica, “os processos de blasfêmia contra produtos audiovisuais muito raramente prosperavam naquela época”, visto que os Estados Unidos, após a convulsão contracultural, estavam passando por um período incomum, de promoção da liberdade e da tolerância. Assim, as ligas da decência e grupos de evangélicos, batistas e católicos decidiram apresentar acusações por suposta obscenidade, aproveitando-se “do fato de que os órgãos genitais de Graham Chapman aparecem na tela por uma fração de segundo”. Com esse truque, eles conseguiram retirar o filme dos cinemas de lugares como o estado da Geórgia ou de várias cidades da Louisiana, Alabama e Carolina do Sul.
Aqueles que protestam e aqueles que cobram
O efeito destas proibições inoportunas e a presença de piquetes violentos nos cinemas de todo o país acabaram por transformar A Vida de Brian num símbolo de liberdade de consciência e num fenômeno de massas. As principais redes de televisão enviaram seus repórteres às salas onde ocorriam protestos e tentativas de boicote, entrevistaram apoiadores e detratores do filme e ecoaram campanhas tão ultrajantes quanto a que propunha “Vamos resgatar Brian, vamos crucificar os censores”.
No final de agosto, os 200 cinemas planejados haviam passado de 700. Impulsionado pela polêmica, A Vida de Brian já estava no pódio das produções britânicas de maior bilheteria da década.
A entrada na arena de figuras públicas com retórica inflamada, como o senador da Carolina do Sul Strom Thurmond ou o padre presbiteriano William Solomon, contribuiu para que o assunto adquirisse uma dimensão política delirante. Numa carta aberta às autoridades federais dos Estados Unidos, Solomon considerou que as convicções que deram sentido à sua vida estavam a ser “ultrajadas” por um “produto cruel, sarcástico e de baixa qualidade que em nenhuma circunstância pode pretender ser arte.”
Thurmond chegou a exigir que o responsável pela distribuição do filme em seu estado o retirasse “como sinal de boa vontade e respeito pela comunidade cristã, que leva muito a sério a sua religião”. Responderam-lhe que a religião dos promotores culturais “é a liberdade de expressão, e também a levamos muito a sério”.
A gênese de uma obra-prima do sacrilégio
Quatro anos antes, ao promover, também nos Estados Unidos, Monty Python em Busca do Cálice Sagrado, uma comédia sobre o Rei Arthur e sua busca infrutífera pelo Santo Graal, Eric Idle tentou oferecer uma resposta espirituosa a uma pergunta rotineira: “Qual será seu próximo projeto?” “Algo sobre a vida de Jesus de Nazaré. Que tal Jesus Cristo: Luxúria e Glória?”.
Parte da imprensa interpretou a ideia literalmente. Nos meses seguintes, os membros do Monty Python (cinco britânicos, Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin, e um americano radicado no Reino Unido, Terry Gilliam, que faziam uma comédias juntos desde 1969) se viram respondendo perguntas contínuas sobre como estava evoluindo esse projeto de “comédia bíblica”, que, na realidade, eles nunca haviam se proposto a fazer. “A fogueira cresceu. Cada vez mais criávamos novos detalhes absurdos para continuar alimentando o mal-entendido, algo que fizemos por pura maldade. E chegou um momento em que começamos a pensar em Jesus Cristo: Luxúria e Glória como um projeto viável”, explicou Jones.
Quando se reuniram em Londres, no final de 1976, para discutir que novas iniciativas, ficou claro que a EMI Films, a empresa que produziu os seus dois primeiros filmes, estava mais do que disposta a embarcar num terceiro. “Só precisávamos de uma ideia e começar a trabalhar”, explicou Chapman. Jones sugeriu, por falta de uma ideia melhor, que começassem a trabalhar na “coisa de Jesus Cristo”.
Idle e Gilliam tiveram uma primeira piada que acharam irresistível, uma cena de crucificação em que Jesus de Nazaré cai repetidamente da cruz devido à incompetência dos carpinteiros romanos, incapazes de fabricar um instrumento adequado de tortura. O Messias perdeu a paciência e acabou instruindo-os a como fazer uma cruz.
Aquele esboço de cena, nas palavras de Idle, deu origem a outras semelhantes, mas não a um fio narrativo que pudesse servir de base para um filme. Além disso, no longo processo de brainstorming que se seguiu, os comediantes convenceram-se, como recordou Gilliam, de que Jesus era, essencialmente, “um rapaz bom, que fez e disse coisas de inquestionável bom senso e morreu”. A vida dele não parecia um material adequado a uma paródia…
Acabaram então optando por uma variante: utilizar o cenário da turbulenta e messiânica Palestina do Novo Testamento, mas esquecendo-se de Jesus. O grupo começou a trabalhar em um roteiro centrado no décimo terceiro discípulo do profeta, um tipo, como Jones o concebeu, “que não aparece na Bíblia porque sempre se atrasava em todos os lugares e perdia todos os milagres”.
Esse foi o primeiro rascunho de Brian. Com o tempo, o personagem que Chapman acabaria interpretando tornou-se não o discípulo disfuncional que eles imaginavam, mas um cara comum, nascido em circunstâncias semelhantes às de Jesus Cristo, e que seria eliminado por um grupo de seguidores particularmente teimosos e pouco receptivos. confundindo, apesar de si mesmo, com o redentor de Israel.
De Barbados à Noruega
O roteiro ficou pronto em janeiro de 1978, após duas semanas de férias em Barbados que o Monty Python aproveitou para dar os retoques finais. Algumas semanas depois, quando estavam prestes a voar para a Tunísia para começar a filmar, Lord Bernie Delfont, CEO e acionista majoritário da EMI Films, leu o roteiro pela primeira vez, alertado por um misterioso alto funcionário da igreja anglicana, que lhe disse que o que tinham em mãos seria um dos filmes mais irresponsáveis e nocivos da história. Delfont não deu muitas explicações. Ele disse que achou o roteiro “atroz” e cancelou o projeto. A EMI não financiaria um ataque frontal desse calibre à religião.
Idle recorreu a um amigo próximo, o beatle George Harrison, e simplesmente pediu-lhe o dinheiro que Delfont acabara de tirar deles. Em Monty Python: The Autobiography of Monty Python, é explicado que Idle se preparou para encher Harrison com argumentos emocionais, começando com o formidável obstáculo ao humor colocado pelo ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, o quão conservadores ele estavam tornando as indústrias culturais britânicas ou quão difícil foi obter financiamento para produtos que iam além do óbvio, do modesto e do previsível.
Não foi necessário. Harrison estava animado para se tornar produtor de um filme blasfemo. Solicitou um empréstimo garantido por uma de suas mansões no interior britânico, deu a Idle os dois milhões de libras que pediu (na época, o equivalente a cerca de quatro milhões de dólares) e garantiu-lhe que poderia trabalhar com absoluta liberdade. .
O autor de Something sabia onde estava se metendo. Em 1966, os Beatles se envolveram em uma das controvérsias religiosas mais famosas da história recente, depois que seu colega de banda, John Lennon, disse à jornalista Maureen Cleave, do Evening Standard, que os Beatles eram “mais famosos que Jesus Cristo”. Essa provocação brilhante e infantil deu origem a grotescos atos de boicote durante a subsequente viagem do grupo aos Estados Unidos.
Naquela ocasião, Harrison, o mais discreto dos Beatles, tentou resolver a polêmica com frases que colocaram lenha na fogueira: “Por que eles estão nos acusando de blasfemadores? Se o Cristianismo fosse o movimento humanista e integrador que afirma ser, deveria tolerar divergências e aceitar críticas com maturidade.” Aparentemente, essa ainda era a sua posição em 1978, quando já tinha completado a sua viagem de ida e volta ao hinduísmo, inspirado pelo movimento Hare Krishna.
Palestina, ano zero
Os Pythons não aspiravam serem mais famosos que Jesus Cristo. Na realidade, queriam apenas levar às massas a experiência de ser um homem comum num ambiente excepcional, o da Judeia sob ocupação romana em plena era messiânica . O filme foi rodado sem grandes surpresas. Terry Jones atuou como diretor e Graham Chapman foi a estrela do espetáculo, assumindo o papel principal, o de um dos “sábios” do Oriente e o do malfadado Biggus Dickus. O veterano Kenneth Colley fez uma breve aparição no papel de Jesus, a grande presença ausente do filme.
O produto de seu esforço começou a ser exibido em exibições privadas já em janeiro de 1979, e desses primeiros contatos com o público surgiram sucessivas versões, cada vez mais curtas, mais precisas, com menos piadas e menos personagens, até deixar o filme na sua forma atual. 94 minutos de puro músculo, sem um pingo de gordura.
À medida que a data de estreia se aproximava, a Irlanda e a Noruega foram os primeiros países a antecipar o que estava prestes a acontecer, simplesmente retirando a licença de exibição de Life of Brian. Os Pythons aproveitaram a circunstância para promovê-lo na Suécia com uma frase que acabaria sendo exportada para outros mercados: “Um filme tão engraçado que foi proibido na Noruega”.
A estreia na Austrália e no Reino Unido foi precedida por um curta-metragem intitulado Away for It All que, com narração de John Cleese. Ele fornecia (des)informações delirantes sobre como o filme havia sido criado e incluía frases como: “É difícil acreditar até que ponto esses meninos felizes dedicaram suas vidas à destruição sistemática da civilização ocidental”. Várias cidades da zona rural da Inglaterra aderiram à tendência americana e proibiram a exibição do filme.
A polêmica, apesar de tudo, foi diluída em tempo recorde. Durante o Natal de 1979, A Vida de Brian continuou a ser exibido nos cinemas de todo o mundo, mas não mais despertando atos de rejeição de qualquer espécie. As suas primeiras aparições televisivas, dois anos depois, não geraram confusão, demonstrando assim a tese de John Cleese: “As controvérsias religiosas modernas tendem a ser de curto alcance. Os crentes sentem a necessidade de fazer algo poderoso para Allah ou para Jesus Cristo, mas assim que o fazem, permanecem calmos e continuam com suas vidas.
Uma das anedotas mais curiosas que surgiram da turbulenta estreia desta obra-prima de paródia (e blasfêmia) é pouco lembrada. Kliph Nesteroff explica: “No meio do turbilhão, Michael Palin e John Cleese foram convidados para um programa noturno da BBC2 para participar de um debate com dois interlocutores que fortemente antagônicos ao filme: um pastor anglicano e Malcolm Muggeridge.”
Anos antes, Muggeridge tinha publicado um artigo poderoso na Esquire sobre a diminuição dos limites do humor e da liberdade de expressão, no qual lamentava que “estamos a caminhar para um mundo mortalmente sério, no qual já não consideramos permitido rir de quase tudo”. Contudo, em 1979, já tinha abraçado o cristianismo fundamentalista e considerava que “o fim da cultura no Ocidente está a ser acelerado por palhaçadas grotescas como esta, um subproduto da pior espécie que transforma a vida de Jesus numa farsa e a sua crucificação em uma cena de opereta”.
Ouvindo Muggeridge e seu aliado eclesiástico, Palin e Cleese perceberam que ambos estavam se referindo ao personagem Brian como se ele fosse uma representação de Jesus Cristo no filme, e não um simples transeunte que o rebanho de ovelhas confundiu com ele. Eles apontaram: “É um detalhe bastante essencial da trama, certo?” Muggeridge e o ministro anglicano responderam dizendo que “é claro” que não tinham visto o filme. Ou, pelo menos, não inteiramente. Cleese lançou-lhes um olhar de infinito desprezo. E disse-lhes: “Não há mais perguntas, meritíssimo”.
Os perigos de fumar na cama (2009) é o primeiro livro de contos publicado na Argentina por Mariana Enriquez. Conheci esta notável escritora através de outro livro de contos As coisas que perdemos no fogo, de 2016. No Brasil, As coisas foi um livro que sumiu, graças à editora Intrínseca. A não reimpressão do livro tornou-o uma raridade que hoje custa de mais de R$ 200 na Estande Virtual. Pelo mesmo caminho irá seu extraordinário romance Nossa Parte de Noite, que está desaparecendo. Ao que tudo indica, o mesmo acontecerá com Os Perigos… No meio do ano, ele desaparecerá e não haverá Madre de la Plaza de Mayo que o fará reaparecer. Tudo obra da mesma editora, que não costuma manter seus livros em catálogo por muito tempo e que parece desconhecer que a “curva de vendas” de um livro de qualidade é muito diferente de outros.
Enriquez tem interessantes pontos de contato com a literatura popular. Ela é uma escritora que admira profundamente Stephen King, Lovecraft e os mestres do suspense e terror. É uma especialista no gênero. Escreve com beleza e conhece a arte de criar climas como poucos. Nada de descrições de grandes horrores, apenas a classe em montar habilmente situações que façam nossa imaginação trabalhar. E é dentro de nós que surgem os monstros. Guardadas as proporções, assim como os europeus reivindicaram Hitchcock como grande cinema quando ele era considerado um diretor eficiente em filmes de gênero, reivindico Enriquez para a grande literatura. E não estou nem um pouco sozinho nisso. Leiam o que escreveu o jornalista Guilherme Conte sobre seu romance Nossa Parte de Noite:
Nada te prepara direito para a jornada que é abrir Nossa parte de noite, estupendo romance da escritora argentina Mariana Enriquez. Você pode achar que está simplesmente lendo um livro, mas a verdade é que a história nos traz para outra dimensão ao longo de suas quase seiscentas páginas, e quando nos damos conta a vida lá fora parece algo desimportante, secundário, distante. A terrível ditadura argentina se entrelaça a monstros, sacrifícios humanos, magia, sadismo e violência, em uma história que se desenrola por três décadas. Uma saga que nos leva aos subterrâneos mais profundos e escuros do medo, que, afinal, é sempre tão grande quanto a nossa imaginação. Ninguém escreve como Mariana, e esse livro é um retrato perfeito disso.
Bem, e o que faz os argentinos escreverem tão bem? Deixemos esta questão de lado para falar um pouco do livro.
O terror de Mariana não envolve seres monstruosos e ela raramente faz uso do sobrenatural. Seu terror nasce e se insere no cotidiano. Uma viagem em família ou com os amigos pode acabar em pura angústia e medo. Uma visita à tia também. Tudo nasce da interação entre as pessoas — inveja, rancor e ódio — ou de fatos como a loucura e a esquizofrenia. É um “terror cotidiano” que invade vidas, mas Mariana não esquece que este também pode ser causado por governos e outras doenças. Sim, em suas histórias há um poderoso subtexto social, relacionando poder, loucura e ocultismo.
Dos 12 contos do livro, creio que Carne, Rambla Triste, O Carrinho, A Virgem da Pedreira e Garotos Perdidos vão custar a sair de minha combalida memória. Seus personagens não são pessoas ricas presas em seus labirintos, há muita pobreza a forçar os limites e também a atraente beleza física, a beleza da experiência e da pureza das pessoas. Mariana trabalha com mestria temas como os maus sentimentos, a tristeza e a loucura. Preparem-se.
Recomendo a todos os mentalmente fortes!
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