Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023

Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023

Shostakovich nasceu em 1906, enquanto Stravinsky veio ao mundo em 1882. Ou seja, Stravinsky nasceu 24 anos antes. As obras mais famosas deste – A Sagração da Primavera, Pétrouchka e O Pássaro de Fogo – foram escritas entre 1910 e 1913, quando Shostakovich era uma criança.

Stravinsky foi o russo cosmopolita. Quando ocorreu a Revolução de 1917, estava em Paris, onde estreara suas principais obras com enorme sucesso e escândalo. Lembrem que quando da Revolução, Shostakovich tinha 11 anos.

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A conselho de Rimsky-Korsakov, o compositor russo mais importante de seu tempo, Stravinsky decidiu não entrar no Conservatório de São Petersburgo, em vez disso teve o próprio Korsakov como tutor privado. Diga-se de passagem que Rimsky-Korsakov foi um segundo pai para ele.

Em 1909, o seu Fogos de Artifício foi executado em São Petersburgo, estando presente Serguei Diaghilev, diretor dos Ballets Russes em Paris. Diaghilev ficou impressionado o suficiente para encarregar Stravinsky de algumas orquestrações e para incentivá-lo a compor uma partitura completa de ballet. Isto resultou em O Pássaro de Fogo e em Paris.

Em 1919, aos 13 anos, Shostakovich foi admitido no Conservatório de Petrogrado, então chefiado por Glazunov, que acompanhou seu progresso de perto. Em 1925, aos 19 anos, matriculou-se em aulas de regência.

Em 1925, ainda aos 19 anos, escreveu uma Sinfonia como “peça de formatura”. Shostakovich aspirava apenas tocá-la em particular com a orquestra do conservatório e se preparava para ele mesmo reger. Porém, os professores tiveram suas atenções chamadas pela obra e esta acabou sendo estreada publicamente no final de 1925 pela Orquestra Filarmônica de Leningrado. (1914: Petrogrado, 1924: Leningrado)

É claro que Stravinsky e Shostakovich foram dois grandes talentos precoces, apesar de personalidades inteiramente diferentes. O primeiro era um homem do mundo, um personagem do jet set internacional, o segundo era bem mais retraído e torturado, apesar de saber como ninguém ser sarcástico.

Há uma historinha curiosa entre ambos. Stravinsky tinha enorme habilidade social. Em sua primeira visita à União Soviética, em 1963, após mais de 50 anos de ausência, promoveram um evento social para o qual Shostakovich foi, obviamente, convidado. Os grandes gênios finalmente se encontrariam. Como Shostakovich era silencioso por natureza — e ainda mais quando observado pela KGB –, Igor ficou matutando sobre como trazê-lo para a conversa geral. E, inteligente, procurou em sua mente algo que ambos certamente detestariam. E encontrou Puccini! A princípio, ao ser citado o nome do italiano, Shostakovich fez uma cara contrafeita, mas depois a dupla conversou a noite inteira e não só sobre o italiano. Como veem, o ódio pode ser motor de coisas boas.

Outro fato digno de nota é que na mesa de trabalho de Shostakovich havia fotos de Stravinsky. Ele era fã do cara.

A música de ambos têm poucos pontos de contato. Stravinsky teve seu período russo, depois um longo período neoclássico – onde revisitava, a seu modo, a música de Mozart e Bach e seus contemporâneos, principalmente Pergolesi. Nesta fase, o compositor abandona as grandes orquestras exigidas pelos balés, voltando-se para os instrumentos de sopro, o piano, o coral e obras de câmara. Sua última fase foi a serial, incluindo o dodecafonismo de Schoenberg.

Já a evolução de Shostakovich apenas teve as quebras ordenadas pelo Partido. Algumas vezes, foi obrigado a escrever peças dentro das normas do Realismo Socialista, mas estas não alteraram a espinha dorsal de sua obra. Aliás, ele costumava ficar subitamente pouco inspirado quando compunha tais obras e nenhuma delas tem parte importante de seu repertório.

Mas lembrem que Shostakovich era um patriota e criou espontaneamente obras notáveis inspiradas pelo momentos como a Sinfonia Nº 7, Leningrado, um hino à resistência soviética. Mas também condenou as mortes em Babi Yar (em Kiev, Ucrânia) na Sinfonia Nº 13, onde milhares de judeus foram assassinados pelos nazistas com a ajuda soviética, ao que tudo indica.

Mas vamos às obras.

O Concerto Nº 2 para Violoncelo e Orquestra, Op. 126, é de 1966, ou seja, da última década de vida de Shostakovich. Ele tinha novamente caído em boas graças oficiais após viver e suportar várias vezes o ciclo de denúncia seguida de reabilitação. A URSS homenageou-o com múltiplas medalhas de Estado no concerto em que este concerto foi estreado. Era a data de aniversário de 60 anos do compositor. Mesmo que tenha sido inicialmente concebido como uma Sinfonia, o Concerto, dedicado a Rostropovich, é extraordinário, alternando passagens da maior tristeza com trechos bizarros e danças fantásticas. O final é típico do compositor, sendo especialmente sarcástico e inesperado.

Shostakovich dedicou seus dois concertos para violoncelo para Mstislav Rostropovich. O Primeiro, concluído em 1959, é uma obra espinhosa repleta do recorrente motivo DSCH (as iniciais de Shostakovich transferidas para a notação musical) e citações zombeteiras à canção favorita de Stalin.

O Segundo Concerto para Violoncelo foi composto entre a 13ª e a 14ª Sinfonias, ambas muito críticas, cantadas e com textos provocativos.

O primeiro movimento (Largo) começa com a voz lamentosa do violoncelo solitário. Uma melodia melódica triste, abre a porta para uma conversa musical sombria e cada vez mais intensa. O segundo tema chega como uma dança bizarra e sardônica iniciada pelo xilofone e instrumentos de sopro. Então, a música se desintegra em uma cadência de violoncelo solo, pontuada por violentos golpes de bumbo.

O tema principal do segundo movimento (Allegretto) é uma citação grotesca de uma canção de Odessa. Há uma alegria amarga nas melodias de sabor judaico nas últimas obras de Shostakovich. Depois temos um scherzo frenético e demoníaco que nos conduz diretamente para o movimento final. Os compassos finais desaparecem com um “tick-tock” incessante na percussão. Ficamos com o absurdo pousado em nosso colo.

Pétrouchka é um balé burlesco de Igor Stravinsky composto em 1911 e revisado em 1947. Foi montado pela primeira vez pela companhia russa de Serguei Diaguilev no ano de sua primeira versão. Nijinski encarnou Pétrouchka. A história é sobre um fantoche tradicional russo que é feito de palha com um saco de serragem como corpo e que ganha vida e capacidade de amar. A obra sobrevive perfeitamente como peça de concerto e, apesar de complexa para qualquer orquestra, é deliciosa de ouvir, com seus vários e atraentes temas.

O fervilhamento de timbres, de melodias de inspiração folclórica, a riqueza rítmica estão entre os elementos que compõem o cenário onde passa, dançando, um grupo de bêbados, e aparecem, em delicado contraste, um tocador de realejo, uma dançarina que marca o compasso com a ajuda de um triângulo … É nesta cena de rua, caleidoscópica, que surgem as personagens centrais da história. Anunciado pelos tambores, um teatro de marionetes atrai a atenção do público.

No balé, Petrouchka é um dos personagens de um teatro de marionetes, juntamente com uma bailarina e um mouro.

Tudo começa na Feira de Carnaval de São Petersburgo, no início do século XIX, onde vários grupos de artistas se apresentam.

Um mágico encena um pequeno teatro de marionetes. Uma cortina se abre e revela os três bonecos, que ganham vida e dançam em seus eixos quando o mágico toca sua flauta. Então, em um passe de mágica, para espanto dos presentes, os bonecos saem de seu palco e dançam no meio do povo.

Na segunda cena, já no quarto de Petrouchka, vemos que o boneco possui emoções humanas, e que ele encontra consolo para sua condição de marionete no amor que sente pela bailarina. A bailarina entre em cena e o boneco se declara para ela, mas é rejeitado.

Na terceira cena, vemos o Mouro em seu quarto, e o mágico coloca a bailarina para seduzi-lo, depois colocando Petruchka no quarto também. Petruchka tenta enfrentar o mouro, mas acaba sendo perseguido por ele.

Na cena final, de volta à festa, as pessoas notam barulhos estranhos no teatro de marionetes, de onde sai Petruchka perseguido, até ser alcançado pelo Mouro que o golpeia com a espada.

A multidão entra em pânico, a polícia pede esclarecimentos, e o mágico justifica que nada errado foi feito, que Petruchka era apenas um boneco de palha. A polícia fica satisfeita com a explicação e, junto da multidão, esvaziam o palco, deixando apenas o mágico segurando o boneco.

O mágico vai voltando para dentro do teatro quando nota, em cima do mesmo, o fantasma de Petrouchka, se sacudindo e chamando sua atenção, sacudindo seu punho.

Este que vos escreve, falando.

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Galina, de Galina Vishnevskaya

Galina, de Galina Vishnevskaya

Eu já tinha adiantado a vocês, meus sete leitores, de que estava lendo uma obra-prima. Bem aqui, ó! Mas agora vamos a algo mais organizado sobre o livro. Galina Vishnevskaya (1926 – 2012) foi um soprano russa colocada em posição fundamental dentro da arte soviética. Ela foi casada com o grande violoncelista Mstislav Rostropovich e ambos eram amigos de gente como Dmitri Shostakovich e Aleksandr Soljenitsin. Foi a maior cantora de sua época e foi usada como propaganda do país no mundo inteiro. Só que não apenas isso. Era uma pessoa que não apenas tinha uma voz monumental e cantava notavelmente, ela tinha um enorme potencial como escritora. Seu texto é extremamente belo ao narrar fatos de sua juventude, aprendizado, ascensão e carreira. Eu realmente não sei como este livro — que foi traduzido em quase todas as línguas — não possui uma edição em português.

Não pense que você encontrará aqui um furibundo discurso anti-soviético como os de Soljenitsin, Quando Galina, começou a discordar, ela o faz com argumentos e fatos. Então, aqui você encontrará coisa muito melhor, você encontrará humanidade e vida, vindas de uma artista que começou recebendo mil honrarias — Legião de Honra, Artista do Povo da URSS, Ordem de Lenin, Oficial de Artes e Letras — até se ver praticamente impedida de trabalhar na URSS, assim como seu marido. Ela, a prima donna absoluta do Bolshoi, conta a história de sua vida no século XX tendo por cenário o cerco de Leningrado, o aparecimento do realismo socialista de Jdanov, as turbulências stalinistas e pós-Stalin, curiosidades várias sobre muita gente famosa — não esquecer de Benjamin Britten –, além de insights históricos e pessoais muito significativos, que é o que faz este livro ser tão fantástico. É um livro sobre arte e vida, ou sobre a vida artística de alguém que sabe narrar como poucos.

E Galina tem um incrível bom humor e o talento para contar piadas. Elas estão longe de serem maioria no livro, mas quando aparecem… As brigas hilariantes com Rostropovich… Há capítulos lindos, como o de sua relação com os pais, e de suas aulas de canto com Vera Nikolayevna Garina e o final.

Quando comecei a ler o livro não consegui mais largar. Galina Vishnevskaya não era apenas uma grande cantora de ópera, mas uma contadora de histórias cativante. Suas descrições da amarga pobreza de sua infância e depois das atrocidades testemunhadas durante a Segunda Guerra Mundial quando ela era adolescente, apenas aumentam o horror e aumentam a descrença e a admiração por ela ter sobrevivido, tanto física quanto moralmente.

Olha, vale muito a pena correr atrás deste livro. É difícil de encontrar, mas se você procurar encontra em espanhol ou inglês. Desculpem, mas é uma absoluta obrigação a leitura deste livro por qualquer pessoa ler e ter em sua biblioteca — especialmente se estiver ligada às artes e/ou política de qualquer forma.

Galina Vishnevskaya

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A construção e a queda do Muro de Berlim

A construção e a queda do Muro de Berlim

No dia 9 de Novembro de 1989, o Muro de Berlim começava a ser derrubado. Ele existia desde 1961 e tem longa história. Após a Segunda Guerra Mundial, o que restou da Alemanha foi dividido em quatro zonas de ocupação, cada uma controlada por uma das quatro potências aliadas: Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética.

A divisão da Alemanha no pós-guerra | Imagem: Wikipedia

A capital, Berlim, ficava no interior da zona soviética e foi igualmente dividida em quatro setores.

A divisão da capital, Berlim | Imagem: Wikipedia

Nos dois anos subsequentes, ocorreram desentendimentos entre os soviéticos e as outras potências de ocupação, incluindo a recusa dos primeiros a participarem dos planos de reconstrução de uma Alemanha autossuficiente. Enquanto isso, Joseph Stalin foi construindo um cinturão protetor da União Soviética através de países satélites em sua fronteira ocidental. O Bloco do Leste — também chamado de Pacto de Varsóvia e no Ocidente de Cortina de Ferro — incluía Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Bulgária e Albânia (até meados dos anos 60). Fora do Leste Europeu, Mongólia, Cuba, Vietnã e Coreia do Norte, eram algumas vezes considerados como parte do bloco.

Em 1945, Stalin imaginava — e revelou aos líderes alemães sob seu controle — que enfraqueceria lentamente a posição britânica em sua zona de ocupação, que os Estados Unidos iriam retirar sua ocupação dentro de um ano ou dois e que, em seguida, nada ficaria no caminho de uma Alemanha unificada sob controle soviético.

Nada disso ocorreu e, em 1948, Stalin instituiu o Bloqueio de Berlim, impedindo que alimentos, materiais e suprimentos pudessem chegar a Berlim Ocidental. Os Estados Unidos, Reino Unido, França, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e vários outros países começaram uma imensa “ponte aérea para Berlim”, fornecendo alimentos e outros suprimentos à parte da cidade controlada pelo Ocidente. Em maio de 1949, Stalin acabou com o bloqueio, permitindo a retomada dos embarques por terra do Ocidente para Berlim.

Animação: Mao, Stalin e Ulbricht — líder da RDA –, na festa de 70 anos do segundo.

A República Democrática Alemã (Alemanha Oriental ou RDA), a parte da ex-Alemanha controlada pelos soviéticos,  foi instituída em 7 de outubro de 1949. Sua autonomia era realmente limitada. O Ministério de Negócios Estrangeiros Soviético concedeu autoridade administrativa a Alemanha Oriental, mas os soviéticos participavam de forma clara e inequívoca das estruturas de administração, assim como da polícia militar e secreta. A Alemanha Oriental era muito diferente da Ocidental (República Federal da Alemanha), que se originou nas áreas controladas por norte-americanos, britânicos e franceses e que se desenvolveu como um país capitalista.

O crescimento econômico da Alemanha Ocidental a partir de 1950 fez com que o padrão de vida no país melhorasse continuamente e muitos alemães orientais sonhassem com uma mudança de ares. Aproveitando-se da zona de fronteira entre as duas Alemanhas, o número de cidadãos da RDA que se deslocaram para a Alemanha Ocidental totalizou 197.000 em 1950, 165.000 em 1951, 182.000 em 1952 e 331.000 em 1953. Uma das razões para o aumento acentuado em 1953 foi o receio que a sovietização se intensificasse. E, dentro de Berlim, as pessoas continuavam “fugindo” para o lado ocidental.

Não se falava ainda na construção de um muro que dividisse a cidade, mas no começo de 1961 intensificaram-se os boatos sobre uma grande obra em Berlim Oriental. Dois meses antes da construção, uma jornalista da Alemanha Ocidental fez uma pergunta sobre um muro a Walter Ulbricht, líder da RDA na época: “Eu não sei nada sobre quaisquer planos, sei que os trabalhadores da capital estão ocupados principalmente com a construção de apartamentos e que suas capacidades estão sendo inteiramente utilizadas. Ninguém tem a intenção de construir um muro”.

Falando desta forma, Walter Ulbricht foi o primeiro político a referir-se ao muro. Os serviços secretos faziam seu trabalho e sabia-se  que Ulbricht tinha pedido a Nikita Khrushchev, durante numa conferência dos Estados do Pacto de Varsóvia, permissão para bloquear as fronteiras a Berlim Ocidental, incluindo a interrupção de todas as linhas de transporte público.

Construção do Muro de Berlim em 1961

A construção do muro

No dia 12 de agosto, o Conselho de Ministros da Alemanha Oriental decidiu usar as forças armadas para fechar as fronteiras e instalar gradeamentos. Durante a operação, na madrugada de 13 de agosto de 1961, os militares bloquearam as conexões de trânsito a Berlim Ocidental . Eram apoiados por forças soviéticas. Todas as conexões foram fechadas.

No mesmo dia do início da construção do muro, o chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, dirigiu-se à população pelo rádio, pedindo calma e anunciando uma resposta à altura daquilo que chamou de agressão. Adenauer tinha visitado Berlim havia apenas duas semanas. O prefeito de Berlim, Willy Brandt, protestou energicamente contra a construção do muro e a divisão da cidade, mas sem sucesso. No dia 16 de Agosto de 1961 houve uma grande manifestação com 300 mil participantes em frente do Schöneberger Rathaus, em Berlim Ocidental, para protestar contra o muro. Nada foi conseguido.

A reação dos aliados ocidentais foi débil. Só 72 horas depois chegou um protesto oficial a Moscou. Em razão disso, circulavam rumores que a União Soviética havia garantido que a ação não afetaria Berlim ocidental.

A solução não é muito bonita, mas mil vezes melhor do que uma guerra, disse John Kennedy, presidente dos Estados Unidos.

Os alemães orientais param o fluxo de refugiados e desculpam-se com uma cortina de ferro ainda mais densa. Isto não é ilegal, concordou Harold Macmillan, primeiro-ministro britânico.

Contudo, Kennedy mandou forças armadas suplementares e o vice-presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, acompanhou as tropas, protestando contra o chefe de Estado da RDA, Walter Ulbricht. Ele reagiu. Os ânimos ficaram exaltados a ponto de o comandante soviético na RDA pedir moderação a Ulbricht. Eram tempos de Guerra Fria.

O Muro pronto

Havia oito passagens de fronteira entre Berlim Oriental e Ocidental e, para passar, era necessário permissão. Morreu muita gente nos 28 anos da existência do Muro. Não existem números exatos porque a RDA não prestava informações sobre incidentes fronteiriços. A ordem era matar quem forçasse passagem. O repertório de mortes é digno de uma tragicomédia. Havia as “mortes convencionais” a tiros durante a corrida. Mas também houve pessoas baleadas após saírem das janelas de seus apartamentos, localizados ao lado do muro, pendurados em cordas. Houve também quedas em balões de gás de fabricação caseira. Por incrível que pareça, esses incidentes eram utilizados pela RDA em sua propaganda para justificar a construção do Muro de Berlim.

De qualquer forma, entre 1961 e 1989, 75.000 conseguiram sair da Alemanha Oriental. A deserção era um crime punido com até 2 anos de prisão. Os membros das forças armadas eram mais severamente punidos, com pelo menos 5 anos de prisão.

Gorbachev: abertura muito além do planejado

O fim do Bloco Socialista

Submetida desde os anos 60 a um longo período de estagnação política e econômica que se explica, em grande medida, pela necessidade de desviar recursos da produção (de implementos, alimentos, etc.) para a indústria bélica, com a finalidade de fazer frente aos EUA, a União Soviética conheceria um rápido processo de transformação a partir da posse de Gorbachev como novo secretário-geral do Partido Comunista, em 1985.

Relativamente jovem em comparação com seus antecessores, Gorbachev tinha 54 anos de idade quando chegou ao poder. Ele lançaria um amplo programa de reformas, visando à renovação política e econômica do país e do bloco comunista. Uma vertiginosa sucessão de acontecimentos, contudo, levaria as mudanças para muito além do que pretendia o próprio Gorbachev.

Seu programa de liberalização apenas tornou mais visíveis problemas que há muito vinham se acumulando: a ineficiência da economia, engessada por um planejamento excessivamente centralizado; o peso dos crescentes gastos militares; a inflexibilidade de uma burocracia estatal de proporções monstruosas, que procurava controlar e regulamentar cada atividade produtiva. Para Gorbachev, só haveria futuro para o socialismo se tal estrutura fosse inteiramente reformulada.

Foi nesse contexto que ele lançou, em fevereiro de 1986, o programa conhecido como Glasnost (“transparência”), visando a combater a corrupção e a ineficiência administrativa dentro do Estado soviético, como parte de um projeto maior de abertura política. E, pouco depois, veio um segundo programa — a Perestroika (“reestruturação”) — visando aumentar a produtividade da economia do país. Além disso, Gorbachev passaria a reduzir gradualmente a ajuda econômica aos países do Leste Europeu e a retirar de lá várias das tropas soviéticas.

Gorbachev e Reagan: sorrisos pra todo lado

A política externa soviética também passou por transformações significativas. Procurando estabelecer um novo padrão de entendimento com os países capitalistas, Gorbachev reuniu-se com o presidente dos EUA, Ronald Reagan, em cinco ocasiões diferentes. Nunca dois dirigentes dos Estados Unidos e da União Soviética haviam mantido tantos contatos diretos. Já no primeiro desses encontros, em novembro de 1985, ambos anunciariam a disposição de reduzir seus arsenais nucleares pela metade, em acordo a ser formalizado futuramente. Reagan, que seguia vendo a União Soviética como “o império do mal”, recuou do compromisso, mas as propostas de desarmamento de Gorbachev lhe valeram uma popularidade que nenhum outro líder soviético havia antes obtido no mundo ocidental. Em sua visita aos Estados Unidos, em dezembro de 1987, ele foi entusiasticamente recebido pelo público norte-americano. Sua esposa, Raíssa Gorbachova, também era personalidade internacional.

Na ocasião, foi assinado um tratado inédito de eliminação de mísseis Cruise e Pershing II norte-americanos, em troca da eliminação de SS-20 soviéticos: tratava-se do primeiro acordo de desativação de toda uma classe de armas nucleares. Um ano depois, em pronunciamento realizado na ONU, Gorbachev anunciaria a decisão de reduzir os contingentes militares soviéticos em 20% — o equivalente a quinhentos mil homens — até o final de 1991.

As reformas de Gorbachev previam também a realização de eleições livres para o Congresso, em março de 1989. Era a primeira vez que os soviéticos iriam às urnas escolher seus representantes. Mas todo esse esforço, que visava a dar novos rumos ao socialismo, passou a enfrentar problemas inesperados: dentro da onda liberalizante, grupos nacionalistas, étnicos e religiosos, sufocados por décadas, voltaram a se mobilizar, reclamando a independência de regiões como a Letônia, a Lituânia e a Estônia. Também nos países do Leste Europeu ressurgiram movimentos a favor da autonomia nacional.

A unidade da União Soviética e do bloco comunista sempre fora garantida por um rígido esquema de centralização política: nas ocasiões em que movimentos colocaram em xeque tal esquema — como na Hungria, em 1956, ou na Tchecoslováquia, em 1968 — os soldados do Exército Vermelho e do Pacto de Varsóvia haviam sido convocados. Agora, porém, isso não parecia mais possível. Um a um, os países do Leste Europeu foram ganhando cada vez mais autonomia em relação à União Soviética, desmontando a ordem construída por Stalin ao final da Segunda Guerra Mundial.

O Berliner Mauer (Muro de Berlim) passava por aqui

A queda do Muro

Depois de 28 anos de existência, o Muro de Berlim começou a ser derrubado na noite de 9 de Novembro de 1989. Antes da sua queda, houve grandes manifestações. Pedia-se liberdade para ir e vir. Além disto, já estava acontecendo um enorme fluxo de refugiados ao Ocidente nos países satélites.

O impulso decisivo para a queda do muro foi um mal-entendido. Um boato de que o Conselho de Ministros da Alemanha Oriental tinha abolido totalmente as restrições de viagens ao Oeste fizeram milhares de pessoas marcharem aos postos fronteiriços, pedindo sua imediata abertura. Nem as unidades militares, nem as unidades de controle de passaportes haviam sido instruídas.

Era um boato, mas os guardas da fronteira não sabiam o que fazer. A fronteira abriu-se no posto da Rua Bornholmer, às 23h. Mais alemães viram a abertura da fronteira pela televisão e marcharam para lá. Como muitas pessoas já dormiam quando a fronteira se abriu, na manhã do dia 10 de novembro havia grandes multidões querendo passar.

Os cidadãos da RDA foram recebidos com grande euforia em Berlim Ocidental. Muitas boates perto do Muro serviram cerveja gratuita. Pessoas que nunca tinham se visto antes abraçavam-se. Cidadãos de Berlim Ocidental pularam o Muro e foram para o Portão de Brandenburgo, até então inacessível aos ocidentais.

No dia da queda do Muro, em atitude inteiramente inesperada, o violoncelista soviético e estrela internacional Mstislav Rostropovich, saiu sozinho de seu hotel em Berlim com uma cadeira e seu instrumento. Não avisou ninguém de sua intenção de tocar trechos de uma Suíte para Violoncelo Solo de Johann Sebastian Bach bem na frente do Muro. Tornou-se um dos principais símbolos daquele dia.

Rostropovich no Muro de Berlim

No mesmo dia, começou a demolição do Muro.

(*) Com compilações de várias fontes. O trecho sobre a decadência do Bloco Soviético foi adaptada a partir de texto do blog História, do professor Sérgio Cabeça.

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Gilels e Rostropovich queriam a presença delas

Gilels e Rostropovich queriam a presença delas

Emil Gilels e Mstislav Rostropovich iam sair da URSS para uma excursão aos EUA. A temporada norte-americana seria de dois meses e meio. Mas a burocracia soviética — para garantir o retorno dos músicos — impediu que suas mulheres viajassem juntos.

Gilels e Rostrô ficaram contrariados e foram falar com a Ministra da Cultura. Ela solicitou que ambos fizessem um pedido por escrito para levar sua esposas.

Gilels escreveu que era um homem doente e que sua esposa era quem lhe ministrava todos os medicamentos.

Rostrô disse que tinha saúde perfeita e que precisava de Galina Vishnevskaya porque precisava.

Ambas viajaram.

Russos: Gilels observa Rostropovich (esquerda) jogando xadrez.

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Shostakovich, Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, com Mischa Maisky

Shostakovich, Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, com Mischa Maisky

No dia 10 de janeiro foi 68º aniversário do violoncelista Mischa Maisky, um aluno de Mstislav Rostropovich e Gregor Piatigorsky. Eis como foi comemorado: trata-se do primeiro movimento do Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra de Shostakovich, com regência de Leo Siberski e a Saarbrücken Radio Symphony. Aprendam meninos.

Gentileza de Fernanda Chiarello Stedile e Elena Romanov.


Maisky

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Mstislav Rostropovich (1927-2007)

Eu o vi apenas uma vez, em Buenos Aires, no Colón. Tocou os dois concertos de Haydn, solando e regendo. Como bis, alguns movimentos das Suítes para Violoncelo Solo de Bach. Nada mal para quem só teve dinheiro para entrar na galeria mais alta do Colón, de onde podia ver sua reluzente careca tirando um som estupendo do instrumento — e era algo que parecia bater no nosso ouvido e, curiosamente, também no estômago. Mexia-se muito, mas parecia fazer o que fazia com extrema facilidade. Parecia uma brincadeira. Talvez as maiores obras para violoncelo do século XX tenham sido dedicadas e estreadas por Rostropovich. Os dois concertos de Shostakovich, a notável Sinfonia Concertante de Prokofiev — ambos professores seus no Conservatório de Moscou — e a Sonata de Britten foram escritas para ele. Penderecki também batizou um de seus “solos” para violoncelo com um lacônico Para Slava. Tímido, gentil, sério e inteligente, foi antes de tudo um enorme músico.

Era daquela classe de semideuses que hoje parece em vias de extinção e da qual faziam parte Rubinstein, Heifetz, Gilels, Richter e Richter, Oistrakh, Arrau, Carlos Kleiber, Karajan, Leonhardt (este vivo, e como!), Harnoncourt (idem!), Klemperer, Walter, Furtwangler e poucos outros. Com o tempo, surgiu o maestro Rostropovich. Um pouco entediado de tocar cello, queria expandir seu repertório, dizia com simplicidade. E é como regente que faz algumas das melhores gravações dos anos 90. Um belo dia de 1989, após a queda do muro e sem aviso prévio, esse cidadão, que dizia e sabia rir de si mesmo e do mundo, viaja a Berlim, caminha com seu cello até o muro, senta-se e dá um concerto para quem estivesse por ali (foto acima). As Suítes de Bach, claro. A explicação? “Fiz o que meu coração mandou. Era um ajuste de contas”. Abaixo, Slava por Salvador Dali.

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Dmitri Shostakovich (VI)

Ponho-me, de repente,
a rabiscar num pedaço de papel,
ouço zumbidos, apitos, coisas que não me espantam,
depois torturo os ouvidos de todo mundo;
em seguida, faço que seja publicado
e esquecido para todo sempre…

Poema escrito de brincadeira (ou não) por Shostakovich

Sigo minha série com um capítulo curto. Iniciamos aqui, continuamos ali e ainda aqui, acolá e alhures.


Quarteto Nº 9, Op. 117 (1964),
Quarteto Nº 10, Op. 118 (1964) e
Quarteto Nº 11, Op. 122 (1966)

Os quartetos de números 9, 10 e 11 são semelhantes em estrutura e espírito. São os três muito bons e têm em comum o fato de manterem por todo o tempo a alternância entre movimentos rápidos e lentos, sendo tais contrastes ampliados pelo fato de o nono e o décimo primeiro serem compostos por movimentos executados sem interrupções. O décimo ainda separa os primeiros movimentos, porém o Alegretto final surge de dentro de um Adágio. A postura de fazer com que surjam movimentos antagônicos um de dentro do outro é uma particularidade que torna estes quartetos ainda mais interessantes, sendo que o décimo primeiro é um inusitado quarteto de 17 minutos com sete movimentos; isto é, Shostakovich brinca com a apresentação de temas que fazem surgir de si outros muito diversos em estilo, como se o compositor estivesse sofrendo de uma incontrolável superfetação (*). É, no mínimo, desafiador ao ouvinte. Melodicamente são muito ricos, e exploram com insistência incomum os ostinatos, os quais são sempre no máximo belíssimos e no mínimo curiosos. Merecem inteiramente o lugar que modernamente obtiveram no repertório dos quartetos de cordas. É curioso como é fácil confundi-los. Estou ouvindo-os enquanto escrevo e noto quando o CD passa de um para outro, pois têm personalidades muito próprias, mas nunca sei se o que estou ouvindo é o nono ou o décimo. Certamente é uma limitação minha! Já no décimo primeiro, o paroxismo da criação de melodias chega a tal ponto, seus ostinatos são tão alucinados, que é mais fácil reconhecê-lo.

Aliás, o décimo primeiro apresenta aqueles finais tranquilos que constituíram-se uma das assinaturas do Shostakovich final. Esqueçam o gran finale. Sem fazer grande pesquisa, sei que os finais quietos, na grandiosos, podem ser encontrados na 13ª, 14ª e 15ª sinfonias, neste quarteto e no sensacional Concerto para Violoncelo que será comentado a seguir.

(*) Palavra pouco utilizada, não? Significa a concepção que ocorre quando, no mesmo útero, já há um feto em desenvolvimento.

Concerto para Violoncelo e Orquestra Nº 2, Op. 126 (1966)

Uma obra-prima, produto da estreita colaboração entre Shostakovich e Rostropovich, a quem o concerto é dedicado. A tradição do discurso musical está aqui rompida, dando lugar a convenções próprias que são “aprendidas” pelo ouvinte no transcorrer da música. Não há nada de confessional ou declamatório neste concerto. Há arrebatadores efeitos sonoros que são logo propositadamente abandonados. A intenção é a de ser música absoluta e lúdica, mostrando-nos temas que se repetem e separam momentos convencionalmente sublimes ou decididamente burlescos. Nada mais burlesco do que a breve cadenza em que o violoncelo é interrompido pelo bombo, nada mais tradicional do que o tema que se repete por todo o terceiro movimento e que explode numa dança selvagem, acabando com o violoncelo num tema engraçadíssimo — como se fosse um baixo acústico — , para depois sustentar interminavelmente uma nota enquanto a percussão faz algo que nós, brasileiros, poderíamos chamar de batucada. Esta dança faz parte de uma longa preparação para um gran finale que novamente não chega a acontecer. Um concerto espantoso, original, capaz de fazer qualquer melômano feliz ao ver sua grande catedral clássica virada de ponta cabeça e, ainda assim, bonita.

Concerto para Violino e Orquestra Nº 2, Op. 129 (1967)

Este concerto costuma receber poucos elogios por sua qualidade musical e grandes adjetivos vagos: profunda reflexão lírica…, elegante…, pleno de momentos tocantes…, mágico…, poético… Parece que os comentaristas deste concerto contraíram aquele vírus, tão comum nos enólogos, que os faz encontrar o siroco ou o cheiro do útero materno dentro de cálices de vinho. Para mim, há apenas um problema neste concerto: não vejo grandes méritos nele. Acho-o chato e anacrônico. Paciência e adiante!

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Dmitri Shostakovich (IV)

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde foram enterrados. Aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a eles? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

DMITRI SHOSTAKOVICH

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui.

Sinfonia Nº 10, Op. 93 (1953)

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Em março de 1953, quando da morte de Stalin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stalin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, é absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo, e sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Milton Ribeiro adverte: não ouça o segundo movimento previamente irritado. Você e sua companhia poderão se machucar.

Quarteto de Cordas Nº 6, Op. 101 (1956)

Talvez apenas aficionados possam gostar deste esquisito quarteto. Ele tem quatro movimentos, dos quais três são decepcionantes ou descuidados. O intrigante nesta música é o extraordinário terceiro movimento Lento, uma passacaglia barroca que é anunciada solitariamente pelo violoncelo. É de se pensar na insistência que alguns grandes compositores, em seus anos maduros, adotam formas bachianas. Os últimos quartetos e sonatas para piano de Beethoven incluem fugas, Brahms compôs motetos no final de sua vida e Shostakovich não se livrou desta tendência de voltar ao passado comum de todos. Enfim, este quarteto vale por seu terceiro movimento e, com certa boa vontade, pelo Lento – Allegretto final.

Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, Op. 102 (1957)

Concerto dedicado ao filho pianista Maxim Shostakovich. É um autêntico presente de pai para filho. Alegre, brilhante e cheio de brincadeiras de caráter privado como a inacreditável inclusão — no terceiro movimento e totalmente inseridos na música — de exercícios que seu filho praticava quando era estudante do instrumento… E não se surpreenda, o primeiro movimento deste concerto é conhecido entre as crianças que veem desenhos da Disney. É a música que é executada durante o episódio do Soldadinho de Chumbo em Fantasia 2000. Quando ouço esta música em casa, sempre um de meus filhos vem me dizer “olha aí a música do Soldadinho de Chumbo”. É claro que a música não tem nada a ver com esta história infantil.  Shostakovich fez um belo concerto para seu filho, de atmosfera delicada e afetuosa. O primeiro movimento (Allegro) começa com uma rápida introdução orquestral em seguida à qual entra o piano. De acordo com a prática habitual de Shostakovich, o tema inicial é um pouco mais poético do que o segundo, de entonação mais vigorosa e rítmica.

Dois movimentos vivos e felizes cercam um melancólico, tocante e melodioso segundo movimento. A inspiração óbvia para este concerto foi o Concerto em Sol Maior (1931) de Ravel. Leonard Bernstein deu-se conta disto e gravou um de seus melhores discos em 1978, acumulando as funções de pianista e regente nos dois concertos. Se este concerto não arrancar algum sorriso do ouvinte, este necessitará de urgentemente de antidepressivos.

Sinfonia Nº 11, Op. 103 – O Ano de 1905 (1957)

Esta sinfonia talvez seja a maior obra programática já composta. Há grandes exemplos de músicas descritivas tais como As Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia Pastoral de Beethoven , a Abertura 1812 de Tchaikovski, Quadros de uma Exposição de Mussorgski e tantas outras, mas nenhuma delas liga-se tão completa e perfeitamente ao fato descrito do que a décima primeira sinfonia de Shostakovich.

Alguns compositores que assumiram o papel de criadores de “coisas belas”, veem sua tarefa como a produção de obras tão agradáveis quanto o possível. Camille Saint-Saëns dizia que o artista “que não se sente feliz com a elegância, com um perfeito equilíbrio de cores ou com uma bela sucessão de harmonias não entende a arte”. Outra atitude é a tomada por Shostakovich, que encara vida e arte como se fosse uma coisa só, que vê a criação artística como um ato muito mais amplo e que inclui a possibilidade do artista expressar — ou procurar expressar — a verdade tal como ele a vê. Esta abordagem foi adotada por muitos escritores, pintores e músicos russos do século XIX e, para Shostakovich, a postura realista de seu ídolo Mussorgsky foi decisiva. A décima primeira sinfonia de Shostakovich tem feições inteiramente mussorgkianas e foi estreada em 1957, ano de muitas glórias além do quadragésimo aniversário da Revolução de Outubro. Contudo, ela se refere a eventos ocorridos antes, no dia 9 de janeiro de 1905, um domingo, quando tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo. O protesto, feito após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos.

O primeiro movimento descreve a caminhada dos trabalhadores até o Palácio de Inverno e a atmosfera soturna da praça em frente, coberta de neve. O tema dos trabalhadores aparecerá nos movimentos seguintes, porém, aqui, a música sugere uma calma opressiva.

O segundo movimento mostra a multidão abordar o Palácio para entregar a petição ao czar, mas este encontra-se ausente e as tropas começam a atirar. Shostakovich tira o que pode da orquestra num dos mais barulhentos movimentos sinfônicos que conheço.

O terceiro movimento, de caráter fúnebre, é baseado na belíssima marcha de origem polonesa Vocês caíram como mártires (Vy zhertvoyu pali) que foi cantada por Lênin e seus companheiros no exílio, quando souberam do acontecido em 9 de janeiro.

O final – utilizando um bordão da época – é a promessa da vitória final do socialismo e um aviso de que aquilo não ficaria sem punição.

Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, Op. 107 (1959)

Shostakovich e o grande violoncelista Mstislav Rostropovich eram amigos tendo, muitas vezes, viajado juntos fazendo recitais que incluíam entre outras obras, a Sonata para violoncelo e piano, opus 40, já comentada nesta série. Desde que se conheceram, o compositor avisara a Rostropovich que ele não deveria pedir-lhe um concerto diretamente, que o concerto sairia ao natural. Saíram dois. Quando Shostakovich enviou a partitura do primeiro, dedicada ao amigo, este compareceu quatro dias depois na casa do compositor com a partitura decorada. (Bem diferente foi o caso do segundo concerto, que foi composto praticamente a quatro mãos. Shostakovich escrevia uma parte, e ia testá-la na casa de Rostropovich; lá, mostrava-lhe as alternativas, os rascunhos ao violoncelista, que sugeria alterações e melhorias. Amizade.)

Estilisticamente, este concerto deve muito à Sinfonia Concertante de Prokofiev – também dedicada a Rostropovich – e muito admirada pelos dois amigos. É curioso notar como os eslavos têm tradição em música grandiosa para o violoncelo. Dvorak tem um notável concerto, Tchaikovski escreveu as Variações sobre um tema rococó, Kodaly tem a sua espetacular Sonata para Cello Solo e Kabalevski também tem um belo concerto dedicado a Rostropovich. O de Shostakovich é um dos de um dos maiores concertos para violoncelo de todo o repertório erudito e minha preferência vai para a imensa Cadenza de cinco minutos (3º movimento) e para o brilhante colorido orquestral do Allegro com moto final.

Quarteto de Cordas Nº 7, Op. 108 (1960)

Mais um quarteto de Shostakovich com um lindíssimo movimento lento, desta vez baseado no monólogo de Boris Godunov (ópera de Mussorgski baseada em Puchkin), e mais um finale construído em forma de fuga, utilizando temas do primeiro movimento. Uma pequena e curiosa jóia de onze minutos.

Quarteto de Cordas Nº 8, Op. 110 e Sinfonia de Câmara, Op. 110a – Arranjo de Rudolf Barshai (1960)

Na minha opinião, o melhor quarteto de cordas de Shostakovich. Não surpreende que tenha recebido versões orquestrais. Trata-se de uma obra bastante longa para os padrões shostakovichianos de quarteto; tem cinco movimentos, com a duração total ficando entre os 20 minutos (na versão para quarteto de cordas) e 26 (na versão orquestral). O quarteto abre com um comovente Largo de intenso lirismo, o qual é seguido por um agitado Allegro molto, de inspiração folclórica e que fica muito mais seco na versão para quarteto. O terceiro movimento (Allegretto) é uma surpreendente valsinha sinistra a qual é respondida por outra valsa, muito mais lenta e com um acompanhamento curiosamente desmaiado. O quarteto é finalizado por dois belos temas ; o primeiro sendo pontuado por agressivamente por um motivo curto de três notas e o segundo formado por mais uma fuga a quatro vozes utilizando temas dos movimentos anteriores.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

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