Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Assinado sob o pseudônimo de Paula Ledesma, Nossa Parte de Noite juntou-se a mais de 650 outros originais apresentados à seleção de 2019 do Prêmio Herralde de Romance — uma das mais importantes premiações da literatura de língua espanhola. A história acompanha pai e filho cruzando a Argentina de carro sob os olhos de soldados armados, no ambiente da ditadura militar, despertando interesse e aflição. Há ocultismo, ocorrem coisas inexplicáveis e é impossível parar de lê-lo. O livro tem, ao mesmo tempo, várias narrativas e impressiona pelo domínio com que Mariana Enriquez constrói o enredo em várias direções e contextos. Ela ganhou o prêmio, claro, foi a primeira mulher a fazê-lo.

Bem, a maior parte do romance trata de temas que não são de minha preferência, porém, já disse, não parei de ler, não poderia largar.

Gaspar é o filho de Juan Peterson. O pai, em solitária cruzada, trata de proteger seu filho do destino que lhe foi designado. A mãe do menino já morreu em circunstâncias obscuras. Gaspar, como seu pai fora, recebeu um chamado para ser médium de uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna em rituais brutais. Para tais rituais, é imprescidível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é muito severo. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali à Argentina.

O terror sobrenatural se mistura com outros, reais. Ao lado de casas cujos interiores se transformam, de passagens perigosas, de sacrifícios em rituais de êxtase e dor, de andanças pela maravilhosa Londres dos anos 60, do fetiche por pálpebras humanas, das liturgias sexuais, há a repressão da ditatura militar, os desaparecimentos e, mais tarde, a chegada incerta da democracia e dos primeiros casos de Aids.

Nossa Parte de Noite é um livro perturbador e deslumbrante. A prosa de Mariana Enríquez é muito rica e bem trabalhada, obrigando-nos continuar e continuar mergulhado na história. A inclusão de diferentes vozes narrativas e de vários personagens muito bem definidos conferem ao tema variações e reviravoltas imprevisíveis, às vezes sufocantes… E, portanto, muitas vezes o assunto é o que menos importa. Era meu caso, eu parti de uma posição claramente cética, mas fui absorvendo uma história muito complexa e verdadeiramente estranha.

Há capítulos sobre a vida dilacerada do personagem principal, Juan Peterson, o pai de Gaspar, que vive sempre em tensão, entre doenças, operações cardíacas versus as exigências da Ordem. Sua esposa, a mãe de Gaspar, foi morta em circunstâncias nada claras. Ele tem a necessidade urgente de separar seu filho das influências da família e do tema da Escuridão, pois sabe que se não separar isso continuará com ele depois de sua morte. Quanto ao título, a noite é fundamental, há no livro uma alusão direta, num diálogo entre Juan e seu filho Gaspar, na noite em que vão deitar as cinzas da mãe em um rio. Juan, acariciando o filho, diz mais ou menos assim: “Deixei para você algo meu, espero que não seja amaldiçoado, não sei se posso deixar para você algo que não seja sujo, que não seja escuro, nossa parte de noite.”

Algo curioso aconteceu comigo durante a leitura deste livro, pois entrei e saí da atmosfera do romance sem parar, mas em todos os momentos estive atento e predisposto a acreditar em tudo, absolutamente em tudo. Há momentos de total serenidade, mas o leitor sabe que está numa montanha-russa, num sobe e desce.

Um aspecto que também é de grande interesse são as alusões ao golpe militar na Argentina, às greves, aos desaparecimentos, a um momento histórico muito conflituoso. Nossa Parte de Noite envolve muitos aspectos que não são fáceis de encadear, de unir e de dar continuidade, que ainda assim estão lá perfeitamente lançados. Uma resenhista espanhola identificada apenas como Ros, realizou o exercício de separar os vários temas extras tocados no romance. Vejamos:

— Este é um romance sobre paternidade e amor, Juan é o grande protagonista do romance, ele tem muito para nos dar. É um personagem sombrio mas também é o grande protetor do filho que ama. E, claro, seu filho Gaspar, eles são o centro das atenções em torno do qual gira o romance, embora ao seu redor haja mais pais, mães e filhos e filhas que responderão às inúmeras tramas que se desenvolverão.

— É também um romance sobre o poder, um poder necessário para exercer os ritos a que serão obrigados os personagens. Todos aqueles que fervilham em torno da poderosa família ou que atuam como anfitriões da sociedade secreta, onde tudo é possível. Eles têm poder e o exercem sem limites. Mesmo. Como ditadores.

— Mas também se desenvolve um tema muito mais gentil, que é o tema da amizade. Ela é belamente descrita e totalmente sentida por Gaspar e seus amigos que, estando juntos, viverão uma grande experiência que ficará com eles para sempre, com suas visões e seus medos.

— Também podemos falar da brutalidade, da violência, um tema que surge a cada momento. Mesmo quando parece haver paz e tranquilidade, ela volta, aparecendo sem que percebamos e é uma violência que sempre deixa vítimas. É terrível. Todos e cada um dos personagens do romance, os mais novos e os mais velhos, sofrem com isso. Corpos aparecem mutilados, torturados, desaparecidos, estuprados…

— É um romance sobre a crueldade e a vontade incontrolável de exercê-la, mas, acima de tudo, haverá a luta, o conflito interno contínuo e diário, para que ela não aconteça. Isso se desenvolve em Juan e, claro, em seu filho Gaspar, porque é a herança familiar que ele lhe deixou.

— E acima de tudo há também a Argentina, as ditaduras e as grandes famílias que mexem os pauzinhos, que matam e nada acontece. Para isso há o mais importante, o que não devemos perder, a existência e a exigência da memória. O paralelo é evidente entre os rituais da Ordem e o que acontecia na Argentina.

Mas ainda há muito mais, tudo perfeitamente regido por Mariana Enriquez, juntando-se e encaixando-se à perfeição.

No final… Bem, não vou contar. O final é sensacional.

Mariana diz que uma de suas inspirações foi Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato. Realmente, sua atenção aos fatos da história argentina mostra que “a vida é um conto de terror”, como no livro de Sábato… Admiradora de Lovecraft, Stephen King e Cormac McCarthy e dizendo ser uma pessoa normal, que tem medo do desconhecido, da morte e da violência, ela nos mostra que o medo que está na página seguinte é o mesmo que podemos encontrar ao dobrar a esquina, só que este será sem arte.

Obs.: Mariana também disse que teve de fazer uma séria curadoria em suas obsessões para escrever o romance. Teve que dosar poesia, música, ocultismo, homens bonitos, doenças, cultos pagãos, sexualidade não normativa… Tudo para que as coisas não saíssem fora de controle. Não saíram.

Mariana Enriquez (1973)

Mariana Enriquez

Mariana Enriquez

Eu adoro a escritora argentina Mariana Enriquez. Mas custei a entrar em sincronia com seu livro Nossa Parte de Noite.

Sou um sujeito que não consegue levar a sério o sobrenatural, seja ele em filmes, em livros ou nas formas mais comuns do catolicismo, islamismo, neopentecostalismo, etc. Falou em magia, milagre, vida depois da morte ou em entidades, deu pra mim.

Então, me raciocinei todo e passei a encarar aquilo que de inexplicável acontecia como um elemento do terror muito próprio da autora. Isto é, relaxei e a coisa começou a funcionar.

Acho que nunca esquecerei os últimos capítulos que li do livro — não cheguei à metade de suas 541 páginas. São maravilhosos.

 

Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez

Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez

Os perigos de fumar na cama (2009) é o primeiro livro de contos publicado na Argentina por Mariana Enriquez. Conheci esta notável escritora através de outro livro de contos As coisas que perdemos no fogo, de 2016. No Brasil, As coisas foi um livro que sumiu, graças à editora Intrínseca. A não reimpressão do livro tornou-o uma raridade que hoje custa de mais de R$ 200 na Estande Virtual. Pelo mesmo caminho irá seu extraordinário romance Nossa Parte de Noite, que está desaparecendo. Ao que tudo indica, o mesmo acontecerá com Os Perigos… No meio do ano, ele desaparecerá e não haverá Madre de la Plaza de Mayo que o fará reaparecer. Tudo obra da mesma editora, que não costuma manter seus livros em catálogo por muito tempo e que parece desconhecer que a “curva de vendas” de um livro de qualidade é muito diferente de outros.

Enriquez tem interessantes pontos de contato com a literatura popular. Ela é uma escritora que admira profundamente Stephen King, Lovecraft e os mestres do suspense e terror. É uma especialista no gênero. Escreve com beleza e conhece a arte de criar climas como poucos. Nada de descrições de grandes horrores, apenas a classe em montar habilmente situações que façam nossa imaginação trabalhar. E é dentro de nós que surgem os monstros. Guardadas as proporções, assim como os europeus reivindicaram Hitchcock como grande cinema quando ele era considerado um diretor eficiente em filmes de gênero, reivindico Enriquez para a grande literatura. E não estou nem um pouco sozinho nisso. Leiam o que escreveu o jornalista Guilherme Conte sobre seu romance Nossa Parte de Noite:

Nada te prepara direito para a jornada que é abrir Nossa parte de noite, estupendo romance da escritora argentina Mariana Enriquez. Você pode achar que está simplesmente lendo um livro, mas a verdade é que a história nos traz para outra dimensão ao longo de suas quase seiscentas páginas, e quando nos damos conta a vida lá fora parece algo desimportante, secundário, distante. A terrível ditadura argentina se entrelaça a monstros, sacrifícios humanos, magia, sadismo e violência, em uma história que se desenrola por três décadas. Uma saga que nos leva aos subterrâneos mais profundos e escuros do medo, que, afinal, é sempre tão grande quanto a nossa imaginação. Ninguém escreve como Mariana, e esse livro é um retrato perfeito disso.

Bem, e o que faz os argentinos escreverem tão bem? Deixemos esta questão de lado para falar um pouco do livro.

O terror de Mariana não envolve seres monstruosos e ela raramente faz uso do sobrenatural. Seu terror nasce e se insere no cotidiano. Uma viagem em família ou com os amigos pode acabar em pura angústia e medo. Uma visita à tia também. Tudo nasce da interação entre as pessoas — inveja, rancor e ódio — ou de fatos como a loucura e a esquizofrenia. É um “terror cotidiano” que invade vidas, mas Mariana não esquece que este também pode ser causado por governos e outras doenças. Sim, em suas histórias há um poderoso subtexto social, relacionando poder, loucura e ocultismo.

Dos 12 contos do livro, creio que Carne, Rambla Triste, O Carrinho, A Virgem da Pedreira e Garotos Perdidos vão custar a sair de minha combalida memória. Seus personagens não são pessoas ricas presas em seus labirintos, há muita pobreza a forçar os limites e também a atraente beleza física, a beleza da experiência e da pureza das pessoas. Mariana trabalha com mestria temas como os maus sentimentos, a tristeza e a loucura. Preparem-se.

Recomendo a todos os mentalmente fortes!

Todo o Salinger com desconto na Bamboletras e mais Mariana Enriquez e Sapatas

Todo o Salinger com desconto na Bamboletras e mais Mariana Enriquez e Sapatas

A newsletter de amanhã da Bamboletras.

Olá!

Nesta semana temos 3 sugestões matadoras, por assim dizer — pois matador é o nosso presidente, né? Imaginem: toda obra de Salinger com desconto, um romance premiado da fantástica (em todos os sentidos) Mariana Enriquez e mais o essencial de Alison Bechdel. Sim, exageramos, mas este é nosso papel. Fazer o quê?

Boa semana com boas leituras!

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O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger (Todavia, 255 páginas, de R$ 59,90 por R$ 50,90)

Neste mês, este clássico do século XX completou 70 anos. E, bem, a Bamboletras está dando 15% de desconto em toda a obra de Salinger. O recluso autor escreveu apenas 4 pequenos livros, mas que livros! São eles O Apanhador, Nove Histórias (maravilhoso), Franny e Zooey e Erguei bem alto a viga, carpinteiros & Seymour — Uma introdução (igualmente imperdível!). Sobre O Apanhador: é Natal e Holden Caulfield conseguiu ser expulso de mais uma escola. Com uns trocados e seu indefectível boné vermelho de caçador, o jovem traça um plano incerto: vagar três dias por Nova York, adiando a volta à casa dos pais. Seus dias e noites serão marcados por encontros confusos, e ocasionalmente comoventes, brigas e dúvidas que irão consumi-lo. Acima de tudo, paira a inimitável voz de Holden, o adolescente raivoso e idealista que quer desbancar o mundo dos “fajutos”, num turbilhão de ressentimentos, humor, frases lapidares, insegurança, bravatas e rebelião juvenil. Esta edição brasileira tem tradução de Caetano W. Galindo e, pela primeira vez, traz a capa original de seu lançamento.

Nossa Parte de Noite, de Mariana Enriquez (Intrínseca, 544 páginas, R$ 79,90)

Quem leu o esplêndido As coisas que perdemos no fogo sabe da alta qualidade da prosa da argentina Mariana Enriquez. Nossa parte de noite ganhou na Espanha o Premio Herralde de Novela e o Premio de la Crítica 2019. Um pai e um filho cruzam a Argentina de carro, de Buenos Aires até as Cataratas do Iguaçu, na fronteira com o Brasil. São os anos da ditadura militar argentina, soldados armados estão no controle e o ambiente é de tensão. A mãe do garoto Gaspar morreu em circunstâncias obscuras, em um suposto acidente. O terror sobrenatural se mistura com terrores bem reais neste romance deslumbrante — em casas cujos interiores sofrem mutações, passagens que escondem monstros inimagináveis, rituais com sacrifícios humanos que envolvem êxtase e dor, andanças na Londres psicodélica dos anos 1960, fetiche por pálpebras humanas, liturgias sexuais enigmáticas e a repressão da ditadura, os desaparecidos, a chegada incerta da democracia e os primeiros casos de aids em Buenos Aires. Um romance que amedronta e envolve na mesma medida. Mariana Enriquez nasceu em 1973 em Buenos Aires. É jornalista, subeditora do jornal Página/12 e professora.

O Essencial de Perigosas Sapatas, de Alison Bechdel (Todavia, 395 páginas, R$ 109,90)

Ao longo de mais de duas décadas, Alison Bechdel, autora da premiada graphic novel Fun Home, levou a vida de Mo, Lois, Ginger, Sparrow e de suas amigas a dezenas de jornais. Narrada como uma novela ilustrada, a história se passa em tempo real: as personagens se conhecem, se apaixonam, atam e desatam relacionamentos, trocam de empregos, envelhecem, e suas vidas ao longo de vinte anos refletem as mudanças sociais, culturais e políticas contemporâneas. Selecionadas pela autora, as tiras de O Essencial de Perigosas Sapatas dão a medida do impressionante escopo do trabalho de Bechdel.