Cem milagres, de Zuzana Růžičková (com Wendy Holden)

Cem milagres, de Zuzana Růžičková (com Wendy Holden)

Num domingo à tarde, aqui na Bamboletras, eu estava ouvindo alguma coisa de Bach para cravo. O que ouvia era muito bonito e bem tocado. Fui conferir o nome da cravista, que já tinha visto ser impronunciável: Zuzana Růžičková (1927-2017), uma tcheca.

Consultei o Google para saber quem era. Soube que ela tinha sido a primeira pessoa a gravar a obra completa de Bach para teclado. Foram 21 LPs (depois 20 CDs) gravados entre 1965 e 74. Mas o que me impressionou mesmo foi que ela tinha vivido 90 anos e passado por três campos de extermínio nazistas. Um deles tinha sido Auschwitz.

Judia, ela sobreviveu, claro. Se não o tivesse, não estaria tocando na Livraria… Descobri também que ela tinha escrito uma autobiografia. Só que eu estou cheio de ler livros sobre o Holocausto. Mas, OK, pedi o livro, que é recente.

Depois de passar dois meses no hospital, minha mulher Elena ainda tem dificuldades para dormir. Então eu leio livros para ela todas as noites. Já terminamos vários. E comecei a ler “Cem Milagres” em voz alta para ela. O livro é ótimo e mudamos de problema, porque a Elena ia ficando cada vez mais acordada enquanto leio.

Foi escrito a 4 mãos. Uma jornalista inglesa gravou as memórias de Zuzana e passou para o papel. Um dos milagres foi que a cravista faleceu 5 dias após finalizarem as entrevistas. Ela conta não apenas sua vida com os nazistas — permaneceu quase 5 anos presa –, mas sua vida sob o desconfiado stalinismo tcheco do pós-guerra, quando dava concertos em Paris, Londres mas também em pequenas cidades do interior da Tchecoslováquia, para operários, ou conhecedores de música.

O livro não obedece a ordem cronológica. Ainda bem, porque ler juntos os capítulos sobre os campos de Terezín, Auschwitz e Berger-Belsen seria insuportável para o leitor. A verossimilhança e o detalhamento da narrativa são muito abrasivos para qualquer um. Então a biografia alterna capítulos de diversas fases da vida de Zuzana e seus diversos milagres. Milagres de sorte, de azar, de talento, de ter vivido sob o nazismo e o comunismo, de ser mulher e judia, de ser cravista em vez de pianista, de ser uma pioneira, de tentar lembrar da música nas piores condições possíveis e muitas vezes esquecê-la.

É um livro profundamente humano sobre uma grande personalidade que, sempre que não sabia para onde correr, perguntava a si mesma: e agora, o que faria Bach? Imaginem que ela foi professora de Christopher Hogwood e Mahan Esfahani, que foram residir em Praga durante um bom período para aprenderem com ela.

E quando ela fala em milagres, não está brincando. Só para dar o exemplo de uma ocorrência que está no primeiro ou segundo capítulo: certa vez, em 1960, ela estava dentro de um trem que bateu em outro. Ela voou dentro do vagão e sua mala cheia de partituras caiu sobre ela. Com uma dor forte nas costas, dispensou uma maior investigação — pois tinha um estúdio reservado para uma gravação — e foi para a casa carregando suas coisas. Na manhã seguinte, foi gravar apenas as difíceis Variações Goldberg, de Bach. Um trabalhão, ainda mais que as costas doíam muito. Depois de gravar, foi ver um médico e… Soube que tinha simplesmente quebrado a espinha dorsal. O médico não sabia como ela conseguia caminhar… A gravação? Quando já estava imobilizada, disseram-lhe que ficou ótima e que ia ser lançada.

Então, se você quer um livro encharcado em humanidade, é este.

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Meus dias com os Kopp, de Xita Rubert

Meus dias com os Kopp, de Xita Rubert

Virginia, 17 anos, viaja com o pai de Madrid para uma cidade não identificada no norte de Espanha para conhecer Sonya e Andrew Kopp, um casal inglês que por sua vez viaja a fim de que Andrew possa receber um prêmio da Coroa pelas suas obras históricas. Eles têm um filho (é filho mesmo?) chamado Bertrand, um personagem muito estranho, com traços entre esquizóide e autista, e não sabemos até o final se ele é realmente um artista, como dizem Sonya e Andrew, ou simplesmente uma pessoa com problemas severos. Virginia desenvolverá um afeto incômodo por Bertrand, um misto de atração e repulsa que dará o tom de toda a história.

Quase nada saberemos da vida de Virgínia e de seu pai fora desta circunstância particular, o que dá ainda mais força ao estranho efeito do que é contado. Longe do seu cotidiano, a narradora-protagonista está atenta a cada detalhe, como se precisasse reaprender tudo o que sabe. Além disso, encontra-se sozinha num mundo adulto. Na verdade, todos os personagens estão arrancados do seu cotidiano: estão todos viajando, tampouco a família Kopp está em seu país de origem. Até Virginia parece meio fora de si, sempre surpresa por ostentar um corpo de mulher (ou pelas pessoas fazerem referências ao fato).

Sonya é a séria. Andrew parece alguém feliz e indiferente. Bertrand é meio maluco, é a fissura deste mundo adulto. Todos parecem negar a estranheza do seu comportamento — inclusive Juan, o pai de Virginia — nos ambientes formais do hotel e na cerimônia de entrega do prêmio de Andrew que, assim como Juan, é um acadêmico rico, de prestígio. Já Bertrand, um sujeito grande de 40 anos, o que acentua o contraste, é uma criança. O restante das pessoas ao seu redor tentam ignorar esse detalhe e fingir que Bertrand é “normal”, o que será questionado por Virgínia em diálogos com seu pai. Mas parte da transição de Virginia para a idade adulta terá a ver com o fato de suas respostas não a satisfazerem. Juan continua se comportando como se nada estivesse acontecendo, embora passe a Virgínia pequenas informações que a ajudarão a montar um pedaço do quebra-cabeça da família Kopp.

Em um livro narrado na primeira pessoa, às vezes Virginia se dirige à Sonya, de quem não gosta nem um pouco. Todos os acontecimentos parecem gratuitos e não levar a história para lugar nenhum. O livro de Xita é sobre amadurecimento e relações familiares complexas e traz aquele assombro de quem está crescendo diante dos paradoxos do mundo adulto.

A catalã Xita Rubert (1996)

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Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Assinado sob o pseudônimo de Paula Ledesma, Nossa Parte de Noite juntou-se a mais de 650 outros originais apresentados à seleção de 2019 do Prêmio Herralde de Romance — uma das mais importantes premiações da literatura de língua espanhola. A história acompanha pai e filho cruzando a Argentina de carro sob os olhos de soldados armados, no ambiente da ditadura militar, despertando interesse e aflição. Há ocultismo, ocorrem coisas inexplicáveis e é impossível parar de lê-lo. O livro tem, ao mesmo tempo, várias narrativas e impressiona pelo domínio com que Mariana Enriquez constrói o enredo em várias direções e contextos. Ela ganhou o prêmio, claro, foi a primeira mulher a fazê-lo.

Bem, a maior parte do romance trata de temas que não são de minha preferência, porém, já disse, não parei de ler, não poderia largar.

Gaspar é o filho de Juan Peterson. O pai, em solitária cruzada, trata de proteger seu filho do destino que lhe foi designado. A mãe do menino já morreu em circunstâncias obscuras. Gaspar, como seu pai fora, recebeu um chamado para ser médium de uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna em rituais brutais. Para tais rituais, é imprescidível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é muito severo. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali à Argentina.

O terror sobrenatural se mistura com outros, reais. Ao lado de casas cujos interiores se transformam, de passagens perigosas, de sacrifícios em rituais de êxtase e dor, de andanças pela maravilhosa Londres dos anos 60, do fetiche por pálpebras humanas, das liturgias sexuais, há a repressão da ditatura militar, os desaparecimentos e, mais tarde, a chegada incerta da democracia e dos primeiros casos de Aids.

Nossa Parte de Noite é um livro perturbador e deslumbrante. A prosa de Mariana Enríquez é muito rica e bem trabalhada, obrigando-nos continuar e continuar mergulhado na história. A inclusão de diferentes vozes narrativas e de vários personagens muito bem definidos conferem ao tema variações e reviravoltas imprevisíveis, às vezes sufocantes… E, portanto, muitas vezes o assunto é o que menos importa. Era meu caso, eu parti de uma posição claramente cética, mas fui absorvendo uma história muito complexa e verdadeiramente estranha.

Há capítulos sobre a vida dilacerada do personagem principal, Juan Peterson, o pai de Gaspar, que vive sempre em tensão, entre doenças, operações cardíacas versus as exigências da Ordem. Sua esposa, a mãe de Gaspar, foi morta em circunstâncias nada claras. Ele tem a necessidade urgente de separar seu filho das influências da família e do tema da Escuridão, pois sabe que se não separar isso continuará com ele depois de sua morte. Quanto ao título, a noite é fundamental, há no livro uma alusão direta, num diálogo entre Juan e seu filho Gaspar, na noite em que vão deitar as cinzas da mãe em um rio. Juan, acariciando o filho, diz mais ou menos assim: “Deixei para você algo meu, espero que não seja amaldiçoado, não sei se posso deixar para você algo que não seja sujo, que não seja escuro, nossa parte de noite.”

Algo curioso aconteceu comigo durante a leitura deste livro, pois entrei e saí da atmosfera do romance sem parar, mas em todos os momentos estive atento e predisposto a acreditar em tudo, absolutamente em tudo. Há momentos de total serenidade, mas o leitor sabe que está numa montanha-russa, num sobe e desce.

Um aspecto que também é de grande interesse são as alusões ao golpe militar na Argentina, às greves, aos desaparecimentos, a um momento histórico muito conflituoso. Nossa Parte de Noite envolve muitos aspectos que não são fáceis de encadear, de unir e de dar continuidade, que ainda assim estão lá perfeitamente lançados. Uma resenhista espanhola identificada apenas como Ros, realizou o exercício de separar os vários temas extras tocados no romance. Vejamos:

— Este é um romance sobre paternidade e amor, Juan é o grande protagonista do romance, ele tem muito para nos dar. É um personagem sombrio mas também é o grande protetor do filho que ama. E, claro, seu filho Gaspar, eles são o centro das atenções em torno do qual gira o romance, embora ao seu redor haja mais pais, mães e filhos e filhas que responderão às inúmeras tramas que se desenvolverão.

— É também um romance sobre o poder, um poder necessário para exercer os ritos a que serão obrigados os personagens. Todos aqueles que fervilham em torno da poderosa família ou que atuam como anfitriões da sociedade secreta, onde tudo é possível. Eles têm poder e o exercem sem limites. Mesmo. Como ditadores.

— Mas também se desenvolve um tema muito mais gentil, que é o tema da amizade. Ela é belamente descrita e totalmente sentida por Gaspar e seus amigos que, estando juntos, viverão uma grande experiência que ficará com eles para sempre, com suas visões e seus medos.

— Também podemos falar da brutalidade, da violência, um tema que surge a cada momento. Mesmo quando parece haver paz e tranquilidade, ela volta, aparecendo sem que percebamos e é uma violência que sempre deixa vítimas. É terrível. Todos e cada um dos personagens do romance, os mais novos e os mais velhos, sofrem com isso. Corpos aparecem mutilados, torturados, desaparecidos, estuprados…

— É um romance sobre a crueldade e a vontade incontrolável de exercê-la, mas, acima de tudo, haverá a luta, o conflito interno contínuo e diário, para que ela não aconteça. Isso se desenvolve em Juan e, claro, em seu filho Gaspar, porque é a herança familiar que ele lhe deixou.

— E acima de tudo há também a Argentina, as ditaduras e as grandes famílias que mexem os pauzinhos, que matam e nada acontece. Para isso há o mais importante, o que não devemos perder, a existência e a exigência da memória. O paralelo é evidente entre os rituais da Ordem e o que acontecia na Argentina.

Mas ainda há muito mais, tudo perfeitamente regido por Mariana Enriquez, juntando-se e encaixando-se à perfeição.

No final… Bem, não vou contar. O final é sensacional.

Mariana diz que uma de suas inspirações foi Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato. Realmente, sua atenção aos fatos da história argentina mostra que “a vida é um conto de terror”, como no livro de Sábato… Admiradora de Lovecraft, Stephen King e Cormac McCarthy e dizendo ser uma pessoa normal, que tem medo do desconhecido, da morte e da violência, ela nos mostra que o medo que está na página seguinte é o mesmo que podemos encontrar ao dobrar a esquina, só que este será sem arte.

Obs.: Mariana também disse que teve de fazer uma séria curadoria em suas obsessões para escrever o romance. Teve que dosar poesia, música, ocultismo, homens bonitos, doenças, cultos pagãos, sexualidade não normativa… Tudo para que as coisas não saíssem fora de controle. Não saíram.

Mariana Enriquez (1973)

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Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Este romance dinamarquês de 1880 já foi imensamente influente: ele e seu autor foram citados e elogiados por Hermann Hesse, Thomas Mann, James Joyce e Rainer Maria Rilke. E isso é motivo suficiente para lê-lo, claro. Trata-se de um excelente retrato psicológico de um artista fracassado, escrito num estilo marcado por imagens muito surpreendentes e uma análise emocional miraculosamente precisa e realista.

Li este livro justamente em razão dos elogios e referências de Hesse, Thomas Mann e Joyce e, quando o li pela primeira vez, já com mais de 40 anos, ele me emocionou de uma forma inesperada. Conto para vocês os motivos. Quando criança, minha mãe me levava à Igreja Metodista. Eu participava da Escola Dominical. Aquilo de tal modo me impressionou em sua mentira, que me tornei não apenas ateu para a vida inteira, mas me transformei numa criança e pré-adolescente tímido e um pouco raivoso com a estupidez de pessoas que pareciam acreditar — de verdade! — naquelas bobagens de vida eterna, a qual jamais poderia ser eterna por diversas e óbvias razões e que, se fosse, talvez nomeasse representantes de maior envergadura ética e intelectual. O sorriso dos religiosos me era extremamente desagradável. Só que aquilo parecia ser algo apenas meu e tratei de me recolher nos livros e no futebol, já que tinha certeza que quase todo mundo era imbecil. Sim, este foi um grave problema para mim entre meus 5 e 12, 13 anos. Tive uma infância em que procurava observar onde estavam as fissuras nas pessoas.

Bem, acabo de reler o livro em voz alta para minha mulher e ele se manteve em alta estima, apesar de seus claros defeitos. Vamos lá.

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen (1847-1885) assemelha-se ao realismo desiludido de escritores de meados do século XIX, como Flaubert, Tchékhov e Ibsen. Sua ênfase em nossa fragilidade e nos processos biológicos que conduzem à morte, juntamente com sua retórica ateísta, o assemelha ao naturalismo de Hardy ou Zola. Seu pouco enredo parece Joyce. A descrição de estados psicológicos muitas vezes mórbidos e seu foco no artista como mártir de uma sociedade incompreensível é um mérito que o aproxima também de Dostoiévski, Machado ou Hesse.

O romance de Jacobsen reflete e acelera o fim de muitas posições antigas. O autor, que traduziu Darwin para o dinamarquês e que morreu jovem após uma longa luta contra a tuberculose, conta a história de um personagem que tenta viver, amar e fazer arte quando todos os ideais de gerações anteriores já estão desacreditados pela revelação contínua de que um ser humano é apenas outro animal.

Niels Lyhne tem uma mãe apaixonadamente idealista e um pai prosaico, empresário e agricultor. Esses dois puxam o jovem Niels em duas direções diferentes, nenhuma das quais será capaz de apaziguar sua necessidade de compreender a realidade. É claro que isso não fica tão claro e definido na consciência infantil de Niels como eu expresso aqui, mas está tudo lá.

O romance acompanha Niels desde a infância até o fim prematuro de sua vida e é organizado em torno de seus principais relacionamentos, principalmente com uma série de mulheres idealizadas, juntamente com amigos do sexo masculino que atuam como contrapesos e, às vezes, rivais eróticos.

Embora a prosa de Jacobsen muitas vezes consista em pura anotação de estados psicológicos — ela é muitas vezes sem ação –, ele também é um escritor de cenas eróticas memoravelmente vívidas que transmitem a sensualidade avassaladora até mesmo de momentos aparentemente triviais, como quando Niels encontra sua prima mais velha, Edele, que vem para ficar com a família pouco antes de sua morte prematura por tuberculose, a primeira de muitas mortes precoces na história. O que é aquela cena das flores e a posição de Edele no divã?

A morte de Edele leva Niels à sua primeira rebelião contra Deus, a divindade cruel que tirou uma vida tão jovem e bela. Ele faz um longo e irrespondível discurso mental contra aquela injustiça.

Depois, quando o amigo aparentemente pouco artístico Erik vai a Copenhague para se dedicar à escultura, Niels o segue e se apaixona pela cidade. Lá ele tem um caso de amor abortado com uma viúva mais velha e experiente, a Madame Boye. Soando como uma das heroínas feministas de Ibsen, Boye é também a primeira a dizer a Niels que a sua idealização das mulheres, da qual penso que a prosa lírica de Jacobsen era cúmplice, é, na verdade, opressiva e destrutiva. Sim, esta parte é genial.

Após o caso de Niels com Madame Boye terminar com a retirada dela para a segurança financeira e social burguesa, Niels perde a sua amada mãe, cuja busca apaixonada pelo ideal deu início a tudo.

Então Niels e Erik se apaixonam pela mesma mulher, uma adolescente aparentemente inocente chamada Fennimore. A escolha de Erik, seu arrependimento por essa escolha e seu consequente relacionamento desastroso com Niels levam o romance ao seu clímax emocional, e percebemos que todo relacionamento nesta narrativa terminará com uma morte física ou com o retorno ao rebanho da sociedade normativa.

Ou as duas coisas ao mesmo tempo, como prova a conclusão do romance: Niels afinal encontra a felicidade com outra jovem. Eles se casam, têm um filho e juntos defendem o ateísmo e o humanismo (“Deus não existe e o ser humano é seu profeta”, Niels havia afirmado anteriormente), tanto que isso choca seus vizinhos. No entanto, diante de mais uma morte prematura inexorável, será que fé retornará? A resposta varia de acordo com o personagem moribundo, mas o próprio Niels termina como o herói solitário e íntegro, confrontando a morte e confirmando que não existe Deus, nem transcendência, nem salvação.

Esse resumo e esses trechos deveriam indicar por que o romance se mostrou tão influente. É um participante muito ilustre em uma linha de romances que vai desde A Educação Sentimental, de Flaubert, de Melville, até O Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, e A Montanha mágica, de Thomas Mann, romances nos quais seus protagonistas não conseguem se desenvolver como bons cidadãos ou grandes artistas, esmagados como estão por uma sociedade e um cosmos indiferente.

Niels Lyhne também é um livro reconhecidamente falho. Como o método narrativo de Jacobsen é principalmente descritivo e não dramático, muitas vezes carece de tensão, e a complexidade de seus personagens tende a ser afirmada de forma abstrata, em vez de retratada de forma vívida. Georg Lukács, na sua Teoria do Romance, criticou o livro por estes motivos.  Ele diz que o romance de desilusão de Jacobsen, que expressa em maravilhosas imagens líricas a melancolia do autor sobre o mundo, desmorona e se desintegra completamente. A vida desse herói, que deveria se tornar uma obra de literatura é, em vez disso, um fragmento pobre, transformada em uma pilha de escombros. O romance seria uma bela e irreal mistura de voluptuosidade e amargura, tristeza e desprezo, jamais uma unidade. Uma série de imagens e aspectos, mas não uma totalidade de vida. Vejo tudo isso no livro, mas gosto dele mesmo assim.

Jens Peter Jacobsen

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Na outra ponta da noite, de Lílian Velleda

Na outra ponta da noite, de Lílian Velleda

Poesia é uma coisa complicada. É muito fácil ser ruim e alguém que faça uma boa leitura muitas vezes engana o ouvinte. Quando vai para o papel, pouca coisa sobrevive.

Por isso, fiquei surpreso com o lançamento da última sexta-feira. Em primeiro lugar porque era anunciada a página onde estava o poema. Depois porque cada participante da festa lia um. E os poemas sempre sobreviviam, seja a uma leitura um pouco pior, seja ao acompanhamento das palavras no papel. A poesia mostrava uma dimensão a mais do que o comum.

Falo do livro Na outra ponta da noite, de Lilian Velleda, lançado na Bamboletras sexta-feira passada. Poesia madura e exigente, como disse Paulo Scott. Poemas lindos e cultos, para serem lidos mais de uma vez e que crescem a cada leitura.

Gostei muito. A Livraria Bamboletras sente-se honrada pela grande noite de sexta-feira.

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Um pouco sobre Nyels Lyhne

Um pouco sobre Nyels Lyhne

Certamente, Nyels Lyhne é um dos melhores livros que já li. Um pouco verboso demais, mas um clássico extraordinário.

Este livro do dinamarquês Jens Peter Jacobsen foi lançado pela Cosac em 2000, com uma segunda edição em 2001. Hoje, usado, custa uns R$ 700 (280 páginas). Nunca foi relançado, um completo absurdo.

Eu o estou relendo, agora em voz alta para a Elena, e nele redescobri trechos que parecem explicar minha pré adolescência melhor do eu jamais a entendi. Refiro-me à minha revolta contra Deus. Aquilo me fez uma pessoa diferente das outras e empurrou-me para o silêncio e para uma timidez sempre desconfiada. Só me soltava falando sobre ou jogando futebol. Quem me conhece sabe que aos 20 eu já não era assim.

Nyels Lyhne é um romance de formação e estou na página 70. Engraçado, não lembro do que virá, mas sei que, após a leitura que fiz lá em 2000, escrevi na primeira página que era “o livro perfeito”. Ou um deles.

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Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Bem, então, o estar à parte interessa-me do ponto de vista humano. E se me interessa do ponto de vista humano, interessa-me do ponto de vista literário. 

Isabela Figueiredo, em entrevista para a Bertrand Livreiros

Humano, demasiado humano. O título de Um cão no meio do caminho poderia ser o mesmo da obra de aforismos de Nietzsche. Entre o melancólico e o bem-humorado, a portuguesa Isabela Figueiredo arrasa neste romance. Li os dois primeiros livros de Isabela e neles ficava clara a estupenda narradora. Mas Caderno de Memórias Coloniais era autobiográfico e o mesmo parecia acontecer com A Gorda. Este Um Cão seria seu primeiro livro com história original e acabou que o li com ainda maior prazer.

Ela conta a história de José Viriato, um solitário catador de lixo que quase só sai de casa à noite. Um dia ele conversa com Beatriz, conhecida no bairro como a Matadora, mas que na verdade é um pessoa bastante reservada, uma acumuladora que mantém tudo o que é seu em caixas e vive apertada num canto de seu apartamento. Ela fica doente, ele a trata, tornam-se amigos e muitos dos seus traumas vão lenta e delicadamente surgindo sob o olhar inteligente de Isabela. São dois personagens invisíveis, mais por terem desistido do que por vulnerabilidade social. (Vulnerabilidade no Brasil não é mesmo que em Portugal). E não, não é uma história de amor.

Fiquei muito surpreso com a crítica hostil que apareceu na Folha de São Paulo. Ainda bem que não acreditei nela. Ela dizia que o livro é sobre a amizade e reclamava que Isabela não dá espaço ao leitor para pensar. Não entendo, pois (1) é muito mais do que uma história sobre amizade: o livro é tanto sobre este tema quanto sobre solidão e traumas e (2) encontrei bons espaços para reflexão. Se Viriato é falador, a história de Beatriz é apenas espreitada. Muito de si é deixado a cargo de nossa imaginação, assim como na relação entre os pais de Viriato.

Não há nada de pieguice no dolorido livro de Isabela. Um cão é compassivo e duro, franco e abrasivo, e alguns dos mais exigentes leitores da Livraria Bamboletras, retornaram perguntando se temos outro no mesmo estilo.

Isabela Figueiredo

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Fuga da Sibéria, de Leon Trótski

Fuga da Sibéria, de Leon Trótski

Não, nada de Revolução, propaganda ou discursos políticos. Mas quem já leu Trótski pode facilmente intuir o grande narrador (e leitor) que há por trás do revolucionário. Por trás? Não, aqui, o narrador está no centro do palco. Traduzido pela primeira vez no Brasil e escrito pelo próprio protagonista da aventura, Fuga da Sibéria narra a fuga em um trenó de renas por mais de 800 Km na Sibéria. Ele leva mais de um mês indo de trem em trem, sempre altamente vigiado, junto de outros políticos presos, inventa uma doença para não chegar ao destino e foge com a ajuda de um siberiano totalmente bêbado…

Como participante da Revolução de 1905, sufocado pelo poder czarista, Trotsky, de 27 anos, foi julgado e deportado perpetuamente para a Sibéria. O destino final está localizado acima do Círculo Polar Ártico, a 1.600 km da estação ferroviária mais próxima. Num dos postos da viagem, o prisioneiro inicia a sua fuga pela estepe siberiana, um território selvagem e extremo, com temperaturas inferiores a -25 ºC e populações com costumes, alcoolismo, pobreza e solidariedade desconhecidas.

Este é o relato em primeira pessoa daqueles dias exaustivos de perseguição. Temendo a cada momento sua captura e confiando sua vida e liberdade ao imprevisível cocheiro Nikífor, Trótsky torna-se, talvez contra sua vontade, um viajante preocupado. Ele viaja pela tundra, fica fascinado pelas renas, passa as noites perto do fogo como qualquer outro nômade siberiano, tenta colocar Nikífor na linha, traça estratégias para evitar ser reconhecido, faz anotações e sempre tem o revólver em mãos como último recurso. Este diário de viagem, escrito enquanto ocorria nas paradas para descanso e alimentação, agitado pelo suspense e pela expectativa, é muito bom, parece um filme de ação. com algum humor. Curiosa e felizmente, Fuga da Sibéria mostra-nos como pensava o jovem Trotsky, um narrador literário na sua forma mais pura.

Um dos apelidos de Trótski era “caneta”. Estava sempre com uma na mão.

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Macha, de Claudia Tajes

Macha, de Claudia Tajes

Claudia Tajes é uma escritora que sabe fazer rir como poucos. Neste Macha, o humor é em parte substituído pela leveza ao tocar em temas não tão fáceis. Li este livro em voz alta durante 4 noites para minha mulher. No início nós ríamos muito, depois a coisa ficou mais séria e as risadas foram substituídas por sorrisos.

Em capítulos curtos, Tajes vai acrescentando dados sobre o caos que se instala na vida de Celina. Esta é uma bancária de 48 anos que, numa manhã, após sonhos intranquilos, acorda inadvertidamente metamorfoseada em uma estranha criatura que faz xixi em pé e coça as partes íntimas em público. Ou seja, acorda com um pênis, com mais barriga e menos bunda, com mais pelos e mais peso. Quando acorda e vai ao quarto do filho pegar uma camiseta maior, acaba agredida, pois o filho acha que um ladrão entrara em casa. OK, sem spoilers. E não preciso falar no óbvio parentesco da história com Kafka.

Celina é separada de Roney, um sujeito escroto que fica abismado e profere todo gênero de preconceitos frente a transformação da ex. O emprego é outro problema, a forma de vestir é mais um — o fio de consequências parece não ter fim. E os amigos? Tajes trata o tema de forma leve e coloca Celina — que a esta altura talvez já queira ser Afonso (nome do pai de Celina) ou sabe-se lá quem — em várias situações que nos faz pensar nos problemas de adequação de gays e de transsexuais a um mundo machista e dominado pelas Leis de Damares do binarismo rosa e azul. É realmente um atrevimento mudar de sexo ou expressar-se através das roupas… E como demonstrar seu carinho para o filho todo desconfiado?

Li o livrinho de Tajes porque um muito qualificado grupo de leituras escolheu-o para iniciar seus trabalhos em março de 2024. Entendo perfeitamente o motivo. São poucas páginas e muito pano pra manga.

Claudia Tajes | Foto: FSP

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Pessoas decentes, de Leonardo Padura

Pessoas decentes, de Leonardo Padura

Este é o melhor dos romances do detetive Mario Conde. Dizer isto não é dizer pouca coisa. Em mais esta novela policial, Padura trata do assassinato de um ex-ministro cubano num momento de grande efervescência em Cuba, com a visita de Barack Obama e dos Rolling Stones. O assassinado é Reynaldo Quevedo, uma pessoa absolutamente asquerosa. Muita gente gostaria de ter a honra de por fim a seus dias, pois era o Jdanov cubano, o homem que perseguia os artistas a fim de colocá-los na linha, o cara que acabou com a carreira de vários deles e que também não facilitava a vida de gays e lésbicas. Porém, apesar de estar quase feliz com a morte do sujeito, cabe a um Mario Conde já aposentado dar uma mão a seus ex-colegas policiais. Afinal, eles estavam atarefados com Obama e os Stones. Para quem não sabe, Conde é uma espécie de alter ego dos desencantados cubanos, um cético que perdeu toda a esperança. Já o morto é um filho da puta sob todos os aspectos e, através da busca de seu assassino, é revisto todo um processo histórico obscuro da revolução.

Mas há outra história e outro crime. Como muitos de vocês sabem, Padura gosta de contar duas histórias em capítulos alternados. Vamos a elas, sem spoilers.

Havana, 1910. Naquele tempo, Havana era chamada a Nice da América. Significava dizer uma cidade de festa, alegria, álcool e prazeres. Lá vivia o cafetão mais famoso e querido de Havana, Alberto Yarini y Ponce de León, grande amigo do detetive Arturo Saborit. Havia uma bonita história de amizade e fidelidade entre ambos, entre o “cafetão bom”, que tinha aspirações mais elevadas do que administrar jogos de azar e suas prostitutas, e o policial. Um caso de assassinato de duas mulheres em Havana Velha expõe a luta entre Yarini, refinado e de boa família, e seu rival Lotot, um francês, que contesta sua posição de proeminência. O desenvolvimento destes acontecimentos terá uma ligação com a história do presente de uma forma que nem o próprio Mário Conde suspeita. Ah, importante: Alberto Yarini foi um personagem real, ele existiu.

Havana, 2016. Um acontecimento histórico abala Cuba: a visita de Barack Obama no que foi chamado de “Degelo Cubano” – a primeira visita oficial de um presidente dos EUA desde 1928 –, acompanhada de eventos como um show dos Rolling Stones e de desfile da Chanel, vira o ritmo pachorrento da ilha de cabeça para baixo. Assim, quando um ex-líder do Governo cubano é encontrado assassinado no seu apartamento, a polícia, ocupada com a visita presidencial, recorre a Mario Conde para auxiliar na investigação. Como já disse, o morto tinha muitos inimigos, pois no passado atuara como censor para que os artistas não se desviassem dos slogans da Revolução. Fora um homem despótico e cruel que encerrara a carreira de muitos artistas que não queriam ceder a seus pedidos e extorsões. Quando aparece um segundo corpo assassinado com o mesmo método poucos dias depois, Conde deve descobrir se as duas mortes estão relacionadas e o que está por trás desses assassinatos.

Como sempre, Padura remonta acontecimentos históricos e políticos. No caso de 2016, revemos a arte dos contrarrevolucionários e os excessos do processo de Inquisição. A conjuntura é o assassinato de um daqueles inquisidores que, como sempre, se beneficiou de abusos de poder.  O cenário das duas histórias é bastante peculiar e funcional à narrativa, com muito cubanismo e bom humor. Porém, em ambas as ficções prevalece um tom melancólico — o entusiasmo dos amigos de Conde pelas degelo que vivem não o atinge e, a certa altura, falando sobre essas mudanças, conta ao amigo e irmão de vida, o magrelo Carlos: “Claro que é necessário, muito necessário. Deixe que as coisas aconteçam… Mas não creio que aconteça nada além do que está acontecendo. E a qualquer momento tudo volta e a gente se ferra”. Sim, foi o que aconteceu. Houve um grande revés nos anos seguintes, em grande parte graças às decisões teimosas de Donald Trump.

A estratégia narrativa de alternar as duas histórias funciona muito bem, os diálogos são trabalhados detalhadamente, as cotas humorísticas são entregues fundamentalmente nessas conversas dos personagens. Havana é a protagonista do romance, o ambiente que existia em Cuba em 2016 é transmitido com grande precisão e há uma elaborada reconstrução daquela cidade em 1910.

Será que eu deveria manter a primeira frase desta resenha? Padura tem 14 romances, 10 com Mario Conde. Talvez eu não devesse me atrever a fazer uma avaliação de todas as obras do grande escritor cubano, mas afirmo com segurança que Pessoas Decentes está entre as melhores. Não tem como não estar.

Recomendo muito.

Eu e Padura | Foto: Roberta Fofonka

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Ao Sul da Fronteira, de Rogério Brasil Ferrari

Ao Sul da Fronteira, de Rogério Brasil Ferrari

Alguns de vocês sabem que eu sou um livreiro que lê e escreve bastante. Alguns sabem que eu, hoje um jornalista cultural em estado de latência, faço minhas resenhazinhas. Deste modo, por ser isto ou aquilo, às vezes recebo livros autografados de presente. Infelizmente, apesar da vontade, não leio todos, pois não faria mais nada além disso. Porém, muitas vezes leio e, se é o caso, trato de elogiá-los aqui. É o caso.

Ao Sul da Fronteira, do gaúcho Rogério Brasil Ferrari, é um livro que envereda por diversos caminhos sem se perder em nenhum deles. No início, parece o retrato de um casal porto-alegrense cujo casamento matou o sexo — cuidem-se meninos! — e onde a mulher vai procurar diversões sensuais em outras plagas. Parece que tudo se dirige a uma história erótica como tantas. Mesmo com a diferença entre o que foi procurado na internet e o que acabou encontrando, Helena vai à Montevidéu para um encontro. Estava precisando. Afinal, diversão era tudo o que faltava em casa.

Quando chega ao país vizinho, ela encontra o que busca e muito mais. Encontra sexo, álcool, aventura e alguém com uma história incompleta devido a fatos ligados à Operação Condor, alguém que insiste em incomodar quem não quer remexer no passado. E, bem, então teremos um thriler erótico? Não, ainda não expus todos os elementos. Há uma pesada questão familiar ocorrendo com a pessoa de Montevidéu, muito mais pesada do que as bebedeiras do marido de Helena que, obviamente, descobriu-se apaixonado pela esposa assim que ela cruzou o Chuí.

Rogério Ferrari mistura tudo isso num livro de grande competência. Nada de discursos inflamados ou palavras de ordem, nada de espasmos, a tragédia e a tristeza de nosso continente vem chegando como uma secreção que embebe tudo lentamente e que por fim sufoca. É daqueles livros que o leitor primeiramente estranha a forma do texto — com uma estranha notação para as falas e outras originalidades — e depois não desgruda mais.

Como nova intervenção gonzo, digo que, no primeiro dia contei para minha mulher o que tinha lido. Estava, claro, no começo do livro, quando ele dá sua primeira virada. Na noite seguinte, ela me pediu a continuação e assim fomos até o final. Ela conheceu todos os personagens principais e a história sem ler o livro. O que prova isto? Prova que a história é boa, pois minha Elena não é trouxa como o marido daquela Helena.

Recomendo. O livro está esperando por você aqui na Bamboletras.

Rogério Brasil Ferrari

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Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez

Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez

Os perigos de fumar na cama (2009) é o primeiro livro de contos publicado na Argentina por Mariana Enriquez. Conheci esta notável escritora através de outro livro de contos As coisas que perdemos no fogo, de 2016. No Brasil, As coisas foi um livro que sumiu, graças à editora Intrínseca. A não reimpressão do livro tornou-o uma raridade que hoje custa de mais de R$ 200 na Estande Virtual. Pelo mesmo caminho irá seu extraordinário romance Nossa Parte de Noite, que está desaparecendo. Ao que tudo indica, o mesmo acontecerá com Os Perigos… No meio do ano, ele desaparecerá e não haverá Madre de la Plaza de Mayo que o fará reaparecer. Tudo obra da mesma editora, que não costuma manter seus livros em catálogo por muito tempo e que parece desconhecer que a “curva de vendas” de um livro de qualidade é muito diferente de outros.

Enriquez tem interessantes pontos de contato com a literatura popular. Ela é uma escritora que admira profundamente Stephen King, Lovecraft e os mestres do suspense e terror. É uma especialista no gênero. Escreve com beleza e conhece a arte de criar climas como poucos. Nada de descrições de grandes horrores, apenas a classe em montar habilmente situações que façam nossa imaginação trabalhar. E é dentro de nós que surgem os monstros. Guardadas as proporções, assim como os europeus reivindicaram Hitchcock como grande cinema quando ele era considerado um diretor eficiente em filmes de gênero, reivindico Enriquez para a grande literatura. E não estou nem um pouco sozinho nisso. Leiam o que escreveu o jornalista Guilherme Conte sobre seu romance Nossa Parte de Noite:

Nada te prepara direito para a jornada que é abrir Nossa parte de noite, estupendo romance da escritora argentina Mariana Enriquez. Você pode achar que está simplesmente lendo um livro, mas a verdade é que a história nos traz para outra dimensão ao longo de suas quase seiscentas páginas, e quando nos damos conta a vida lá fora parece algo desimportante, secundário, distante. A terrível ditadura argentina se entrelaça a monstros, sacrifícios humanos, magia, sadismo e violência, em uma história que se desenrola por três décadas. Uma saga que nos leva aos subterrâneos mais profundos e escuros do medo, que, afinal, é sempre tão grande quanto a nossa imaginação. Ninguém escreve como Mariana, e esse livro é um retrato perfeito disso.

Bem, e o que faz os argentinos escreverem tão bem? Deixemos esta questão de lado para falar um pouco do livro.

O terror de Mariana não envolve seres monstruosos e ela raramente faz uso do sobrenatural. Seu terror nasce e se insere no cotidiano. Uma viagem em família ou com os amigos pode acabar em pura angústia e medo. Uma visita à tia também. Tudo nasce da interação entre as pessoas — inveja, rancor e ódio — ou de fatos como a loucura e a esquizofrenia. É um “terror cotidiano” que invade vidas, mas Mariana não esquece que este também pode ser causado por governos e outras doenças. Sim, em suas histórias há um poderoso subtexto social, relacionando poder, loucura e ocultismo.

Dos 12 contos do livro, creio que Carne, Rambla Triste, O Carrinho, A Virgem da Pedreira e Garotos Perdidos vão custar a sair de minha combalida memória. Seus personagens não são pessoas ricas presas em seus labirintos, há muita pobreza a forçar os limites e também a atraente beleza física, a beleza da experiência e da pureza das pessoas. Mariana trabalha com mestria temas como os maus sentimentos, a tristeza e a loucura. Preparem-se.

Recomendo a todos os mentalmente fortes!

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Sátántangó, de László Krasznahorkai

Sátántangó, de László Krasznahorkai

Dizer que este livro é inquietante é uma grande delicadeza. Obviamente brilhante, este livro conta uma história muito triste, às vezes monstruosa. Como disse um crítico húngaro, “a grandeza do livro é palpável, mas as pessoas parecem não saber o que fazer com ela”. Eu não soube. O livro, que é de 1985, recebeu o Man Booker International quando foi traduzido para o inglês em 2015. É um clássico moderno cuja versão para o cinema, dirigida pelo excelente Béla Tarr, tem 7h30 de duração. Mas o livro não é longo, tem 227 páginas. É que o diretor quis que o filme tivesse a mesma duração de uma leitura do livro. Olha, acho que levei mais de 7h, apesar da ótima tradução, direto do húngaro, feita por Paulo Schiller

São 12 capítulos, ou danças, numeradas de 1 a 6 e de 6 até 1. O climax do livro está nos capítulos de número 6. Cada um deles tem apenas um enorme parágrafo que é formado por longas e belas frases. Krasznahorkai disse ironicamente o seguinte quando questionado sobre suas frases: “Todo mundo sabe que o ponto não pertence aos seres humanos, o ponto pertence aos deuses. Os deuses ficarão com o último ponto.” Talvez Sátántangó trate das reações das pessoas às promessas de esperança e salvação: “Não estou interessado em acreditar em algo, mas em compreender as pessoas que acreditam.” Hum, é um caminho.

Como disse, o livro é não é longo, em muitos momentos é chega a ser estimulante, mas que projeta não permite que se ria dele, como fazemos com Kafka ou Bernhard (ao menos eu rio algumas vezes com estes autores). É que aqui são criadas alegorias que logo depois são destruídas. Pobres de nós.

Lama, lama, muita chuva e lama. E pobreza. Na primeira metade, a ação centra-se no retorno de Irimiás, um homem que pode ser ou não ser um profeta, ou é o diabo, ou apenas um vigarista, a uma aldeia húngara apodrecida e encharcada. A aldeia parece ser um assentamento abandonado, onde toda a esperança foi perdida e todos os prédios estão caindo. É habitado por um elenco de camponeses desesperados tentando enganar uns aos outros com seu pouco dinheiro, enquanto cobiçam a esposa ou o marido do próximo, além de um médico minuciosa e perpetuamente bêbado que observa obsessivamente os vizinhos, também há mulheres tentando vender-se, uma menina deficiente que tenta matar seu gato e um adolescente malandro. No final do primeiro capítulo, eles descobrem que Irimiás, que pensavam que estava morto, está a caminho da propriedade, com seu amigo Petrina. Os moradores locais se reúnem no bar e caído e sujo para esperá-lo, onde bebem, discutem, brigam e dançam grotescamente ao som de um acordeão, enquanto se provocam sexualmente, por assim dizer. Quando chega, Irimiás parece um chefe de marionetes.

Irimiás e Petrina chegam e depois não conto mais. Pode-se falar no fim da era soviética, mas, por favor, é muito mais do isso. Na verdade, a única alegoria que permanece é a da falta de sentido da vida e da impossível salvação. Tudo muito Beckett e Kafka, com temperos de Bernhard. Tudo parece extremamente verossímil e a reação do leitor só pode ser a de horror a um mundo sem sentido. Krasznahorkai deleita-se com descrições pouco ortodoxas; nenhum objeto é insignificante demais para seu olhar preocupado. Isso causa estranheza porque se alguém descreve um punhal ele acabará sendo usado. Aqui não… Sim, há um cuidadoso e elegante trabalho de linguagem em Sátántangó.

No entanto, como disse, é um romance obviamente brilhante. Krasznahorkai nos convence de tudo. Até mesmo os desenvolvimentos mais estranhos da história dão-nos a impressão de realidade e são lindamente integrados na estrutura do romance, semelhante a uma suíte de danças. A epígrafe, retirada de O Castelo, de Kafka, diz muito: “Nesse caso eu o evito esperando por ele”.  Aliás, o Satantango é repleto de imagens religiosas ao estilo Tarkóvski e de sugestões de revelação, desde os sinos de Futaki no primeiro capítulo — que talvez signifiquem a “ressurreição” de Irimiás, que nunca foi batizado. “A imaginação nunca para de funcionar, mas não estamos nem um pouco mais próximos da verdade”, comenta Irimias. E depois: “É uma batalha, Petrina. E nós sempre nos afundamos. Quando achamos que estamos nos libertando, apenas ajeitamos os cadeados. Está tudo arranjado”.

As ambiguidades do livro tornam quase impossível qualquer leitura concreta de Sátántangó. Somos colocados no mesmo confuso estado de espírito dos personagens, aquele que faz a gente perder a coisa ao esperar por ela.

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P.S. — Acabo de ver uma entrevista de Krasznahorkai no YouTube. De fala mansa, é um sujeito simpático que fala ao mesmo tempo que sorri, não é nada apocalíptico, e diz que não desejava ser escritor.

László Krasznahorkai (1954). Fonte: YouTube

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Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk

Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk

Vamos evitar os spoilers, apesar de que aqui será complicado fazê-lo.

O excelente Meu nome é Vermelho, do turco Orhan Pamuk, investiga dois assassinatos brutais e oferece uma linda e provocativa exploração da natureza da arte em uma sociedade islâmica. Mas a forma com que o romance é escrito também impressiona. Afinal, não é todo dia que se lê um livro com 20 narradores, alguns mais predominantes que outros. Dentre eles há um cachorro, uma árvore, a cor vermelha e um cavalo, bem como a Morte, Satanás e um cadáver. Todos fazem importantes contribuições para a narrativa, mas no centro do palco estão Negro, Ester — a casamenteira judia –, o próprio Assassino, vários miniaturistas e Shekure, o grande amor de Negro. Apesar do alto número de narradores, a leitura é fácil e a gente jamais se confunde sobre quem fala, porque cada capítulo é narrado por apenas um deles e seu nome está sempre no título do mesmo, enorme, pra ninguém se enganar: Meu nome é Vermelho, Eu sou meu cadáver, Meu nome é Negro, Serei chamado Assassino, Eu, Shekure, assim por diante.

Negro, após 12 anos de ausência, retorna à sua terra natal, Constantinopla, no meio de um inverno rigoroso. E descobre que tudo mudou. A bela Shekure, a mulher que ele desejava desde adolescente, casou e enviuvou na sua ausência, estando mais uma vez à procura de um marido. Entretanto, o seu pai, um ex-embaixador rico e influente em Veneza, conhecido por todos como “Tio”, embarcou num projeto há muito acalentado, a compilação de um livro de iluminuras para o Sultão no qual o mundo será retratado realisticamente e em perspectiva, à maneira dos pintores renascentistas que o Tio passou a admirar na Itália.

Este, porém, é um empreendimento perigoso, pois os fundamentalistas islâmicos estão na cidade e odeiam a arte ocidental. No primeiro capitulo, um dos ilustradores que trabalhava no livro que está sendo preparado para o Sultão já foi encontrado no fundo de um poço com o crânio esmagado e, em pouco tempo, haverá mais uma morte.

Estamos em Istambul (ou Constantinopla), no final dos anos 1500 — um tempo no qual o Império Otomano atingia seu auge, apesar de cada vez mais desafiado pelo Ocidente inovador. Proibidos pelo Alcorão de pintar imagens realistas, os miniaturistas da cidade fizeram durante séculos imagens estilizadas de pessoas, plantas e cavalos. A sua crença era a de que apenas Alá poderia “criar pessoas”, jamais os artistas. Então, estes eram proibidos de retratar rostos, de reproduzi-los. Só Alá poderia fazer o mesmo. Mas quando um novo Sultão — após também visitar Veneza, cheia de retratos realistas de potentados e de gente do povo, além de pinturas que usavam perspectiva — encomendou um livro ao Tio, que incluiria retratos no estilo ocidental, os artistas e mulás reacionários ficaram em polvorosa.

Depois que um famoso gravador e outra pessoa envolvida no projeto são encontrados assassinados, o Sultão exige que o autor dos crimes seja preso ou todos os miniaturistas serão condenados à morte. Negro, sobrinho de Tio Efendi, envolve-se na investigação. Ele consulta o famoso miniaturista Mestre Osman — que sente que uma era está acabando e fura seus próprios olhos –, bem como os artistas que trabalharam no livro. Com apelidos como Borboleta, Cegonha e Oliva, esses artistas relembram e discutem a diferença entre a arte ocidental e a islâmica enquanto proclamam sua inocência. Ameaçado de tortura pelo Sultão, Negro finalmente consegue descobrir o assassino.

Trata-se de um rico banquete de ideias e conhecimento.

Deixem eu explicar melhor. Naquele mundo não havia ainda a celebração do artista. Os autores eram proibidos até de assinar seus trabalhos. Estes eram apenas ornamentais, sem estilo pessoal e, como dissemos, sem perspectiva. Os rostos eram iguais, pois retratar pessoas reais poderia gerar idolatria e adoração. Então, como escrevi, o Sultão solicitara um projeto secreto. O Tio Efêndi vai contratar um grupo de 4 dos melhores miniaturistas para criar uma obra de gênero ocidental, onde ele, o Sultão, deverá ser retratado. Um deles morre — o primeiro narrador é este cadáver. Outro também é assassinado e um dos narradores é o assassino. Desta forma um dos narradores assume duas identidades, como narrador explícito e… como o misterioso assassino. A gente só vai saber quem é no final, pois o assassino é um dos narradores não confiáveis e trata de se esconder. Aliás, nesta trama policial, temos 20 narradores nada confiáveis…

O parentesco com O Nome da Rosa é bastante óbvio. Como a obra de Eco, é um whodunnit (*) cheio de charme e profundamente erudito. O tema ostensivo de Meu nome é vermelho é a ameaça de ocidentalização da arte pictórica otomana. O tema subjacente é de como o islamismo defende suas convicções.

O amor pelas crianças é particularmente grande em Meu nome é Vermelho. Shekure, que leva o nome da própria mãe do romancista, é absolutamente devotada a seus dois filhos pequenos, que, como o romancista e seu irmão na vida real, se chamam Orhan e Shevket, e o livro é dedicado à filha mais nova de Pamuk, Rüya. Esta reunião de pais e descendentes, passado e presente, fato e ficção, da mesma forma que a arte islâmica, reúne tudo no mesmo plano, sem gradações de perspectiva e é, obviamente, deliberada.

Recomendo demais.

Orhan Pamuk (1952)

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(*) Quem matou?, Whodunnit ou Who Done It é um recurso narrativo típico da ficção, em especial na literatura e na teledramaturgia. Consiste, inicialmente, no assassinato de um dos personagens pertecentes à trama, desencadeando um procedimento investigativo acerca da identidade do responsável pelo crime. Na literatura o Whodunnit também é bastante utilizado em romances policiais. Um dos primeiros autores a explorar o gênero foi Edgar Allan Poe em Os Assassinatos da Rua Morgue, mas se tornou mais conhecido a cargo de autores como Arthur Conan Doyle com o detetive Sherlock Holmes, Agatha Christie com Hercule Poirot, Miss Marple e outros detetives, além de Georges Simenon com o Comissário Maigret e Stieg Larsson nos livros da Trilogia Millennium.

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Brancura, de Jon Fosse

Brancura, de Jon Fosse

A Bamboletras acaba de receber ‘Brancura’, livro do Prêmio Nobel de Literatura Jon Fosse. Li o livro numa sentada e gostei muito. Assim como Annie Ernaux, vencedora no ano passado, Fosse faz uma literatura intimista, mas aqui com toques de Beckett e Bernhard, isto é, com muito mais angústia e absurdos. Não vou dar spoilers, apenas vou dizer a situação que é descrita nas primeiras duas páginas. Um homem dirige seu carro sem destino, desconhecendo as próprias motivações, e sai da cidade até entrar numa vicinal, onde o carro fica preso na neve. Sem saber bem onde está, o narrador-personagem sai do carro para buscar ajuda. Então, o livro mergulha num interessante e muito musical fluxo de consciência, passeando entre o onírico e o terror psicológico sem deixar de lado grandes questões da humanidade. Impossível não se envolver intensamente com o texto. Livro fácil de ler e de certamente difícil tradução, Fosse recebeu resposta à altura por parte do excelente tradutor Leonardo Pinto Silva.

Não sei se o norueguês Fosse mereceu ou não o Prêmio, o fato é que se trata de um grande escritor. Gostei muito do que li. O final é especialmente belo.

Recomendo.

Jon Fosse (1959)

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Sinfonia dos Mil, de Almir Amarante

Sinfonia dos Mil, de Almir Amarante

Quase tudo está dito no booktrailer abaixo, mas vamos lá. Durante a pandemia, um contrabaixista de orquestra sinfônica é convidado para uma gravação da Sinfonia dos Mil, de Mahler. A assim chamada Sinfonia é a de Nº 8 do genial austríaco. Trata-se de uma enormidade musical. Inclui orquestra, coro, solistas, órgão, mais a torcida do Galo e a do Inter. Claro que é complicado colocar mil pessoas num palco e a Sinfonia é normalmente interpretada por muito menos gente — o próprio compositor não aprovou este apelido “dos mil”, mas este permaneceu, ainda mais que alguns maestros, como Stokowski, apertaram de verdade mais de mil músicos num palco.

O convite era assim: como o tempo era de pandemia, a captação de som e imagem seria remota. Ou seja, cada músico receberia instruções detalhadas e gravaria sua parte em casa. Tudo seria depois juntado, como muitos fizeram durante aquele período. Na gravação resultante, a Sinfonia seria realmente interpretada por mil músicos. A ideia geral da obra de Mahler é a da redenção através do amor, fato que tem eco na boa história contada por Amarante, ele mesmo contrabaixista da Osesp desde 1994.

Acontece que um determinado músico, um contrabaixista argentino também convidado para participar da empreitada, busca contato com o narrador, seu colega de instrumento no Brasil. E os dois passam a conversar com certa frequência, primeiro através de e-mails e depois por videochamadas. Bem, o único spoiler que hoje sairá de minha pena é para dizer que não se trata de história gay.

Mas direi que se trata de um livro excelente que narra uma interessante aproximação. Narra sobre a construção de um elo que resulta em mudanças no presente. Como músico, Amarante tem total conhecimento e vivência da matéria musical envolvida e, como escritor, não fica nem um pouco atrás. A vida numa sinfônica, as querelas entre os músicos, o nascimento de uma amizade e de conhecimento mútuo, as motivações envolvidas de cada contato, tudo é minuciosa e extremamente bem contado, de forma a que o leitor grude de vez, desejando saber logo tudo.

Amarante não apressa as coisas como fazem os maus músicos. O andamento e o senso de estilo estão sempre corrretos. Sinfonia dos Mil é um livro envolvente, tranquilo e inteligente como um segundo movimento de Haydn, sem tonitruantes tutti de mil pessoas.

Almir Amarante

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Últimos pedidos, de Graham Swift

Últimos pedidos, de Graham Swift

Este livro, meu amigo, você apenas encontrará em sebos. Ele foi lançado em 1999 pela Cia. das Letras e, por ele, seu autor recebeu o Booker Prize de 1996. Merecido? Creio que sim. Mas é um livro bastante complicado, trabalhoso de ler. A história é semelhante a de Enquanto agonizo (As I lay dying), de Faulkner, mas, de resto, o livro de Swift é muito original.

Últimos pedidos (Last Orders) conta a viagem de quatro amigos londrinos que frequentemente se reuniam nos finais da tarde para beber e discutir as novidades num pub. Eles têm entre os 50 e os 60 anos — exceto o filho adotivo de um deles — e viajam até Margate para cumprir um último desejo de um ex-membro do grupo, recém falecido: o de espalhar suas cinzas no mar. É claro que todos conheciam as famílias de todos. E todos eles narram o romance, o que causa certa confusão no leitor mais desatento. Eu, por exemplo, li umas 150 páginas e estava adorando o livro, mas sabia que estava perdendo coisas por estar com a atenção meio vaga. Então, voltei ao início do livro com outra postura, a de me me dedicar seriamente a entender tudo, o que acabou sendo muito prazeroso.

Como curiosidade, digo que é um livro que não pode ser trasposto para a realidade brasileira. Um dos personagens é funcionário público, outro tem uma funerária e é muito bem sucedido, outro tem uma mecânica e também prospera, e ainda temos um feirante e um açougueiro (em cinzas). Não creio que os preconceitos de classe brasileiros pudessem juntar tal fauna. E são amigos de anos, todos conhecem quase todas as fofocas familiares uns dos outros. São como uma família, brigam e se ofendem, se acusam e se amam.

O livro é delicado, discretamente comovente e possui um belo erotismo em sua parte final. (Afinal, ficamos sabendo que o funcionário público tem educada e gentil fissura pela viúva). Tudo se dá durante a viagem — diálogos, risadas, brigas e lembranças individuais e coletivas. Por que fiz questão de relê-lo? Ora, porque me pareceu autêntico e parecido — em suas vidas confusas e emoções não expressas — com as histórias de amigos meus. Há pouca narração de fatos novos e muito fluxo de pensamento, o que torna o texto, como disse, difícil de seguir. A primeira pessoa do singular passa de um a outro alternadamente. Apesar de Swift colocar o nome do narrador como título de cada capítulo não é fácil de se achar. Então, fiz anotações de personagens e relacionamentos…

Na releitura, a história fluiu com suavidade, com cada um dos pontos de vista dos personagens principais girando, intercalados com a narração dos eventos atuais, feita por Ray (o funcionário público). E foi então que se revelou a enorme riqueza de Últimos Pedidos. Muitas referências e insinuações sutis se encaixaram como um quebra-cabeça. O estilo de Graham Swift é perfeito, esboçando imagens vívidas de personagens e ambientes sem descrições supérfluas. Os estratos da sociedade inglesa em que esses homens se enquadram são transmitidos sem esforço por meio do diálogo de seus pensamentos e conversas.

Um esplêndido livro sobre amizade e lealdade.

Graham Swift (1949)

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O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May

O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May

É quase inacreditável, mas tudo o que é contado de forma romanceada em O Leão da Calábria aconteceu aqui, em Anta Gorda (RS) pertinho de nós, nos anos 20 do século passado. Não gostaria de entrar em polêmicas, só que… Será que os fatos narrados no livro explicam, alguma coisa de nosso estado e do Brasil? Falo dos dias atuais, claro. Bem, voltemos ao livro.

Nilson Luiz May narra a história do médico Michele De Patta, que há 100 anos emigrou da Calábria para chegar ao nosso estado. Recém formado e tendo trabalhado como médico na Primeira Guerra Mundial, Michele trouxe ao RS diversas técnicas desconhecidas ao povoado de Anta Gorda, atraindo a admiração dos clientes e o ódio dos curandeiros e de quem acreditava neles. A base da história é totalmente real — inclusive, no livro, há fotografias de De Patta, de sua família e de seu hospital. O autor romanceou a trama, claro, criando diálogos e alguns poucos personagens extras.

Imaginem que o médico italiano conseguiu erguer um hospital, a fim de ampliar e melhorar o atendimento à população local — afinal, muitos passavam por cirurgias e precisavam de tempo e de ambiente adequado para a recuperação. Porém, o ódio e a amizade do médico com um professor local, que era anarquista, complicou tudo. Aliados à ignorância, o poder público e o religioso — apesar do catolicismo da família De Patta — puseram tudo a perder.

Os fatos e a violência relatadas são quase uma antevisão do que ocorre em nossa época de negacionismos, alguns furiosos e de graves consequências. O livro é um thriller. May usa o suspense para contar sua desconcertante história. Logo no primeiro capítulo, sabemos que o hospital acabará incendiado. Durante a leitura, sabemos como e por quê. Sei que é um lugar comum dizer que a realidade supera a ficção e sou obrigado a repetir isso aqui.

Lemos o livro, levantamos os olhos e pensamos que aquilo só poderia ter sido inventado. Não foi. As certezas e a truculência da ignorância são, muitas vezes, imbatíveis. Não adiantou explicar, receitar, curar, operar e recuperar. A turba ficou ao lado dos negacionistas e do líder local, pouco preocupados com a ciência. E não me digam que 100 anos é muito tempo, não me digam. Afinal, a reação do governo brasileiro à gripezinha de 2020 estão bem próximos de nós.

May é médico e também um maestro seguro, controlando a narrativa de forma a que a gente leia tudo rapidamente. O livro gruda. Afinal, queremos saber até onde aqueles malucos vão.

Recomendo!

O autor Nilson Luiz May

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4 livros

4 livros

A Boa Sorte, de Rosa Montero

A romancista e ensaísta Rosa Montero é, em âmbito mundial, uma das mais importantes escritoras em atividade. Há dezenas de livros e estudos acerca de sua obra. Autora dos excelentes A ridícula ideia de nunca mais te ver e Nós, Mulheres, teve seu A Boa Sorte lançado recentemente no Brasil. É seu primeiro romance onde o personagem principal não é uma mulher. Mas isso talvez seja falso, porque quem ilumina e altera as feições da história é uma personagem feminina. Dentro de uma narrativa fluida e misteriosa, conhecemos Pablo Hernando, um sujeito que some em uma pequena e decadente cidade espanhola. Assim que ele chega, à noite, de trem, compra um apartamento. O vendedor fica surpreso, pois o comprador quer fazer tudo imediatamente, em dinheiro, sem nem mesmo visitar o imóvel. Quem é Pablo Hernando? A polícia está atrás dele? Por que ele escolheu ficar em Pozonegro, onde não conhece ninguém? Então Raluca, funcionária do supermercado local, entra em cena. Ela é sua vizinha e tenta integrá-lo à comunidade. Até consegue um emprego para ele. A descida de Pablo aos infernos é muito bem descrita por Montero. Há medo, angústia, culpa, e também amor, generosidade e inocência. E a boa sorte.

A Boa Sorte é da Todavia, tem 256 páginas e custa R$ 74.90.

A tirania do mérito, de Michael Sandel

Neste livro, Sandel ataca um consenso que ainda reina em alguns meios, o da meritocracia. O livro defende que há um lado negro, um lado desmoralizante nela, ou seja, o de que se a pessoa não ascender socialmente, não terá ninguém para culpar além de si mesma. Inclusive, segundo Sandel, as elites de centro-esquerda teriam abandonado as velhas lealdades de classe para assumir um novo papel de moralizadores da vida. Isto seria particularmente cruel com quem não teve a melhor das formações, justamente as classes mais desfavorecidas. Porque os méritos são normalmente alcançados por quem estudou nas melhores escolas, não? Sandel reconhece o valor do mérito, mas trata de demonstrar como sua aplicação tornou-se tóxica. Segundo o autor, este seria o momento para iniciar um debate sobre a dignidade do trabalho e suas recompensas, tanto em termos de remuneração, como em termos de estima. Com a pandemia, percebemos como somos dependentes, não apenas de médicos e enfermeiras, mas também de entregadores e prestadores de quaisquer serviços, muitos deles transitando via de regra na economia informal. Esse livro traz o problema e sugere soluções para amenizá-lo. Ou seja, não é um livro de simples objeções.

A Tirania do Mérito é da Civilização Brasileira, tem 430 páginas e custa R$ 69,90.

Eu serei a última, de Nadia Murad

Este é o um relato autobiográfico do que Nadia Murad passou nos cárceres do Estado Islâmico e de sua fuga. Hoje, Nadia é ativista de direitos humanos e, em 2018, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Ela faz parte da minoria étnico-religiosa Iazidi. Há cerca de 800 mil iazidis no mundo, a maior parte localizada na fronteira do Iraque com a Síria. Seu povo pratica uma religião sincrética, o iazidismo, que tem elementos do cristianismo e do islamismo, tudo o que o Estado Islâmico não aceita. Em Eu serei a última, ela conta sua brutal experiência – os dias do cerco a sua vila, a prisão, a fuga e, afinal, sua chegada na Alemanha. Dizer que a história é intensa é pouco. Nadia Murad é vendida, torna-se escrava sexual – chama-se a “jihad sexual” – e sua fuga não foi exatamente planejada. A impotência de uma minoria perante o EI, o tráfico humano, o genocídio, os estupros, a vivência em uma sociedade cruelmente patriarcal, a doutrinação dos extremistas islâmicos, a conversão forçada ao islamismo, tudo é violento, porém há trechos leves, como os das lembranças da vida antes da invasão. Em cada página, ficamos nos perguntando como tudo isso (ainda) acontece e até onde o ser humano pode chegar.

Eu serei a última é da Novo Século, tem 394 páginas e custa R$ 69,90.

O despertar de tudo, de David Wengrow e David Graeber

Este livro tornou-se rapidamente um clássico. Com bom humor e argúcia, O despertar de tudo revela que o passado não é aquilo que pensávamos e que a história da humanidade, tal como a conhecemos, traz um viés bastante equivocado. Dentre muitas fontes, os autores utilizam, por exemplo, textos indígenas para recontar a história. Graeber e Wengrow nos dão uma visão mais sofisticada de nossas origens, a partir de informações vindas da moderna arqueologia. O livro revela novidades a respeito da antiguidade, principalmente dos períodos “primitivos” anteriores à escrita. O que emerge é uma visão mais complexa e surpreendente, que é sintetizada de forma brilhante pelos autores. O livro também coloca em questão o mito explicativo que justificativa a desigualdade social entre seres humanos e a origem do ordenamento social hierárquico, corporificado no que chamamos de “Estado”. Acompanhado de vasto material bibliográfico, O despertar de tudo – nascido de uma longa troca de e-mails entre os autores – é coerente, convincente e provocativo, sublinhando a importância de nos mantermos sempre abertos para revisar nossos conceitos com base na ciência.

O Despertar de Tudo é da Cia. das Letras, tem 696 páginas e custa R$ 119,90.

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Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Este é o livro ideal para quem deseja saber como se forma e os efeitos deste monstro que é o negacionismo científico. Os autores têm texto enxuto, envolvente e objetivo, apesar dos muitos exemplos apresentados. Natalia Pasternak é a cientista, Carlos Orsi é o jornalista fascinado por ciência — e os dois funcionam muito bem juntos.

O livro trata do negacionismo em todos os tempos, vindo desde o clerical, que não acreditava no movimento e no “formato” da Terra, até o Covid, passando por Darwin e até pelo Holocausto, que também foi e ainda é negado por alguns. Deste modo, não é um livro apenas sobre o Covid, mas sobre vários gêneros de negacionismo.

Uma das coisas mais interessantes que são analisadas é como a indústria de cigarros negou que o tabagismo tinha ligação com o câncer nos pulmões. A história é terrível, pois as grandes empresas contratavam cientistas para colocarem tudo em dúvida. Ou seja, esses cientistas admitiam coisas aqui e ali, porém… E lançavam dúvidas no próprio meio científico. Também as negações da curvatura da Terra, das ideias de Darwin e das teorias evolucionistas são hilárias para nós, leitores, não fossem tão sérias.

Ficamos sabendo como as vacinas funcionam e que o movimento antivacina é bem antigo. Também ficam claras as motivações de quem nega o aquecimento global. E é aquilo mesmo que imaginamos e nos irrita: os negacionistas procuram gerar confusão no debate, paralisar a tomada de decisões, tomam atitudes irracionais que parecem razoáveis aos olhos dos desinformados e incentivam a consolidação de grupos ideologicamente solidários em torno de certas causas irreais.

Gostei muito das claras e bem fundamentadas argumentações dos autores de “Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências”. Aprendi bastante coisa e estive sempre atento ao livro.

Recomendo.

Natalia Pasternak e Carlos Orsi

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