Sobre o Exílio, de Joseph Brodsky

Sobre o Exílio, de Joseph Brodsky

Sobre o Exílio não chega a ser um grande texto ou pelo menos é um texto muito de circunstância. Quando Joseph Brodsky tinha apenas 24 anos, foi acusado de parasitismo social. O julgamento foi antológico e Savelyeva, o juiz, ficou para a História.

— Qual é a sua profissão?

— Poeta.

— E qual é a sua ocupação permanente?

— Julgava que era uma ocupação permanente.

— Quem lhe deu autorização para ser poeta?

— Ninguém. E quem decidiu que eu pertencesse à raça humana?

Condenado a cinco anos de trabalhos forçados na tundra gelada de Norinskaya, uma variante da Sibéria, Brodsky foi para sempre impedido de “exercer uma profissão para a qual não tinha as qualificações necessárias”. A sentença correu mundo e o escândalo abreviou-lhe a pena.

O evento obrigou-o a deixar sua terra natal, Leningrado (ou a atual São Petersburgo), seus amigos e sua família. Ajudado por ninguém menos que W. H. Auden, Brodsky foi viver uma nova vida nos Estados Unidos. Apesar de sua juventude, antes de sua emigração, ele já estava se destacando como um talentoso poeta e artista. Foi reconhecido por ninguém menos que a grande Anna Akhmátova, que se tornou sua mentora antes da repentina expulsão. Nos Estados Unidos, ele alcançou enorme sucesso. Recebeu o Nobel de Literatura em 1987, em recompensa por uma prolífica carreira escrevendo poemas que hoje são considerados clássicos.

Um homem com bom gosto, especialmente literário, é menos suscetível aos encantos e amarras de qualquer versão da demagogia política. O ponto, aqui, não é que a virtude constitua uma garantia para a criação de uma obra de arte, mas sim que o mal, principalmente o mal político, é sempre um péssimo estilista. Quanto mais substancial é a experiência estética de um indivíduo, mais sólido é seu gosto, mais afiado é seu foco moral, portanto, mais livre ele é, mesmo que não seja necessariamente mais feliz.

Seus poemas e escritos falam do tédio do exílio e da tristeza pela ruptura entre sua antiga vida e a nova. Durante anos, ele permaneceu banido na Rússia — nunca retornou –, embora tenha permanecido muito amado por lá, com pessoas compartilhando seus escritos no circuito underground, com poemas sendo distribuídos em samizdat ou em cópias impressas e manuscritas à mão. Isso ainda era motivo de grande tristeza para Brodsky, que foi citado como tendo dito em uma entrevista à Paris Review : “Para um escritor, não ser publicado em sua língua materna é tão ruim quanto um final ruim.” Se, como disse Adorno (1903-1969), não poderia haver poesia após Auschwitz, para o escritor russo é impossível que o exilado consiga novamente sentir-se em casa.

Como não há leis que possam nos proteger de nós mesmos, nenhum código penal é capaz de prevenir um verdadeiro crime contra a literatura; apesar de podermos impedir ameaças materiais a ela — como a perseguição de escritores, atos de censura, a queima de livros –, não temos poder algum em relação à pior das violações: a de não ler livros. Por esse crime paga-se por toda a vida; quando o violador é uma nação, ela paga com sua história.

O livro é dividido em 3 ensaios — “A condição chamada exílio”, “’Uma face incomum’” e “Discurso de aceitação”.  O melhor, disparado, é o segundo, que é o discurso que Brodsky proferiu ao receber o Nobel. É aqui, com tema livre, que ele se esbalda e todas as citações que aqui coloco foram tiradas dele. O terceiro ensaio são quatro páginas bem simpáticas onde ele diz “OK gente, eu aceito o Nobel”

Não tenho dúvida de que, se houvéssemos escolhido nossos líderes tomando por base suas experiência de leitura, e não seus programas políticos, haveria bem menos sofrimento no mundo. Parece-me que o mestre em potencial de nossos destinos deveria ser inquirido, primeiramente, não em relação ao que ele imagina que deveria ser o curso de sua política externa, mas quanto às obras de Stendhal, Dickens, Dostoiévski.

Joseph Brodsky (1940-1996)

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Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov

Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov

A primeira coisa que chama a atenção neste livro é sua original e brilhante diagramação. Tudo está muito claro e a leitura flui como poucas vezes em uma peça de teatro, pois é disso que se trata. A coisa foi tão bem bolada que nem precisamos ir aos rodapés. (Odeio rodapés). E eles são muito necessários, assim como toda a contextualização histórica e a cronologia preparada pelo excelente tradutor Irineu Franco Perpétuo.

Os Dias dos Turbin é uma peça de teatro de Mikhail Bulgákov baseada na história da Ucrânia durante a Revolução Bolchevique. A peça deriva de seu romance A Guarda Branca. Não adianta ler a peça se não soubermos, por exemplo, quem foi Petliura ou o Hétmã de toda a Ucrânia ou a participação da Alemanha no forrobodó. Isto está muito bem explicado na cronologia e nos comentários de Irineu. Fui atraído para ler Os Dias não somente por seu genial autor como por ter sido a peça de teatro preferida de Stálin, que a assistiu 16 vezes. Sua admiração por Bulgákov — um inimigo, um russo branco, um anti-bolchevique — fez com que ele salvasse a vida do escritor, dando-lhe um emprego no teatro enquanto todos os seus assessores políticos diziam que o tratamento adequado para Bulgákov era o Gulag. Se Stálin era um psicopata, também era um inteligente admirador das artes, o que o torna um ser menos imbecil do que, por exemplo, Bolsonaro. Stálin dizia que o drama sobre a família burguesa Turbin durante a guerra civil demonstrava que os bolcheviques eram invencíveis. Se quisermos, a leitura nos abre esta janela. Faz sentido.

Mas não pensem que a vida de Bulgákov foi aquele mar de rosas criado por Stálin. Ele apenas não foi morto nem condenado a trabalhos forçados. Tudo lhe foi proibido. “Estou na miséria, acossado, em completa solidão. Nos últimos sete anos, concluí dezessete obras de diferentes gêneros, e nenhuma delas foi publicada. Semelhante situação é impossível, e em nossa casa há trevas e uma completa falta de perspectiva”. Contudo, escondido, escrevendo para a gaveta, o escritor preparou sua obra-prima O Mestre e Margarida (1, 2, 3, 4 e 5), a qual foi publicada clandestinamente apenas em 1966, 26 anos após sua morte.

Em Os Dias dos Turbin, o confortável mundo tchekhovniano dos Turbin é esmagado pelo pecado da ignorância sobre o que estava acontecendo no império ao seu redor. Ou, melhor dizendo, pela crença de que ninguém tocaria em seus privilégios. Se eles não fossem ignorantes, teriam sido virados de cabeça para baixo de qualquer maneira, só que neste caso haveria menos graça. A genialidade da peça é sua honestidade impiedosa, não importa o lado. O mundo da traição e dos boatos têm sempre dois lados. É sempre inusitado vermos personagens com pouca maldade real, mas com falhas humanas — ganância, deslealdade, orgulho — que explodem aqui e ali. Os Dias do Turbin prenunciam O Mestre e Margarida. Em O Mestre e Margarida, Satanás pune Moscou e aqui há Vermelhos punindo Kiev. Bulgákov odiava os bolcheviques, mas deve ter notado que somente os pequenos atos de resistência interior eram possíveis contra eles.

Aqui temos duas histórias em que os governantes são varridos do poder. E há espaço para o humor de Bulgákov. A fuga dos brancos provavelmente será acompanhada de suas risadas, caro leitor. É o mundo de Bulgákov. Triste, implacável e engraçado.

Recomendo.

Mikhail Bulgákov (1891-1940)

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458 anos de William Shakespeare (23.04.1564 – 23.04.1616) / “Soneto 66”, transcriado por Augusto de Campos

Soneto 66

Cansado de tudo isso eu clamo pela morte,
Vendo aos pobres faltar a moradia e o pão
E ao ricos amorais caber a boa sorte,
A fé servir aos maus em pífia exploração,

E a mais pura honradez de todo desprezada
A hombridade estuprada e morta pelo vício,
E a perfeição em mau feitio desnaturada,
A força convertida em monstruoso artifício,

E a arte calada com brutal autoridade,
O parvo a comandar o honesto e o diligente,
A verdade curial tida por falsidade
E o cativo servindo ao Capitão demente:

De tão cansado era melhor querer meu fim
Se a morte não roubasse o meu amor de mim.

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Dilúvio das Almas, de Tito Leite

Dilúvio das Almas, de Tito Leite

Por mais que tentemos evitar, muitas vezes os preconceitos mais idiotas se imiscuem em nossos pensamentos. Acho que acontece com todo mundo. Quando soube que Tito Leite, autor deste Dilúvio das Almas, era um monge beneditino, logo pensei na personagem de Isabelle Huppert na quase-comédia Amateur, de Hal Hartley. Lá, ela era uma ex-freira ninfomaníaca, porém virgem, que escreve contos que seriam pornográficos, mas que acabam por serem (má) poesia. Quando recebi o livro da editora Todavia e li as primeiras páginas, surpreendi-me com a alta qualidade do texto, com a sem-cerimônia de falar em sexo — sem grandes descrições, mas sem recuos — e com a firmeza de um excelente narrador.

O livro inicia de uma forma bastante cronística com várias histórias sendo jogadas no papel. Não sabemos onde Tito quer nos levar, mas quando o cenário fica completo, podemos dizer que o romance embica e voa. Leonardo retorna ao Nordeste, mais exatamente para a ficcional Dilúvio das Almas, cidade onde nasceu, após de muitos anos vivendo de todas as formas em São Paulo. Ele é um andarilho, um sujeito relativamente culto que faz de tudo, que trabalha tanto como pedreiro como faz artesanato. Parece não exigir muito da vida. Quer a boa amizade, os bares, as mulheres, seu dinheiro curto e está bem assim. Ah, também quer ir e vir livremente. Quando volta ao sertão, é bem recebido pela mãe e nem tão bem pelo padrasto. E fica por lá para viver ao seu estilo, certamente por uma curta temporada. Mas o retorno lhe mostra claramente a violência e a injustiça que o afastaram dali. E ele muda.

Faz parte da catequese do lugar. Em cara de homem não se bate. Se vai começar uma confusão, que mate logo, e que o serviço seja bem-feito.

O clima do livro vai lentamente se alterando nas mãos hábeis do autor. Como num faroeste, passamos a sentir uma grande tensão escondida sob diálogos curtos e secos. Algumas pessoas morrem, coisa comum no local. Não acontece nada com os assassinos. Com o texto encharcado de realidade, Tito nos demonstra a impossibilidade de não ser tragado pelo ambiente horrível.

Minha opção sempre foi a dos excluídos (…) e ser minoria é o melhor de mim. Minha falta de apego é o que me torna leve e arejado. No entanto, já faz algum tempo que ando como quem usa sapatos de chumbo. Só hoje percebi: já não sou um homem de passos leves.

Não pensem que há algo de Torto Arado no livro de Tito. Há a região e a opressão, mas a forma do texto e da opressão são outras. Sem tirar os indiscutíveis méritos do livro de Itamar, Dilúvio das Almas parece mais profundamente enraizado na tradição literária nordestina. É um Graciliano atualizado, um Jorge Amado dos primeiros romances, um José Lins, um Erico transposto, mas também há muito de Faulkner na prosa de Tito. É um romance curto, sem narrativas paralelas desnecessárias, cada detalhe conta, com tudo contribuindo para o potente clímax, o qual é montado com cuidado ao fazer a liberdade enfrentar os preconceitos, o belo lutar contra o feio. O final você descobre. E descobre que Dilúvio é muito, mas muito, atual.

Não há nada de divino no horror. A cada disparo, é parte de mim que também morre aqui. Hoje, eu também morro. Já não sou um estrangeiro na minha terra. Já não sou um deslocado. Sou apenas mais um dos seus filhos. Agora estou em casa.

Tito Leite

 

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Bamboletras recomenda bailes, cientistas e Joyce

Bamboletras recomenda bailes, cientistas e Joyce

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Benjamin Labatut (1980)

Olá!

Três livros bem diferentes. Sem bossa não há quem possa descreve os antigos bailes do interior e seus causos. Quando deixamos de entender o mundo é um grande sucesso editorial ao perfilar cientistas que perderam a razão (Karl Schwarzschild, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberger e outros). O livro tem mais ou menos a mesma proporção de ficção e não ficção. A ficção aponta a estranheza, a ambiguidade, que a História, a ciência e a não ficção não admitem.  Já Exílios e Poemas é uma demonstração do talento poético e da dramaturgia de James Joyce. Sim, foi muito difícil encontrar algo que una estes livro que não seja a (alta) qualidade.

Uma excelente semana com boas leituras!

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Sem bossa não há quem possa, de Eduardo Rodrigues (Capítulo 1, 143 páginas, R$ 45)

Imagine reunir em um mesmo lugar as melhores orquestras do Brasil e do exterior e as mulheres mais bonitas, elegantes e charmosas da região. Festas com atrações desse nível marcaram gerações. Em General Câmara, o glamour, a alegria e a diversidade dos bailes atraíam casais para a famosa pista do Cassino dos Operários. Tempo de romance ao som de inocentes marchinhas de carnaval, danças de rosto colado e troca de olhares que poderiam significar muito mais do que uma simples paquera. Neste livro, além e acima de tudo, o leitor se divertirá com relatos inéditos e engraçados, contados a rigor e a passeio. Pequenos flashes que exaltam lembranças que os anos não apagam.

Quando deixamos de entender o mundo, de Benjamín Labatut (Todavia, 176 páginas, R$ 59,90)

Em 2012, o matemático japonês Shinichi Mochizuki publicou artigos provando uma das mais importantes conjecturas da teoria dos números. Quando sua prova foi considerada impossível de entender pelos maiores especialistas da área, Mochizuki terminou por se excluir da sociedade, evocando o autoexílio de outro matemático, o lendário Alexander Grothendieck. Haveria alguma conexão enigmática entre esses dois homens? Esse é o ponto de partida de “O coração do coração”, uma das narrativas que o chileno Benjamín Labatut reuniu neste livro que o tornaria uma sensação mundial. Elementos parecidos figuram nos outros textos: cientistas tão geniais quanto atormentados perseguem suas ambições ao custo da saúde física e mental, enquanto os desdobramentos pessoais e históricos de suas descobertas atravessam o tempo e o espaço. Baseando-se em biografias e teorias reais, mas recorrendo à ficção para produzir efeitos estéticos e associações de ideias, o autor explora em seus relatos o entrelaçamento entre a vida íntima e o desbravamento científico. Com um estilo em que ouvimos ecos de W. G. Sebald e Roberto Bolaño, o leitor pode sentir que está diante da montagem hábil de um belo quebra-cabeças.

Exílios e poemas, de James Joyce (Penguin, 368 páginas, R$ 29,90)

Este volume reúne toda a poesia publicada em vida por James Joyce, a peça “Exílios” – que contém temas posteriormente explorados em Ulysses – e um conjunto de notas elaboradas pelo autor durante o processo de escrita. Antes da publicação de Ulysses, James Joyce lançou a peça Exílios em 1918. Nela, o autor explora temas que aparecerão em sua obra magna, como as relações complexas de adultério e desejo. Neste volume estão reunidas a peça e também sua produção poética, sendo possível ter uma visão mais ampla das ideias do autor não só sobre o exílio, como também sobre a própria literatura.

Além da peça e dos poemas, esta edição conta com um conjunto de notas que Joyce elaborou durante o processo de escrita e alguns fragmentos de diálogos não incluídos na versão final do texto.

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Os livros mais vendidos de março na Bamboletras

Os livros mais vendidos de março na Bamboletras

Olá! Mais um mês chega ao final – já estamos em abril, é inacreditável – e com isso temos a lista dos livros mais vendidos da Bamboletras em março!

1 – Faróis do Rio Grande do Sul, de Cláudio Tarta.
2 – A Vida Disfarçada de Contos, de Sandro Farias.
3 – Violeta, de Isabel Allende.
4 – Dicionário de Porto-Alegrês, de Luís Augusto Fischer.
5 – Os Supridores, de José Falero.
6 – O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório.
7 – Tudo é Rio, de Carla Madeira
8 – Mas em que Mundo tu Vive, de José Falero.
9 – Banzeiro Òkotó, de Eliane Brum.
10 – Marrom e Amarelo, de Paulo Scott.

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Bamboletras recomenda três mulheres — uma ficcionista, uma psicanalista e uma vítima da ditadura

Bamboletras recomenda três mulheres — uma ficcionista, uma psicanalista e uma vítima da ditadura

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Marguerite Duras (1914-1996)

Olá!

Não foi planejado, simplesmente aconteceu de sugerirmos três excelentes livros de mulheres: a clássica Marguerite Duras, mais Elisabeth Roudinesco e Ana Maria Ramos Estevão. Duras vem com seu Hiroshima meu Amor, nunca dantes traduzido em nosso país e que deu origem ao filme de Resnais. Roudinesco analisa As lutas identitárias que, segundo ela, reduziram suas áreas de atuação, isolando-se. E o livro de Ana Maria Estevão fala da chamada Torre das Donzelas (argh!), o local onde ficavam as presas políticas da ditadura militar brasileira. Ana foi uma delas.

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Hiroshima meu amor, de Marguerite Duras (Relicário, 196 páginas, R$ 57,90)

Publicado pela primeira vez em português, Hiroshima meu amor foi concebido originalmente como roteiro para o filme dirigido por Alain Resnais. O filme foi aclamado internacionalmente após seu lançamento em 1959, tendo recebido o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cannes e o Prêmio da Crítica de Cinema de NY. A história de um caso de amor entre um arquiteto japonês e uma atriz francesa que visita o Japão para fazer um filme sobre a paz apresenta uma dupla dimensão: uma íntima e uma histórica. Essas duas dimensões se sobrepõem através da evocação à memória, ao passado, ao esquecimento e ao trauma. Alain Resnais e Marguerite Duras tematizam Hiroshima a partir da premissa de que isto seria impossível após os horrores da bomba atômica. E nessa tentativa de captar algo que testemunho nenhum pode comunicar, que está na essência do sentimento da perda e do trágico, eles realizam uma obra-prima única, de um lirismo incomparável. Este livro apresenta o roteiro e os diálogos originais do filme, que realizam magistralmente o pedido de Resnais feito a Duras: “Faça literatura. Esqueça a câmera.”

O Eu Soberano, de Elisabeth Roudinesco (Zahar, 304 páginas, R$ 89,90)

Ao fazer um balanço do tempo presente e das várias definições de identidade hoje possíveis, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco analisa neste livro a natureza e os perigos do que chama de derivas identitárias. Depois de vinte anos, os movimentos de emancipação parecem ter mudado de direção. Já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor, mas dedicam-se a proteger as populações daquilo que as ameaça: desigualdades crescentes, invisibilidade social, miséria moral. As pessoas exibem seus sofrimentos, denunciam as ofensas, dão livre curso a seus afetos, como marcadores identitários que exprimem um desejo de visibilidade. Em contraponto, consolida-se uma outra maneira de submeter-se à mecânica identitária: o isolamento. O Eu soberano é um livro provocador em que a autora se pergunta: o que fez com que os engajamentos emancipadores de outrora, notadamente as lutas anticoloniais e feministas, se fechassem de tal forma sobre si mesmas? À luz de Freud e Lacan, das obras de Sartre, Simone de Beauvoir, Aimé Césaire, Fanon, Judith Butler, Foucault e Derrida, Roudinesco tece os fios que unem os debates acerca de identidade, gênero, raça, interseccionalidade, pós-colonialismo, nacionalismo, República, extremismo e religião.

Torre das guerreiras e outras memórias, de Ana Maria Ramos Estevão (Editora 106, 192 páginas, R$ 59,80)

1970, São Paulo, Presídio Tiradentes: na ala dos presos políticos, as mulheres eram encarceradas num prédio alto, conhecido como a Torre das Donzelas. Foi lá que Ana Maria Ramos Estevão, estudante de Serviço Social envolvida com o movimento estudantil e a organização Ação Libertadora Nacional (ALN), passou nove meses de sua vida. Semanas antes, havia sido capturada pelos órgãos de repressão da ditadura brasileira, passando por torturas e interrogatórios. Ao longo de sua trajetória como militante, conheceu tanto os agentes do regime, como o delegado Sérgio Paranhos Fleury e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, quanto seus oponentes, como Paulo Freire, que se tornaria referência mundial em educação, e Dilma Rousseff, presidenta do Brasil três décadas depois. Este livro reúne as memórias de uma mulher que subverteu a delicadeza das “donzelas”, vivendo como guerreira num dos períodos mais sombrios da História do Brasil.

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Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Um livrinho estupendo. Pelo nome, não parece, mas Nurit Bensusan é brasileira, bióloga, e tem alguns livros publicados e premiados — sempre sobre questões socioambientais. Este é seu primeiro livro de ficção e ele não trata diretamente de problemas ligados à biologia ou ao ambiente.

No Alto de Pinheiros — bairro da elite paulistana –, um sem-teto chamado Raimundo vive solitário numa praça próxima a uma sinagoga e a edifícios residenciais. Como não incomoda, mora na praça também sem ser importunado. Mas um dia ele pede para que o rabino distribua alimentos para os pobres. A proposta é aceita. É um estranho pedido de quem não fala com quase ninguém, parece viver de ar e que passa seus dias escrevendo em cadernos e mais cadernos. A aceitação por parte do rabino também é inesperada. A partir deste ponto, a ação bondosa vira problema, pois os habitantes do bairro nobre não veem aquilo com bons olhos.

É esquisita aquela gente que vem pegar comida, eles sujam tudo e, mesmo que o rabino contrate pessoas para fazer a limpeza diária, não adianta, os moradores querem o fim daquilo. Ou seja, a fila de famintos tem que ser retirada dali. Mesmo as domésticas e diaristas acham que aquilo não é para aquela região. Ou seja, o preconceito de classe é algo mais complexo e enraizado do que parece. Acionado, o poder público, representado pela subprefeitura, manda acabar com a distribuição de alimentos sem maiores explicações. Claro, no Brasil há um acordo tácito de tratar de modo diferente as pessoas em razão de sua situação econômica e acesso a bens de serviço. As pessoas de baixa renda “não devem” ter acesso aos mesmos espaços daquelas que são das “classes mais altas”, os pobres devem viver em isolamento social, não precisam ser vistos. O livro também explora o rabo preso de religiosos e alguns dos moradores dos elegantes edifícios. E mais não conto…

Com quantos rabinos usa a primeira pessoa do singular, porém com muitas vozes solistas, à exceção do personagem principal, que só escreve em seus cadernos e não tem revelados seus diálogos com os rabinos — um verdadeiro achado na construção do clima. A polifonia é geral, a dissonância idem. O curioso é que poucos gritam, tudo é um sufoco surdo, é como se estivéssemos assistindo um bando de mímicos em ações não tão cômicas assim. Bensusan rege seu coral com um grande virtuosismo, fazendo com que a ficção efetivamente arranhe a realidade. E, curioso, há espaço para humor no livro.

Recomendo muito.

Nurit Bensusan: escrevendo como Raimundo

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Bamboletras recomenda Roth, grafitti e filósofas

Bamboletras recomenda Roth, grafitti e filósofas

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Philip Roth (1933-2018)

Olá!

Talvez pela primeira vez na história desta newsletter, não colocaremos nenhum livro de ficção em nossas sugestões, culpa dos bons lançamentos em outras áreas. O primeiro é uma suma dos ensaios sobre literatura de Philip Roth. É imperdível, garanto-lhes. O segundo é um belo estudo visual sobre o grafitti porto-alegrense. E o terceiro, mais uma narrativa do extraordinário Wolfram Eilenberger, desta vez sobre o principal grupo de filósofas que surgiu na primeira metade do século passado.

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Por que escrever? Conversas e Ensaios sobre Literatura (1960-2013), de Philip Roth (Cia. das Letras, 568 páginas, R$ 89,90)

Reunindo mais de trinta ensaios, entrevistas e discursos, Por que escrever? traz aos leitores um Philip Roth raro e igualmente excepcional. Fora dos artifícios do romance, ele aqui está mais próximo de si mesmo. Philip Roth foi um dos mais notáveis escritores de língua inglesa do século XX. Dono de uma carreira literária incomparável, dedicada sobretudo à ficção, ele ainda nos legou uma extraordinária coleção de textos não ficcionais — muitos deles para responder a provocações de toda natureza, agradecer o recebimento de algum prêmio ou chorar a morte de um amigo. O resultado dessa produção é uma série de declarações e comentários sobre seu trabalho e dos escritores que admirava, seu processo criativo e a cultura americana. Último volume da obra completa do autor publicado pela Library of America antes de sua morte em 2018, Por que escrever? traz o indispensável de sua não ficção, reunida pela primeira vez em livro: estudos sobre a obra de Kafka e os judeus na literatura, palestras sobre os seus romances mais polêmicos e balanços de uma vida dedicada à escrita.

Poalaroiddes Urbanas, de Breno Serafini (Parangolé, 189 páginas, R$ 69,00)

O livro celebra a capital dos gaúchos a partir do registro de sua arte urbana, principalmente graffitis, que foram captados pelo celular do autor. Nesse sentido, Poalaroides faz um inventário de dez anos de registro fotográfico, com uma variedade de autores e formatos que representam hoje o que a cidade tem de mais significativo nessa arte. O que iniciou como um registro solitário, cotidiano, no final contou com a curadoria visual do artista visual Luís Flávio Trampo, uma referência na arte do graffiti porto-alegrense. O curador comenta a força desse movimento cultural no sul do Brasil. “Essa arte sem fronteiras tem como uma de suas principais características a fácil integração de seus adeptos, que são como agentes multiplicadores dessa manifestação popular. As intervenções nas ruas de Porto Alegre vão além da tinta spray. Muitos artistas (ativistas) usam diversas técnicas e suportes para registrar sua arte, seja colando adesivos e cartazes, seja pintando de uma forma livre. Muros que embelezam e denunciam, expressando uma cidade que pulsa e vibra.”

As Visionárias, de Wolfram Eilenberger (Todavia, 400 páginas, R$ 84,90)

A década de 1933 a 1943 marcou um dos capítulos mais tenebrosos da humanidade. Em meio ao horror da ascensão do nazismo e da carnificina da Segunda Guerra, quatro mulheres — Simone de Beauvoir, Simone Weil, Ayn Rand e Hannah Arendt — libertaram-se dos grilhões do gênero e provaram que a emancipação do pensamento podia ocorrer mesmo em meio a situações extremas. Com grande habilidade narrativa e um equilíbrio magistral entre a apresentação biográfica e a análise acurada de ideias, Wolfram Eilenberger nos oferece a história de quatro vidas hoje legendárias que, em meio à convulsão, mudaram nossa forma de entender o mundo e lançaram as bases para uma sociedade muito mais livre. Seus reflexos chegam até os nossos dias em temas como gênero, identidade, religião, liberdade, sexo e autonomia.

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As Rãs, de Mo Yan

As Rãs, de Mo Yan

Mo Yan (1955) foi o primeiro autor chinês a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura, em 2012. Seu nome verdadeiro é Guan Moye. O pseudônimo significa “Não fale” e surgiu durante o período revolucionário da década de 1950, quando seus pais o instruíram a não falar tudo o que pensa quando em público. Curiosamente, ele costuma ser descrito como “um dos mais famosos, banidos e pirateados escritores chineses”. Sem piratarias, foram publicados dois de seus livros no Brasil. O excelente Mudança (Cosac Naify) e este As Rãs (Cia. das Letras).

As Rãs fala de um tema especialmente complicado para o chineses: a gestão e a aplicação da política de controle da natalidade na China — apenas um filho por casal, sistema imposto por décadas. As mulheres grávidas do segundo filho eram forçadas a abortos, muitas vezes sofrendo perseguição policial. Os casais que conseguiam se esconder e tinham mais de um filho eram punidos com severas multas. Como consequência, existem, hoje, cerca de 90 milhões de filhos únicos na China. Eles são conhecidos como “pequenos imperadores”. Em outubro de 2013, no entanto, o governo chinês aboliu a lei em razão do envelhecimento da população, passando a permitir até dois filhos por família. Mas as regras anteriores ofereciam uma série de exceções e ambiguidades. Por exemplo: em grande parte da China rural, a maioria das famílias podia ter um segundo filho, se o primeiro fosse mulher…

O sistema quebrou a tradição chinesa de grandes famílias, fato que, segundo o governo, perpetuava a pobreza no país. Em razão da implementação da política, o número de casos de aborto e abandono de crianças aumentou significativamente, principalmente aquelas do sexo feminino. O governo, porém, preferiu não levar em conta os desdobramentos negativos do programa, apenas se importando com os números. A ordem era de reprimir. Famílias foram arruinadas, casas que escondiam mulheres grávidas foram literalmente destruídas e muita gente morreu nas mãos de autoridades locais que cumpriam as políticas de planejamento familiar de forma cruel e violenta.

Paradoxalmente, Mo Yan descreve tudo de forma simples e bem-humorada, até com certo afastamento, misturando habilmente a para nós curiosa tradição e cultura locais com dramas humanos universais. Nas mãos de um mestre, tal composto resulta em grande e impactante literatura, que percorre a história da China desde a invasão japonesa (1937) até o boom econômico do século XXI.

Em As Rãs, o narrador é o sobrinho de uma enfermeira do Partido Comunista que é capaz dos maiores esforços para evitar o nascimento de segundos filhos numa comunidade rural do interior do país. O autor dirige sua narrativa a um professor de literatura japonês que o incentiva a escrever uma peça de teatro sobre a tal tia.  No geral, o relato aponta — sem julgamentos — o problema. A tia é o tremendo braço do poder naquela localidade. “Não me importo de ser a malvada, alguém sempre terá de ser a malvada. Sei que vocês já me condenaram ao inferno! Uma comunista não acredita nessas coisas, uma materialista de verdade não tem medo de nada!”, diz a tia.

Mentira. O arrependimento dela aparece aqui e ali, principalmente em sua velhice, delineando algumas dúvidas de ordem moral. A linguagem de Mo Yan é falsamente ingênua, contando tudo a certa distância e como se não entendesse bem o que diz. Mas o naive vai ganhando tons escuros e estranhos. Coisa de mestre. Coisa de quem não fala, mas diz. Diz muito e com alta arte.

Mo Yan

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Bamboletras recomenda Faróis, Ritos e um romance sobre jovens

Bamboletras recomenda Faróis, Ritos e um romance sobre jovens

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Recebemos quase 100 exemplares do livro sobre os Faróis do Rio Grande do Sul e vendemos todos em 4 dias! O livro é deslumbrante! Neste nosso “recomenda”, este livro é acompanhado pelo relançamento de um romance do Prêmio Nobel de Literatura de 1983 William Golding e pelo surpreendente Cinco ou seis dias, um grande achado da Dublinense. Sim, o recomenda de hoje está muito bom!

Uma excelente semana com boas leituras!

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Faróis do Rio Grande do Sul, de Cláudio Tarta (Panorama Crítico, 254 páginas, R$ 100,00)

Um livro lindo e um grande sucesso! Este projeto aborda a iluminação das rotas náuticas costeiras e lacustres e o seu papel no desenvolvimento regional e econômico desde a época da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. O extenso registro fotográfico dos faróis da região, com enfoque nos seus aspectos artísticos e paisagísticos, além dos detalhes de sua estrutura interior e dos seus equipamentos seculares de iluminação, demonstra, de maneira inédita em nossa literatura, a preocupação com uma obra completa e que contribua para a preservação desses patrimônios históricos e arquiteturais. O livro traz, ainda, entrevista com o último descendente em atividade de uma geração de faroleiros que marcou a história do Rio Grande do Sul, resgatando essas figuras míticas que, anonimamente e com muita dificuldade, vêm dedicando suas vidas ao árduo e solitário trabalho de iluminar o caminho dos navegantes.

Ritos de Passagem, de William Golding (Alfaguara, 216 páginas, R$ 69,90)

William Golding — Prêmio Nobel e autor do clássico O Senhor das Moscas — mergulha fundo na alma humana para revelar seu lado mais sombrio. Em Ritos de passagem, vencedor do Booker Prize em 1980, o autor mescla a forma epistolar à narrativa histórica para mostrar as fissuras que surgem das diferenças de classe e de cultura. Um romance extraordinário. Em uma viagem à Austrália, no início do século XIX, Edmund Talbot mantém um diário, no qual narra suas aventuras para entreter o tio que ficou na Inglaterra. Talbot é um jovem com uma carreira promissora à frente, no serviço público da Coroa Britânica. Cheio de mordacidade e algum desprezo, ele relata o dia a dia dos marujos e oficiais e descreve os emigrantes em busca de uma nova vida. A bordo de um navio da Marinha inglesa, tripulantes e passageiros têm de conviver em um espaço exíguo, e a tensão entre eles parece cada dia maior. E, aos poucos, os companheiros de viagem começam a exibir sua verdadeira — e sombria — natureza. A situação se agrava quando o jovem e aparentemente ridículo reverendo Colley atrai a antipatia e animosidade dos marinheiros, e a vergonha e humilhação podem se tornar mais perigosas do que o próprio oceano.

Cinco ou seis dias, de Danich Hausen Mizoguchi (Dublinense, 192 páginas, R$ 59,90)

Um livro muito interessante sobre juventude e escolhas. João e Dante são dois amigos recém-saídos da universidade no despertar dos anos 2000. São idealistas e cheios de planos. Enquanto Dante acredita que pode fazer sua parte através de uma empresa inovadora, João tenta entender o mundo a partir da vivência nas ruas. De um lado, a ideia de que uma mudança real possa acontecer de dentro do sistema; do outro, o estado de constante vigilância e o medo de quem decidiu se juntar ao elo mais frágil da sociedade. Entre ideais compartilhados e ações opostas, os dois tentam manter a amizade e os sonhos enquanto lidam com a… falência das suas escolhas.

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Bamboletras recomenda a rua, disfarces e Diderot

Bamboletras recomenda a rua, disfarces e Diderot

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Novamente, três notáveis livros com pouco a ver entre si. O primeiro é um lançamento, uma estreia de autor gaúcho. O segundo é um clássico esquecido — foi publicado há sete décadas e caiu no limbo. E o terceiro é a revisão da vida de um gênio absoluto.

Uma excelente semana com boas leituras!

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A Vida Disfarçada de Contos, de Sandro Farias (Ed. do autor, 150 páginas, R$ 38,00)

Mosaico é uma arte feita com pequenos pedaços de materiais que são minuciosamente encaixados para formar um todo. Como num mosaico, A Vida Disfarçada de Contos tem oito contos (ou episódios) com ligações entre si e que conduzem o leitor a caminhar sobre a fronteira entre veracidade e fantasia. Paixões mal resolvidas, rodas de samba, apostas feita na mesa do bar, amizades, a magia da cidade grande ou as lendas do Partenon em Porto Alegre — estes são alguns dos elementos que o autor explora. Com prosa coloquial, Farias apresenta histórias que puxam o leitor para dentro do livro, criando um ambiente onde ele, repentinamente, vê-se torcendo por uma aposta, escrevendo cartas de amor ou desejando o improvável.

A Rua, de Ann Petry (Carambaia, 352 páginas, R$ 139,90)

Publicado em 1946, A rua, de Ann Petry (1908-1997), tornou-se rapidamente o primeiro romance de uma autora negra a bater a marca de 1 milhão de exemplares vendidos nos Estados Unidos – e bateu com folga: vendeu 1,5 milhão de cópias. A autora nem sempre foi devidamente lembrada, apesar de ter alcançado um equilíbrio raro: uniu observação social implacável a características do melhor thriller, sendo comparada a clássicos do romance policial como Raymond Chandler e Patricia Highsmith. Mais de sete décadas depois de sua primeira edição no Brasil, o romance de Ann Petry recebeu nova tradução. A maior parte do enredo se desenvolve em uma rua, a 116th Street, que tem papel-chave na vida da protagonista, Lutie Johnson, que tenta sobreviver com um filho de 8 anos no tumultuado bairro nova-iorquino do Harlem. Nas palavras de Tayari Jones, “a 116th Street é a resoluta antagonista e representa a intersecção entre racismo, sexismo, pobreza e fragilidade humana”. 

Diderot e a Arte de Pensar Livremente, de Andrew S. Curran (Todavia, 392 páginas, R$ 84,90)

Denis Diderot foi um dos intelectuais mais vibrantes que existiram. E é cada vez mais nosso contemporâneo. O pensador e escritor francês foi petulante ao desafiar muitas verdades de seu tempo. Nesta biografia, Andrew S. Curran descreve a relação atormentada de Diderot com Jean-Jacques Rousseau, sua curiosa correspondência com Voltaire, seus casos apaixonados e suas posições frequentemente iconoclastas. Este livro revela de maneira brilhante como a turbulência pessoal do escritor foi uma parte essencial de seu gênio e de sua capacidade de ignorar e superar tabus, dogmas e convenções. Numa prosa viva e muito bem embasada em pesquisas, Curran traça o itinerário intelectual de Diderot.

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Obras clássicas odiadas por autores famosos (III)

Obras clássicas odiadas por autores famosos (III)

Mark Twain sobre Orgulho e Preconceito

Em uma carta a Joseph Twichell, 13 de setembro de 1898:

Não tenho o direito de criticar livros, e não faço isso, exceto quando os odeio. Muitas vezes quero criticar Jane Austen, seus livros me enlouquecem tanto que não consigo esconder meu frenesi do leitor. Portanto, tenho que parar toda vez que começo. Toda vez que leio Orgulho e Preconceito, quero desenterrá-la e espancá-la no crânio com sua própria tíbia.

Do fragmento incompleto de Twain, intitulado “Jane Austen”:

Sempre que pego ‘Orgulho e Preconceito’ ou ‘Razão e Sensibilidade’, sinto-me como um barman entrando no Reino dos Céus. Quer dizer, eu me sinto como ele provavelmente se sentiria. Tenho certeza de que sei quais seriam suas sensações e seus comentários. Ele certamente torceria o nariz vendo aqueles presbiterianos boníssimos, que iriam rejeitá-lo com autocomplacência. Porque eles não eram da sua turma. É isso.

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Bamboletras recomenda Ernaux, Isabel Allende e a poesia de Gontijo Flores

Bamboletras recomenda Ernaux, Isabel Allende e a poesia de Gontijo Flores

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Annie Ernaux

Olá!

Mais um livro da ficção memorialística da excelente Annie Ernaux. Este tem início em 1963, quando Ernaux, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que tenta destrinchar neste livro quarenta anos depois. Também sugerimos o último lançamento de Isabel Allende — mais uma história super bem contada de mulheres — e também a surpreendente poesia de Guilherme Gontijo Flores.

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O Acontecimento, de Annie Ernaux (Fósforo, 80 páginas, R$ 54,90)

Em 1963, Annie Ernaux, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que tenta destrinchar neste livro quarenta anos depois, quando já é uma das principais escritoras de seu país. Com a ajuda de entradas de seu diário e de memórias há muito guardadas, Ernaux reconstrói seu périplo solitário para realizar um aborto clandestino. Ao refletir sobre a onipresença da lei e seu imperativo sobre o corpo feminino, Ernaux nos apresenta mais uma face da mescla indissociável do íntimo e do coletivo tão característica de todo o seu percurso literário. A jovem acaba na ala de emergência de um hospital. Anos se passam sem que ela tenha coragem de revisitar o episódio.

Violeta, de Isabel Allende (Bertrand Brasil, 322 páginas, R$ 59,90)

Violeta nasceu em 1920, a primeira menina de uma família com cinco filhos, quando ainda era possível sentir os efeitos da Grande Guerra a da gripe espanhola, que chegara ao seu país pouco antes do seu nascimento. A família saiu ilesa destas crises, mas não conseguiu enfrentar a seguinte. A Grande Depressão transformou totalmente a vida urbana que Violeta conhecia. Sua família perdeu tudo e foi forçada a se mudar para um local remoto. Lá, ela cresceu e terá seu primeiro pretendente. Violeta narra sua história em uma carta dirigida à pessoa que mais ama, contando decepções e casos amorosos, momentos de pobreza e riqueza, perdas e alegrias, tendo por pano de fundo grandes eventos históricos: a luta pelos direitos das mulheres, a ascensão e queda de tiranos e, afinal, não uma, mas duas pandemias.

Potlatch, de Guilherme Gontijo Flores (Todavia, 128 páginas, R$ 59,90)

Potlatch é uma palavra chinook, uma família de línguas indígenas da América do Norte. Ela define uma cerimônia em que membros do grupo investiam numa troca violenta de oferendas e presentes. O título deste livro de Guilherme Gontijo Flores de alguma maneira define sua própria lírica — ao menos neste conjunto luminoso de poemas. Dividido em quatro seções — “A parte da perda”, “Colheita estranha”, “Três estáticas” e “Cantos pra árvore florir” —, Potlatch é o breviário portátil de poemas tão meditativos quanto sensuais, tão afiados quanto encantatórios; tão pessoais quanto marcados por uma visão contundente da História e da nossa relação com a natureza que insistimos em destruir.

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Nem doeu (autopornografia), de Otto Guerra

Nem doeu (autopornografia), de Otto Guerra

Um livro engraçadíssimo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na cachaça e na cerveja. Sim, verdade!  Autopornografia? Nem tanto assim. O cineasta e escritor Otto Guerra disse que escreveu este livro de memórias antes “antes que a bebida levasse todos os seus neurônios”. Pelo descrito no livro, faz sentido. Pela lógica do autor, não. Ele disse mais, disse que seu livro “é um estudo sobre como ser álcooldidata no cinema”. OK, ele gosta de trocadilhos — eu também! –, só acho que o segundo parece ser mais verdadeiro que o primeiro.

Nem doeu tem 130 páginas. Não é, portanto, algo como Em busca do tempo perdido nem em postura nem em proporções. Otto respeita a cronologia, mas só nos apresenta os melhores e decisivos lances, refletindo, de forma sempre hilária, sobre sua vida, trabalho e amores — materiais e imateriais. Já na epígrafe, Otto dá o tom, citando o grande Domingos de Oliveira: “O humor é a única forma de falar sério da vida”. E a única forma para Otto viver seria desenhando. Desde pequeno ele fazia isso e quase apenas isso dentro de uma família onde o padrão era ser médico, advogado ou engenheiro. Só que o menino Otto conseguiu levar o quarto da infância — cheio de papel e lápis de cor — para a vida. E depois tratou de animar seus desenhos.

Otto é autor de diversas animações como Rocky & Hudson- Os Caubóis Gays (baseado nas tiras de Adão Iturrusgarai), Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (baseado nos personagens do cartunista Angeli), Até que a Sbórnia nos Separe e A Cidade dos Piratas. Sua produtora faz tanto comerciais quanto animações para o público adulto.

As histórias contadas em Nem doeu mostram claramente uma trajetória coerente, se bem que muito alcoolizada. Sua vida artística e profissional são a mesma coisa. A pessoal também. Ele conta que desanimou nos anos 90, quando fez cerca de 600 comerciais. Mas que seu cinema embalou com Wood & Stock e não parou mais.

Bem, mas tergiverso: o que interessa no livro é o documento humano e o texto extremamente cômico para contar os sucessos e desgraças de uma vida de 65 anos. Não, isto não é para qualquer um.

O sexo? A autopornografia? OK, há bastante, mas acho que aqui ele se superestimou…

Eu gostei e recomendo!

Otto Guerra, o alcoolista lúcido / Foto de Marcelo G. Ribeiro para o JC

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Obras clássicas odiadas por autores famosos (II)

Obras clássicas odiadas por autores famosos (II)

Charlotte Brontë sobre Orgulho e Preconceito

Em carta a G. H. Lewes (amante de George Eliot), 12 de janeiro de 1848:

Por que você gosta tanto da senhorita Austen? Estou intrigada. O que o induziu a dizer que preferia ter escrito Orgulho e Preconceito ou Tom Jones do que qualquer um dos romances de Walter Scott? Eu não tinha lido Orgulho e Preconceito até ler essa sua frase, e então peguei o livro e estudei. E o que eu encontrei? Um retrato daguerrotipado (de daguerreótipo, antigo aparelho fotográfico inventado por Daguerre 1787-1851, físico e pintor francês) preciso de um rosto comum; um jardim cuidadosamente cercado e altamente cultivado, com bordas próximas e flores delicadas — mas nenhum vislumbre de uma fisionomia vívida e brilhante — sem campo aberto — sem ar fresco — sem colina azul — sem nada bonito. Eu dificilmente gostaria de viver entre suas damas e cavalheiros em suas casas elegantes, mas confinadas. Essas observações provavelmente o irritarão, mas eu correrei o risco.

Agora, eu posso entender a admiração por George Sand. Ela é perspicaz e observadora.

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Eu e meus foras

Eu e meus foras

Como todo mundo está fazendo, agorinha eu e Elena falávamos sobre a Ucrânia quando eu comecei a citar os ucranianos que conhecia. E eu citei Shevtchenko, goleador no Milan e grande jogador de futebol.

Minha mulher me olha com aquele ar de desalento sem fim, pois pensava que eu, um (pseudo)erudito, falava de Tarás Hryhórovych Shevtchénko, o maior poeta do país.

Na opinião dela, isto é como conhecer Beethoven só como o cachorro do filme. E, para mim, taras sempre foi outra coisa.

Tarás Hryhórovych Shevtchénko (Moryntsi, 1814 — São Petersburgo, 1861)

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Bamboletras recomenda livros pra todos os gostos (ou quase todos)

Bamboletras recomenda livros pra todos os gostos (ou quase todos)

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Elsa Morante (1912-1985)

Olá!

Nesta semana, sugerimos 3 livros muito bons e diferentes entre si. Um romance da enorme Elsa Morante, um HQ baseado em um livro de grande sucesso e um clássico de sci fi de dos anos 50. Bem, tem pra todos os gostos.

Excelente semana com boas leituras!

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A Ilha de Arturo, de Elsa Morante (Carambaia, 384 páginas, R$ 99,90)

Elsa Morante (1912-1985) costumava dizer que, no fundo, se sentia “um menino”. E afirmou certa vez, parodiando Flaubert, “Arturo sou eu”. Referia-se ao personagem narrador de A ilha de Arturo – memórias de um garoto, uma assombrosa evocação da infância e da puberdade. Figura fundamental e singular da vida intelectual na Itália do pós-guerra, Morante não teve, em vida, o reconhecimento merecido fora de seu país, em parte pela discrição pessoal e em parte por sua história de vida, pois as luzes eram mais dirigida a seu marido, Alberto Moravia. A ilha de Arturo se passa às vésperas da Segunda Guerra Mundial em Procida, ilha na região de Nápoles em que o personagem vive uma vida de liberdade e imaginação, sem escola, mas plena de livros e natureza selvagem. A mãe do garoto de 14 anos morreu no seu nascimento e o pai, Wilhelm Gerace, que ele idolatra acima de todas as coisas, passa grande parte do tempo em viagens misteriosas que alimentam os devaneios de Arturo. Um grande livro!

Tragédia da Rua da Praia, de Rafael Guimaraens e Edgar Vasques (Libretos, 60 páginas, R$ 45,00)

Tragédia da Rua da Praia, de Rafael Guimaraens, relata uma história real ocorrida em setembro de 1911. Quatro misteriosos estrangeiros assaltam uma casa de câmbio na Rua da Praia e se envolvem em uma fuga enlouquecida pelo Centro de Porto Alegre, a pé, de carruagem, de bonde e até a bordo de uma carrocinha de leiteiro. O episódio abala profundamente o cotidiano da cidade, suscitando pânico na população, disputas políticas e guerra de versões entre os jornais. Enquanto os ladrões são perseguidos, dois empresários produzem um filme que irá estrear dez dias após o assalto em quatro sessões diárias no Cine-Theatro Coliseu. Lançado em 2005, o livro Tragédia da Rua da Praia venceu o prêmio “O Sul, Nacional e os livros”, escolhido pela Câmara Rio-grandense do Livro como melhor narrativa longa. Aqui, a história recebe uma versão em quadrinhos, com desenhos do grande ilustrador Edgar Vasques.

A Nuvem Negra, de Fred Hoyle (Todavia, 272 páginas, R$ 76,90)

Um clássico. Cientistas do Observatório Palomar, na Califórnia, fazem trabalhos de rotina quando são surpreendidos por uma descoberta preocupante. Uma gigantesca nuvem negra de escala planetária está obliterando a luz das estrelas. E, se obliterar a luz do sol, aniquilará a vida no planeta, causando uma extinção pior do que a que extinguiu os dinossauros. Em um misto de hard sci fi com distopia, A Nuvem Negra, publicado em 1957, fala da rotina do trabalho científico e das consequências para a humanidade ao ignorar os avisos da ciência. Hoyle não hesita em tratar dos aspectos mais devastadores do evento que se avizinha, sem deixar de pensar nos tomadores de decisão e nas pessoas que serão impactadas.

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Os livros mais vendidos de fevereiro na Bamboletras

Os livros mais vendidos de fevereiro na Bamboletras

Olá! E o Fischer desbancou o Itamar!

Mais um mês chega ao final — já estamos em março, é inacreditável — e com isso temos a lista dos livros mais vendidos da Bamboletras em fevereiro!

1 – Dicionário de Porto-Alegrês (Luís Augusto Fischer)
2 – Torto Arado (Itamar Vieira Júnior)
3 – Os Supridores (José Falero)
4 – Porto Alegre na Palma da Mão (Ana Paula Alcântara)
5 – Quase (Toda) a Poesia (Juremir Machado da Silva)
6 – Lula, a Biografia Vol.1 (Fernando Morais)
7 – Mas em que Mundo tu Vive (José Falero)
8 – O Avesso da Pele (Jeferson Tenório)
9 – Tudo é Rio (Carla Madeira)
10 – Tudo Sobre o Amor (Bell Hooks)

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🗾 Estamos no Shopping Nova Olaria – Rua General Lima e Silva, 776 – loja 3
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Antes da improvável penitência, o Carnaval, Carnis Valles, ou os prazeres da carne

Antes da improvável penitência, o Carnaval, Carnis Valles, ou os prazeres da carne
Foto: Guilherme Santos / Sul21

Tal como o Natal, o Carnaval é uma festa anterior ao Cristianismo. É comemorado há pelo menos 10 mil anos. Existia no Egito, na Grécia e na Roma antigos, sempre associado à ideia de fertilidade da terra. Era quando o povo comemorava a futura boa colheita, a proximidade da primavera e a generosidade dos deuses. A festividade começou pagã e trouxe até nossos dias parte de suas características originais: os rostos pintados, as máscaras, o excesso, a extravagância e a troca de papéis.

Em Roma, o mais belo soldado era designado para representar o deus Momo do Carnaval. Era coroado rei e permanecia três dias nesta condição. Posteriormente, passou-se a escolher o homem mais obeso da cidade para servir como símbolo da fartura e reinar por três dias. Esta troca de papéis durante o carnaval foi extensivamente analisada por Mikhail Bakhtín no clássico A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Segundo Bakhtín, o carnaval permitia a inversão da ordem estabelecida, a fuga temporária da realidade. Seria um espaço de suspensão da rotina que ofereceria aos homens um grau de liberdade não experimentado normalmente. Se Bakhtín visava descrever a Idade Média e o Renascimento com a frase anterior, também descreve o que ocorre hoje, aqui, agora.

Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com suas leis, isto é, as leis da liberdade.

Mikhail BAKHTÍN

28/08/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Cortejo dos artistas de rua. Foto: Guilherme Santos / Sul21

O antropólogo Roberto Da Matta, em sua obra Universo do Carnaval: imagens e reflexões, traz a obra de Bakhtín ao encontro da realidade brasileira. Se não há uma inversão completa da ordem, é o momento em que os mais pobres, organizados, invadem o centro da realidade, estabelecendo um “mecanismo de liberação provisória das formalidades controladas pelo estado e pelo governo”. Durante o carnaval, há toda uma encenação em que se desmancham as subordinações – os pobres vestem ricas e escandalosas fantasias tomando o lugar da elite –, em que há outras inversões de papéis – homens travestindo-se de mulheres e vice-versa — e a celebração da abundância – de riqueza, de brilho, de música, de dança, de energia – em contraposição à rotina e à austeridade. Voltando à Bakhtín: “É a violação do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada do seu curso habitual”.

Foto: Guilherme Santos / Sul21

A Igreja Católica defendeu por muitos anos que a festa surgiu a partir da implantação da Semana Santa, no século XI. A Semana Santa ou, mais exatamente, a Sexta-feira Santa, é antecedida pela Quaresma, período de 40 dias que começa exatamente na Quarta-feira de Cinzas. A Quaresma seria um longo período voltado à reflexão e onde os cristãos se recolheriam em orações e penitências a fim de preparar o espírito para a chegada do Cristo ressurreto. Mas, antes, festa total! O longo período de privações teria incentivado as festividades nos dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas. A palavra “carnaval” estaria também relacionada à ideia dos prazeres da carne e a etimologia vem a nosso auxílio: carnaval deriva da expressão carnis valles, carnis significa “carne” em latim e valles significa “prazeres”. Então, se há a devoção a Cristo, antes há a devoção aos prazeres da carne. E não é nada de espantar a nudez das pessoas durante o período…

A passagem de uma data para outra, do Carnaval para Quaresma na Quarta-feira de Cinzas, foi tema para o grande Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569) no quadro A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), onde são mostrados dois grupos frente a frente, o dos penitentes e o carnavalesco. É curioso notar que a genial gravura confronta dois grupos diversos e não uma mudança de postura das mesmas pessoas. Se há realismo no quadro do flamengo, havia dois grupos, o dos festeiros e o dos religiosos. À direita, vem o grupo de religiosos; à esquerda, o de carnavalescos.

‘A luta entre o carnaval e a Quaresma’, obra de Pieter Brueghel, O Velho.

O dia anterior ao fim do Carnaval é a Terça-feira Gorda, em francês Mardi Gras, nome do Carnaval de New Orleans.

No Brasil e em todo o mundo onde há Carnaval, são verificadas características das manifestações antigas. O que são os trios elétricos senão cortejos que carregam milhares de pessoas que cantam, dançam e bebem numa verdadeira celebração dionisíaca? O que é o desnudamento aliado à luxúria, garantindo um cenário altamente propício à liberdade sexual, senão o clima tão bem descrito em Concerto Barroco, romance histórico do cubano Alejo Carpentier que se passa na Veneza de Vivaldi (no início do século XVIII)? Tais excessos, que normalmente acabavam em grandes orgias eram condenados pela Igreja, mas arrebatavam a nobreza. Bakhtín chama de “realismo grotesco” tal conjugação de materialidade e corpo, onde as satisfações carnais (comida, bebida e sexo) têm lugar de destaque.

Foto: Guilherme Santos / Sul21

Apesar da Quaresma ser quase desconhecida e pouco sentida em nossos dias, a catarse coletiva, o exagero e os efêmeros dias de festa contínua seguem e certamente seguirão por séculos. Na “sociedade do espetáculo”, como diria Guy Debord, o Carnaval se transforma em desfiles monumentais transmitidos pela TV, onde o que se vê é ainda o exagero, a troca de papéis e as alegorias e paródias que vêm desde há 10.000 anos, quando os homens afastavam os maus espíritos de suas plantações através de máscaras. A catarse atual não ocorre depois do longo inverno do hemisfério norte, nem é causada pela perspectiva de um longo período de penitência, mas é a data estabelecida no imaginário popular como a do verdadeiro início do ano, depois da qual tudo volta ao normal, entronizando finalmente o cotidiano que reina pelo resto do ano. Muito pensadores marxistas veem o carnaval como uma válvula de escape para as tensões do cotidiano, permitida, controlada e estimulada pelos grupos dominantes a fim de, depois, manipular e reforçar a ordem vigente, mas não sejamos tão revanchistas no dia de hoje. Dioniso não ficaria feliz.

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