Há 400 anos, o fogo consumia o teatro de Shakespeare em Londres

Há 400 anos, o fogo consumia o teatro de Shakespeare em Londres
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)

Publicado no Sul21 em 29 de junho de 2013

O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.

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Uma gravura da época anônima que mostra o famoso teatro de Shakespeare

No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.

A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas de Oxford, a 64 km de distância.
A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas a 60 km de distância.

A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²

Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.

Foto: Carmen Crochemore
O atual Globe | Foto: Carmen Crochemore

Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.

O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.

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O teatro durante uma peça

Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.

Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de trágedias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.

Foto: Carmen Crochemore
O teatro vazio | Foto: Carmen Crochemore

Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Dêem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.

Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.

William Shakespeare (1564-1616)
William Shakespeare (1564-1616)

Orson Welles: o gênio iconoclasta poderia ter sido muito maior

Publicado originalmente em 6 de maio de 2012 no Sul21

A obra de Orson Welles não foi sendo construída pouco a pouco como se fosse um edifício. Sua obra tem melhor analogia quando se afasta a ideia de lenta construção e se pensa em espasmos ou trovoadas, talvez em destruição. Pois Welles teve momentos inalcançáveis e de grande repercussão pública ou artística e outros que também foram altos, mas que permaneceram encobertos pelo silêncio, pelos cortes, pela má distribuição e pelas impossibilidades financeiras. Houve momentos em que ele pareceu o maior ator e diretor possíveis, em que ninguém foi mais criativo ou ousado e outros onde a ousadia parecia estar associada ao desejo de auto-destruição.

Nascido em 6 de maio de 1915, Welles teve um fulgurante início de carreira. Aos 23 anos, realizou a transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos. Grande ator e dono de uma voz poderosa, gerou tanto medo que tornou-se instantaneamente famoso. Todos queriam saber quem era o maluco responsável pela “notícia”, lida em emocional tom jornalístico sobre uma invasão de extraterrestres. Ainda muito jovem, aos 26 anos, finalizou e lançou Cidadão Kane (1941), até hoje considerado um dos maiores filmes de todos os tempos. Aliás, é certamente o filme mais presente na primeira colocação neste gênero de listas. Mas Orson viveu outros picos de criatividade com A Marca da Maldade (Touch of Evil), Soberba (The Magnificent Ambersons), Verdades e Mentiras (For Fake), além de seus filmes baseados em peças de Shakespeare (Otelo, Macbeth e Falstaff) e no romance de Kafka (O Processo) e dos muitos bons trabalhos como ator.

Abaixo, o som original do jovem ator e radialista narrando A Guerra dos Mundos:

Se analisarmos os anos de produção destes filmes, chegaremos à conclusão de que não ocorreu uma lenta decadência, como alguns gostam de apontar. O que houve foram repetidos problemas que prejudicaram a produção cinematográfica de um autor revolucionário. Por exemplo, A Marca da Maldade é de 1958; Soberba, de 1942; Verdades e Mentiras, de 1974; e os outros estão espalhados entre os anos 40 e 60. Na verdade, Welles teve sempre imensas dificuldades em produzir seus filmes, porém, quando lograva produzi-los, estes iam direto para a galeria dos exemplares ou polêmicos. Até hoje, nada do pouco que realizou foi esquecido.

Orson Welles jamais deixou de lutar com os estúdios. Mesmo Cidadão Kane teve sua luta, não contra um estúdio, mas contra a forte oposição de William Randolph Hearst, magnata da imprensa norte-americana,  proprietário de 28 jornais nas principais cidades do país, cadeias de rádio, produtora de cinema, etc., que se considerava retratado na história, fato sempre negado pelo autor. Em Kane, Welles trabalhou como diretor, co-roteirista, produtor e ator. O filme marcou época não apenas pela denúncia da imprensa (marrom), mas devido a uma série de novidades: narrativa não linear, enquadramentos surpreendentes que mostravam até  tetos, continuidade visual para cenas sem continuidade no tempo e no espaço, além de um tom denuncista raras vezes repetido com tanta sensibilidade.

Abaixo, o trailer original de Cidadão Kane (na época, os trailers era feitos especialmente e tinham poucas cenas dos filmes que promoviam):

Mesmo dirigindo outros filmes após Cidadão Kane, o diretor nunca mais conseguiu restabelecer sua fama. Tudo começou com o documentário em três partes It`s all true, iniciado no mesmo ano lançamento de Cidadão Kane. Welles disse em entrevista concedida a André Bazin: “Era co-dirigido por mim e Norman Foster. Depois fizeram outra versão, modificando todas as ideias e refazendo tudo ao modo deles. Eu tinha rodado durante três meses, mas o estúdio (RKO) me despediu. Quando retomaram a ideia, não queriam saber mais de mim. Tampouco me pagaram nenhum tipo de direitos”.

No mesmo ano, veio Soberba, um magnífico retrato da “nobreza econômica norte-americana”. Aqui, Orson voltava a acumular as atribuições que tivera em Kane, mais a de diretor de fotografia. O Amberson é ser um ser que, por natureza, é (ou parece ser) superior a tudo e a todos, sublinha Welles na narrativa. É um filme que lhe parece tão eficiente, atemporal, bem narrado e original quanto Kane, mas a RKO tirou 56 dos 144 minutos previstos pelo diretor, deixando o filme mutilado, sem o poder de fogo de Kane. Os 56 minutos cortados foram criminosamente queimados em sua ausência.

Welles (agachado) filmando It`s all true

O que aconteceu é que Welles fora contratado para preparar um filme que estivesse de acordo com a Política da Boa Vizinhança com a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial – o citado It´s all true – e, por conta disso, não teve como trabalhar na montagem e finalização de Soberba. Em sua ausência, cenas foram cortadas e outras refilmadas. O final também foi alterado e, após este filme, Orson Welles dificilmente conseguiu finalizar um projeto de forma inteiramente autônoma. Era um autor que não tinha poder sobre sua obra.

Depois do relativo sucesso de O Estranho (The Stranger), houve o fracasso real de A Dama de Xangai (1948) e o estigma de diretor que não gerava lucros passou a acompanhá-lo onde fosse. Ao mesmo tempo, a inacreditável fama de Cidadão Kane como “maior filme de todos os tempos” passava a varrer o mundo, fazendo de seu autor um diretor de um só filme. Welles passou a representar este paradoxo. Como também era excelente ator, seu nome e fama davam respeitabilidade a alguns projetos – às vezes péssimos – e ele acabava atuando muito. Muitas vezes não fazia papel nenhum, aparecendo apenas como uma espécie de narrador ou comentarista do filme. Parecia um diretor de cinema aposentado, mas ainda haveria espaço para boas realizações.

Orson Welles em A Marca da Maldade

De forma bem espaçada no tempo, Welles teve uma bela atuação como ator em O Terceiro Homem, de Carol Reed, depois a direção e atuação em Otelo, até chegarmos à direção do perfeito A Marca da Maldade (1958), que traz a história de um homem amargurado pelo passado que vai se revelando mais e mais complexo. Tendo como pano de fundo os conflitos na fronteira do México com os EUA. The Touch of Evil não tem apenas uma brilhante cena inicial, mas várias que até hoje são referências. Abaixo, a clássica cena de abertura de A Marca da Maldade:

Mas mesmo neste filme, Orson Welles não estava previsto como diretor. Fora contratado para trabalhar apenas como ator. Porém, o astro Charlton Heston entendera que o diretor de Kane iria atuar e dirigir o filme e tal fato fora decisivo na sua aceitação do projeto. Para agradá-lo, o produtor Albert Zugsmith resolveu oferecer a direção a ele. Welles filmou tudo conforme desejava, mas, como de hábito, acabou demitido durante a montagem. Hoje, vemos A Marca da Maldade na concepção de seu autor, mas no lançamento o filme tinha 16 minutos a menos. Como em Soberba, era novamente a versão dos produtores.

Romy Schneider, Orson Welles e Anthony Perkins durante as gravações de O Processo

Tais confusões impediam-no de dirigir outros filmes e, após muitos trabalhos como ator nos EUA e na Europa, Welles só retornou à direção em The Trial (O Processo) em 1962. Mesmo com grandes atores – Anthony Perkins, Jeanne Moreau, Romy Schneider e o próprio diretor – , a pessoalíssima leitura do autor para a obra de Kafka foi muito pouco vista. Mais pessoal ainda é o extraordinário Verdades e Mentiras (F for Fake), de 1974, uma produção francesa, espécie de jogo onde Welles brinca com a percepção do espectador. Verdades e Mentiras é um falso documentário que gira em torno da fraude nas artes plásticas e logo abarca outros campos como a o da palavra, das ações humanas, dos sentimentos . O jogo entre verdadeiro e falso e se o fidedigno  realmente existe, domina este filme absolutamente lúdico e ilusório.

Aqui, o filme completo

Aos que não conhecem o diretor, indicamos principalmente o trio Cidadão Kane, Soberba e A Marca da Maldade. Para quem gosta de jogos e ironias, indicamos nosso preferido, Verdades e Mentiras.

É realmente triste que um autor tão notável tenha se tornado obscuro. Orson Welles acabou obscurecido pelo tremendo sucesso de uma de suas obras, pelas imposições dos estúdios e por ser muito pouco político… O fato de ter produzido tão pouco como diretor foi uma enorme perda para a arte cinematográfica.

Welles em For Fake