Ospa: algumas anotações sobre Fidélio

Ospa: algumas anotações sobre Fidélio

Por puro pragmatismo ou esquisitice mental, toda vez que vejo o esforço necessário à montagem de uma obra de grandes proporções, penso nos motivos que levam as pessoas àquilo. No caso de Fidélio, ópera filha única de Beethoven, o caso me parecia mais grave. Uma ópera longa, de um compositor pouco afeito ao gênero, porque não investir em algo mais moderno ou nos cânones Mozart, Rossini ou Wagner? Ademais, acho que nossa época tem pleno direito — e dever — de dar sua interpretação a obras do passado, mas confesso meu preconceito para com óperas. Até Eric Hobsbawm em seu maravilhoso Tempos Fraturados escreve que “… nenhuma das óperas do repertório atual tem menos de oitenta anos, e praticamente nenhuma terá sido escrita por compositores nascidos depois de 1914. (…) A produção operística (…) consiste, na maioria esmagadora, em tentativas de refrescar túmulos eminentes depositando sobre eles diferentes conjuntos de flores”.

Só que meu amado historiador esqueceu de dizer que, não obstante a idade e os trechos do enredo fora de moda ou decididamente tolos, algumas óperas, como Fidélio, têm muito a dizer aos dias atuais. Com toda a razão, o flautista Artur Elias escreveu no Facebook da Associação de Amigos da Ospa que Fidélio trata de temas como “abuso de autoridade, violência de estado, liberdade de expressão, protagonismo da mulher”. Acrescento à lista de Artur pitadas de presos políticos, tudo isso misturado a uma música de primeira linha. Então, este chatíssimo resenhista hostil às óperas foi lá e teve que admitir que ouviu Beethoven… Ops, que gostou muito do que ouviu. Então, recuando de sua posição atacante, vamos a alguns comentários a respeito do que vimos e ouvimos no Theatro São Pedro no último sábado.

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Uma polêmica suscitada pela Zero Hora

No sábado retrasado (07/03), o jornalista Gustavo Brigatti, meu amigo, deu novamente mostras de que não é nada tolo. Com sua cara de Gary Oldman bonzinho, escreveu o artigo de capa do Segundo Caderno — chamado Ópera? Só no cinema — sabendo que expunha dois corpos a leões barulhentos, irônicos e domiciliados fora do Rio Grande do Sul. (Conclusão minha, não falei com Gustavo). Não é responsabilidade dele se Fernando Mattos, compositor, violonista e professor do Departamento de Música da UFRGS, decidiu ter seu momento de tolice bem na frente do jornalista. E muito menos se Mônica Leal disse mais uma de suas bobagens, até porque é incapaz de outra coisa.

O fato é que pensei em mandar o artigo para dois outros amigos meus: o pianista Carlos Morejano e o tenor Flávio Leite. Eles saberiam destroçar os pobres argumentos de Mattos e, bem, não precisariam preocupar-se com Mônica Leal pois ela parece programada para apenas emitir destroços. É fato óbvio que o Rio Grande do Sul dá uma contribuição fundamental para a cena operística. Ele exporta — ou melhor seria dizer deporta, desterra, elimina, proscreve ou, quem sabe, expatria? — os muitos talentos que produz.

A declaração de Fernando Mattos …

— Aqui no Rio Grande do Sul não há gente especializada, principalmente solistas. E isso diminui muito o repertório, obrigando a usar um ou dois profissionais locais e trazer o resto de fora até do país.

… comprova sua dedicação exclusivíssima à UFRGS e à vida acadêmica, pois de cada 20 escolhidos para o Guaíra, dez são a metade (vide artigo abaixo).

E a declaração de Mônica Leal…

— Ocorre que o patrocinador, ao investir em determinado projeto, avalia o mercado e as suas demandas. Se há público em Porto Alegre interessado, certamente haverá patrocínio. Mas não cabe ao Estado promover estes eventos. Cabe, isso sim, incentivá-los.

… é mais um atestado de que o Rio Grande irá contrariar as expectativas de todos. Sim, nosso estado se tornará um deserto, mas primeiro virá o deserto cultural, só depois vindo o outro, o da Aracruz.

Contudo, eu não mandei e-mail nem para o Flávio nem para o Morejano. Fico feliz por saber que não precisava, pois Flávio conseguiu espaço no Caderno de Cultura de ZH do último sábado a fim de reduzir a pó os argumentos do re-putado professor e da putativa filha do coronel. Respondam a isso. Quero ver.

Por uma ópera não só no cinema

O tenor Flávio Leite critica a falta de uma temporada lírica regular no Estado, lembra que temos bons profissionais especializados e cobra uma reflexão mais séria sobre o tema.

A inserção de Porto Alegre no circuito internacional de transmissões nos cinemas das produções de óperas gravadas no Metropolitan de Nova York é um fato histórico na vida cultural da nossa cidade. Com um passado lírico glorioso, onde ouviu-se La Bohème de Puccini antes aqui do que em Viena ou no próprio Metropolitan, nossa capital vive em uma espécie de vácuo lírico há muitos anos por vários motivos – salvo heróicas iniciativas mesmo lutando contra as adversidades citadas na reportagem de sábado passado no Segundo Caderno (“Ópera? Só no Cinema”, de Gustavo Brigatti), não permitiram que o gênero que está lotando as salas de cinema em nossa cidade morresse.

Dentre essas adversidades citou-se a falta de apoio público no fomento e promoção da arte lírica. Lembremos que os casos nacionais de maior profissionalismo, sucesso e relevância internacional do gênero como o Festival Amazonas de Ópera, que atrai turistas do mundo todo a Manaus com uma temporada invejável e a temporada do Teatro Municipal de São Paulo, acompanhada pelas principais revistas especializadas da Europa, para citar somente dois exemplos, são iniciativas da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, respectivamente, contrariando a afirmação da filha do Coronel Pedro Américo Leal, atual Secretária da Cultura, que não cabe ao Estado promover estes eventos. Triste a má sorte dos gaúchos amantes de música, pois foi em um governo do mesmo partido de nossa governadora que São Paulo ganhou a revitalização e transformação da Osesp em uma das principais orquestras da atualidade.

Outro depoimento que me causou estranheza no mesmo artigo foi o do respeitado acadêmico Fernando Mattos, quando afirma que um dos motivos da impossibilidade de uma temporada lírica no Estado seria a falta de profissionais especializados, principalmente solistas, forçando a importação de tais profissionais encarecendo e impossibilitando o processo. Tal afirmação surpreendeu-me duplamente, pois na vida profissional ocorre exatamente o inverso. Somos muitos gaúchos em carreira pelo resto do país e exterior justamente porque aqui não temos um mercado profissional de atuação.

O número de cantores líricos gaúchos altamente especializados em carreira profissional no resto do país e no Exterior é mais do que significativo. Além de presença nas temporadas do Rio, São Paulo, Manaus, Belo Horizonte e Belém, citemos por exemplo a última montagem de L’Elisir D’Amore, de Donizetti, em Florianópolis, onde quatro dos principais solistas, escolhidos por concurso público, eram gaúchos. O soprano Cláudia Azevedo, que se alternava no papel de protagonista com a também gaúcha Carla Domingues, é detentora de feitos importantes, como seu título de especialista em ópera pelo Conservatorio Superior del Liceu em Barcelona, sua premiação no Concurso Internacional de Canto Bidu Sayão, sua atuação no mais importante festival de verão da Europa, Rossini Opera Festival de Pesaro na Itália e seu debut agendado ainda para este ano no mítico Teatro Colón de Buenos Aires.

Outra prova da qualidade dos artistas líricos gaúchos está ocorrendo no Teatro Guaíra, em Curitiba, onde está acontecendo o segundo módulo de um Ópera Estúdio, um curso de aprimoramento de alto nível para jovens cantores profissionais, inédito no país, com professores vindos da Itália, oriundos de teatros como alla Scala e La Fenice, onde das 20 vagas oferecidas para todo o país 10 dos participantes aceitos, também via concurso público, são gaúchos. Isso para citarmos alguns nomes da nova geração, sem mencionar profissionais gabaritados e com ampla experiência internacional da geração anterior, como o soprano Laura de Souza, os tenores Martin Mühle e Juremir Vieira e o baixo Luiz Molz, alguns não ouvidos aqui desde os tempos de estudante.

O outro motivo que cabe salientar é o fato de que em nenhuma casa de ópera importante do mundo se faz uma temporada somente com artistas locais, pois nem em Viena, Paris ou Londres existem especialistas locais para todos os papéis do repertório. Podemos não ter uma Lucia de Lammermoor de primeiro calibre em Porto Alegre, mas mesmo no Met, com os seus US$ 300 milhões de orçamento e sua centenária tradição, a estrela Anna Netrebko deixou a desejar em sua conhecida ária da loucura quando deixou de cantar um de seus esperados mi bemóis superagudos na performance conferida pelos porto-alegrenses no último domingo no cinema.

Cobrar a perfeição existente somente no Walhalla acadêmico e tachar as parcas tentativas de sobrevivência do gênero em Porto Alegre, de beirar o ridículo, não preenchem a lacuna deixada pela falta de regularidade de produções operísticas em nosso Estado. É necessária uma reflexão séria por parte de artistas, produtores, autoridades, patrocinadores, acadêmicos e público para que os gaúchos que superlotaram as salas de cinema e controlaram seu impulso de aplaudir uma ópera gravada, possam honrar o seu passado e voltar a se emocionar com o fenômeno da voz ao vivo.

FLÁVIO LEITE
Tenor gaúcho

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