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Barbara Hannigan no pódio, sem terno
Tradução amadora feita a partir deste original.
Dedico a tradução a minhas sete leitoras, e, em especial,
à Elena e a minha Bárbara com acento.
Quem disse que as mulheres não podem ser regentes? Bem, um monte de homens. Então, o que a famosa soprano Barbara Hannigan aprendeu desde que ela pegou a batuta e começou a brandi-la em um — choque! — vestido sem mangas?
Por Barbara Hannigan
Quando eu tinha 10 anos, decidi que ia ser uma musicista. Eu não tinha certeza de que tipo, mas a regência não era algo que eu sequer considerasse. Crescendo em uma pequena vila na costa leste do Canadá nos anos 70 e 80, eu pensei que as mulheres só podiam reger coros ou, na melhor das hipóteses, orquestras escolares. Eu não sabia o que significava o sexismo. Além disso, eu adorava cantar e logo percebi que era isso o que ia fazer na vida.
Passei grande parte da minha carreira com o foco na música erudita contemporânea, trabalhando com os compositores em novas criações e explorando as obras do século 20. Um dos meus papéis favoritos é o de Lulu, de Alban Berg. Para mim, ela não é uma femme fatale nem a vítima que alguns dizem ser. Ela é uma mulher infinitamente fascinante, deliciosamente contraditória e que desafia os rótulos. E é sempre fiel a si mesma. Se ela usa salto alto e vestido ou uma roupa de ginástica vermelha e sexy, ela permanece confortável em sua própria pele até o final da ópera, quando, forçada à prostituição, organiza seu próprio assassinato a fim de escapar de um futuro que ela não poderá suportar. Ela é uma mulher extremamente poderosa. Incorporá-la em minha vida teve um enorme impacto sobre mim.
Chegar aos 40 anos foi doloroso para mim. Eu tinha ideias sobre o meu valor e lugar como performer e estes estavam relacionados com a minha idade. Comecei a evitar-me no espelho. Eu queria manter minha idade em segredo. Gastei depois muito dinheiro em cremes inúteis para o rosto. Em parte, isso tinha a ver com a minha vida de prateleira como cantora. Muitos de nós sentimos que temos uma data de validade estampada em nossas testas. Quando passamos dos 50, as vozes, especialmente os registros mais agudos e leves, perdem elasticidade, flexibilidade e beleza de tom. Eu estava sentindo a pressão do tempo.
Mas Lulu me ajudou a crescer. Cantei-a aos 41. Ela me fez perceber que eu não poderia estar mais preparada para cantá-la até exatamente essa idade — os meus anos de investimento, a experiência, as 20.000 horas de prática realmente faziam diferença. Eu tinha tudo o que precisava. Senti a confiança sobrevivendo à experiência.
Pouco antes, quando me aproximei dos 40 anos, eu também tinha começado a reger. Fiz minha estreia como maestrina no Châtelet em Paris com a ópera de câmara de Stravinsky Renard e com Mistérios do Macabro de Ligeti, onde cantava e regia. Foi uma experiência avassaladora, uma lição de humildade. O maestro é em parte servo, em parte líder e, na maioria das vezes, tem que apenas ficar fora do caminho. Ofertas para conduzir e cantar com grandes orquestras começaram a chegar. Sir Simon Rattle me pediu para executar Façade, de William Walton, com ele e os membros da Filarmônica de Berlim, em 2012, dividindo as tarefas de regência e narração entre nós.
É claro que o soprano é um campo só para mulheres. Com a regência, vi expandir-se para mim um campo dominado por homens. Eu realmente não penso em mim como uma pioneira — era simplesmente algo que eu precisava explorar como musicista. Mas, à medida que o tempo passava, percebia que o “feminino” estava agora ligado ao rótulo de “maestro”. Eu nunca tivera este rótulo como cantora.
Para Façade, eu usava roupas apropriadas para a teatralidade da peça — um vestido de noite sem alças. Um amigo comentou sobre a expressividade dos meus braços, e pareceu-me que isso era parte da minha força como maestrina. Quando eu fiz a minha estreia no Châtelet, que eu tinha usado um terno: muitas mulheres regentes usam roupas ou de gênero neutro ou algo parecido com um terno de um homem. Pensei que calça e jaqueta eram o “traje correto”. E usei também. No entanto, eu nunca uso terno na vida real! Desde Façade, passei a usar um vestido sem mangas para reger. É algo onde eu posso me mover e que cabe na música… Eu também não amarro meu cabelo para trás, a menos que ele esteja num mau dia. Tive feedbacks positivos sobre isso vindo de orquestras e audiências. Ninguém vê problema em eu não estar sobriamente vestida com um terno escuro. Porém, os críticos sempre observam minha roupa, o que não é algo que eles costumem fazer com regentes homens.
A discussão pública de questões de gênero é muito carregada. Pegajosa. Eu hesitei aqui e quase comecei a me censurar. Vasily Petrenko, o maestro Real Liverpool Philharmonic, e Bruno Mantovani, diretor do Conservatório de Paris, fizeram comentários depreciativos com o foco no feminino. Mesmo o professor Jorma Panula, fez comentários depreciativos na TV um ou dois dias antes de eu reger o Concertgebouw de Amsterdam. Mesmo que seus comentários não fossem pessoais, eu me senti terrivelmente ferida. Eu tinha recém trabalhado intensamente em conjunto com os músicos da orquestra em obras de Stravinsky, Schoenberg e Ligeti, e eles vieram criticar minha musicalidade e habilidade para reger com base no sexo, alegando que mulheres só deviam conduzir “música de mulheres”, como Debussy e Fauré. “Não é um problema”, disse Panula, “se as regentes escolherem obras mais femininas. Bruckner ou Stravinsky elas não devem fazer, mas Debussy é OK. Isto é puramente uma questão de biologia “.
Eu me pergunto se eles lamentam o que disseram.
Sempre que sou questionada sobre o assunto em entrevistas, eu aproveito para combater essas ideias. No início deste ano, a caminho de um concerto, eu li no New York Times que dois alpinistas finalmente alcançaram o topo do Dawn Wall. “Espero que [nossa conquista] inspire as pessoas a escalarem seus Dawn Walls secretos”, disse um deles. Eu subi no palco naquela noite energizada por essa citação. Eu a carregava comigo: reger tornou-se o meu próprio e nem tão secreto Dawn Wall. É uma daquelas poucas fronteiras finais em que há escassez de mulheres. Para mim, porém, a questão é muito mais complicada do que uma chamada de “Precisamos de mais mulheres regentes!” Reger é ter a musicalidade, a psicologia e a habilidade técnica reunidas em um raro tipo de liderança que é indescritível. E ela não é nem de homem nem de mulher. A convenção manteve o campo dominado por homens. Convenção e, é claro, algum sexismo cotidiano — porque antes de uma mulher ficar no pódio, ela precisa entrar em uma aula de regência na universidade, e antes disso, mesmo, ela precisa ver a carreira como uma opção viável, algo que eu não tive quando criança.
A jovem filha de um amigo me viu regendo na TV outro dia, e disse: “Mamãe, eu não sabia que deixavam as mulheres serem maestros”.
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Abaixo, aos 6min39, Hannigan empurra Rattle e regê parte de Mysteries of the Macabre, de Ligeti. Divirtam-se com esta enorme artista.
György Ligeti
Mysteries of the Macabre
London Symphony Orchestra
Sir Simon Rattle
Barbara Hannigan
Soprano
Dançando com Brahms, Ligeti e Mendelssohn
Ospa em dia de Shostakovich, Ligeti e Lutoslawski
Era quase 25 de setembro, dia do aniversário de minha filha e de Shostakovich, e ele foi o ponto alto de um programa que também comemorava o centenário de Lutoslawski (1913-1994) e os 90 anos de Ligeti (1923-2006).
Tudo começou com o polonês. Como não sou original, gosto do neoclássico Concerto para Orquestra de Lutos. Ele é um compositor originalíssimo, que trafegou do tango ao dodecafonismo, do foxtrot à música aleatória. Os Jogos venezianos, para pequena orquestra, apresentados ontem à noite, são o ponto da virada na carreira de Lutoslawski, quando ele abraça o princípio aleatório. O resultado é bem complexo e sujeito a um acaso controlado pelo esqueleto organizado por Lutos. É daquele tipo de obra em que os músicos combinam: “Vai cada um prum lado e nos vemos em 15 minutos, tá?” Eu curti a obra mais pela cara dos músicos, alguns loucos para rirem, fato confirmado logo após o concerto — com exceções. Jogos venezianos parece trilha sonora de um mau filme de terror. Bem diferente do caso de…
A coisa ficou MUITO mais bonita com Lontano, para grande orquestra. Pelo lado da frente, é uma música de interessantíssima textura, bela como um tapete árabe; vista por trás, é densa e ultramicrocosturada em sua polifonia. Trata-se de um jogo de sombras composto de harmonias mahlerianas com reflexos de Bach. A música de Ligeti — ao menos as obras menos sarcásticas deste grande compositor — paira acima de nós, fora do alcance. Não é para menos que Stanley Kubrick utilizou-a em momentos cruciais de 2001 (com Lux Aeterna) e de O Iluminado — justamente com as lentas transformações de Lontano. A Musica ricercata também foi utilizada em De olhos bem fechados. Foi a primeira vez que a Ospa apresentou uma obra de Ligeti, Saiu-se bastante bem.
O excelente programa foi finalizado com o aniversariante de hoje, Dmitri Shostakovich. Espécie de condensado de Shosta — incluindo lirismo, bom humor, ecos populares e militares, além de um daqueles moderati dilacerantes, tudo em versão curta –, o Concerto Nº 1 para piano, trompete e cordas é maravilhoso. Shostakovich foi bom pianista. Poderia ter feito carreira como tal, mas, para nossa sorte, escolheu compor. Foi o vencedor do internacional Concurso Chopin de 1927 e fazia apresentações regulares executando seus trabalhos. O pequeno número de gravações do próprio compositor como pianista talvez deva-se ao fato de ele ter perdido parcialmente os movimentos de sua mão direita ao final dos anos sessenta. Há registros no YouTube de Shostakovich tocando como um velocista o Finale deste concerto.
Trata-se de uma obra espetacular. Era uma boa época para os concertos para piano. O de Ravel aparecera um ano antes, assim como o 5º de Prokofiev. É coincidente que os três sejam alegres, luminosos, divertidos mesmo. É formado de quatro movimentos, sendo o primeiro muito melodioso e gentil, os dois centrais lentos e o último capaz de provocar gargalhadas. A participação de um trompetista meio espalhafatoso é fundamental, assim como de um pianista que possa fazer rapidamente a conversão entre a música de cabaré e a música militar exigidas no último movimento. Vi ontem como as pessoas sorriam durante a audição deste movimento. Não há pontos baixos neste concerto.
A pianista Catarina Domenici saiu-se muito bem, assim como o trompetista — da Ospa — Elieser Fernandes Ribeiro. Este aliás, é tão bom que a orquestra deveria explorá-lo mais. O que o homem toca não é brincadeira. O regente Antônio Borges-Cunha é das poucas pessoas de Porto Alegre que têm coragem de encarar um repertório desses. Só por isso já merece elogios. Afinal de contas, de mesmice basta eu.
Rock and roll
Sou uma pessoa que quase só ouve música erudita mas que não vê o resto do mundo com superioridade, coisa tão comum entre meus pares… Ouvi rock somente até a adolescência e ainda tenho, em vinil, um bom acervo de “dinossauros”, o qual muitas vezes provoca ohs e uaus nos amigos de meu filho. Ele, Bernardo, hoje com 18 anos, costumava reclamar de mim por ter abandonado o rock que ainda ama e queria que eu voltasse à minha adolescência pondo só Beatles, Led Zeppelin, Deep Purple, Rolling Stones e mesmo o medonho Pink Floyd pós-Dark Side no CD player — ele é um voraz consumidor de música e ficava carente entre seus muitos amigos por não encontrar, entre eles, outros que fossem tão “cultos” musicalmente.
Eu ficava pasmo de ser tão atualizado. Afinal, Bernardo e seus amigos ouviam embevecidos as novidades do tio Milton: Quadrophenia (1973) do Who, Fragile (1972) do Yes, A Night at the Opera (1976?) do Queen, e mais uns 100 bolachões inéditos para a petizada.
A cena era assim. Em pleno 2000 e alguma coisa, Bernardo se atirava sobre meus velhos vinis e desencavava uns Alice Cooper, uns The Who (legal!), uns Queen (bom), Gentle Giant (que voz horrorosa a daquele cantor) e até Slade. Por outro lado, sou casado com uma mulher que ama as óperas, principalmente as de Mozart e Rossini, e que tem baixa tolerância aos grupos de som mais agressivo e que começa a berrar (sério!) quando pressente a iminência de Pink Floyd, pois foi traumatizada por seu irmão que ouvia The Wall cinco vezes ao dia — era deprimido, claro. (A propósito, comprei The Wall no dia em que foi lançado no Brasil e o vendi com lucro dois dias depois. Era muita adolescência). E, para piorar, ouço insistente a voz de meu pai que sempre me dizia que era importante não perder a contemporaneidade.
O único acordo possível seria o de ficar ouvindo Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina, bebop e esquecer meu pai. Neste caso, todos ficariam felizes, mas o espectro se limitaria muito e estaríamos definitivamente fora das paixões de uns e outros. Ou seja, não dá.
Sou um cara de gosto musical eclético e até desejo ser tolerante, então só fecho a porta para as músicas absolutamente imbecis — ou seja, quase tudo –, além de boleros, alguns tangos cantados e reggaes, que não suporto. Por exemplo, ontem, fiquei bem feliz ouvindo com a Claudia a ópera L´Italiana in Algeri de Rossini. Porém, para aumentar a confusão sonora da casa, nos últimos dias fiz pesados esforços com roqueiros contemporâneos tais como Beck, Radiohead, Oasis e outros. Estes três são artistas ou grupos de produção muito boa e civilizada, porém… como são convencionais! Será que não há mais para onde ir? Cadê a vanguarda? Será que a indústria a sufocou?
Beck escreve as mesmas letras de gosto duvidoso que quase sempre caracterizaram o rock, mas é um grande inventor de melodias. Já o Radiohead se preocupa demais com a estrutura dos arranjos e perde a fluência. É um bom grupo que tem o problema de repetir-se ad nauseaum. O Oasis é um epígono dos Beatles e do T. Rex, mas quem se importa? Acho que a canção Cigarettes and Alcohol, do CD Definitely Maybe, é o máximo que se pode exigir de um rock — poucas vezes me deparei com uma letra que combinasse tão bem com música e interpretação.
Mas, olha, não adianta, todos eles parecem um pouco aprendizes (podemos incluir Pearl Jam aí também). Não há no horizonte nada parecido com Beatles, Stones, Led, Who, etc. E não apenas uma questão de postura, trata-se de qualidade musical mesmo. Escrevi toda esta coisa confusa porque ontem recebi o seguinte torpedo do Bernardo:
Tchê, descobri um puta álbum dos Stones, Sticky Fingers. Tu deve conhecer.
Imagina se não! Tal fato foi uma espécie de involução… (*) De resto, ele está descobrindo Charlie Mingus (Aleluia!), Ligeti (três Ave-Marias), Shostakovich (dez Pais-Nossos) e, compreensivelmente, não sabe onde botar Wynton Marsalis na história do jazz. Miles Davis sabia bem onde enfiá-lo. Mas, já que o assunto é rock, volto ao tema para finalizar: chego à conclusão de que os dinossauros ainda dominam esta área do mundo. O céu do rock está lotado de pterodáctilos.
(*) Ato falho de origem controlada.