Esta é uma semana de grandes lançamentos: a biografia de João Gilberto Noll escrita por Flavio Ilha, os extraordinários Diários de Franz Kafka e um originalíssimo romance que se passa aqui ao lado da Cidade Baixa, no Menino Deus, são três excelentes dicas da Bamboletras para esta semana fria e de algum temor sobre uma terceira onda que esperamos que não ocorra.
Poderíamos mostrar outros ótimos livros, mas mantenhamos nosso número tradicional de três, que está nos três poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo), nos Três Mosqueteiros, nos Três Porquinhos, nos três sobrinhos do Pato Donald (Huguinho, Zézinho e Luizinho), na Santíssima Trindade, etc.
Boa semana com boas leituras!
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Biografia do escritor João Gilberto Noll, resultado de quatro anos de pesquisa do jornalista e escritor Flávio Ilha. A obra traz também quatro contos inéditos e dezenas de fotos de Noll, além de cartas e trechos do romance inacabado que o escritor deixou. Ilha teve acesso a cartas e documentos pessoais de Noll cedidos pela família e amigos. O jornalista e escritor é leitor de Noll desde seu primeiro livro, ‘O cego e a dançarina’, de 1980. Em menor ou maior intensidade, acompanhou de perto seu trabalho, mas só foi conhecê-lo pessoalmente em 2016, ao cursar uma de suas oficinas literárias. Nesta ocasião os dois iniciaram um processo juntos: Flavio propôs a produção de um documentário sobre sua história literária, que seria feito a partir das tradicionais caminhadas do escritor no centro da cidade de Porto Alegre, e também de leituras de trechos de seus livros por pessoas convidadas. “Noll inclusive já havia selecionado alguns trechos para ler, estava empolgado, mas morreu antes de conseguirmos dar início ao projeto. Como não seria possível fazer o trabalho sem ele, decidi transformar em uma biografia. Comecei aos poucos, tateando, procurando pessoas. Só engrenou mesmo em 2019” afirma Flávio Ilha.
“Tudo que não é literatura me entedia”, anota Franz Kafka em certo dia de 1913. A essa altura, Kafka, um advogado judeu de Praga, era funcionário de um instituto de seguros trabalhistas e começava a receber uma modesta atenção como o autor da novela ‘O veredicto’. Sua glória seria póstuma e por obra do amigo Max Brod, que não destruiu sua obra como lhe fora pedido e fez o contrário, divulgou-a. Uma prova disso são estes ‘Diários’, verdadeiro monumento literário do século XX traduzido integralmente pela primeira vez no Brasil por Sergio Tellaroli. São páginas assombrosas. Constituem aquilo que o escritor argentino Ricardo Piglia qualificou como o “laboratório do escritor”: o espaço em que o autor de ‘A metamorfose’ experimentava e afiava a sua escrita em meio a comentários sobre sua época, suas leituras, suas decepções amorosas, rascunhos de cartas, relatos de sonhos, começos de obras literárias jamais concluídas, bem como diversas de histórias acabadas.
Olivetti Lettera 32 é um romance de 37032 palavras. Um narrador incomum. Três personagens expostas a páginas escritas. Uma máquina de escrever. O romance estrutura-se a partir de um livro recebido. Cada uma das mulheres residentes no prédio do bairro Menino Deus acaba por, em algum momento de um mesmo dia, receber um tomo. Os volumes estampam seus nomes nas capas. O que se cria, a partir da chegada dos exemplares, é um resgate de suas vidas. Um narrador misterioso, aparentemente onisciente, busca métodos de escrita e recursos linguísticos para contar essas mulheres. Descobre-se, assim, durante a leitura das narrativas, um sentimento de culpa transversal ao feminino das personagens. Muito disso é apresentado pelo narrador a partir de bilhetes anexados às obras. Ele conversa, expõe-se também às personagens trazendo os dramas das mulheres aos olhos da leitura, assim como os seus próprios. Diva, Eleonora, Maria Luíza. Três personagens de tempos diferentes, vivenciando a dor e o prazer de se constituir como mulher.
Quem, em Porto Alegre, não conhecia João Gilberto Noll? Ele caminhava muito pelas ruas, era um sujeito alto e desajeitado que vestia roupas surradas e formais. Tinha o rosto meio torturado, mas sorria quando nos via. Uma vez, discutimos nos comentários de meu blog. Mas logo concordamos e eu deletei a indignação dele e minha resposta. Acho que ele sabia que eu era o chato que tinha contado quantas vezes personagens seus tomavam essa ou aquela atitude. Apesar de ele parecer simpatizar comigo, nunca quis me aproximar porque Noll aparentava habitar um plano de profundos pensamentos ao qual não estou acostumado. Ele ia muito ao cinema, sentava sempre lá atrás e era dos primeiros a sair. A única vez que falamos nem foi uma conversa. Na saída de um filme, “A Vida dos Outros”, ele me olhou com a cara significativa de “Que filmaço!” e eu disse o que ele estava pensando. Noll sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Eu gostava muito dos seus livros.
Mentira. São 45 livros porque 5 receberam dois votos.
Inspirado por Carlos Willian Leite, do Jornal Opção, de Goiânia, o Sul21 convidou dez romancistas, poetas, ensaístas ou críticos literários para nomearem as cinco piores obras de autores brasileiros que conhecem. Obviamente, a escolha reflete o gosto pessoal e o conhecimento de cada um dos dez “jurados” e não uma condenação irremediável. Trata-se de uma anti-lista, contrária às listas habituais de melhores.
Ampliando a ideia inicial, pedimos que, a cada voto, fosse acrescentada de uma a cinco linhas justificando a escolha. Por iniciativa nossa, informamos aos votantes que não divulgaríamos seus nomes, postura que foi rechaçada por dois deles, Fernando Monteiro e Ronald Augusto, que têm suas iniciais apontadas logo após seus votos. Os outros “jurados” apenas aceitaram as regras sem comentá-las. Deste modo, não podem receber a imputação de terem planejado agir sob o manto do anonimato…
(Carlos André Moreira também pediu que seus votos fossem indicados. Justificativa abaixo (*)).
Por falar em anonimato, o autor desta introdução não votou.
Assim, acrescentamos as iniciais C.A.M. aos respectivos votos. A seguir, então, em ordem alfabética por título, a lista dos 50 livros para morrer antes de ler:
Agosto, de Rubem Fonseca
Tive de ler por obrigação e acabei tomando ojeriza pelo personagem principal do livro: a azia do protagonista.
A Casa do Poeta Trágico, de Carlos Heitor Cony
Romance artificialmente construído, com pretensões de “clima internacional” que termina por criar situações ridículas como a do casal de amantes, personagens centrais, que passam uma noite inteira trepando nas ruínas de Pompeia porque se distraíram (trepando, já) e não perceberam que o sítio arqueológico havia sido aferrolhado, de acordo com o horário de fechamento dos portões (17h). Tudo bem. O homem e a mulher não se incomodam… Sem colchão, sem lençol, sem travesseiro, sem mais nada, continuam a trepar e só vão sair das ruínas quando os funcionários reabrem Pompeia para os turistas, às 10h da manhã seguinte. É mole? Não. Teria que ser muito dura (a noite). Por cenas como essa, melhor morrer antes de ler. (F.M.)
A Casa das Sete Mulheres, de Letícia Wierzchowski
— Essa pérola do cancioneiro gauchesco tem uma das mais mal escritas primeiras páginas da história da literatura universal. O resto do livro vai pelo mesmo caminho.
— Contar a Guerra dos Farrapos a partir das mulheres próximas ao general Bento Gonçalves não é ideia ruim. Mas é tudo canhestro no livro: a narrativa, o enredo, a construção dos personagens. Uma leitura que dura para sempre, no mau sentido.
A Divina Pastora, de Caldre e Fião
Achado um único exemplar num sebo de Montevidéu pelo livreiro Monquelat de Pelotas. Antes nunca o encontrasse!
A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães
Conto de fadas de superação do interdito social. História irrealista que pretendia demonstrar que as tendências (pseudo) democráticas dependiam apenas da boa vontade cristã das pessoas. Daí a Globo ter exibido a novela que tanto agradou a classe média, sempre politicamente equivocada e alienada.
A Guerrilheira, de Índio Vargas
Embora Índio Vargas seja autor de um dos livros mais importantes sobre a ditadura militar, “Guerra é Guerra, dizia o Torturador”, este aqui parece um esboço que alguém mandou inadvertidamente para a gráfica e foi publicado sem passar por revisão. Falta foco, estrutura, cuidado com a prosa, os episódios desmentem uns aos outros, repetem-se, quando não se perdem em digressões que não acrescentam nada, nem tensão. (C.A.M.)
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo
— Bobo. A fantasia não dá nem uma novela das seis, o texto é primário. É um crime fazer os adolescentes lerem essa chatice dizendo que se trata de literatura, pior, de um clássico. Esse livro só tem importância dentro da história da literatura brasileira, coisa que o professor pode resumir numa linha e poupar os alunos.
— Clássico absoluto e abominado nas salas de aula brasileiras, mas permanece sendo lido, vendendo e com lugar cativo na alma de cada mau professor deste grande país!
A Quarta Parte do Mundo, de Clovis Bulcão
A orelha promete um “épico eletrizante”, “baseado em fatos reais” (a malfadada passagem de Villegagnon pelo Brasil). Na verdade, “eletrizantes” são as imagens, algumas das mais feias da história da literatura brasileira, como essa: “Uma robusta garça fora ferida e grunhira como um porco”. O autor criou um mundo perigoso, em que os personagens sentem apenas emoções-clichê, como uma “mistura de pavor e ódio”, e em que podem ser “tragados por piratas ou pelos abismos do mar” (tentemos visualizar isso…). Definitivamente não recomendo.
A Suavidade do Vento, de Cristóvão Tezza
Romance fraquíssimo, que nada tem a ver com a sutileza de um Antonioni, em certa tarde, olhando para árvores descabeladamente agitadas: “Como é fotogênico o vento!”, como registrou o mestre italiano da (verdadeira) suavidade na sua “Trilogia da Incomunicabilidade”, bem longe do realismo rastaquera do Tezza desse livro. (F.M.)
As Parceiras, de Lya Luft
Psicologismo mediano misturado com literatura convencional que tenta disfarçar, sem sucesso, um estilo a meio caminho do entretenimento em tom pastel e da autoajuda intimista. Narrativa para lobas fleumáticas. (R.A.)
Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão, de Raimundo Carrero
Muito ruim. Influenciado por Lorca (?) até no título, além das situações de “dramaticidade” de estilo juvenil em torno de mulheres confinadas à maneira exatamente de “A Casa de Bernarda Alba” (sem ter, entretanto, conseguido imitar a qualidade do inspirado poeta andaluz). Em tempo: não seria “tigresa”?… (F.M.)
Cai a noite sobre Palomas, de Juremir Machado da Silva
Há uma diferença bastante grande entre construir personagens inteligentes e colocar frases de efeito e nomes de grandes pensadores em suas bocas. Talvez o Juremir não soubesse disso ao escrever o seu primeiro livro. Triste é perceber que segue sem sabê-lo até hoje.
Canto da noite, de Augusto Frederico Schmidt
Para ser justo com o falecido, eu poderia ter mencionado a obra poética inteira como exemplo da pior poesia feita no Brasil. No gênero, o autor talvez tenha sido a maior impostura de todos os tempos. Por ser endinheirado e porque publicava os grandes poetas de seu tempo, era apontado, por eles, como um grande poeta. (R.A.)
Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre
Não é nem romance nem obra sociológica. Até nos faz pensar que no Brasil se praticou e se pratica a democracia racial , via miscigenação e que na casa grande havia senhores bons e na senzala escravos submissos. Cáspite !!!
Contra o Brasil, de Diogo Mainardi
— A história de um picareta que odeia o Brasil e passa o tempo todo citando frases de viajantes e pensadores que desancaram o País e seus habitantes. Acho que ninguém vai querer ler uma autobiografia do Diogo Mainardi, mas por precaução, foi para a lista.
— Mainardi não tem muita preocupação com ideias, propostas, alternativas. Sua intenção é de apenas bater, sua arte é a da objeção. Um livro cuja intenção é a de vender o complexo de vira-latas do autor. Não obtém o riso, não informa, não nada. Merece presença aqui.
Corpo Presente, de João Paulo Cuenca
É um mistério o prestígio que Cuenca desfruta como “autor da nova geração”, já que sua obra parece reunir justamente os piores maneirismos da sua geração: abuso de ironia, pretensão acima da qualidade de seu texto, investimento em fórmulas que já não convencem. Este seu primeiro romance é um bom exemplo: um “romance urbano” com um “protagonista deslocado”, perdido em “questões de sobrevivência e sexo”, redigido em uma “escrita cinematográfica”, que na verdade é uma prosa que se pretende densa e nebulosa, mas apenas abusa de orações coordenadas sem parecer que sabe onde quer chegar. Puxa, como ninguém pensou nisso antes? (C.A.M.)
Dois Irmãos, de Milton Hatoum
Já houve um Jorge Amado, e foi suficiente.
Estorvo, de Chico Buarque
— O que dizer quando o título diz tudo? Chico, como escritor, costuma, na minha modesta opinião, emular outros escritores, com resultados sempre inferiores aos do original.
— A prova impressa de que a genialidade em determinado campo artístico não implica em qualquer tipo de brilhantismo nos demais. Compositor de raro talento, Chico é um escritor medíocre, infelizmente. Acho que nem fã de carteirinha aguenta esse árido calhamaço de coisa alguma.
Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho
Outro livro enorme, uma biografia excessivamente ocupada do varejo, do trivial-mínimo, da vida pessoal de Fernando Pessoa, que o autor jura ter visto nas ruas de Lisboa (isto é, a alma penada do poeta), talvez sinalizando que ele, Cavalcanti Filho, escrevesse sobre quantas vezes, por exemplo, um bardo alfacinha é capaz de ir ao banheiro, num único dia, depois de ter repetido o fundo prato da caldeirada do “Martinho das Arcadas”… (F.M.)
Esta entrevista, feita por mim, foi publicada em 28 de agosto no Sul21
O pernambucano Fernando Monteiro é poeta, romancista, dramaturgo, cineasta e crítico de arte. É autor, entre outros, dos romances Aspades, ETs., Etc., A Cabeça no Fundo do Entulho (ambos publicados pela Record) e O Grau Graumann (Globo). Aspades talvez seja seu livro mais importante. Premiado em Portugal — onde foi primeiramente lançado — e no Brasil, é um curioso romance que abarca vários gêneros para descrever a vida do imaginário cineasta português Vasco Aspades do Carmo. Já Grau Graumann tem como personagem principal Lúcio Graumann, um desconhecido gaúcho de Santa Cruz do Sul que foi o primeiro brasileiro laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Moribundo e ignorado, poucos o conhecem. A Academia Brasileira de Letras e os cadernos de cultura não têm o que dizer a respeito…
É o que acontece nesta entrevista exclusiva concedida ao Sul21.
Sul21 – Uma vez tu disseste que os escritores de hoje escreviam para o passado. O que querias dizer com isso?
Fernando Monteiro – Uma vez que você não encontra mais tantos leitores que respondam com a mesma atenção dos de antes, os escritores passaram a escrever para um leitor que está morto, para um gênero de leitor que não mais existe. Porque, na verdade, o leitor é mais importante do que o autor. Como dizia Borges, o leitura e é uma atividade posterior e mais refinada do que a do escritor. Nós somos autores porque fomos e somos leitores. Borges, em sua zona de sombras, permanecia considerando-se um leitor. Uma vez, em Curitiba, participei de uma série de entrevistas onde o mote era “Por que você escreve?”. Era uma série de longas entrevistas onde a gente podia se esbaldar. Mas o essencial da minha resposta era extremamente simples: eu escrevo porque li. Quando era um jovem e bom escritor, Fernando Sabino disse que, quando a gente escreve, acaba por perder a inocência como leitor. Descobrimos o caminho da mina, a estrutura, os truques. Eu sou também cineasta e o mesmo ocorre lá. Quando nos aprofundamos muito, a coisa da magia se esvai em parte. Há coisas que é melhor não saber como são feitas…
Sul21 – Tu estarias contaminado como leitor?
Fernando Monteiro – Sim, eu leio ainda, mas sem o mesmo encantamento, até porque tem se tornado cada vez mais complicado.
Sul21 – Por quê?
Fernando Monteiro – A nacional e a internacional vão bastante mal. Não há grandes autores. A literatura, principalmente a de ficção, está num péssimo momento. Pode parecer que não porque muita coisa é publicada, mas a produção é fraca. Vejamos. De onde surgiu este naturalismo tardio que é praticado? De onde veio? Isso é uma coisa superadíssima. E a violência urbana? Essa é uma vertente que permite uma linguagem mínima, que cria histórias lineares e com pouca ou nenhuma transcendência, coisa de imaginações menores.
Sul21 – Quem tu lês e gostas?
Fernando Monteiro – Sob a apocalipse encontram-se ainda coisas boas. Por exemplo, o sergipano Francisco Dantas. Mas voltando à crise antes de avançar pelos bons autores, a boa literatura brasileira foi abandonada no ponto onde Caio Fernando Abreu e João Antônio a deixaram. Ambos eram excelentes. Duas figuras inteiramente diversas, dois espíritos férteis, cada um a seu modo. A mim parece é que a literatura não mais evoluiu após o desaparecimento de ambos. O Caio estava num ponto admirável, mas lamentavelmente faleceu muito cedo. Ele teria muito a contribuir. Peço desculpas a teus conterrâneos leitores do Sul21 que são admiradores do Moacyr Scliar, mas ele nunca teve a qualidade de Caio.
Sul21 – Acho que a maioria concordaria.
Fernando Monteiro – Sendo cabotino, diria que o Caio estava sinalizando, para a literatura brasileira, coisas que tentei retomar em meus livros. Ao menos eu me esforcei. E João Antônio, num ambiente completamente diferente, paulista e interessado pelo submundo em contos maravilhosos, era um escritor notável.
Sul21 – E os outros brasileiros?
Fernando Monteiro – Eu não estou criticando por ser ranzinza, critico pelo fato de que praticamente não encontro autores para ler. No Brasil e também lá fora. O prazer de ler está sendo obstaculizado pela falta de bons autores. Então, aos 62 anos, estou relendo, porque não vou perder tempo lendo autores novos como Franzen. Melhor reler Moby Dick. Sobre os brasileiros, a jovem poeta Mariana Ianelli é muito interessante, dá prazer de ler. É uma jovem de 20 poucos anos, muito talentosa. Ah, sim, tem a Elvira Vigna também, que trafega no campo da ficção. É paulista, foi editora e escreve romances. Hoje é publicada pela Companhia das Letras. Ela tem uma produção muito interessante, de grande modernidade, sua ficção é muito delicada, muito bem construída.
Sul21 – O naturalismo deve ser evitado?
Fernando Monteiro – A arte transfigura o real, se não, não é arte. Se você me devolve o real, por exemplo, no cinema, eu estou assistindo o real de novo. Agora, se o autor aborda o real, mas transfigurado de algum modo, eu posso começar a ter arte. Essa é a base de tudo. Essa coisa de escritores que escrevem bem, mas me devolvem o real, o dia a dia, é pobre. Por exemplo, o trabalho do Bernardo de Carvalho é diferente, é excelente. Sem duvida alguma, ele esta atento ao que está acontecendo na literatura porque tem se manifestado em relação a esse “apagão”, tem se expressado como extremamente desencantado com o horizonte literário atual. É uma pessoa que tem batido nessa tecla da afunilação da literatura pelo mundo pop-rock. Ele está fora desse percurso.
Sul21 – A situação altera-se fora do Brasil? McEwan, Bolaño, Franzen…
Fernando Monteiro – McEwan é um escritor bem interessante. O Jardim de Cimento e Reparação são ótimos. Já Franzen é um engodo, faz uma falsa literatura profunda, comparável ao filme A Árvore da Vida. Tristeza não é necessariamente profundidade, tristeza pode ser apenas enfadonha. Tão enfadonha quanto a tuiteratura de Marcelino Freire.
Sul21 – E a tua produção?
Fernando Monteiro – Estou em vias de publicar um outro poema longo nos moldes de Vi uma foto de Anna Akhmátova [texto completo aqui] chamado Mattinata. É sobre um casal que se separa.
Sul21 – O tema do amor.
Fernando Monteiro – Sim, um dos grandes temas, assim como o amor, há a morte, a busca de Deus, o significado da vida, essas coisas abandonadas… (risos) As pessoas não parecem fazer a si mesmas este gênero de questionamento. A Montanha Mágica foi escrita, por Mann, assim como Luz de Agosto, por Faulkner, a fim de responder questões muito altas de angústia. Como as pessoas não pensam em significados mais profundos, mas sim num bom emprego, elas querem algo mais simples. Então, talvez livros assim não tenham o que fazer nas cabeceiras. Mas o livro da Lya Luft tem. O medo da morte é substituído por como é que eu faço para perder o medo do dentista.
Sul21 – Lya Luft escrevia romances. Depois ela passou a escrever crônicas e agora ela está na auto-ajuda.
Fernando Monteiro – Pois é, ela deslizou para a auto-ajuda sob as bençãos da Record. A Record ficou felicíssima. Ela teve uma síncope num programa de televisão. Tentou se retirar enquanto as pessoas a questionavam por escrever auto-ajuda. E ela disse no ar “Mas meu livro não é de auto-ajuda!!!” e foi embora. Mas é. O jornalista estava chamando de auto-ajuda o que era auto-ajuda.
Sul21 – Tu chegaste a manter contato com a literatura dela?
Fernando Monteiro – Eu olhei, mas é aquilo. Se você não tem o hábito… Ela é uma escritora de talento perdido, lançado às moscas, sob a benção da editora.
Sul21 – O que tu achas do João Gilberto Noll?
Fernando Monteiro – Ah, é ótimo, embora realize uma literatura um pouco pessoal demais. Na literatura você trabalha sempre com a sua vida, você não vai falar daquilo que não conhece, mas o Noll está ou esteve enredado num material muito autobiográfico. Me parece que está meio afastado, o que é ótimo, porque assim ele terá tempo para recriar-se, porque os últimos livros dele estavam saindo com sinais muito próximos da insistência, estava se tornando repetitivo. Acho que ele precisa de tempo.
Sul21 – Dizem que os pernambucanos são os gaúchos do nordeste. Assim como nós, os pernambucanos se acham (risos), cultuam tradições, etc. Tu utilizaste num livro a expressão “mitologias de emergência”, pra caracterizar o que faz o Suassuna em Pernambuco e o MTG no Rio Grande do Sul.
Fernando Monteiro – Bem, eu usei a expressão com absoluta segurança para o Ariano Suassuna, mas não sei se vocês poderiam usar para o MTG, porque vocês fazem uma coisa diferente, embora também com ranço conservador. O MTG quer conservar suas manifestações no âmbito do Rio Grande do Sul e dos gaúchos. O Ariano não, ele tem isso como um modelo brasileiro. A diferença grave, para o caso do Suassuna, é essa. Vocês querem conservar para que o próprio Rio Grande do Sul não perca o contato com o passado, mesmo com uma boa dose de ficção e de insularidade. Quando eu estive aí, vi que o Rio Grande do Sul vive em grande parte olhando apenas para si.
Sul21 – Tu disseste “insularidade”.
Fernando Monteiro – Eu, como pernambucano, sinto essa insularidade. Você sente aí no extremo sul uma coisa autocentrada, o que é de certa forma interessante, porque vocês leem seus próprios autores, vão à livraria e conferem a produção de vocês. Mas aqui, o Ariano é muito mais grave, porque ele quer ter um programa estético para o Brasil, daí a “mitologia de emergência”. E é mitologia de emergência porque nós não temos mitologia. Nós não temos uma civilização como a inca ou a asteca na retaguarda. Então eu costumo dizer que o Brasil tem a alma em branco. A Europa não tem uma alma em branco, tem um passado que nós herdamos, em parte. Acontece que Ariano Suassuna gostaria de aplicar a mitologia de emergência no lugar dessa alma. Ele tenta criar o que seria uma cultura utópica brasileira. Seria uma cultura de origem sertaneja, uma coisa sobre a qual ele trabalhou literariamente, criando o movimento Armorial e outras coisas… E isso, visto de longe, é um pouco semelhante ao que vocês fazem aí. Mas é necessário reconhecer, que isso no Rio Grande do Sul é uma coisa para o próprio Rio Grande do Sul, enquanto o Suassuna é muito mais ambicioso. Ele pretende que a cultura brasileira abrace suas causas, ele argumenta com grande competência e sem razão.
Sul21 – Ele também é uma estrela da mídia.
Fernando Monteiro – Exatamente. Mas isso veio tardiamente. Ele não se lançou na mídia. À diferença dos outros, desses jovens dos quais eu estava falando anteriormente e que vão em busca da mídia, o Ariano foi buscado pela mídia por suas opiniões, por suas manifestações. Ele criou o movimento Armorial, porque ele é um daqueles intelectuais que aspiram… Deixa eu contar uma história: eu convivi com ele ainda jovem, quando fui assistente do filme “A Compadecida” em 68. Eu tinha 18 anos e convivia com Ariano. Desde aquela época, nós tínhamos longas discussões sobre isso, porque ele tentava me ensinar a respeito das coisas – eu era um garoto e ele é uma pessoa muito sedutora, muito engraçada, todo mundo ri, todo mundo acha graça e eu também. Me lembro de uma vez em que estávamos na casa dele e a gente falava de arte moderna, coisa que ele recusa. Ele tentava me explicar algumas coisas que não passavam pelo filtro dele. Por exemplo, sobre o Boi de Picasso, que remonta ao Boi de Altamira, mas que é um avanço, ele dizia: (imita a voz de Ariano) “Não Fernando, não é não um avanço, vou lhe mostrar…”. Aí ele voltava com um livro e dizia: “Olhe, repare esse boi aqui, não é melhor que o de Picasso?” Era o Boi de Altamira… E eu dizia: “Realmente, é muito bom. Claro que esse boi que tu estás me mostrando é admirabilíssimo, da idade da pedra, mostrando o boi em movimento e coisa e tal. Mas desde então, Ariano, muita coisa aconteceu. Houve um avanço enorme desde a idade da pedra, Ariano”. E ele dizia: “Não, eu gosto muito mais desse boi”. E, só pra constar, eu estava com meus 18 anos e ele com 40 e poucos e nós já tínhamos essas discussões amigáveis. Hoje eu não sei, acho que não teria a mesma atitude amigável para a coisa programática da cabeça dele, para a cultura brasileira que ele propõe. Eu acho isso muito perigoso, pois se aproxima de um fascismo, um tipo de fascismo que vem na contramão de tudo.
Sul21 – Não seria bom ter a “alma em branco” para projetar um futuro?
Fernando Monteiro – Mas é claro! Quando tudo esta conectado com tudo, aí é que vem a importância de ter a tal da alma em branco. O que é que caracteriza isso? A capacidade para compreender o outro. É impressionante no Brasil, como as pessoas estão atualizadas com o que está acontecendo lá fora. Quer dizer, o brasileiro pode adquirir culturas, várias. E essa é a vantagem da alma em branco, porque as vezes o fato de você ter uma vasta cultura comum não deixa de ser um obstáculo. Quer dizer, se você viver na Inglaterra, há Shakespeare mas há também a família real. Agora, essa disponibilidade de compreender o outro nos torna estratégicos nesse terceiro milênio. O Brasil é um país de pessoas com percepções muito rápidas, exatamente por estarem livres e conectadas de alguma maneira. Honestamente, vejo isso como uma vantagem. Não quero remontar a velha imagem do país do futuro, mas, ao menos nesse quesito, o fato de não ter uma cultura antiga que nos engesse é uma vantagem pra nós. Temos uma cultura europeia que nos foi deixada como herança, a cultura do índio e a cultura do afro. Dessas três influências é que nós fazemos a cultura brasileira. E o Ariano rejeita tudo isso. Ele, em sala de aula, dizia que era muito mais importante ler José de Alencar do que Joyce. Isso a alunos. É uma coisa de imensa irresponsabilidade passar para alunos esse tipo de ideário estético.
Sul21 – Sim, porque não se trata apenas de Joyce.
Fernando Monteiro – Trata-se de quase todo mundo! E ele diz que é muito mais importante ler Iracema do que ler Joyce, porque ele via seus alunos muito mais conectados com isso. E ele dizia: “Joyce é estrangeiro, não interessa. José de Alencar é muito mais importante”. E, se na sala tiver um garoto inocente, fascinado pelos encantamentos do professor Ariano, ia atrás da conversa. Isso é grave e ele faz o tempo todo. Baseado nisso, ele criou o movimento Armorial, que é a estética de Ariano Suassuna em movimento. Ali, ele defende a coisa do sertão e rejeita a modernidade. Além de amar Alencar, ele não reconhece a obra do Tom Jobim, detesta a Bossa Nova, a tropicália. Ele chama o Chico Science de Francisco Ciência, ele não admite o inglês, o uso do inglês. Eu me lembro do Sérgio Buarque de Hollanda no prefácio de um livro de Jorge de Lima. Ele dizia que não via com simpatia os esforços em busca por essa identidade nacional, que nos fornecessem uma mitologia qualquer, mas Ariano é tão apressado que quer criar logo uma mitologia. E Sérgio dizia: “A cultura brasileira se formará muito mais da nossa indiferença do que do nosso esforço deliberado”. O Ariano não concorda, rejeita. E aí você pode dizer: “Mas Fernando, você fica no pé do Ariano”, só que Ariano foi por oito anos Secretário da Cultura de Pernambuco. E do governo municipal também. E, como administrador oficial, ele só contemplou o que dizia respeito ao mundo estético dele. Eu não estou reclamando de nada subjetivo, nem de algo do campo puramente teórico. Eu estou reclamando de um administrador cultural que durante oito anos não deu seguimento ao Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, que é dos anos 40. E ele não editou livro algum que fosse de outra linhagem. Entendeu? Ele se voltou para a orquestra Romançal porque brigou com um maestro da orquestra Armorial. Sempre incentivou as coisas do seu programa estético e isso está errado do ponto de vista da administração da cultura. Ele não queria — e não aconteceu — o Salão de Artes Plástícas porque provavelmente não tinha o Boi de Altamira (risos) e sim a arte contemporânea da qual não gosta. Mas…
Sul21 – Ele é admirado.
Fernando Monteiro – Sim, apesar disso tudo, todo mundo gosta de Ariano. Claro, ele é muito simpático, muito sorridente, está sempre contando piada. Ele vai no Jô e o Jô dá risada dele. Só que Ariano a quatro mil quilômetros de distância e não sendo secretário de cultura é muito fácil de se gostar. Mas com ele como secretário e você como um artista de outra “linhagem”, como ele costuma dizer, você não tem vez de trabalhar com o Estado. Isso é terrível. Ele é um coronel da cultura.
Sul21 – Há outros “gurus” por aí?
Fernando Monteiro – Quando Luciana Villas-Boas diz na revista da Livraria Cultura que os jovens autores não devem escrever nem contos nem poesias, mas romances, é uma fatia dessa mesma coisa de adequar-se ao espetáculo, do que aquilo que interessa é a exposição, a mesmice. O motivo é simplesmente que “não vende” e não vendendo o autor fica com o estigma de afastar público. À princípio a gente não percebe o tamanho deste absurdo porque tendemos a respeitar uma pessoa que trabalha há 20 anos como uma das maiores editoras do país. Porém, sem o conto, não teríamos João Antônio.
Sul21 — Nem Dalton Trevisan, Rubem Fonseca…
Fernando Monteiro – Sim. Acho que o problema de não vender contos é um problema do editor. Quem acaba vendendo são os de comportamento espetacular, como o poeta Fabrício Carpinejar e outros, que se curvaram às necessidades do mercado, agindo como artistas de pop-rock. É o artista expondo a si próprio como espetáculo. O Carpinejar fez sua escolha. Não li seus livros mais recentes, mas era um bom poeta.
Sul21 – Hoje não mais, mas você escreveu romances.
Fernando Monteiro – Sim, ainda sou convidado para debater romances e para escrevê-los, além de andar na companhia de romancistas, muitos dos quais são meros reflexos do mercado. Abandonei o romance por várias razões, mas a principal é a de que o mercado parece não estar preparado para o que inquieta, para as obras fora de seu padrão, que era o que eu produzia. A nova forma de pensar acha que o leitor incomodado ou inquietado desistirá ou não recomendará o livro. Eu ajo como kamikaze e digo que não tenho interesse em ser lido pelo leitor médio brasileiro, não quero nem que ele goste! Eu peço educadamente a este senhor e a esta senhora, que me chegam por indicação da Veja, que não me leiam. Esse leitor médio, que as grandes editoras como a Record, a Rocco e a Cia das Letras procuram satisfazer, não me interessa. Eu fui dizer isso num encontro literário nacional e um autor muito conhecido se indignou. É notável como os grandes editores parecem desinteressados em editar qualidade como a ex-editora Globo fez em Porto Alegre nos anos 50 e 60 com excelentes resultados mercadológicos. Esta nobre função não seria também das editoras?
Sul21 – E a poesia?
Fernando Monteiro – Eu voltei para a poesia porque ela está abandonada, deixada no esquecimento. Ela não é objeto de nenhuma sanha, de nenhum apetite, então está em paz. Eu voltei para ela desde a publicação de Vi uma foto de Anna Akhmátova. Nenhuma grande editora publicaria aquele poema longo de cento e tantas páginas. É um formato no qual eu ainda acredito, apesar da crise da poesia que, na verdade, é a crise do leitor da poesia, o qual não está mais acostumado a decifrá-la. É o leitor como consumidor é quem passou a regular bisonhamente o mercado, pois não se abrem caminhos novos, é sempre mais do mesmo.
Sul21 – São livros que apenas avalizam o senso comum do leitor?
Fernando Monteiro – Exato. Eles vão ao encontro do leitor. Este não quer surpresas e muito menos pensar muito. Desde os livros de vampiros – que são entretenimento vagabundo – até o livro aparentemente profundo, mas que na verdade são uma diluição semelhante a grande parte do cinema de Woody Allen. Allen não me engana nas suas aparentes profundidades psicológicas mal imitadas de Bergman. Foi excelente comediante, apenas. Outros cineastas empenhados de outra forma, como Angelopoulos, não tem a menor facilidade de produção. Woody Allen fabrica produtos análogos ao do escritor que desenvolve produtos ao encontro do que o leitor e o expectador deseja.
Sul21 – Allen tornou-se ultimamente turístico, há odes à Barcelona, Paris, Londres.
Fernando Monteiro – Sim, o financiamento dos filmes por parte destas cidades já é um desdobramento natural de um produto que é voltado para o bem estar. Para onde ele vai agora? Sugiro Beirute, Trípoli, mas não, antes ele acabará no Rio de Janeiro.
Sul21 – Falar mal de Woody Allen gera problemas com grande parte das pessoas, não?
Fernando Monteiro – É mais ou menos como falar mal do Corinthians. Os admiradores de Allen não suportam a ideia de que ele se apropriou das características menos inquietantes do cinema moderno para criar um produto que varia muito pouco de um ano para outro. Um Fellini, um Visconti, um Antonioni que viesse expor suas angústias seriam rejeitados. Eles não encontrariam os produtores que encontraram nos anos 50 e 60.
Ora, um monte de coisas, mas acho que o pior de tudo é a construção de um conflito desinteressante, piegas ou cheio de clichês. Ou má construção de um conflito, ignorando a seu potencial. Os clichês incomodam muito, mas quando peguei um livro de Ian Fleming (007), o himalaia de clichês era tão impressionante que era divertido… Parecia Tarantino… Aliás, quando assistimos a um filme do 007, esperamos exatamente o clichê e ai do diretor que não nos satisfizer. Não li Dan Brown, mas o filme feito sobre O Código da Vinci é outro interminável e desagradável desfiar de clichês. A falta de charme e de originalidade é uma merda, mesmo.
Eu adoro os inícios dos romances de Balzac. Quase sempre, eles começam com uma calma e elegante apresentação dos personagens. O texto avança e nos açambarca, pois já traz os conflitos grudados a cada um dos personagens como parasitas. Mas ele escreveu o desagradável A Mulher de 30 Anos, um dos maiores exeplos de ruindade que conheço. Ele estava com pressa ao escrever, tinha dívidas e fez uma desgraça de livro.
Nunca uma capa disse tanto sobre um romance
Tenho certeza de que a identificação de uma má redação é intuitiva. A correção gramatical pode ser chata, o tom pode ser chato, o brilhantismo pode ser chatíssimo, Eu não sei porque alguém tem má redação ou é chata, mas há gente muito capaz que é desinteressante. É uma pena quando um desses escritores descobre um bom tema. Dia desses, li um livro que era um porre. Era de um blogueiro. O cara sabe escrever, mas a construção da novela era (muito) periclitante, até paradoxal, e ainda o acompanhava uma nota final – havia outra, a inicial… – em que o sujeito justificava as mancadas ou, em outras palavras, sua ruindade. Insuperável chatice arrogante, pois há pessoas que apenas usam o romance para chamar a atenção das pessoas para suas existências, independentemente do texto produzido. Sei que escrever é vaidade; sei melhor que escrever bem é a vaidade recebendo a admiração alheia. Um bom mutualismo!
Também há os que têm seus modelos literários e tentam desesperadamente alcançá-los (no caso de autores) ou procurá-los (no caso de críticos). “Infelizmente, alguns dos meus colegas da Universidade julgam tudo pela proximidade a Ulisses, de Joyce, o qual releem anualmente”, li num artigo. Se o Charlles Campos, leitor e comentarista habitual do blog, julgasse tudo sob um filtro – o qual seria certamente imaginado por ele – de Faulkner, eu o chamaria de imbecil para baixo. Seria o mesmo que eu, kafkiano de quatro costados, admirar o austríaco que escreve em um só parágrafo por seus incertos e tênues parentescos com o tcheco. Durante anos a literatura brasileira sofreu do Efeito Clarice. Um monte de gente queria ser Clarice Lispector. Houve grandes epígonos que livraram-se em bom momento da sombra ucraniana – Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e poucos mais – , mas imitar Clarice… Por quê? E para quê imitar a mais pessoal das escritoras? Ah, e céus, como escreveram porcarias!
Eu teria tudo para gostar de João Gilberto Noll. Ele escreve indiscutivelmente muito bem, tem uma voz pessoal, distinta e acho-o muito inteligente nas entrevistas — cheguei a fazer anotações durante algumas para não esquecer de respostas especialmente brilhantes. Como se não bastasse, ele é portoalegrense como eu e, como eu, ainda vive na cidade. Mais: com surpreendente freqüência, vejo-o entrar nas mesmas sessões de cinema que eu e, na penúltima, ainda na fila do ingresso, pude observá-lo abrir a bolsa para pegar A Máquina de Ser com uma cara que interpretei de como de desaprovação. Ele lia a página 114… Mas Noll é uma pessoa reservada; ou seja, nossa “relação” nunca irá evoluir para o diálogo.
Comecei dizendo que teria tudo para gostar de seus livros e sigo confessando estar cansado de seu narrador, sempre na primeira pessoa do singular. “Há pouco tempo descobri que o meu protagonista é sempre o mesmo”, disse ele à Entrelivros. Puxa, ele descobriu isto só há pouco tempo?
Este narrador é alguém que observa-se na solidão e daí parte. Nesta coletânea de 24 contos, houve momentos de entusiasmo e de decepção e não é casual que os momentos mais satisfatórios foram aqueles em que Noll conseguiu afastar-se do protagonista que conta a história.
O que me incomoda é que tal narrador solitário leva a história a situações previsíveis, ao menos para mim, que conheço quase toda a obra do gaúcho. Imaginem que quando ele parte de sua solidão para um situação maior, consigo prever até a linguagem que ele vai utilizar para se encalacrar lá. Fica chato e nem a prosa inventiva do autor me salva do enfado.
Li algumas outras opiniões e ninguém parece ter restrições a este narrador e nem dizem que os contos são bastante desiguais. Deve ser um problema meu. Belos contos que demorarei a esquecer são O berço, Alma naval, Noturnas doutrinas, Rudes romeiros, Biombos, Na divisa, A máquina de ser e Na correnteza. Como disse acima, são contos onde o eterno narrador de Noll ou está excepcionalmente de folga – caso de O berço – ou está em conflito com outros personagens. Porém, ao menos minha relação de melhores contos de A Máquina de Ser está de acordo com quase todas as outras listas, o que me faz pensar se não está todo mundo enjoado do tal narrador.
Num livro tão bem escrito por Noll e bem cuidado pela Nova Fronteira, acho inconcebível que a segunda metade da “orelha”, escrita por Paulo Scott, não tenha sido censurada. É inútil ler aquele amontoado de adjetivos e analogias que só serve para dar a impressão de que trata-se de um ajuntamento mal costurado de histórias sobre todos os temas do mundo, o que não é absolutamente verdade.