Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Assinado sob o pseudônimo de Paula Ledesma, Nossa Parte de Noite juntou-se a mais de 650 outros originais apresentados à seleção de 2019 do Prêmio Herralde de Romance — uma das mais importantes premiações da literatura de língua espanhola. A história acompanha pai e filho cruzando a Argentina de carro sob os olhos de soldados armados, no ambiente da ditadura militar, despertando interesse e aflição. Há ocultismo, ocorrem coisas inexplicáveis e é impossível parar de lê-lo. O livro tem, ao mesmo tempo, várias narrativas e impressiona pelo domínio com que Mariana Enriquez constrói o enredo em várias direções e contextos. Ela ganhou o prêmio, claro, foi a primeira mulher a fazê-lo.

Bem, a maior parte do romance trata de temas que não são de minha preferência, porém, já disse, não parei de ler, não poderia largar.

Gaspar é o filho de Juan Peterson. O pai, em solitária cruzada, trata de proteger seu filho do destino que lhe foi designado. A mãe do menino já morreu em circunstâncias obscuras. Gaspar, como seu pai fora, recebeu um chamado para ser médium de uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna em rituais brutais. Para tais rituais, é imprescidível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é muito severo. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali à Argentina.

O terror sobrenatural se mistura com outros, reais. Ao lado de casas cujos interiores se transformam, de passagens perigosas, de sacrifícios em rituais de êxtase e dor, de andanças pela maravilhosa Londres dos anos 60, do fetiche por pálpebras humanas, das liturgias sexuais, há a repressão da ditatura militar, os desaparecimentos e, mais tarde, a chegada incerta da democracia e dos primeiros casos de Aids.

Nossa Parte de Noite é um livro perturbador e deslumbrante. A prosa de Mariana Enríquez é muito rica e bem trabalhada, obrigando-nos continuar e continuar mergulhado na história. A inclusão de diferentes vozes narrativas e de vários personagens muito bem definidos conferem ao tema variações e reviravoltas imprevisíveis, às vezes sufocantes… E, portanto, muitas vezes o assunto é o que menos importa. Era meu caso, eu parti de uma posição claramente cética, mas fui absorvendo uma história muito complexa e verdadeiramente estranha.

Há capítulos sobre a vida dilacerada do personagem principal, Juan Peterson, o pai de Gaspar, que vive sempre em tensão, entre doenças, operações cardíacas versus as exigências da Ordem. Sua esposa, a mãe de Gaspar, foi morta em circunstâncias nada claras. Ele tem a necessidade urgente de separar seu filho das influências da família e do tema da Escuridão, pois sabe que se não separar isso continuará com ele depois de sua morte. Quanto ao título, a noite é fundamental, há no livro uma alusão direta, num diálogo entre Juan e seu filho Gaspar, na noite em que vão deitar as cinzas da mãe em um rio. Juan, acariciando o filho, diz mais ou menos assim: “Deixei para você algo meu, espero que não seja amaldiçoado, não sei se posso deixar para você algo que não seja sujo, que não seja escuro, nossa parte de noite.”

Algo curioso aconteceu comigo durante a leitura deste livro, pois entrei e saí da atmosfera do romance sem parar, mas em todos os momentos estive atento e predisposto a acreditar em tudo, absolutamente em tudo. Há momentos de total serenidade, mas o leitor sabe que está numa montanha-russa, num sobe e desce.

Um aspecto que também é de grande interesse são as alusões ao golpe militar na Argentina, às greves, aos desaparecimentos, a um momento histórico muito conflituoso. Nossa Parte de Noite envolve muitos aspectos que não são fáceis de encadear, de unir e de dar continuidade, que ainda assim estão lá perfeitamente lançados. Uma resenhista espanhola identificada apenas como Ros, realizou o exercício de separar os vários temas extras tocados no romance. Vejamos:

— Este é um romance sobre paternidade e amor, Juan é o grande protagonista do romance, ele tem muito para nos dar. É um personagem sombrio mas também é o grande protetor do filho que ama. E, claro, seu filho Gaspar, eles são o centro das atenções em torno do qual gira o romance, embora ao seu redor haja mais pais, mães e filhos e filhas que responderão às inúmeras tramas que se desenvolverão.

— É também um romance sobre o poder, um poder necessário para exercer os ritos a que serão obrigados os personagens. Todos aqueles que fervilham em torno da poderosa família ou que atuam como anfitriões da sociedade secreta, onde tudo é possível. Eles têm poder e o exercem sem limites. Mesmo. Como ditadores.

— Mas também se desenvolve um tema muito mais gentil, que é o tema da amizade. Ela é belamente descrita e totalmente sentida por Gaspar e seus amigos que, estando juntos, viverão uma grande experiência que ficará com eles para sempre, com suas visões e seus medos.

— Também podemos falar da brutalidade, da violência, um tema que surge a cada momento. Mesmo quando parece haver paz e tranquilidade, ela volta, aparecendo sem que percebamos e é uma violência que sempre deixa vítimas. É terrível. Todos e cada um dos personagens do romance, os mais novos e os mais velhos, sofrem com isso. Corpos aparecem mutilados, torturados, desaparecidos, estuprados…

— É um romance sobre a crueldade e a vontade incontrolável de exercê-la, mas, acima de tudo, haverá a luta, o conflito interno contínuo e diário, para que ela não aconteça. Isso se desenvolve em Juan e, claro, em seu filho Gaspar, porque é a herança familiar que ele lhe deixou.

— E acima de tudo há também a Argentina, as ditaduras e as grandes famílias que mexem os pauzinhos, que matam e nada acontece. Para isso há o mais importante, o que não devemos perder, a existência e a exigência da memória. O paralelo é evidente entre os rituais da Ordem e o que acontecia na Argentina.

Mas ainda há muito mais, tudo perfeitamente regido por Mariana Enriquez, juntando-se e encaixando-se à perfeição.

No final… Bem, não vou contar. O final é sensacional.

Mariana diz que uma de suas inspirações foi Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato. Realmente, sua atenção aos fatos da história argentina mostra que “a vida é um conto de terror”, como no livro de Sábato… Admiradora de Lovecraft, Stephen King e Cormac McCarthy e dizendo ser uma pessoa normal, que tem medo do desconhecido, da morte e da violência, ela nos mostra que o medo que está na página seguinte é o mesmo que podemos encontrar ao dobrar a esquina, só que este será sem arte.

Obs.: Mariana também disse que teve de fazer uma séria curadoria em suas obsessões para escrever o romance. Teve que dosar poesia, música, ocultismo, homens bonitos, doenças, cultos pagãos, sexualidade não normativa… Tudo para que as coisas não saíssem fora de controle. Não saíram.

Mariana Enriquez (1973)

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Mariana Enriquez

Mariana Enriquez

Eu adoro a escritora argentina Mariana Enriquez. Mas custei a entrar em sincronia com seu livro Nossa Parte de Noite.

Sou um sujeito que não consegue levar a sério o sobrenatural, seja ele em filmes, em livros ou nas formas mais comuns do catolicismo, islamismo, neopentecostalismo, etc. Falou em magia, milagre, vida depois da morte ou em entidades, deu pra mim.

Então, me raciocinei todo e passei a encarar aquilo que de inexplicável acontecia como um elemento do terror muito próprio da autora. Isto é, relaxei e a coisa começou a funcionar.

Acho que nunca esquecerei os últimos capítulos que li do livro — não cheguei à metade de suas 541 páginas. São maravilhosos.

 

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Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez

Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez

Os perigos de fumar na cama (2009) é o primeiro livro de contos publicado na Argentina por Mariana Enriquez. Conheci esta notável escritora através de outro livro de contos As coisas que perdemos no fogo, de 2016. No Brasil, As coisas foi um livro que sumiu, graças à editora Intrínseca. A não reimpressão do livro tornou-o uma raridade que hoje custa de mais de R$ 200 na Estande Virtual. Pelo mesmo caminho irá seu extraordinário romance Nossa Parte de Noite, que está desaparecendo. Ao que tudo indica, o mesmo acontecerá com Os Perigos… No meio do ano, ele desaparecerá e não haverá Madre de la Plaza de Mayo que o fará reaparecer. Tudo obra da mesma editora, que não costuma manter seus livros em catálogo por muito tempo e que parece desconhecer que a “curva de vendas” de um livro de qualidade é muito diferente de outros.

Enriquez tem interessantes pontos de contato com a literatura popular. Ela é uma escritora que admira profundamente Stephen King, Lovecraft e os mestres do suspense e terror. É uma especialista no gênero. Escreve com beleza e conhece a arte de criar climas como poucos. Nada de descrições de grandes horrores, apenas a classe em montar habilmente situações que façam nossa imaginação trabalhar. E é dentro de nós que surgem os monstros. Guardadas as proporções, assim como os europeus reivindicaram Hitchcock como grande cinema quando ele era considerado um diretor eficiente em filmes de gênero, reivindico Enriquez para a grande literatura. E não estou nem um pouco sozinho nisso. Leiam o que escreveu o jornalista Guilherme Conte sobre seu romance Nossa Parte de Noite:

Nada te prepara direito para a jornada que é abrir Nossa parte de noite, estupendo romance da escritora argentina Mariana Enriquez. Você pode achar que está simplesmente lendo um livro, mas a verdade é que a história nos traz para outra dimensão ao longo de suas quase seiscentas páginas, e quando nos damos conta a vida lá fora parece algo desimportante, secundário, distante. A terrível ditadura argentina se entrelaça a monstros, sacrifícios humanos, magia, sadismo e violência, em uma história que se desenrola por três décadas. Uma saga que nos leva aos subterrâneos mais profundos e escuros do medo, que, afinal, é sempre tão grande quanto a nossa imaginação. Ninguém escreve como Mariana, e esse livro é um retrato perfeito disso.

Bem, e o que faz os argentinos escreverem tão bem? Deixemos esta questão de lado para falar um pouco do livro.

O terror de Mariana não envolve seres monstruosos e ela raramente faz uso do sobrenatural. Seu terror nasce e se insere no cotidiano. Uma viagem em família ou com os amigos pode acabar em pura angústia e medo. Uma visita à tia também. Tudo nasce da interação entre as pessoas — inveja, rancor e ódio — ou de fatos como a loucura e a esquizofrenia. É um “terror cotidiano” que invade vidas, mas Mariana não esquece que este também pode ser causado por governos e outras doenças. Sim, em suas histórias há um poderoso subtexto social, relacionando poder, loucura e ocultismo.

Dos 12 contos do livro, creio que Carne, Rambla Triste, O Carrinho, A Virgem da Pedreira e Garotos Perdidos vão custar a sair de minha combalida memória. Seus personagens não são pessoas ricas presas em seus labirintos, há muita pobreza a forçar os limites e também a atraente beleza física, a beleza da experiência e da pureza das pessoas. Mariana trabalha com mestria temas como os maus sentimentos, a tristeza e a loucura. Preparem-se.

Recomendo a todos os mentalmente fortes!

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La hermana menor, de Mariana Enriquez

La hermana menor, de Mariana Enriquez

La hermana menor é um tremendo livro. Seu subtítulo é Un retrato de Silvina Ocampo e, obviamente, trata-se exatamente disso, de uma biografia. E esta é contada com extremo virtuosismo pela grande escritora e ficcionista Mariana Enriquez, que também é jornalista das boas, sendo subeditora do ótimo Página/12. A propósito, é claro que Silvina é o grande modelo literário de Enriquez. Aqui, ela alterna narrativa, entrevistas e citações de outros trabalhos sobre Ocampo, tornando a leitura do livro realmente vertiginosa. Suas aspas e os trechos das entrevistas jamais parecem excessivos, tudo contribuindo para a faceta de Silvina descrita em cada capítulo (e estes têm títulos memoráveis). As facetas são muitas: a tímida, a original, a sarcástica, a que se compraz com o absurdo ou o nojento (às vezes, com o sofrimento alheio), a endinheirada, a que sofre traições por parte do marido Bioy Casares, a que trai, a amiga de Borges, a péssima cozinheira, a muito excêntrica, a medrosa, a paranóica, a grandíssima contista e poeta.

Tudo inicia com a menina Silvina encarapitada sobre uma árvore esperando os mendigos. Sim! E é da infância que parece vir a maioria de suas histórias, com crianças cruéis, crianças assassinas, crianças suicidas, crianças maltratadas, crianças incendiárias, crianças perversas, crianças que não querem crescer, crianças que nascem velhas, meninas bruxas, meninas videntes. Seu primeiro livro de contos, Viaje olvidado (1937), traz uma infância deformada e recriada. Sua irmã mais velha, a autoritária e quase inimiga Victoria, diz que este livro é um similacro do que foi a infância de Silvina, seria a “aparição de uma pessoa disfarçada de si mesma”. O último, publicado postumamente em 2006, é uma autobiografia infantil. Não há época que a fascine mais, não há tempo que lhe interesse tanto.

A primeira coisa que pensamos é que a criança Silvina poderia dialogar muito bem com as crianças que habitam as histórias de horror de Mariana Enríquez… Mas deixemos isto de lado. Enríquez escreve seu retrato deixando que a própria escritora conte a história, com sua própria voz. E simultaneamente, com grande precisão, disseca e escolhe citações entre montes de testemunhos, biografias, estudos críticos, entrevistas, cartas, para reconstruir uma vida marcada pelo estranhamento, criadora de uma obra selvagem, escrita numa época em que Silvina não encontrou o lugar que desejava, pois nos anos 50 aos 70 havia que ser realista e político… Só nossa época trouxe luz para Silvina Ocampo.

Enriquez iguala as vozes autorizadas de escritores e críticos com outras, como a do homem que engraxava os sapatos de Bioy Casares ou o dono do armazém que vendia coisas para ela. É uma heterogênea biografia-coral que funciona maravilhosamente.

A princípio, Silvina ficou obscurecida pela fama de Bioy Casares e Jorge Luis Borges. O trio jantou  junto por anos e anos. Reza a lenda que a maioria absoluta dos jantares consumidos por Borges em toda sua vida aconteceram na casa dos Bioy. Ou seja, eles se encontravam praticamente todas as noites para comer a mesma comida ruim, e isto não é uma metáfora. Hoje, Silvina Ocampo ressurgiu e está mais próxima do lugar que merece. Enriquez não cita, mas é claro que Silvina — irmã menor de seis irmãs — é sua irmã literária mais velha, sendo a autora da biografia a menor. Ou a mais nova.

Importante: A editora Relicário está traduzindo a obra para o português e o livro deve ser lançado ainda em 2022. 

Mariana Enriquez (1973)

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Todo o Salinger com desconto na Bamboletras e mais Mariana Enriquez e Sapatas

Todo o Salinger com desconto na Bamboletras e mais Mariana Enriquez e Sapatas

A newsletter de amanhã da Bamboletras.

Olá!

Nesta semana temos 3 sugestões matadoras, por assim dizer — pois matador é o nosso presidente, né? Imaginem: toda obra de Salinger com desconto, um romance premiado da fantástica (em todos os sentidos) Mariana Enriquez e mais o essencial de Alison Bechdel. Sim, exageramos, mas este é nosso papel. Fazer o quê?

Boa semana com boas leituras!

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O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger (Todavia, 255 páginas, de R$ 59,90 por R$ 50,90)

Neste mês, este clássico do século XX completou 70 anos. E, bem, a Bamboletras está dando 15% de desconto em toda a obra de Salinger. O recluso autor escreveu apenas 4 pequenos livros, mas que livros! São eles O Apanhador, Nove Histórias (maravilhoso), Franny e Zooey e Erguei bem alto a viga, carpinteiros & Seymour — Uma introdução (igualmente imperdível!). Sobre O Apanhador: é Natal e Holden Caulfield conseguiu ser expulso de mais uma escola. Com uns trocados e seu indefectível boné vermelho de caçador, o jovem traça um plano incerto: vagar três dias por Nova York, adiando a volta à casa dos pais. Seus dias e noites serão marcados por encontros confusos, e ocasionalmente comoventes, brigas e dúvidas que irão consumi-lo. Acima de tudo, paira a inimitável voz de Holden, o adolescente raivoso e idealista que quer desbancar o mundo dos “fajutos”, num turbilhão de ressentimentos, humor, frases lapidares, insegurança, bravatas e rebelião juvenil. Esta edição brasileira tem tradução de Caetano W. Galindo e, pela primeira vez, traz a capa original de seu lançamento.

Nossa Parte de Noite, de Mariana Enriquez (Intrínseca, 544 páginas, R$ 79,90)

Quem leu o esplêndido As coisas que perdemos no fogo sabe da alta qualidade da prosa da argentina Mariana Enriquez. Nossa parte de noite ganhou na Espanha o Premio Herralde de Novela e o Premio de la Crítica 2019. Um pai e um filho cruzam a Argentina de carro, de Buenos Aires até as Cataratas do Iguaçu, na fronteira com o Brasil. São os anos da ditadura militar argentina, soldados armados estão no controle e o ambiente é de tensão. A mãe do garoto Gaspar morreu em circunstâncias obscuras, em um suposto acidente. O terror sobrenatural se mistura com terrores bem reais neste romance deslumbrante — em casas cujos interiores sofrem mutações, passagens que escondem monstros inimagináveis, rituais com sacrifícios humanos que envolvem êxtase e dor, andanças na Londres psicodélica dos anos 1960, fetiche por pálpebras humanas, liturgias sexuais enigmáticas e a repressão da ditadura, os desaparecidos, a chegada incerta da democracia e os primeiros casos de aids em Buenos Aires. Um romance que amedronta e envolve na mesma medida. Mariana Enriquez nasceu em 1973 em Buenos Aires. É jornalista, subeditora do jornal Página/12 e professora.

O Essencial de Perigosas Sapatas, de Alison Bechdel (Todavia, 395 páginas, R$ 109,90)

Ao longo de mais de duas décadas, Alison Bechdel, autora da premiada graphic novel Fun Home, levou a vida de Mo, Lois, Ginger, Sparrow e de suas amigas a dezenas de jornais. Narrada como uma novela ilustrada, a história se passa em tempo real: as personagens se conhecem, se apaixonam, atam e desatam relacionamentos, trocam de empregos, envelhecem, e suas vidas ao longo de vinte anos refletem as mudanças sociais, culturais e políticas contemporâneas. Selecionadas pela autora, as tiras de O Essencial de Perigosas Sapatas dão a medida do impressionante escopo do trabalho de Bechdel.

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Este é o mar, de Mariana Enriquez

Este é o mar, de Mariana Enriquez

Depois do excelente livro de contos As coisas que perdemos no fogo, Mariana Enriquez retorna com o romance Este é o mar, que não chega aos pés do citado livro de contos.

Este é um romance que gravita entre o terror, o gótico e o fantástico. Helena é uma das deusas (digamos assim) que cria lendas do rock. Quem facilitou a morte de John Lennon fazendo-o caminhar sozinho na rua, criando a lenda? Ora, uma deusa como Helena. Quem fez Kurt Cobain ficar dias em casa antes de sua morte? Ora, outra deusa. E quem criou a lenda de Jim Morrison, matando-o em Paris? Outra coleguinha de Helena. E Sid Vicious? E Elvis?

Helena converte-se em secretária de James Evans, vocalista e compositor da banda Fallen, e o acompanha a toda parte. Ele é um mega sucesso mundial. E Helena vai matá-lo, claro. Após uma turnê-recorde de 350 shows, após Helena auxiliá-lo — sem ele saber, claro, porque ela tem super-poderes — a escrever lindas canções que faziam o público suspirar e as mulheres gritarem histericamente nos concertos — elas são chamadas de Enxame –, enfim, após levá-lo ao Olimpo, ela vai torná-lo uma lenda.

Enriquez adora uma historinha macabra. Também curte o fantástico. Ela penetra sem maiores problemas em um território pouco explorado pela literatura latino-americana. O livro é sombrio, mas não tão perturbador quanto deveria, apesar da enorme turnê, das overdoses, das pastas com quatro mil e quinhentas horas de arquivos cheios de imagens, shows e entrevistas, do amor doentio por uma banda e seu líder, do isolamento deste.

Há a luta para se tornar o fã mais fiel. Há meninas dispostas a morrerem com a imagem de seu ídolo e o estômago cheio de comprimidos. Há também a história do mundo dos seres que conspiraram para que Cobain, Vicious, Morrison, etc. morressem de repente, fazendo sofrer milhões da fanáticos.

A ideia é gótica. A execução é boa. O livro é médio.

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Mariana Enríquez: “Eu daria o Prêmio Nobel a Stephen King”

Mariana Enríquez: “Eu daria o Prêmio Nobel a Stephen King”

A autora de As coisas que perdemos no fogo e Este es el mar e participará do Segundo Encontro de Literatura Fantástica, em Santiago e Punta Arenas.

Por Javier GarcíaNo Culto — Suplemento Cultural do jornal La Tercera (Santiago, Chile)

Foto: Divulgação

Em meados de maio, Mariana Enríquez (46) viajou para um festival de escritores em Praga, República Tcheca. A autora argentina aproveitou para frequentar os lugares onde predominam cruzes e flores. “Fui ao antigo cemitério judeu e ao novo cemitério judeu onde fica Kafka”, conta ao telefone de Buenos Aires.

Renomada romancista, elogiado especialmente por suas histórias de horror, entre suas últimas publicações está Alguien camina sobre tu tumba, publicado pelo selo Montacerdos no Chile, em 2018. O volume é um conjunto de crônicas de cemitérios, localizados na Argentina, Peru, Cuba, França, Itália e Estados Unidos.

No final do volume há um epílogo que nomeia os cemitérios “que eu quero ver antes de morrer”. Um deles é chamado Kutná Hora. “É muito interessante, é cerca de 30 quilômetros de Praga, onde o Ossuário de Sedlec é, é uma igreja onde toda a sua decoração é feita de ossos. Mas desta vez eu não pude ir por tempo. Haverá uma nova oportunidade”, diz Enríquez, que está visitando o Chile esta semana.

Autora de títulos como As coisas que perdemos no fogo (2016) participará do II Encontro de Literatura Fantástica. Organizado pela Faculdade de Letras da Universidade Católica, terá palestras e leituras entre amanhã e sábado 8 de junho, em Santiago e Punta Arenas.

Como surgiu o interesse pelos cemitérios?

Eu sempre gostei deles. Em geral, tenho uma tendência estética para coisas um pouco macabras, literatura e filmes de terror. Mas decidi escrever com meus diários e dados sobre cemitérios, acho que tem a ver com a história de um amigo. Sua mãe estava desaparecida pela ditadura argentina e ele recuperou seus ossos e foi capaz de enterrar sua mãe. Então comecei a perceber que o meu fascínio por tumbas e cemitérios tem muito a ver com a minha história e a história da Argentina.

Você participou do livro de ensaios The King, bienvebido al universo de Stephen King (2019) …

O editor me perguntou. King é um autor extremamente popular e ainda não tem o reconhecimento literário que deveria ter. Ele é um dos melhores escritores no momento. Eu escolhi escrever sobre mulheres no trabalho de King. Nesse sentido, ele é muito corajoso, quebra essa regra desajeitada que um homem não pode escrever sobre as mulheres. E ele faz isso muito bem, como Annie Wilkies, a protagonista de Misery.

Para a academia, ele não é um autor altamente valorizado…

Eu acho que nunca receberia o Prêmio Nobel, mas é injusto. Eu daria o Prêmio Nobel a Stephen King. A qualidade literária é algo difícil de determinar. King escreve em vários gêneros, terror, polícia, fantasia… No twitter, ele está sempre recomendando livros. Ele é um homem que vive da literatura e que ensinou a ler uma geração. Lembro-me de quando a garota lia suas epígrafes, onde nomeava outros escritores. Eu construí um guia de leitura a partir dele.

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As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez

As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez

As coisas que perdemos no fogoAs coisas que perdemos no fogo entrou para a lista de melhores livros de 2017 do Sul21. Dizem alguns amigos que a literatura argentina é, disparada, a melhor do mundo. E isso aconteceria há várias décadas.

Pois bem, este livro de Mariana é um exemplo que dá força a tal afirmativa. As coisas não é um livro de peso filosófico e muito menos erudito. Trata-se de contos magnificamente bem escritos (traduzidos por José Geraldo Couto) que oscilam entre a crítica social e o puro terror a la Stephen King. E é originalíssimo. E um belo exemplo de que a literatura popular também deve ser boa.

São doze contos, alguns realmente espetaculares. Outros têm o mérito de mostrar o mais desbragado terror misturado à realidade contemporânea da América Latina. Mariana Enriquez foi uma adolescente “leitora de Stephen King, das irmãs Brontë, de Ray Bradbury e de escritores de terror avulsos, surripiados entre nas livrarias de livros usados – além das histórias de fantasmas contadas pela avó, cheias de religiosidade misturada com superstições e criaturas assustadoras“. Não há melhor descrição para o que lemos. Apenas acrescentaria que os personagens vivem realidades muito próximas da nossa aqui no Brasil, o que torna tudo muito familiar, apesar do humor tipicamente platino.

O livro abre com o melhor conto do volume, O Menino Sujo, onde se tem um leque de temas bem construídos. A incapacidade para ajudar, a pobreza, um país sem direção, um auto-retrato da autora — ela mesma sub-editora do Página/12 e que se acha muito provocadora, bacana e rebelde, quando é apenas impotente.

A qualidade não cai. Em Teia de Aranha temos um retrato de macho realmente repugnante, Pablito clavó um clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo é absolutamente assustador, Sob a Água Negra traz uma juíza visitando uma favela e As coisas que perdemos no fogo é surreal. Todos são arrebatadores.

Como disse, o ambiente é 100% latino-americano. Há a nossa noção difusa de moral, as pessoas que se preocupam com os pobres batem de cabeça nas mais incríveis impossibilidades, a pobreza faz tudo para isolar-se e todos parecem estar (e viver como) loucos. Neste livro não há nenhum final feliz e quando não estamos falando de nosso continente, ouvimos a banda tocar a marcha do macabro, do bizarro e do apavorante.

Um livro sombrio, contemporâneo e muito, muito bom.

Recomendo.

Mariana Enriquez
Mariana Enriquez

Livro comprado na Bamboletras.

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