O nome que ganhamos é pura sorte. Ou azar

O nome que ganhamos é pura sorte. Ou azar

Eu e Elena estávamos falando sobre os nomes exclusivos de algumas pessoas, como nossas queridas amigas Veronih e Nikelen, quando lembrei que meu nome — Milton Luiz — é uma junção do nome do meu pai, Milton, e do de minha mãe, Maria Luiza.

(Meu pai me contou que meu nome foi Roberto por algumas horas, mas então um amigo dele disse que Ro-Ber-To eram as primeiras silabas das 3 capitais do fascismo na 2ª Guerra, Roma, Berlim e Tóquio. Aí, um novo nome teve que ser arranjado às pressas. Bem, se não é verdade, garanto-lhes que é uma boa história para ser contada em bares. Ah, saudades dos bares!).

Então a Elena me contou que tinha uma tia chamada Marlena, um nome estranho na Bielorrússia. Era o resultado de uma junção de Marx com Lênin. E que a mãe desta Marlena, a vó Polina — aquela que cozinhava maravilhosamente –, guardava seu pouco dinheiro dentro de um livro de Lênin porque nesse se pode confiar.

OK, a Elena venceu.

 

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Eu hoje falei em Bulgákov, mas talvez não devesse

Eu hoje falei em Bulgákov, mas talvez não devesse

Eu sou uma pessoa que raramente cai, mas hoje sofri uma queda bem perigosa. Estava no estreito canteiro central da Av. João Pessoa. Caminhava na direção contrária a de um ônibus que ia para o centro. Estava de máscara e com os óculos embaçados.

De máscara e óculos, não vejo muita coisa e achava que não precisava; afinal, faço aquele caminho todo dia. Só que tropecei numa raiz de árvore e fui direto para o chão. Tudo foi súbito. Meus óculos e fones de ouvido caíram e, quando levantei a cabeça, vi o ônibus passar do meu ladinho. Meio apavorante.

Não sofri nada, não bati com a cabeça no chão, mas estou com dores musculares nas costas por ter impedido que isto acontecesse. Levantei rapidamente, senti primeiro a reclamação da barriga pela batida no chão e depois uma maior das costas, já loucas por uma contratura.

Botei os óculos, os fones e completei a caminhada de 20 min até em casa.

Quando cheguei, é claro que a Elena logo relacionou minha queda com a de Berlioz em ‘O Mestre e Margarida’. Sim, a queda que decapitou Berlioz após Ánnuchka ter derramado o óleo. Um bonde passou e…

Minha Liênatchka avisou para eu nunca mais me gabar com Bulgákov.

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“É para mim”, como disse o personagem principal de ‘A Vida dos Outros’

“É para mim”, como disse o personagem principal de ‘A Vida dos Outros’

Ego, sim. entusiasmo, não. O que não seria um problema — assim, não ia ser nada necessariamente estranho — mas ele fica dando umas indiretas imbecis de que ele é um Homem Realizado e que a gente devia ficar era bem contente de ter ele aqui no país.

J. D. Salinger — Franny & Zooey

Era uma festa em homenagem a outras pessoas, mas o discurso laudatório aos homenageados fora, na verdade, dedicado a mim, a me agredir. Enquanto ela falava, eu olhava para os lados para ver se alguém estava notando. Mas ninguém me olhava. Ninguém sequer parecia estar percebendo que o discurso não tinha a boa expressão usual. Era truncado, era uma porcaria de um discurso. Havia raiva nele. Tinha trechos que chegavam a um paroxismo solipsístico, negando a minha vida pela excelência da própria carreira. Pensei em pedir a palavra para responder que eu não tinha uma carreira, mas uma vida. Mas, pô, a festa era para terceiros, não ia ficar brigando. Ao sairmos, minha mulher disse que o discurso tinha sido muito despeitado e, na verdade, dirigido a mim. Eu neguei, imagina! Era uma festa dedicada a outros! No dia seguinte, me ligaram querendo saber porque eu fora alvo de diretas e indiretas. Nem notei, é mesmo, por quê?, respondi, já admitindo de leve as observações. Depois, claro, a vida seguiu como sempre faz e veio o silêncio, até que hoje eu li um texto sobre um caso igualzinho e lembrei do estranho episódio. Sem consequências, ainda bem.

Não, nada de nomes, amiguinhos.

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Eu, Vassily e Georges Simenon

Eu, Vassily e Georges Simenon

Até morar com a Elena, eu desconhecia o tamanho do amor de alguém por seu gato. Sempre tive cães e os adorava, mas minha estima por eles não chegava próxima do que vejo aqui em casa.

Isto só faz crescer em minha memória uma das melhores novelas que já li: O Gato, de George Simenon. O livro narra brilhantemente o inferno doméstico de um casal de idosos que briga silenciosamente em ataques indiretos um ao outro, talvez no estilo passivo-agressivo (li o livro há 40 anos, me perdoem). Eles se detestam meticulosamente. Um dia, o gato do marido aparece morto. Ele não tem dúvidas: certamente fora envenenado pela mulher. Para se vingar, ele depena o rabo da arara — bicho de estimação da mulher — que também acaba morrendo. É o fim de qualquer possibilidade de trégua. A mulher escreve um bilhete para o marido, dizendo que, por ser católica, não pediria o divórcio, mas informa que não falaria nunca mais com ele e ordena que ele também se abstenha de lhe dirigir a palavra. Começa um jogo que iria durar para o resto de seus dias. Ele se comunica com ela arremessando bilhetes, com pontaria infalível, em seu regaço. Ela, por sua vez, responde também com bilhetes deixados sobre os móveis da casa. A coisa fica numa tensão insuportável quando ele escreve “O Gato” e ela responde “A Arara”.

Agora eu sei melhor o tamanho do ódio. Eu não amo Vassily, mas sei que o menor empurrãozinho que der nele fará com que raios dos céus se dirijam à minha cabeça. Eu amo o Vassily.

Georges Simenon (Liège, 1903 — Lausanne,1989)

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A Elena diz que eu tenho um esplêndido ouvido, mas hoje…

A Elena diz que eu tenho um esplêndido ouvido, mas hoje…

Bem, botei um CD pra tocar e ela logo perguntou se o Quarteto era o Borodin. É que ela tinha ouvido um solo de violino que lhe sussurrara qual era o Quarteto. Mas era o Quarteto Kopelman. Só que Mikhail Kopelman foi por anos o primeiro violino do Borodin.

Assim eu não brinco mais. 

Mikhail Kopelman

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Quem não tem cão, caça com (ou como) gato

Quem não tem cão, caça com (ou como) gato

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6 anos e cinco meses com Elena

6 anos e cinco meses com Elena

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Um abuso (ou quase)

Meu pai era um dentista de conversa leve e cômica. Mesmo quando se irritava era leve. Jamais sairia falando sobre ABUSO. E ele era engraçado. Mesmo sério era engraçado. Quando minha irmã, aos 15 anos, disse que estava namorando, ele respondeu “Mas é platônico, não?”. Isso tornou-se uma clássica piada familiar. Mas eu estava dizendo que ele tangenciava e evitava os papos mais difíceis e que por isso não falaria sobre abuso.

Porém, na noite em que eu — tinha uns 8 anos (1965) — estava passeando com o cachorro e depois saí numa fuga a toda velocidade porque um sujeito sentado numa mesa de bar primeiro puxou conversa, depois acariciou minhas pernas e pegou na minha mão, algo me disse que devia falar com ele. Entrei em casa ofegante e contei o acontecido. Ele me olhou com a maior calma e perguntou:

— Foi só isso?
— Foi.
— Mão nas pernas e depois na tua mão?
— Sim.
— Tu reconheceria o sujeito?
— Reconheceria.
— Então, se a gente cruzar com ele, me mostra.
— Mostro.

E ele me olhou fixamente.

— E nunca mais chega perto ou fala com esse cara.

Meses depois, eu mostrei o cidadão para o pai.

— Mas ele é meu cliente! Incrível.

Um tempo depois ele me disse que o tal cliente tinha marcado hora.

— Vou falar com ele.

Com o sujeito de boca aberta, meu pai disse que tinha um filho que levava nosso cãozinho para fazer xixi na rua, às vezes à noite, que eu devia passar perto do bar tal. E que…

— Essa cárie está muito infectada. Acho que vai doer. Muito. Demais.

Meu pai ria dizendo que o sujeito suava e suava. E que sumiu depois desta consulta.

(Só eu, ele e minha mãe soubemos dessa história. Nada de escândalos).

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Elena em São Paulo

Elena em São Paulo

As fotos são minhas.

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Aniversário 2019

Aniversário 2019

Como este ano não deu para fazer uma festa de aniversário — muito trabalho no dia 19 — fizemos um pequeno e improvisado encontro familiar entre a Lancheria do Parque e o Café Cantante.

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Sim, Elena e eu nos casamos no dia 24

Sim, Elena e eu nos casamos no dia 24

A primeira vez foi quando nós tivemos que preencher um cadastro qualquer e achamos estranha a palavra “Divorciado(a)” aplicada a nós. Como assim? Nós éramos “Namorados”. Ademais, eu fiquei poucos dias divorciado. Um mês depois de assinados meus papéis, já namorava a Elena. Divorciado mesmo foram umas poucas semanas. O caso dela é ainda mais diminuto. Ou nem ocorreu. Ela estava separada quando começamos, mas a oficialização de seu divórcio aconteceu depois de nosso namoro começar. E acho as expressões Minha Namorada e Meu Namorado o máximo. Bah, aquele Divorciado incomodava.

Então, como somos grudados, como temos muito em comum e o incomum é tolerado, resolvemos acabar romanticamente com aquele falso Divorciado(a).

Drummond disse que “Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar”. Ele tem razão. Então eu só posso falar de mim e que eu acho que às vezes dá certo juntar dois estranhos ímpares. (O próprio poeta foi casado por 52 anos com D. Dolores). E, afinal, quem sabe contar histórias em três capítulos pra ela? Eu, né? Quem mais acorda ela dizendo Vô fazê café pá ti? Eu! E quem a ama minuciosa e integralmente? Ah, sei lá se eu mereço ter sorte na vida.

Sim, sorte. A sorte de estar apaixonado nesta idade e de ter ao lado a Elena. Sorte, entendem?

(Primeira foto: Eu e Elena no cartório, é de Nikolay Romanov. As outras são de Augusto Maurer).

E agora dois belos poemas que recebemos nos comentários do Facebook.

Para ler de manhã e à noite

Aquela que eu amo
Disse-me
Que precisa de mim.

Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morto
Por uma só gota de chuva.

Bertolt Brecht

.oOo.

Fantasmagoria

Tinha deixado o amor de fora
como coisa prosaica, banal
cultivada por gentes de ideais
tão à mão quanto os fantasmas
de ocasião.

Ficou melhor assim, como está:
do lado de dentro

Marcos Nunes

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Dia dos Namorados

Dia dos Namorados

Hoje é o Dia dos Namorados e eu tenho a melhor de todas, desculpem.

Um amigo me dizia que a beleza dói. Doeu fundo quando eu vi a Elena pela primeira, segunda, terceira vezes. Dói de vez em quando ainda.

Meu pai dizia que há pessoas cuja inteligência é tanta que parece que lhes vai derramar pelos olhos. É o caso.

Eu digo que há vozes que se acomodam no ouvido da gente e que a gente não se incomoda jamais com elas. É o caso.

E só no dia de hoje soube o real significado da palavra “borogodó”. Tomem de relho na paleta, pois ela significa “atrativo pessoal irresistível”. E ela foi usada para referir-se a Elena. E não por mim.

Vocês sabem que eu sou um pobre diabo — então, o que sobra para mim?

Ora, dizer a ela como ela é (pois a moça insiste em ser modesta e em sempre me olhar como dissesse absurdos), pensar na minha incrível sorte, fazer carinho, café, arrumar a cama, lavar a louça, passar o aspirador na casa, acompanhá-la. Daqui a pouco vou buscá-la porque está ensaiando.

Como deixar minha namorada cheia de borogodó aí sozinha pela rua?

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Eu e Elena

Eu e Elena

Primeiro, eu vi Elena com seu violino na Ospa e fiquei boquiaberto. Como ela é linda! Eu não sabia que ela lia o meu blog, que ainda existe — como iria imaginar? Depois, há exatos 9 anos, ela me pediu amizade no Face e começamos uma educada querelinha sobre música. Quando conversamos ao vivo, fiquei duplamente besta. Muito inteligente, bela voz, uma piadista de primeira. Sou um idiota sonhador e sempre acreditei que acabaríamos juntos. Às vezes acerto.

Fico sempre muito feliz ao vê-la, o que ocorre a toda hora. Por exemplo, se eu for na sala agora, ela estará vendo SVU. Se o filme não estiver muito tenso, vai sorrir pra mim.

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Minha mãe e o Gre-Nal

Minha mãe era muito supersticiosa. Ela achava que a primeira camiseta que visse na rua, em dia de Gre-Nal, seria a do time vencedor. Estou meio febril há dois dias e não sei a que horas saio hoje. Nem se saio. Mas, mesmo sem acreditar na coisa, fico na expectativa. Quando sair vou ficar olhando para todos os lados até ver a primeira.

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Minha cueca de zebrinha

Pois então eu disse para minha Adorável Irmã que me enchia o saco, perguntando insistentemente o que eu queria:

— Me dá uma roupa qualquer de aniversário.

Ela obedeceu. Trouxe uma camisa bem legal e uma cueca de zebrinha. A cueca era uma brincadeira, é claro. Ou não, pois não sei a que gênero de fetiches a Adorável é aficionada. Examinei a cueca. Era uma boa cueca, não era fio dental nem tanga, era até bem grandona, de um modelo que acho que chamam de boxer, mas era de zebrinha…

Tudo bem, guardei a cueca. Só que comecei a usá-la no dia-a-dia. O tecido era muito bom, agradável ao toque e não apertava, uma maravilha.

Minha ex-mulher dizia para eu não sair na rua porque

— imagina se tu sofres um acidente e tiram as tuas calças? O que vão pensar?

Nem presumo que tipo de acidente me obrigaria a tirar as calças, porém fiquei fantasiando a cena: eu caído no meio da rua após um atropelamento, um popular resolve me tirar a roupa para que eu fique mais arejado e…

— nossa…
— que selvagem…,
— hummm…
— será que é comestível?

E eu agonizando no meio da rua enquanto ouvia as piadas.

Bom, vocês então já sabem que eu usava a cueca de zebrinha por aí. Então, certo dia, eu e minha ex-mulher íamos a um concerto. A combinação era de que eu a pegaria no escritório e dali iríamos direto. Muito bem. Quando cheguei de carro ao prédio, telefonei para ela, que respondeu aos gritos e com voz de choro.

— Estourou um cano aqui na sala, estou sozinha. Busca um tampão numa ferragem e corre aqui de volta!!! Te apressa, é uma tragédia!!!

Dez minutos depois, lá estava eu com vedante e tampão. A sala era uma bósnia. Vocês sabem como são os prédios antigos: há registros que não funcionam, outros que não desligam nada, tubulações que não dão em lugar nenhum — parece Escher — e, na cozinha do escritório, havia uma torneira de plástico preto que dava no exato lugar onde, em tempos imemoriais, talvez houvesse uma pia ou um tanque. Minha ex batera sem querer com o braço na torneira e ela simplesmente estava colada e… Saiu voando! Uma beleza a força do jato, todo o escritório estava com um dedo de água e eu concluí que aquele dedo d`água causaria aos móveis outra tragédia, esta financeira. Fui ao banheiro, tirei os sapatos, as meias, a camisa, as calças e voltei com aquele ar temático para a cozinha. Isto é, era uma zebrinha. Descobri, tomando um dos maiores banhos de minha vida, que a parte da torneira que ficara dentro do cano estava toda untada de cola e que não sairia assim no mais. Procurei alicate, não havia; procurei chave-de-fenda, nada; tentei com facas, banho. Chamamos então o Pingo, nosso faz-tudo.

Enquanto isso, pus-me a trabalhar. Abri os ralos que havia por perto, peguei um rodo e comecei a direcionar o rio para aqueles locais. Um tremendo sucesso: mesmo com o jato ativo, a quantidade que eu lograva fazer ir pelos ralos era maior. Suava feito um estivador, mas meu bom humor estava de volta em função de ter provado àquela porra de jato d`água que eu era maior e mais forte. Ah, a alegria das tarefas braçais bem realizadas, feitas sem um nada de cérebro!

Foi quando tocaram a campainha da porta. Berrei para a minha ex atender. Devia ser o Pingo. Ouvi vozes. De mulher. Então, ela entrou na cozinha com a vizinha de baixo, uma chilena chamada Nila, enquanto eu jogava água para todos os lados vestido apenas com a cueca de zebrinha. Claro, ninguém tem nada a ver com as cores de minhas cuecas, mas… Bem, já é estranho a vizinha de baixo de um edifício de escritórios nos ver de cuecas se não temos relação mais íntima, contudo é para lá de estranho que em nosso primeiro contato sejamos tão esclarecedores sobre nossas preferências. E, vocês sabem, sou um sujeito sério, erudito, metido a intelectual, não é legal que logo a pessoa mais fofoqueira do prédio me pegue em trajes tão significativos. Ela foi embora com inédita rapidez, sem mesmo dizer oi nem tchau, como se tivesse visto uma cena pornográfica ou uma barata verde-limão. Eu fiquei irritadíssimo. Como é que foi autorizada a entrada de estranhos durante meu trabalho?

Como vingança pelo ato falho, tirei as cuecas e passei a mandar água para o ralo sem roupa nenhuma. Aí me veio a ideia de pegar um pau qualquer, fazer uma ponta levemente crescente nele, enrolá-lo num pano e depois metê-lo no cano. A raiva nos faz pensar, viram? E não é que o jato estancou? Pude então ir mais longe do que a cozinha e empurrar a água que estava no resto do escritório para os ralos. Mais suor e mais sucesso. Então, minha querida ex-esposa, ela de novo, que fora fazer relações públicas pelo prédio a fim de não brigar comigo, entrou na sala com outra vizinha, esta muito mais respeitável, a D. Rose. As duas puderam avaliar minha genitália, mas creio que viram melhor o traseiro, tal a velocidade com que retornei à cozinha.

Depois, o Pingo chegou e arrumou tudo, rindo de nossas histórias. Levamos o Pingo em casa e acabamos no cinema. Eu com minha roupa inteiramente seca, ela toda molhada. Fiquei preocupadíssimo.

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Árias de Bach

Estava caminhando para a Livraria Bamboletras ouvindo umas Cantatas de Bach — mais exatamente a BWV 154 — quando lembrei de um momento de minha adolescência. Estava sentado na cadeira de balanço que tinha no quarto de meus pais, ouvindo uma de minhas primeiras Cantatas, quando me dei conta de que as árias que as formavam eram canções, mais ou menos como as que faziam Chico Buarque, Caetano, Lennon e McCartney, etc. Havia um incrível sol matinal entrando pela janela e eu me balançava ao ritmo da música, provavelmente.

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Um ano de Bamboletras

Um ano de Bamboletras

Hoje, 12 de março, faz um ano de uma de minhas maiores loucuras, a de me tornar livreiro aos 60 anos. Se era um sonho antigo, também era um daqueles que todo mundo tem em devaneios irrealizáveis. Às vezes pensava em me tornar um velhinho de óculos vivendo em meio aos livros… E ia fazer outra coisa. Neste último ano, várias pessoas me cumprimentaram pela coragem. Não me acho corajoso. Apenas corri atrás quando soube que a Lu queria repassar a livraria a quem a mantivesse. E larguei a atividade de jornalista sem olhar para trás. A Elena ri, diz que eu garanti uma terapia ocupacional vitalícia, o ideal para quem nunca pensou em se aposentar. Ela está certa. Mas olha, jamais pensei que desse tanto trabalho. É claro que há uma maioria esmagadora de bonitos momentos atrás do balcão, mas há também um intenso trabalho de retaguarda que aprendi do zero.

Auden escreveu que “Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar”. Talvez por não haver tédio nem horror, apenas necessidade e liberdade, virei livreiro e não dono de bar, sei lá.

A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre. A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre criado com extremo cuidado e carinho pela Lu Vilella. Digo-lhes claramente que virei um livreiro por herança. Tentei preservar o estilo ao máximo, mas inevitavelmente uma nova cara deve ter aparecido.

Sim, nosso acervo é escolhido criteriosamente e não apenas recebido; sim, ficamos felizes quando um cliente retorna e diz que nossa última sugestão foi fantástica e que o livro era ótimo (conhecemos o que vendemos); sim, há muita tensão em razão do mercado instável; sim, as distribuidoras querem nos enfiar best sellers; sim, vocês pedem e a gente vai atrás e muitas vezes dá certo (a gente se orgulha), outras vezes não (contrariedade); sim, estamos com todas as contas em dia mas não pensem que sobra muita coisa (a gente realmente quer ver vocês nos visitando mais, sabe?); sim, coloquei a herança da minha mãe na compra da livraria; sim, ainda estamos pagando a citada ex-dona que deixou a Bamboletras assim tão linda (fazemos isso direitinho); sim, fizemos e fazemos parcerias com escritores, instituições, artistas e bares; sim, vamos atrás dos melhores lançamentos às vezes enchendo o saco de meio mundo (às vezes, receber uma reposição ou livros para um evento mais parece um thriller); sim, visitamos as distribuidoras para escolher as obras uma a uma e… Não, não pretendemos ser menos exigentes.

A Bamboletras não sou eu, é uma equipe. Tem a Bárbara, a Cacá, a Eliane, o Gustavo, a Zair. E durante o ano ainda tivemos a Ana, a Josi e a Vitória. É uma baita equipe e falo da qualidade. Agradeço a todos.

Só não pensem que é fácil. Aliás, qual é o trabalho sério que é fácil? Porém é também divertido, estou muito feliz.

Ah, dia 24 de abril faremos 24 anos sempre independentes e agora, devido à circunstâncias que não vamos citar para não emporcalhar este texto pobre mas limpinho, também resistentes.

Particularmente, agradeço à Elena, à Bárbara, ao Bernardo e à Iracema pelo apoio neste ano e nos que virão.

E também a todos os que nos visitam e que apreciam nosso trabalho.

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2018

2018

Acho que 2018 foi um mau ano para quase todos nós. Porém, para mim, foi principalmente o ano de uma grande virada que vai dando certo até agora. Nos primeiros dois meses do ano, eu estava trabalhando como jornalista e gostava do que fazia, mas… Lembro bem que no final em dezembro de 2017 fui até a Bamboletras, claro, a fim de comprar presentes para uma amiga que faz aniversário em 1º de janeiro. Nada me faria crer que, dois meses depois, estaria comprando a livraria.

Foto: Bárbara Jardim Ribeiro

Pois é, quase que por brincadeira, disse para a dona e fundadora da Bambô que queria comprar aquela maravilha.  A bravata foi ouvida com inesperada seriedade, pois a Lu Vilella não somente queria vendê-la, mas desejava que a livraria seguisse nas mãos de um amante de livros. O fato é que em março já estava administrando a Bamboletras, sempre com receio de não atrapalhar o que andava bem.

Todos dizem que mantivemos a alta qualidade do acervo e o bom atendimento, mas digo a vocês que era inevitável que ganhássemos aos poucos uma nova cara. Não sei se melhor ou pior, mas é um jeito diferente. Foi um início bem nervoso. Passamos por uma baita crise no setor livreiro. A agonia das grandes prejudicou a todos. Não é fácil ver chegar todos os dias e-mails com ofertas de descontos de quem, se sabia, não pagava suas contas. E a gente pagando tudo direitinho, em dia. E dando um jeito de sobreviver só na base da qualidade. Parecia que lutávamos armados de lápis que quebravam contra a pele de dinossauros doentes, mas muito perigosos.

Foto: Luiza Prado / Jornal do Comércio

No final do ano a coisa melhorou, o que nos dá esperanças de um 2019 mais tranquilo. Mais tranquilo? Bem, aí vem Bolsonaro e realmente não consigo prever nada.

A vida pessoal? Meus dois filhos se formaram. A Bárbara aqui, o Bernardo na Alemanha. Estão na luta por emprego, ele lá como estrangeiro, ela aqui enfrentando nossos caminhos tortuosos, muitas vezes fechados.

Eu e Elena seguimos bem. Todas as questões dos primeiros parágrafos tiveram o acompanhamento carinhoso dela, com muitas discussões frutíferas e excelentes sugestões. Ela é minha boa companheira. Tenho muita sorte. Às vezes fico pensando bobagens como a que segue: nasci e vivo em Porto Alegre, ela nasceu anos depois e a 12.172 Km de distância em linha reta, contornando, é claro, a superfície curva da Terra. (Diferentemente dos terraplanistas, assumo uma Terra de formato esferoide oblato, tá?). Como fui encontrá-la? Bem, é claro que sei responder, mas a rota é por demais surpreendente. Muita sorte. Nunca amei tanto alguém que não tivesse parentesco direto comigo. É óbvio que tudo o que faço é para ela.

Foto: Luiza Prado / Jornal do Comércio

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Amor

Hoje eu fui a um velório de devastador impacto emocional. Era o velório de minha ex-babá, que faleceu aos 93 anos. Passei muitos anos sem vê-la, décadas, até que seu filho Jacó, em abril de 2015, me reconheceu na feira de sábado da Vasco, veio falar comigo e promoveu um reencontro imediato, pois ela estava ali. Pequenina, frágil, sorridente, ela me reconheceu e falou muito bem de mim e de minha mãe. Nos abraçamos, nos beijamos, a Elena tirou fotos. Se aquele foi um dia muito feliz, repetir hoje seria impossível.

Foto: Elena Romanov

Ver a babá é revisitar a infância. Fui uma criança agitada, muito ativa, devia ser insuportável. Se até hoje não consigo ficar parado, imagino a peste que fui. E imaginei a incomodação, a lavação de fraldas, a correria atrás de mim. Porém da Márcia só lembro de delicadezas. Minha mãe confirmava: dizia que eu tivera a mais amorosa das babás, que tivera sorte. (Minha mãe era uma dentista que, assim como a Márcia, trabalhava muito e na época as crianças só iam para o Jardim da Infância aos 6 anos).

A surpresa veio na conversa com seu filho Jacó. Ouvi muitas vezes coisas sobre o amor que a Márcia me dedicava, mas eu também cresci insuportável: sou o tipo de pessoa que não acredita ou reduz os elogios que raramente recebe. Com lágrimas nos olhos, mas mantendo o bom humor, o Jacó disse que estava feliz com minha presença e que “ficaria com ciúmes” porque a Márcia me adorava. Um exagero, pensei, mas não me passou despercebido um fato: um dos netos sabia quem eu era, eu era o cara do encontro na feira.

E desmanchei de vez quando Jacó pediu a palavra após a fala do padre. Orador nato, de fala inteligente, voz emocionada mas bem colocada, o advogado Jacó percorreu rapidamente o longo arco da vida de sua mãe e passou a referir cada pessoa presente. A pequena sala de velório estava apinhada. Falou de amigos e amigas de sua mãe, parentes — alguns dos quais ela também criara — e vizinhos.

Quando chegou a minha vez, soube que minha mãe era apenas a melhor amiga da sua. Márcia viera de Maquiné e minha mãe logo a empregara, mas eram mais amigas do que qualquer coisa, disse ele. E lembrei de visitas que fazíamos à Márcia quando ela não era mais babá. Lembrei que olhava para o Jacó e que ele era “muito criança” para mim — tinha seis anos a menos do que eu (aliás, tem até hoje…). E o Jacó lembrou do PUDIM que a Márcia fazia sempre para nossa chegada. Meu deus, eu lembro do pudim! Era um milagre! Até hoje amo pudim e sempre que vejo um tenho a esperança de que a massa homogênea e clara da parte de baixo seja laaaaarga, delicada e leve como os da Márcia.

E ele voltou a brincar sobre os ciúmes que tinha de mim, agora publicamente.

É claro que jamais retribuí nada para a Márcia, ao menos verbalmente. Esteja ela agora onde estiver, digo envergonhado que também a amo, que sei da sorte que tive ao conhecê-la — éramos dois jovens, Jacó — e que, mesmo sem esperanças, seguirei atrás de um pudim tão maravilhoso quanto o dela.

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5 anos. 5 anos, Elena

5 anos. 5 anos, Elena

5 anos. 5 anos, Elena, completados neste 31 de agosto. E desde o primeiro momento, mesmo quando não tinha a menor ideia de como tu pensavas e falavas, mesmo quando não conhecia tua voz, mesmo quando eu só admirava de longe tua risada e a forma de caminhar, eu já tinha certeza, eu já sabia que te amava.

Obrigado por me aguentar por tanto tempo. Estou adorando.

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