Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Reli o super clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, a obra que marcou uma mudança radical na produção de Machado de Assis. Na época, Machado tinha 41 anos — a história foi publicada em folhetim em 1880, tomando a forma de livro no ano seguinte — e ele era considerado um excelente escritor do romantismo. Pois então veio Brás Cubas veio para mudar e dar um salto de qualidade não somente dentro de sua obra como no panorama da literatura brasileira. Memórias Póstumas é o livro que faz a transição do romantismo para o realismo, incutindo audácia e graça, refinamento e pessimismo, sensualidade e humor (às vezes negro) em nossa literatura. Os críticos torceram o nariz e depois se curvaram ao novo estilo livre de Machado, fã confesso de Laurence Sterne.

Anos depois, ao escrever o prefácio de Helena, romance de sua fase romântica (1876), Machado comenta rapidamente sua revolução:

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferente páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.

Brás Cubas é narrado por um defunto e dedicado ao primeiro verme que roeu as frias carnes de seu cadáver e é a celebração do nada que foi a vida do personagem principal. Brás Cubas é um rentista canalha, uma daquelas pessoas que nasceram podendo fazer exatamente nada, para apenas ficar administrando a herança recebida do pai e tentando vagamente uma carreira na política. Boa-vida, ele representa maravilhosamente nossa elite endinheirada, fútil e amante de privilégios. Sua vida é basicamente a narração de seus amores, por onde vazam suas características pessoais.

Primeiro vem Marcela, uma bela cortesã que trata de obter ganho financeiro de Brás Cubas, fato que só cessa com a intervenção de papai, que o manda estudar em Coimbra, de onde ele volta formado em Direito. De seu curso, ele mesmo diz que colheu “de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação”. O resto foram festas. Quando volta, seu pai quer vê-lo casado e deputado… E aparece Eugênia, a flor da moita, uma coxa que se enamora dele, mas que não se deixa humilhar com a certa rejeição. Depois vem Vírgília, o grande amor de sua vida. Num episódio que demonstra que Virgília não é flor que se cheire, ela se casa com Lobo Neves. Depois, Brás e ela tornam-se amantes por longos anos. Vírgília toma as páginas do livro, porém ainda há Eulália, a flor do pântano.

Por onde passa, Brás não somente conta de forma sedutora sua vida medíocre, como faz observações bastante cínicas sobre a vida e a política nacionais. Um dos personagens muitas vezes admirados por Brás é seu cunhado Cotrim, uma figura abjeta que trafica escravos e ganha muito com isso. Ao mesmo tempo, Cotrim seria “ferozmente honrado”, um “filantropo dotado de sentimentos pios”, mas com um detalhe: mandava “com frequência escravos para o calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”.

O texto é maravilhoso. Dividido em 160 capítulos curtos e ziguezagueantes, muitos deles meros exercícios de prosa, o livro é que há de sedutor e grudento. Machado não julga, não dá lições, apenas mostra e deixa seu crápula tagarelar, argumentando à vontade seus motivos e contando os acontecimentos. É uma leitura toda de viés, com o autor não deixando clara sua opinião certamente desfavorável sobre o “herói” do romance. Ao final, quando Brás diz “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, respondemos no mesmo estilo dele: sorte nossa. Só que não adiantou muito, pois ainda estamos lotados de  de Brás Cubas — e de todo gênero de privilegiados — em nosso amado Brasil.

Claro, trata-se de um clássico que merece o lugar-comum: Memórias Póstumas de Brás Cubas é incontornável!

O grande Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

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O Grande Livro Doente de Machado de Assis

Memorial de Aires não é considerado um dos principais romances de Machado de Assis. A maioria fica com Dom Casmurro ou Brás Cubas e com o irretocável mosaico de contos. Até compreendo, mas prefiro o delicado Memorial. Provavelmente estou errado, pode tratar-se de simples idiossincrasia, porém, como velho leitor do Bruxo de Cosme Velho, vou tentar explicar minha opinião.

A publicação deste romance-diário ocorreu em 1908, ano da morte do escritor. O tema é quase nenhum. O Conselheiro Aires, que já havia narrado o romance anterior de Machado, Esaú e Jacó, escreve este diário-romance na posição de um mero observador da “ação” – e portanto não na posição de narrador onisciente -, observando as aventuras amorosas dos mais jovens e anotando de forma sedutora também outros acontecimentos a seu redor: amizades, pequenos casos, pequenos dramas, piadas.

O romance perpassa dois anos da velhice do personagem-autor; serenamente, ele leva o leitor com suas observações aleatórias de aposentado. Conta sobre o amor de Fidélia e Tristão, sobre a vida passada como diplomata, sobre leituras ou acontecimentos políticos, tudo sem muita ordem. O livro é quase destituído de enredo, descrevendo o final da existência de alguém muito experiente e perspicaz. O tom do Memorial fica entre a melancolia de quem está velho demais para conquistas amorosas e o bom humor indulgente da experiência. Parece uma crônica leve sem maiores objetivos mas é uma visão bastante amarga da solidão da velhice. Este paradoxo torna o livro irresistível para mim. O que esperar de um velho inteligente, aposentado, sem filhos e nada para fazer? Risonho e falsamente fútil, Aires vai habilmente descrevendo a vida dos amigos Dona Carmo e Aguiar, um casal sem filhos que toma a jovem Fidélia como se fosse sua filha e a vê mudar-se para Portugal com seu amor Tristão. Aires nos mostra a devoção com que o casal espera e recebe cada carta vinda de Portugal; a forma amiga e piedosa – ao mesmo tempo que irônica e crítica – com que Aires aborda o casal é encharcada da mais pura humanidade.

É evidente que Machado está, ao expor-nos Dona Carmo e Aguiar, expondo nostalgicamente a intimidade de sua própria vida com Carolina, a esposa de toda uma vida, recém falecida à época em que o romance foi escrito. Em grande parte, os méritos do livro estão na perfeita e contida descrição de seres tão pouco romanescos quanto o próprio Conselheiro Aires, Dona Carmo, Aguiar, Fidélia e Tristão, que aqui são cuidadosamente emoldurados por um mestre no auge de sua arte.

Talvez eu não tenha convencido você da qualidade do livro ou talvez minha avaliação seja um equívoco; então, para me auxiliar, invoco inesperadamente o depoimento do cineasta François Truffaut.

Truffaut criou a categoria dos Grandes Filmes Doentes. A definição deste tipo de filme está no parágrafo a seguir e reparem como ela serve para o Memorial. Peço-lhes que troquem as palavras relativas ao cinema por outras relativas à literatura. Por exemplo, troquem filme por livro, diretor por escritor, cinefilia por bibliofilia ou bibliofagia, etc. Com a palavra, François Truffaut, o diretor que amava os livros e um de meus heróis neste mundo:

Abro um parêntese para definir rapidamente o que chamo de um “grande filme doente”. Não é senão uma obra-prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso. (…) Esta noção só pode aplicar-se, evidentemente, a diretores muito bons, àqueles que, em outras circunstâncias, demonstraram que podem atingir a perfeição. Um certo grau de cinefilia encoraja, por vezes, a preferir, na obra de um diretor, seu grande filme doente à sua obra-prima incontestada! (…) Se se aceita a idéia de que uma execução perfeita chega, na maior parte das vezes, a dissimular as intenções, admitir-se-á que os grandes filmes doentes deixam transparecer mais cruamente sua razão de ser. (…) Diria, enfim, que o “grande filme doente” sofre geralmente de um extravasamento de sinceridade, o que paradoxalmente o torna mais claro para os aficionados e mais obscuro para o público, levado a engolir misturas cuja dosagem privilegia o ardil de preferência à confissão direta.

Trecho da crítica de Truffaut sobre o filme Marnie – Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock. Retirado de Hitchcock / Truffaut – Entrevistas (Ed. Brasiliense – 1986).

O Memorial é isto mesmo. É um Grande Livro Doente. O ex-diplomata Aires é, certamente, o próprio Machado sexagenário. Tranqüilo, irônico e pessimista, goza sua aposentadoria escrevendo pequenos acontecimentos em seu diário. Nada de romanesco alterará sua existência e ele se compraz na companhia de seus velhos amigos e na observação dos jovens. O ambiente do livro é o mesmo de suas crônicas e até a relativa vergonha de sentir-se atraído por uma jovem viúva é descrita, ao lado do bom senso que o faz aconselhá-la a um casamento com um jovem. Trata-se de um calmo “extravasamento de sinceridade”. Porém… Claro que um livro assim move-se a passos de tartaruga e seu verdadeiro personagem deve ser o texto – no caso uma notável demonstração de virtuosismo literário talvez só repetível por alguém do porte de Henry James. Pode ser que a imobilidade e os gentis saraus de uma velhice esclarecida tenham afastado o público do livro, mas não afastou os loucos por Machado.

Para terminar, uma citação que bem demonstra o espírito de Memorial de Aires:

Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis, MEMORIAL DE AIRES

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Leite derramado, de Chico Buarque

Leite derramado é um bom romance. Eu gosto muito de Chico Buarque, adoraria cobri-lo de elogios, mas acho que sua evolução como romancista sofreu um tropeço. Vejam bem, o romance é perfeito, bem escrito, poético, tem humor, lirismo e amargor na medida certa, utiliza inteligentemente temas já abordados em livros clássicos da literatura brasileira, ou seja, é muito bem realizado. Só há problema nele: não é relevante como Budapeste. Assemelhando-se mais a uma colagem muito bem feita, não avança como poderia, apenas mostra, mostra, mostra.

Quando comecei a ler o livro, logo pensei: “Puxa, mas isso aqui é a música O Velho Francisco em prosa!”. Fui ler as reportagens e Chico confessa ter utilizado sua canção como base para a história. Era um bom começo.

Eulálio d’Assumpção, o protagonista, é um velho centenário que, como Brás Cubas, passa a contar sua vida ora para a enfermeira, ora para a filha, ora para sua mulher que o abandonou há mais de setenta anos… A perspectiva é a mesma do célebre defunto de Machado de Assis, pois Eulálio é um morto-vivo. A narrativa em primeira pessoa é errática como se esperaria de alguém com mais de 100 anos, privilegiando os acontecimentos mais remotos à memória recente, muito mais volátil nos velhos.

É claro que Eulálio é uma metáfora do Brasil, é claro que ele traz consigo todo o racismo e as aspirações de grandeza dos personagens da Velha República, é óbvio que ele não compreende muito do que acontece a sua volta, é evidente a relação entre Matilde e a Capitu de Machado de Assis, assim como a de Eulálio e Brás Cubas, é ululante o fato de que Chico mostra muito bem a decadência da elite brasileira do começo do século XX; então, se o livro tem todas estas qualidades, onde estão os defeitos. Ora, seu problema é ser limitado do ponto de vista ontológico. Eu sei que é pedir demais, porém, se analisarmos o que Faulkner fez nas 40 primeiras páginas de O Som e a Fúria ao penetrar na cabeça de um retardado mental, talvez possa explicar que, em minha opinião, faltou Eulálio e sobrou costumes e sociologia no mosaico de Chico, faltou psicologia e sobraram os artifícios de uma bela prosa. Às vezes, Eulálio é lógico demais e só no final do capítulo fantasia. Penso que um personagem tão confuso não poderia criar outros personagens com recortes tão claros e sucintos quanto os que consegue Eulálio, antes de voltar a seus delírios. A estratégia de Chico fica clara demais e isto implica em certa deselegância. Então, minha crítica mais dura é direcionada a um protagonista que não funciona como deveria. Sim, é grave. Não mata o livro, mas é grave.

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Em 2004, publiquei uma resenha curtíssima sobre Budapeste. meu entusiasmo era outro logo após a leitura:

Budapeste é um grande livro. Belo e engenhoso. O recurso do duplo já foi utilizado por mestres como Poe, Dostoiévski, Borges, Saramago, Philip Roth, E.T.A. Hoffman, Chamisso, etc., mas não reaparece gasto nas mãos de Chico. Aliás, Chico Buarque é músico ou escritor? Anos atrás, a resposta seria simples; hoje a pergunta não faz mais sentido. Ele é os dois, é duplo. O personagem principal, José Costa, é um talentoso ghost writer que, ao retornar de um congresso de profissionais desta área fantasmal da literatura, aterrissa inesperadamente em Budapeste por problemas no avião que o levaria ao Brasil. Hospeda-se num hotel e lá ouve a língua húngara — que é, dizem, respeitada até pelo diabo –, pela qual apaixona-se, resolvendo voltar logo que puder à Budapeste a fim de aprendê-la. A partir deste início simples, Chico parece disposto a reescrever o segundo movimento do Concerto para Orquestra de Béla Bártok, no qual os instrumentos surgem em duplas: dois fagotes, dois oboés, dois clarinetes, etc. O movimento chama-se Gioco delle coppie (Jogo das Duplas) e serve bem para caracterizar o que encontramos em Budapeste. Será meramente casual o fato de Bartók ser um compositor húngaro e ter vivido em Budapeste? Além de José Costa ser uma espécie de duplo profissional quando escreve em lugar de outros, vão aparecendo duas cidades (Rio e Budapeste), duas línguas, duas mulheres, mais duas cidades (Buda e Pest), duas crianças, e, ao final, temos mais dois livros escritos por ghost writers, um deles creditado a Zsoze Kósta. O jogo regido por Chico é de tal forma satisfatório como deleite intelectual, que torna ociosos os muxoxos deste que vos escreve, que gostaria de vê-lo gravando CDs com músicas inéditas.

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