O Burgomestre de Furnes, de Georges Simenon

Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve , O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos foram reeditados pela L&PM em sua coleção de pockets.

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Time dos Sonhos, de Luís Fernando Verissimo

O problema de Time dos Sonhos (Objetiva, 2010) não é o autor, mas sim a forma como o livro foi montado. Trata-se de crônicas futebolísticas — quase todas referindo-se a Copas do Mundo — publicadas em jornais entre o anos de 1997 e 2009. Ou seja, há unidade temática, porém esta é desfeita pelo fato dos textos não obedecerem à ordem cronológica. Para quem acompanha futebol, é desagradável ter de adivinhar o contexto de cada crônica ou olhar o final do livro em busca da data de publicação original. A todo momento, saltamos da Copa de 2006 para a de 1998, para depois cair em lembranças de 1990 e voar para a vitória de 2002. As quatro subdivisões do livro — Para que serve o futebol, O time dos sonhos, Ser Brasil e Jogo de cintura — , não me disseram muito. Não obstante este chateação, o texto de Verissimo permanece enxuto, engraçado e compreensivo para com a loucura dos tarados pelo esporte.

Há crônicas extraordinárias, principalmente aquelas sobre com referências a João Saldanha, às domingadas, à comida mexicana, à vida dos jornalistas durante uma Copa do Mundo e aos principais jogadores que encantaram o autor. Este, excelente observador e escritor, é exato, jocoso e nunca inferior aos fatos descritos, mesmo que os conheçamos em detalhes. Uma pena a desorganização do volume. O que poderia ser um livro de referência é confusão.

Indico o livro aos loucos por futebol e aconselho que sua leitura seja feita na base de uma crônica por dia. A leitura de todas em sequência prega sustos e nos faz cometer repetidos equívocos.

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É difícil encontrar um homem bom, de Flannery O`Connor

O escritor Fernando Monteiro presenteou-me com este livro para que eu lesse o conto de abertura. Ele sabia que eu leria o resto, é claro. Flannery O`Connor (1925-1964) foi uma extraordinária escritora. A leitura dos contos de É difícil encontrar um homem bom é, no mínimo, uma experiência diferente. Escritos com economia, são histórias povoadas por vítimas odiosas, mesquinhas ou ridículas, acompanhadas – o termo é exatamente “acompanhadas” – de algozes involuntários ou indiferentes. Em comum, poderia dizer que todos são estúpidos, têm vozes desafinadas, são crentes e estão irremediavelmente perdidos. Parecendo detestar os próprios personagens, a autora deixa-os ir em direção do grotesco e do gratuito e é duríssima para com o sul dos Estados Unidos, terra de Bush e de proto-Bushes. Não obstante, a contradição entre estupidez e tensão torna algumas histórias extremamente engraçadas. Afinal, um dos modos de se descaracterizar desgraças é recorrer à hipérbole, ou seja, levá-las a inconcebíveis exacerbações. É isto que Flannery faz com maestria e é compreensível que a autora desse gargalhadas enquanto lia seus contos para os amigos. Fortemente recomendado por este blogueiro, o livro está à venda numa edição da Arx.

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O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon

Por Charlles Campos

Flaubert morreu sem realizar seu desejo de escrever um livro que não dissesse absolutamente nada. Olhando de nossa situação no tempo_ do meio do ano 2010_, um escritor que produzia seus romances e contos como quem deita delicadas gotas de estricnina em milimétricos quadrados de vidro, não fica difícil perceber que o célebre francês sonhava com uma composição estética à frente de seu tempo, desvinculada de enredo e de personagens, algo próprio para o século que se desanuviaria e que estaria cheio de descobertas cujo modelo para armar seria a falta de coerência que determinaria tudo: a teoria do caos. Homens como nós, pós-modernos_ ou seja qual novo conceito resume esse não-sei-que cosmopolita_, estamos acostumados à falta de sentido, à independência à linha reta, à conturbação e às reticências que só dão a aparência de que a resposta está de molho pronta para ser lançada sobre nós assim que completa sua maturação. Palavras da cartola da ciência foram postas ao olho vivo da platéia, e o pasmo da descoberta de que todos os presentes fazem parte da ilusão de luz e sombras cujo truque final fará que tudo desapareça, como a bela moça de biquíni escondida no caixote, entraram para o linguajar cotidiano. Entropia, Indeterminação, Relatividade, Dimensões Paralelas, Teoria das Cordas. Se Flaubert viajasse na máquina do tempo de Wells e parasse sem estágios aqui nesse olho do furacão onde moramos em sossego, sentiria a vertigem aterrorizante do herói de casaca amarrado no carrinho da montanha russa em franca aceleração em direção ao abismo à frente, onde os trilhos estão partidos: o som inapreensível da queda com o qual nossos ouvidos acostumados transvertem em músic a de comercial das Casas Bahia que já não nos incomoda.

Coube ao americano Thomas Pynchon, um século depois, chegar o mais próximo do sonho de Flaubert, esbanjando vivacidade e fôlego em um romance de 800 páginas que dá ao leitor o sério problema de não saber definir do trata. “O Arco-Íris da Gravidade”, lançado nos Estados Unidos em 1973, em plena ressaca dos anos 60 e no estilhaço das guerras geográficas que transformou a possibilidade de uma nova guerra mundial em um premonitório fantasma convergido em um hipotético botão nuclear, parece não dizer nada, ser uma caixa caleidoscópica que simula um delírio de LSD, ou, mais apropriadamente, a concha marinha onde está registrado o último nó caótico de sons de uma humanidade que desapareceu para sempre. Uma mensagem final dirigida a ninguém, de seres sem rastro que foram incapazes de emitir qua lquer significado conjunto para configurarem o mínimo propósito à sua existência. Na verdade, “O Arco-Íris da Gravidade” é um grande epitáfio a esse projeto mal fadado que é o homem, fazendo-o numa língua impossível cujo tom é dado pelas suas primeiras frases apoteóticas: “Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compara com esta vez.” E como todo epitáfio_ ou todo réquiem_ traz uma profunda ternura por trás de sua acusação da brutalidade da finitude; no paradoxo de desnudar o caos, quando tudo é sugado por sua força implacável, emite uma frágil bolha que flutua tranquila na borda do buraco negro para, no momento que cessa sua efemeridade, libertar uma última reação de importância_ como se houvesse algo de sagrado e duradouro na saudade.

Sobre isso que trata o romance, entenderam?

Não?

Bem, há um personagem principal, um misto de espião americano, experimento vivo ambulante e prodígio sexual, cujo nome é William Tyrone Slotrop. Ele ocupa uma parte avantajada dessas 800 páginas, em que erra peripateticamente por uma Europa pós-segunda guerra devastada, sendo alvo das mais absurdas aventuras, algumas das mais memoráveis delas a luta corporal com um polvo, a fuga cinematográfica de uma plataforma subterrânea de lançamento de foguetes nazista (em cima de uma ogiva e com uma série de alemães enfurecidos atrás), um mergulho para dentro de uma fétida privada de um banheiro masculino, enquanto um negão de exageradas proporções corporais tenta lhe mostrar da pior maneira possível por que erram os que julgam que sua superdotação é puramente cerebral. Es ses e outros infortúnios são narrados numa velocidade estonteante, que desarma o leitor de seu assombro crescente assim que tem a revelação de que o verdadeiro personagem do romance_ como diz o autor das orelhas do livro, e do qual me impossibilita dizer algo diferente_ é a linguagem de Pynchon: seu inglês caudaloso, debochado, anárquico, irreverente, paranóico. Um anarquismo lingüístico que não perdoa nada, que muitas vezes arranca o leitor de sua impressão de atingir compreensão para atirá-lo em uma abrupta análise de um pormenor destoante. Um romance que ultrapassa a média em envolvimento e absorção, principalmente por ser composto por materiais nem um pouco convencionais.

Se a micro-história ou a História das Mentalidades retirou o foco dos estudos dos reis e dos heróis nacionais para se concentrar no homem comum, a prosa de Pynchon continuou uma revolução semelhante na seara do romance, utilizando o lixo, os caçoetes e toda a tralha multicolorida da sub-cultura norte-americana, compondo uma obra soberba que, como haveria de ser, gerou repúdio e muita polêmica. A comissão do prêmio Pulitzer lhe conferira o prêmio de melhor romance do ano de seu lançamento, mas na última hora a direção da comenda o rejeitou sob a acusação de ser um romance pornográfico. Talvez pela irreverência das descrições sexuais de um Slotrop que, sempre que transava com uma mulher, determinava por uma ligação misteriosa com o foguete (e o material com q ue ele era feito, o estranho Imipolex) que o local onde estava fosse destruído, logo depois, por uma explosão. E Pynchon se molda, intencionalmente ou não, ao escritor-mito, por sua completa negação a aparecer na mídia, a dar entrevista ou ser fotografado. Chegaram a sugerir que ele e Salinger fossem a mesma pessoa, ambos afeitos a uma reclusão monástica. Seu tradutor brasileiro_ o excepcional Paulo Henriques Britto_ que nos deu uma das melhores conversões já feita desse romance, retém sob severo juramento cartas do próprio Pynchon, escritas em espanhol, com longos esclarecimentos sobre as partes mais complexas da obra. Cartas que com certeza seriam disputadíssimas entre os milhares de fãs ardorosos que formaram um culto organizado em torno de Pynchon.

E “O Arco-Íris da Gravidade” é inusitadamente engraçado, e não pensem que se trata do risinho renhido do sarcasmo saramaguiano, ou os risos sincronizados do único romance com claque da história da literatura, o Ardil-22_ o livro se mantém numa constante e irresistível eletricidade histriônica, um humor abrangente e sem reservas que é um dos seus poderes inigualáveis: o riso se torna um sério posicionamento filosófico, um costume contaminante que muda nosso confrontamento com o mundo, uma herança erudita transformada de Rabelais, Groucho Marx, Monty Python, Os Três Patetas e Buster Keaton.

E, quando chegamos ao final dessa extensa saga, Pynchon nos soluciona o enigma derradeiro: só assim, usando os despojos de nossa cultura, a falta de vergonha de nosso orgulho desarroado, os nossos preconceitos e nossos ódios infinitos, a nossa miséria e capacidade de nos enganarmos e nos iludirmos eternamente, nossa tecla defeituosa que nunca proporcionou aprendizado com o passado, nosso frenesi e arrogância científica que finge esclarecer, poderemos ter a presciência terrível de que toda piada traz o lamento enrustido de só conseguirmos rir até as lágrimas do outro que cai e arrebenta a cara no muro, e nunca compreendermos que afinal rimos de nós mesmos atirados no chão, todos atolados no caos e vítimas das gritantes trivialidades criadas, na única comunhão possí vel de esperar alegremente o aniq uilamento, como nas palavras que finalizam o livro:

“E é bem neste ponto, este quadro escuro e mudo, que a ponta do Foguete, caindo a um quilômetro e meio por segundo, absoluta e eternamente sem som, alcança seu último imensurável intervalo acima do telhado deste velho cinema, o último delta-t.

Há tempo, se este conforto lhe parece necessário, de tocar a pessoa a seu lado, ou de pôr a mão entre suas próprias pernas frias…ou, se é preciso cantar, eis uma canção que Eles jamais ensinaram a ninguém, um hino de William Slothrop, há séculos esquecido e jamais reeditado, para ser cantado com a melodia simples e agradável de uma ária da época. Acompanhe a bolinha:

É a Mão que faz o tempo andar,

Ainda que em tua Ampulheta se esvaia a areia,

‘Té que a luz que abateu as Torres altas

Chegue à Alma Preterida derradeira…

‘Té que os Viandantes durmam à beira

De toda via desta Zona estropiada

Com um rosto em cada encosta de monte,

E uma Alma em cada pedra da estrada…

Agora todo mundo__”

Este seria Thomas Pynchon há muitos anos

Este, retirado de um site francês, vem até com credencial…

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Detalhes de um pôr-do-sol, de Vladimir Nabokov

Dia desses — e nem comentei aqui –, li o elogiado livro de contos de Vladimir Nabokov (1899-1977) Detalhes de um Pôr-do-sol. Foi um trabalho penoso e lento para este dedicado leitor, pois poucas vezes algo me foi tão chato, comum e sem surpresas. Levei dez dias para chegar à página final, aquela que tem o número 173 no rodapé. Os contos de Detalhes são de década de 20 e 30. Sempre admirei a literatura de Nabokov e acho notável que ele tenha escrito a obra-prima A Verdadeira Vida de Sebastian Knight nos mesmos anos 30. Mas quem me fez chegar a este livro? Ora, as maravilhosas páginas culturais brasileiras, os maravilhosos articulistas de nossos principais jornais e revistas.

Concordo com quem diz que, hoje, a crítica literária no Brasil quase inexiste e quando um livro recebe críticas favoráveis na revista Bravo, no Caderno 2 do Estadão, na Folha de SP, na Veja e na Isto É, é porque tem uma boa editora na retaguarda… Hoje, procurei na Internet todos estes artigos e eles são favorabilíssimos. O que houve então? Não sei.

São contos de um convencionalismo muito antiquado. Normalmente iniciam-se por longas descrições de ruas ou de apartamentos de emigrados russos em Berlim. Elas precedem à ação e ali não há lugar para sugestões do que está por vir nem para os personagens. É apenas enfadonho e, quando chegamos à história, já perdemos o entusiasmo. Num dos contos, Nabokov chega a ironizar aquelas pessoas que não lêem atentamente as descrições e introduções. Está bem, vá lá, vamos concordar com o autor, digamos que elas sejam necessárias como eram para Balzac. Só que as descrições de Balzac eram coloridas e tinham o objetivo de situar-nos socialmente e de preparar-nos para o grau de galhofa ou seriedade que viria logo a seguir. As de Nabokov são geográficas…. e o que vem depois nunca é muito original, ficando sempre numa linha de melancolia nostálgica.

Na Veja, Marilia Pacheco Fiorillo escreveu que “nessa coletânea não há o menor truque, artifício, uso de “vozes”, ou o que quer que atormente escritores modernos e pós-modernos. Pela simples razão de que Nabokov não precisa de nada disso. Seu estilo dá ao leitor a estranha sensação de não estar diante de um livro, mas da própria vida. Só que mais bem contada.” Acho que, para Marília, Nabokov não precisa de nada para ser sempre bom. Seu texto parece ter sido escrito sob encomenda. No Estadão, o vacilante Daniel Piza escreve que “mesmo em construções sintáticas simples já vemos todos os elementos que marcam sua literatura: o humor entre cômico e melancólico, a preocupação com as ilusões amorosas, a melodia verbal com toques de ironia, a noção do patético mesclado ao dramático. É do grande escritor ser assim tão sutilmente pessoal”. Haja criatividade! Ambos também elogiam a simplicidade transcendente dos contos. A simplicidade, sim… Tenho certeza de que se ambos não conhecessem o Nabokov pós-Lolita, nunca teriam escrito tais coisas. Não sou um débil mental nem um mau leitor, também não sou insensível às possíveis transcendências, símbolos e significados subliminares; portanto digo que, em minha opinião, os contos de Detalhes são obras singelas de um escritor em formação. Seu mérito principal é o de não serem pretensiosos. Se vocês quiserem o bom Nabokov, procurem Lolita, Fala, Memória, Fogo Pálido, Transparências, etc., sem esquecer do melhor de todos Sebastian Knight.

Ou quem sabe os europeus não dão mesmo importância ao gênero “Conto” e ali deitam apenas sobras? Boa pergunta…

P.S.: O nome de um dos livros é Fala, Memória. Não são dois livros.

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101 Dias em Bagdá, de Åsne Seierstad

Esta longa reportagem é um equívoco da autora do bom O Livreiro de Cabul. Se a idéia da reportagem é interessante — retratar a Bagdá pré-ataque americano — esta mostra-se inviável ao esbarrar no silêncio dos iraquianos e na duríssima censura vigente. A autora, sempre acompanhada de tradutores que não apenas tentavam determinar onde ela iria como também traduziam somente o que era permitido, permaneceu encalacrada numa Bagdá onde não circulava muita informação. Poucos ousavam falar e, para completar, nem a jornalista tinha grande idéia do que estava acontecendo fora do país, pois seus contatos eram vigiados de perto. Como se tudo isto não bastasse, a renovação do visto dos jornalistas era semanal e dependia de bom comportamento. Ou seja, era muito difícil, para uma estrangeira que não se comunicava em árabe, obter informações relevantes naquela Bagdá.

O livro torna-se mais interessante quando os americanos chegam… isso após quase trezentas páginas! Aguardadíssimos pelos xiítas, que sofreram horrores durante a ditadura de Saddam e que gostariam de saudar o invasor, os americanos chegaram atirando em tudo o que se mexia. Seu lema parecia ser “atire se quiser”. Não havia punição por matar civis e eles se divertiam atirando em janelas abertas, em vacas, galinhas e, desconfiados, em civis que vinham saudá-los — afinal, podiam ser homens-bomba. Também desenvolveram o curioso hábito de dar tiros de canhão em fotografias de Saddam e destruíram todos os prédios públicos, a maioria sem motivo aparente ou resistência; porém, curiosamente, tiveram cuidado com o do Ministério que tratava do petróleo. Ingênuo, boa parcela do povo iraquiano achou estranho que os americanos os tratassem aos safanões e tiros e que não tivessem vindo com intenções de conquistar seus corações…

O livro torna-se interessante quando um tanque resolve fazer mira no hotel dos jornalistas, antes sempre respeitado. Jornalistas e técnicos morrem. Tende a ficar interessantíssimo quando mostra a reversão de expectativa daqueles que antes odiavam Saddam e que passavam pouco a pouco a odiar os americanos, unindo-se aos partidários do ex-ditador. Em poucos dias, todos estavam decepcionados e humilhados. Só que, neste trecho, após quase cem dias no Iraque, a jornalista Åsne mostra-se de saco cheio de tantos dias de isolamento, do constante perigo e decide — seguindo o conselho de familiares e colegas — que é melhor sair do inferno. Com efeito, ninguém parece ter paciência com os iraquianos.

Salvam-se, na reportagem, as descrições das livrarias de Bagdá e os poucos diálogos intelectuais opositores ao regime de Saddam. Mas é muito pouco.

P.S.: Alberto Kopittke, em oportuno comentário escrito neste blog na última segunda-feira, observa o vezo que alguns intelectuais de esquerda têm de criticar best-sellers ou livros de entretenimento. É uma pauta à qual este escriba admirador de Georges Simenon e outros pretende retornar. “A lógica equivocada de que tudo o que faz sucesso é ruim” demonstra preconceito dos mais idiotas.

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‘2666’, romance póstumo de Bolaño, traz temas de livros anteriores

Rafael Gutierréz (*), Jornal do Brasil

RIO – Comecei a ler Roberto Bolaño em uma tarde de março de 2001 em Bogotá, quando minha amiga D. me pôs nas mãos um livro grosso de cor cinza. A imagem da capa era a de três homens jovens, usando chapéus e uma roupa elegante, que caminham por uma praia vermelha, enquanto no fundo se vê o mar de um azul intenso e uma montanha. Quando me entregou o livro, D. disse: “Lê isto. É a melhor coisa que leio há muito tempo”. Confiava no critério de minha amiga, que antes já havia recomendado outras leituras reveladoras.

Sua recomendação não me decepcionou e nos dias seguintes, ou melhor, nas noites e madrugadas seguintes (pois era o único tempo disponível para ler que na ocasião me deixava um trabalho burocrático tedioso e extenuante em um escuro ministério colombiano) li em êxtase Os detetives selvagens. A partir desse momento, continuei procurando e lendo com ansiedade os demais livros escritos por Bolaño. Nenhum deles me pareceu tão bom quanto Os detetives, até ler sua ambiciosa obra póstuma e inconclusa 2666, publicada em 2004.

Em uma entrevista para a edição mexicana da revista Playboy, realizada poucos meses antes de sua morte – em 15 de julho de 2003, aos 50 anos – Bolaño diz que, se não fosse escritor, seria detetive de homicídios para voltar sozinho, à noite, à cena do crime, e não se assustar com os fantasmas. Pois bem, acredito que, em 2666, ele volta ao lugar do crime e finalmente enfrenta os fantasmas. Dois tipos de fantasmas: aqueles que rodeiam a vida do escritor e a solidão do ato da escrita; e aqueles que estão do lado do mal e da violência (e que talvez possam ser os mesmos, como fica sugerido em várias de suas obras).

O primeiro tipo de fantasma aparece em 2666 na história do escritor alemão Benno von Archimboldi que ocupa, basicamente, a primeira – “A parte dos críticos” – e a última parte do romance. Na história de abertura, quatro críticos literários europeus tornam-se amigos ao estudar a obra do misterioso escritor que, apesar do reconhecimento da crítica e de ter sido indicado várias vezes ao Prêmio Nobel, nunca aparece em público; ninguém conhece detalhes de sua biografia. Bolaño descreve as tensões que constituem o campo literário, não a partir da perspectiva dos escritores e poetas marginais, como fez em Os detetives selvagens, e sim do ponto de vista dos estudiosos da literatura, com suas brigas e conspirações intelectuais, embora destacando a amizade e o amor que surge entre eles. De certo modo, esta primeira parte pode ser lida também como uma história de amor (não um triângulo, mas um quadrado amoroso com final inesperado).

“A parte de Archimboldi”, última do texto, está construída como um romance de formação e narra a história de vida do escritor alemão Hans Reiter (que usa o pseudônimo de Benno von Archimboldi), nascido em 1920. Como em outros de seus romances e contos, Bolaño constrói a figura do escritor como um ser marginal, errante e melancólico, afastado dos centros de poder do campo literário e político. Na visão de Bolaño, o verdadeiro escritor estaria próximo de algo que foge ao literário. Talvez por isso, na história de Reiter, a experiência (sobretudo a participação na Segunda Guerra) é definitiva para seu futuro como escritor. Esta parte do romance está atravessada por questões literárias: de onde vem o impulso da escrita? Vale mais a leitura ou a experiência para escrever uma obra-prima? Qual deve ser o lugar do escritor e suas relações com editores e leitores?

A história do escritor alemão e a história dos críticos têm seu ponto de encontro na cidade imaginária de Santa Teresa (nome fictício de Cidade Juarez, localizada na fronteira entre o México e os Estados Unidos, marcada tragicamente pelos milhares de assassinatos de mulheres que vêm acorrendo desde 1993). Os críticos viajam a Santa Teresa ao serem informados de que, possivelmente, ali se encontra Archimboldi. O escritor alemão deseja encontrar seu sobrinho, acusado de ser o autor ou pelo menos de participar daqueles crimes.

No ar estranho da cidade e do deserto que a rodeia, confluem os fantasmas da violência retratada por Bolaño com técnica hiper-detalhista que simula os informes forenses para descrever, em cadeia, os corpos das mulheres assassinadas. “A parte dos crimes” é a mais extensa e a mais arrepiante do romance pela acumulação de mortes e pela aparente ausência de explicação e de sentido para tanta violência. Machismo, narcotráfico, pornografia snuff são algumas das possíveis causas dos crimes, mas nenhuma delas consegue explicá-los por completo.

O que flutua como uma sombra em toda a narrativa é precisamente a pergunta sobre a origem e a causalidade ou casualidade do mal (tema caro a Bolaño e que aparece em seus primeiros textos). Esta parte pode ser lida como um romance policial, inclusive com a participação de um detetive americano com aparência de Sherlock Holmes. Mas, em 2666, os crimes são impossíveis de resolver, deixando no fim uma sensação de impotência e desolação.

Duas histórias, centradas em Santa Teresa, completam as cinco partes do romance: a do professor de filosofia chileno Amalfitano (que compartilha com Bolaño alguns rasgos biográficos); e a história do jornalista americano Oscar Fate.

O professor chileno é um personagem perdido, exilado e próximo à loucura. Em sua cabeça confluem, delirantemente, a filosofia e a história política do século 20. Escuta vozes permanentemente e, em suas noites de insônia, realiza estranhas performances no pátio de sua casa inspirado em instalações de Marcel Duchamp. Apesar do humor e da ironia presentes na história de Amalfitano, o que predomina é um clima de tristeza, melancolia e medo, pois ele teme, o tempo todo, pela vida de sua filha em Santa Teresa.

Cada parte do romance parece nos levar por questões centrais da história do século 20, formando um grande painel histórico-ficcional. No caso do jornalista Oscar Fate, entramos na história do partido dos Panteras Negras através da voz de Barry Seaman, um de seus fundadores. No meio da reportagem sobre Seaman, Fate é obrigado por sua revista a cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e, quase por azar, fica envolvido com a investigação dos crimes.

Embora existam pontos de contato entre todas as histórias, cada parte do romance pode ser lida de forma independente (e Bolaño queria que fosse assim, publicadas com intervalos de um ano para assegurar o futuro econômico de seus filhos). Porém, em conjunto, constituem uma das empresas mais impressionantes da narrativa contemporânea, uma imersão profunda pelos labirintos da criação literária e uma aproximação nada modesta ao mal absoluto.

Em 2666 convivem todas as obsessões bolanianas: a relação entre literatura e vida, a pergunta pela origem do mal e da violência, a proximidade entre literatura e perversão. Escrito com uma prosa direta e objetiva, através da acumulação de histórias e digressões, e apesar de sua longuíssima extensão, Bolaño consegue prender o leitor como só os grandes mestres da narrativa conseguem.

(*) Escritor e crítico literário. Doutor em literatura pela PUC-Rio.

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O Livreiro de Cabul, de Åsne Seierstad

A norueguesa Åsne Seierstad é uma grande estrela da reportagem mundial. Com apenas 40 anos, já escreveu livros sobre os conflitos da Sérvia, do Iraque e do Afeganistão, todos best-sellers. Este O Livreiro de Cabul não é um relato de guerra. É uma narrativa bem amarrada sobre os costumes e a vida no Afeganistão, observados pela autora durante os três meses que viveu com uma família afegã após a queda do talibã, na primavera de 2002. Vendo aquele estranho mundo sob uma burca, a loiríssima Seierstad nos mostra o dia a dia dos Kahn, uma rara e privilegiada família que tinha algo para comer em Cabul naquela época.

O livro tem um sério problema. Como a jovem Seierstad pode julgar uma cultura milenar tendo passado apenas alguns dias com uma família afegã? A fim de não me irritar, tratei o livro como se fosse uma visão estrangeira que tem muito em comum comigo, mas uma visão estrangeira. E crítica.

Estruturando seu relato em capítulos que mais parecem contos e utilizando esplendidamente a condição de comerciante de Sultan Kahn, Seierstad chega a outras instâncias de uma sociedade que nos deixa estarrecidos a cada página, tal o medievalismo das atitudes e opiniões. É claro que esta característica nos faz engolir o livro rapidamente, mas os méritos de O Livreiro de Cabul ultrapassam o da mera “narrativa de ocorrências e costumes para nós absurdos”. O livro é muito bem escrito e alguns capítulos, como Ondulante, esvoaçante, serpenteante, que conta as peripécias de três velozes burcas comprando o enxoval de casamento de uma delas, O carpinteiro, que conta minuciosamente a história de um roubo e sua punição, e Minha mãe, Osama, que conta a viagem de um tradutor por uma região onde o fundamentalismo islãmico é natural e milenar, chegam a entusiasmar. Seierstad reconstrói vividamente cada um de seus personagens, os justifica e nunca nos entedia. E olhem que não tenho muita paciência com obras que não sejam de ficção!

Outro acerto é o de não haver grande intervenção da política no relato. Não precisa, seria apenas ruído em um livro cuja sedução está no interesse da autora pelas pessoas – principalmente por mulheres como Leila ou jovens como Mansur – e pela vida sufocante que a absoluta maioria leva. Mas volto a dizer, há as críticas à cultura afegã e entramos no pantanoso terreno antropológico.

É uma excelente indicação para quem quer um livro grudento e competente.

A tradução é de Grete Skevik. Bom trabalho, mas faltou revisão. Há duas trocas de nomes que tornam seus trechos puzzles e outros errinhos aqui e ali. Nada grave para o leitor atento, só que é chato.

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Chá das Cinco com o Vampiro, de Miguel Sanches Neto

Para empreender um romance há que ter boa dose de motivação e um ingrediente que pode ser muito motivador é o da vingança pessoal. Na história da literatura há vários exemplos de romances e contos que se iniciaram como reações a reais ou supostas agressões e que superaram o mero objetivo de ofender. É o que ocorre com Chá das Cinco com o Vampiro: se parte de uma rixa, se a descreve, deixa-nos envolvidos num delicioso e amargo retrato das vaidades literárias e da cidade de Curitiba, descrita como um verdadeiro inferno.

Comecemos pelo cerne. O livro narra desde os primórdios a relação entre um pretendente a escritor e seu modelo, mais velho e consagrado. É um Bildungsroman (romance de formação) que parte da adolescência de Beto Nunes na pequena Peabiru até seu período curitibano. Organizado em capítulos não cronológicos, com os títulos indicando o ano em que se sucedem os fatos, é conduzido com segurança, ultrapassando em muito o simples propósito de vingança.

Os trechos dedicados à sexualidade e à adolescência de Beto Nunes em Peabiru – quase todos no início do livro – são os mais desinteressantes da narrativa. Beto Nunes, o narrador, faz uma análise psicológica bastante simplória daquilo que o circunda. O livro ganha grandiosidade quando da saída de Beto para Curitiba, quando começa a vida na grande cidade provinciana. A partir deste ponto, a narrativa engrena até o final: a procura pelo Grande Mentor, a “amizade” com ele, os estudos abandonados, os novos amores, o meio literário, tudo misturado em contraponto e primorosamente escrito.

Há belas descrições de escritores anônimos – fracassados, orgulhosos e sem obra – , assim como da vida difícil como colunista e das horas de pura paixão pela literatura. Tudo isso é contado de forma sincera e com indiscutível virtuosismo. Há enorme humanidade nos capítulos sobre a relação quase inexistente com os pais em Peabiru, em contraposição à devoção mútua entre Beto e uma tia, também ausente.

Um personagem importante do livro é a opressiva cidade de Curitiba, que nos é mostrada exatamente como este articulista a sentiu em várias visitas. É uma cidade que não adota ninguém, comandada por uma elite culturalmente pobre que busca nos sobrenomes – como os personagens de Balzac – as provas de uma boa ascendência. Ao mesmo tempo, não suporta quem se sobressai ou é diferente. Conservadora até a medula, a Curitiba de Sanches é Curitiba.

O nome do “Grande Escritor Que Ensinará Todos os Segredos” é Geraldo Trentini e seu apelido, vampiro. Vingança, vingança. Afinal, Dalton Trevisan tem seu apelido diretamente do título de um de seus livros: O Vampiro de Curitiba. Sanches não se preocupou muito em escondê-lo: Trevisan e Trentini iniciam por “Tr” e têm sete letras — o número de consoantes e vogais também coincidem. E Dalton e Geraldo têm sílabas tônicas com “al”…, ou seja, o autor não fez a menor questão de ocultar sua inspiração, modelo e… ressentimento. Tanto que o verdadeiro vampiro sentiu o golpe, contra-homenageando Miguel Sanches Neto com o grosseiro poema “Hiena Papuda”. Melhor sorte teve o recém falecido crítico Wilson Martins, que aparece como o ético e generoso Valter Marcondes; e menos sorte tiveram quase todos os outros, mas principalmente o jornalista Fábio Campana, um patético Orlando Capote, e o Valério Chaves (Valêncio Xavier) que tomou uma atrás da outra, como punhalada de louco.

Dalton deve ter ficado irritado ao aparecer como um vampiro que não sai à noite e que só come coisinhas em confeitarias… Mas deve ter ficado furioso ao aparecer como um escritor que não quer aparecer enquanto sugere que amigos escrevam isso e aquilo, aqui e ali. Aposto que é verdade.

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2666, de Roberto Bolaño (3ª Parte – La parte de Fate)

Na terceira parte de 2666, abandonamos o professor Oscar Amalfitano em sua descida aos infernos da psicose para seguirmos o repórter novaiorquino Oscar Fate. Fate trabalha numa revista voltada para a população negra do Harlem. Sua mãe acaba de falecer e Oscar deve providenciar seu enterro em Detroit, depois ele vai entrevistar um ex-Pantera Negra e, quando pensa em retornar, recebe a missão de ir à Santa Teresa, uma cidade mexicana fictícia na fronteira com os Estados Unidos, a fim de fazer a cobertura de uma luta de boxe, esporte sobre o qual pouco sabe. Lá, fica curioso a respeito de outro assunto: as centenas de mulheres que ão assassinadas e que no mais das vezes aparecem mortas no deserto.

As cenas de Detroit são efetivamente esplêndidas, tanto com o ex-Pantera Negra como com um comunista americano que ainda mantém sua célula ativa. A parte mexicana do capítulo funciona mais como um portal para apresentação da cidade de Santa Teresa, seus crimes e misoginia. Enviado para cobrir uma luta de boxe, Bolaño nos enreda com a cultura local. Há drogas, submundo, alguma bizarria e há o machismo, o machismo, o machismo. Enfim, é o mundo do boxe. Nesta parte, a prosa começa a pender para o noir, com uma galeria de personagens que parecem ser culpadas de algo – mas como saberemos? – , à exceção de Rosa Amalfitano, filha do Oscar da segunda parte, e de Guadalupe Roncal, a amedrontada repórter que foi escalada para investigar e escrever sobre as mortes das mulheres.

É muito estranho como uma certa irrealidade tomou conta de mim durante a leitura. O que fará Fate? Qual é o motivo de seu sobrenome? O que ele faz lá? Por que ele não se decide a nada e deixa ser levado até que as circunstâncias o engulam ou não? Então, acontece que nós é que nos tornamos os detetives de verdade, tentando captar no mar de detalhes que nos é oferecido o atordoamento de Fate e seu, bem, destino. Bobagem sublinhar que nunca há uma resposta clara, pois no jogo de Bolaño, só não nos decepcionamos com o texto. O resto mais parece um quebra-cabeças de milhões de peças no qual uma peça não tem nada a ver com a outra.

Sigo a leitura ainda mais entusiasmado.

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Últimos livros lidos

O tradutor americano deu o nome de In Concert Performance para este Em Ritmo de Concerto de Nikolai Dejnióv. Lendo o livro, vê-se que o americano saiu-se muito melhor. O inventivo e amalucado livro deste escritor e físico russo é mesmo aparentado a uma enorme improvisação. Vagamente inspirado no realismo mágico, o romance conta a história de Lucário, um anjo que volta à terra ao apaixonar-se por Ana, o que o impedirá de seguir seu caminho em direção à purificação total. Claro, nada de terrivelmente original, mas o livro é delicioso, anticlerical e anti-stalinista. Ah, por falar em Stálin, ele quase foi assassinado por Lúkin – o Lucário em terra. Quase.

Eu queria gostar deste livro emprestado por uma querida amiga, mas não foi possível. O Duelo de Batman contra a MTV, além de um título apelativo, é uma série de poemas de Sérgio Capparelli baseados na relação entre um pai e um filho. A estrutura é interessante, são cinco seções: na primeira o pai fala ao filho, depois temos o filho sozinho, seguido pelo que diz o filho ao pai e pelo solo do pai, terminando com uma espécie de homenagem aos que os antecederam. Sem dúvida, uma boa idéia, não fosse o fato dos poemas mostrarem-se muitas vezes fora do foco do livro, como se tivessem sido primeiro escritos para depois entrarem à fórceps na estrutura inventada. O leitor tem que ter muito boa vontade para entender que aquela voz é a do pai ou a do filho, pois elas são muito parecidas. Há raros momentos em que são mostradas as diferenças e pontos em comum entre pai e filho assim como as dificuldades ou não de comunicação entre eles. Não há profundidade nem drama sincero. Um pasmo: a mãe, que se bem me lembro morreu durante o parto do filho, não parece ser uma falta muito importante para nenhum dos dois. O filho não é um mamífero.

Os Novos, romance de Luiz Vilela, foi comprado num balaio da Feira do Livro do ano passado. O exemplar que levei já tinha até tomado banho, suas folhas têm aquelas ondas que denunciam muita água. Deve ter custado uns R$ 2,00, mas pela diversão vale muito mais. Pode-se dizer que a história dos amigos candidatos a escritores é datada, pode-se garantir que é obra de um Vilela iniciante, pode-se reclamar que os caras não param de beber cerveja, mas, por favor, os diálogos são maravilhosos, vivos, humanos. E aqui há, de forma muito intensa, o conflito entre gerações que faltou no livrinho aí de cima. Outro pasmo: por que o livro não foi censurado se os caras cagam sobre os milicos? Ora, certamente porque nenhum censor deu importância a um livro editado pela obscuríssima e carioca “Edições Gernasa” em 1971… Agora, é um mistério como ele, depois de tanta água, foi chegar a mim num balaio da Feira do Livro de 2006.

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Uma escola para a vida (The finishing school), de Muriel Spark

Eu sou um cara que costumo andar sempre com um livro na mão, no bolso, na bolsa ou na pasta. Qualquer oportunidade, saco do livro e leio onde estiver. Porém, achei tão ridícula a tradução do título deste romance de Muriel Spark que tinha certo constrangimento de lê-lo em público. E a capa é um horror. Parece um troço militar… Mas o livro é de uma das autoras com as quais mais me divirto. Memento Mori, A Primavera da Srta. Jean Brodie, O Banquete e Realidade e Sonhos não mudaram minha vida, mas me deixaram muito feliz de lê-los, principalmente a Srta. Brodie. Finishing School é um gênero de escola particular muito comum na Europa. É onde os alunos recém saídos do colegial fazem um hiato e tem aulas de idiomas, cultura geral, cultura artística, boas maneiras, leem os livros sem os quais não se pode viver…, etc. É neste ambiente que Muriel Spark desenvolve o tal Uma escola para a vida (2004). A Finishing School em questão chama-se Sunrise e é itinerante. A cada ano aluga um local paradisíaco diferente e lá dá suas aulas. Os donos são jovens — Nina Parker e seu marido Rowland Mahler têm menos de 30 anos. Ela cuida da parte burocrática da instituição e ele leciona redação criativa, uma das matérias mais concorridas do colégio. Nos intervalos, Rowland tenta escrever seu primeiro romance. Paralelamente, um de seus alunos — Chris Wiley, de apenas 17 anos — , também está escrevendo o seu. Só que enquanto o texto do rapaz avança, Rowland entra em crise de criatividade; sim, logo ele, o professor de “redação criativa”. Se Chris alimenta-se da crise e da inveja de Rowland; Rowland deseja todo o mal àquele desgraçado que parece não padecer de nenhuma dificuldade com seu livro.

Sim, é um belo plot e Muriel Spark (1918-2006), que escreveu a novela aos 86 anos, não perde a elegância nem a segurança. Não seu melhor texto, mas ainda assim fica muitíssimos furos acima da média. E, por favor, a octogenária escritora não merecia este título de auto-ajuda… Nada a ver! Eximo o tradutor, que fez excelente trabalho, mas o editor merece a nota zero sem perdão. Faltou-lhe uma finishing school, sem dúvida!

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Sem Rumo, de Cyro Martins

Cyro Martins (1908-1995) é uma instituição gaúcha. Foi importante escritor e talvez médico ainda maior. Sem Rumo (1937) é o primeiro livro da chamada Trilogia do Gaúcho a Pé, que é completada por Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1954). Li detidamente Porteira Fechada no ano passado. Na verdade, digitei o romance por inteiro a fim de fosse convertido para o Braille, pois é de leitura obrigatória para o vestibular da UFRGS. Fiquei entusiasmado e pensei em ler toda a trilogia, essa desconhecida.

O primeiro volume é decepcionante: achei Sem Rumo quase ilegível, tal o número de antigas expressões gauchescas utilizadas. E olha que, apesar de urbano, sou gaúcho e costumo entender com facilidade tudo o que me cai em mãos, mas as expressões fronteiriças de Cyro acabaram por me incomodar. OK, a história é boa, Cyro tem uma dimensão social inencontrável em Erico, por exemplo, mas penso que ele exagerou a mão em seu romance de 30. Suas primeiras páginas são quase impenetráveis e não são exageradas as 233 notas explicativas que o “tradutor” coloca ao longo das 140 páginas. Chiru é um projeto daquilo que seria o grande João Guedes no segundo romance da trilogia. Indicado apenas para estudiosos da região fronteiriça do início do século e para nascidos em Quaraí.

P.S. — Ah, a edição da CORAG, comemorativa dos cem anos de nascimento do escritor, é uma joia. Os livros — comprei toda a trilogia por quase nada — são belíssimos.

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Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato

Excelente novelinha bipartite de Luiz Ruffato. Serginho (Sérgio de Souza Sampaio) vive em Catagueses uma vida simples de cerveja, trabalho mal remunerado e fofocas. Repentinamente, acaba sendo obrigado a casar com Noemi por causa de uma gravidez, tem problemas financeiros e pensa resolvê-los emigrando para Portugal. Lá, enriqueceria.

A primeira parte da novela trata das idas e vindas de Serginho até decidir-se pela viagem; a segunda é a experiência portuguesa. Ruffato é excelente escritor e conta a história “sobrando”. Não é um livro alegre. Ver o personagem passar de cidadão de segunda classe em Catagueses para a terceira classe portuguesa não é das coisas mais motivadoras que tenho lido, mas a graça e a fluidez do autor deixam tudo mais leve, escapando dos excessos de verossimilhança e das teses sociológicas. A ingenuidade do personagem e a estranheza com o falar português são muito bem mostrados. É um bom livrinho de 83 páginas. Vale a leitura.

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A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles (resenha e reconstrução, um show!)

Na Inglaterra, este romance de 1969 possui status de clássico. Quando foi passado para o cinema, recebeu roteiro do respeitadíssimo dramaturgo Harold Pinter (1930-2008), Nobel de Literatura de 2005, e que tem dentre suas maiores influências Samuel Beckett e Frank Kafka. Já John Fowles (1926-2005), o autor do romance, escreveu poucos livros mas tem obra consistente e é até popular.

A Mulher do Tenente Francês é excelente. A história é contada a partir de um curioso foco narrativo: o autor, longínquo, examina os atos de seus personagens vitorianos a partir do instrumental em uso nos anos 60, quando o livro foi escrito. Tal instrumental é basicamente freudiano, marxista e gramsciano. Não, não, nada de discursos políticos. Só observações aqui e ali. Ao estilo de Machado de Assis, o autor às vezes conversa conosco, realizando uma bem-humorada interface entre a ação e o leitor. Costuma também brincar com o fato de estar “perdendo o controle” sobre os personagens e, lá pela página 100, explica que está alterando o planejamento inicial do romance por causa dos personagens, que decidiram outra coisa. Para completar, dá ao leitor a chance de escolher entre três finais distintos. É delicioso investimento ler estas 484 páginas.

Considerando-se a estrutura narrativa, não é de estranhar que Harold Pinter tenha sido convidado para escrever o roteiro cinematográfico. Para alegria da Caminhante (just a private joke), o filme de Karel Reisz, com Meryl Streep e Jeremy Irons, é um fiasco quando comparado com o livro. Ela, a Caminhante, acaba de marcar 2 x 0.

Mas tergiverso. No último domingo, procurando algo inteligente na Internet — ainda que zonzo pelo calor insuportável – , encontrei uma divertida série de Digested Classics no Guardian. Então armei uma espécie de jogo. Tenho certa vergonha de contar, mas vamos lá: copiei o texto no Open Office e escrevi minha versão por cima. Não fiz alterações substanciais, mas mexi num monte de detalhes. O tom destes “clássicos recontados” é mais do que jocoso, é decididamente uma profanação e, como meus sete leitores sabem, profanação das especialidades que mais aprecio.

Arriscaria dizer que ri muito do resultado. E, OK, vou dar a fonte por uma questão de honestidade. Por favor, não cliquem nela!

Observando a baía de Lyme, em 1867, podemos notar um casal muito bem vestido caminhando pela praia, se é que podemos chamar de praia aquela bela paisagem cheia de penhascos que acabavam no mar da Cornualha. Estavam tão à vontade longe de casa que não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que estavam noivos ou eram casados. E então ambos viram uma mulher toda de preto olhando o mar.

– Eu espero que você não tenha falado sobre as ideias tolas do Sr. Darwin novamente — criticou Ernestina. – Você sabe que papai não suporta a ideia de ser descendente de um macaco.

Monotemático, certamente Charles falara em novamente em Darwin, assim como hoje falamos sobre o aquecimento global ou as próximas eleições quando temos pouco assunto com nossos sogros. No entanto, a realidade é que Charles não tem nenhum direito a escolher seus temas de conversação, pois ele é uma construção da minha, apenas existe em minha mente, por isso, agora, quero que ele se fixe na mulher de preto que corre perigo na posição em que está.

– Quem é aquela? – , pergunta ele.

– Chamam-na de A Mulher do Tenente Francês – responde Ernestina. – Ela se apaixonou por um capitão náufrago que a abandonou. Ela caiu em desgraça e agora é empregada da Sra. Poulteney.

– Eu não desejaria saber nada dela nem desta história horrível, mas não creio que ela esteja segura naquela ponta. Pode cair e há pedras lá embaixo.

Charles dirigiu-se à mulher de preto e pediu-lhe que saísse daquele local perigoso, mas o olhar triste, frio e profundo que recebeu de volta avisava-lhe para se afastar.

Mas como este é o meu livro, vamos deixar esta cena introdutória e fazer algumas observações sarcásticas sobre ambos os personagens e seus valores vitorianos. Charles Smithson, podemos concluir, é um homem comum, ainda que nobre. Com uma renda que o libera da necessidade de trabalhar, ele é uma alma perdida de 32 anos, com ideias tão avançadas quanto pode ter um homem que deixa-se torturar pelas lembranças de suas ligações com prostitutas.

Sua noiva, Dona Ernestina Freeman, é o que agora nos anos 1960 chamamos de pequeno-burguesa. Seu pai ganha dinheiro no comércio. Ora, o comércio! Ele é o dono de algumas lojas de departamentos em Londres. Coisa estranha, enriqueceu trabalhando. Sua filha, apesar da baixa extração, pode, portanto, casar com Charles, de maior categoria, mas com menos grana. Está tudo perfeito. São dignos um do outro. O único inconveniente é que Ernestina é, como dizemos agora em 2010, uma cabeça oca ou uma loira burra.

Já Sarah Woodruff, ou A Vagabunda do Tenente Francês, como alguns de Lyme Regis a descreveriam… Bem, falemos dela depois. Há também a Sra. Poulteney, uma viúva que tomou Miss Woodruff para si, a fim de protegê-la das maledicências e assim aumentar suas chances de entrar no reino dos céus.

E depois há Sam e Mary. Como o amor dos empregados era mais alegre! E era mesmo. Livres das contorções românticas de seus chefes, Sam e Mary são personagens encantadores. A chefe de Mary é Ernestina e Sam é mordono de Charles. É um contraste bem útil para o romancista, que pode assim, criar uma superfetação de metáforas.

Mudemos o cenário. Muitas páginas depois, estamos em Undercliff, um mundo pré-histórico onde o desocupado Charles procura um fóssil – coisa de vitorianos confusos, apaixonados por Darwin, imaginem! E lá encontra Sarah Woodruff.

– Miss Woodruff –, diz ele.

– Senhor Smithson – , responde ela.

– Eu me preocupo com sua saúde.

– Minha saúde não significa nada.

Nossa! Após alguns minutos de conversa, ela diz que sua situação com o Tenente Francês desaparecido é o que a define como ser humano. Ela é aquilo. Se tivesse nascido 100 anos depois, Charles poderia ter reconhecido isto como uma expressão da angústia existencial sartreana. Porém, vejam como são as coisas, o que ele sentiu foi um desconcertante inchaço nas calças. Então, beijou-a na pálpebra.

Miss Woodruff olhou para toddos os lados.

Se formos vistos juntos, serei expulsa da casa da Sra. Poulteney.

Mais um discurso sobre a ciência vitoriana e hipocrisia religiosa? Mais encontros entre Charles e Sarah até que alguém os veja e cumpra-se a necessidade freudiana de ser expulsa da casa da Sra. Poulteney?

No entanto, damos mais um salto e vamos agora para Exeter, onde Sarah está hospedada no hotel Endicott. Charles vai até ela e aqui tenho um dilema, pois preciso manter o artifício que os meus personagens têm vidas próprias e que não sei como a história termina. Ousadamente, então, abandono-os.

Agora Charles nega a si mesmo a noite com Sarah e retorna a Ernestina, com quem viverá feliz para sempre pelos próximos 173 anos. Mas eu não quero fazer isso. Portanto, faremos com que ele retorne ao hotel, onde dou de cara com Charles desabado sobre o corpo nu de Sarah após 17 segundos de cópula intensa.

– Meu Deus, mas você virgem. Então, o tenente francês não…

– Na verdade não, mas eu precisava do mundo para imaginar que eu tinha para mim, para explorar minha vergonha e solidão.

Se Charles tivesse lido algum livro de psicologia moderna, ele teria concluído que Sarah estava precisando de uma terapia urgente. Mas como isso era 1867, ele simplesmente falou: “Eu te amo”.

Tudo se complica quando o mundo descobre a traição. Sam não entrega uma carta de Charles a Sarah e o mal-começado romance é subitamente extinto. Ela, Sarah, some. Charles é instado a terminar seu noivado, cai em ostracismo light e dorme com prostitutas enquanto cria mais mil metáforas em sua busca por Sarah.

Se eu soubesse que me obrigaria a escrever mais de 100 páginas, poderia ter ficado com o primeiro final. Mas não. Vou deixá-los com mais dois. Afinal, quero dormir com Meryl Streep novamente.

Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti. Aqui, um choque, pois Dante Gabriel Rossetti é um dos pintores preferidos de minha ex e, portanto, é um idiota. Criador de um grupelho que seus fãs gostam de chamar de pré-rafaelitas, mas que se chama Pre-Raphaelite Brotherhood ou Irmandade pré-rafaelita, é autor de pinturas, poemas e de conceitos que alardeavam a arte pela arte. Seu poema mais importante diz uma imbecilidade digna das maiores carolices “.pps”:

O pior momento para o ateu é quando ele realmente está agradecido e não tem ninguém para agradecer.

Você não precisa se preocupar com isso, Dante, eu organizaria uma festa. Mas voltemos. Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti.

– Eu não posso me casar com você. Ainda quero estar sozinha. Mas nós temos uma filha — diz Sarah.

Ou.

– Eu vou casar com você, mas será apenas platônico.

Você provavelmente vai escolher o segundo final. Eu fico com o primeiro, em que há sexo casual e variado. De qualquer maneira, Charles e Sarah acabaram pós-modernos.

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Foi apenas um sonho, de Richard Yates

Foi a Carol Bensimon quem indicou este livro em seu twitter. Ela escreveu, naquele espacinho de 140 caracteres, algo como: “Richard Yates é o sujeito que mais conhece a natureza humana”. Obviamente. ela articularia melhor sua opinião num espaço menos informal do que a algaravia das tuitadas. Depois ela escreveu um post dizendo que tinha visto o filme e pressentira que havia uma grande obra literária por trás. Duvidei, pois vi o filme e não pensara em nada disso, mas ela é a Carol e achei melhor conferir. Quase larguei o livro de volta na estante da livraria ao ver a capa com o cartaz do filme de Sam Mendes e a exata tradução de Revolutionary Road para o português… A primeira edição brasileira recebera o nome de Rua da Revolução, porém o filme rebatizou o livro.

A história do livro já foi contada por Sam Mendes, porém a leitura do livro vale demais a pena. Richard Yates (1926-1992) trabalha na mesma faixa de realismo do bom cinema americado dos anos 50 e dos dramaturgos Tennessee Williams e Arthur Miller. Seu grande diferencial está no tratamento, na extrema dedicação que tem com os personagens. A vida interior de cada um deles, suas motivações, absurdos, brilhantismos e loucuras são analisadas minuciosamente. Se Yates não chega ao grau de detalhamento, às vezes demasiado, de um Juan José Saer, não fica muito longe do argentino em expor pacientemente seus pensamentos opiniões.

O resultado é extraordinário. O romance efetivamente merece o status de clássico que alguns críticos americanos lhe atribuem e é uma delícia para quem gosta dos artifícios literários. Yates faz maravilhas ao interromper personagens falastrões com sua narrativa e revela interessantes possibilidades de diálogos imaginários. Estes podem acontecer não apenas na imaginação dos personagens, mas também em pleno diálogo, quando o autor releva o que o personagem diria se agisse de acordo com os conselhos da mulher e o que ele realmente disse.

Esqueça o filme médio de Sam Mendes. O livro é estupendo, muito melhor do que a versão cinematográfica.  É uma história tristíssima, mas não adianta, sad songs make me happy.

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Desonra, de J. M. Coetzee

Nunca tinha lido nada de J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Nobel de 2003. Desonra é de 1999. Ficou pronto, portanto, nove anos após o fim do apartheit e cinco depois das primeiras eleições livres da África do Sul. Tal cronologia é importante, pois Desonra é um relato seco e brutal onde o racismo, a “necessidade” do cumprimento do politicamente correto e a luta pela terra estão presentes.

David Lurie é um professor universitário que leciona poesia numa Universidade da Cidade do Cabo. Tem uma vida desinteressante (até para o próprio) e bem organizada, a qual inclui uma prostituta às quintas-feiras. Depois de um encontro casual num supermercado com esta mulher — outro encontro casual num supermercado ocorrerá nas páginas finais do romance com outro gênero de prostituta –, Lurie começará a ver seu mundo desmoronar. Primeiro, tem um caso com uma aluna. O julgamento da Universidade é absolutamente inacreditável, mas digamos que Lurie não a auxilia em nada. Como um Michael Kohlhaas moderno, o professor resolve entrar no mundo da desgraça de forma reta e vencedora… Depois da exoneração, Lurie vai passar um tempo com sua filha Lucy numa fazenda do interior. Lá, mais eventos ocorrem: pai e filha são atacados por uma gangue de três negros e Lucy é sexualmente agredida num estupro múltiplo que resulta em gravidez. Por um lado, a filha do professor parece aceitar a ocorrência. Seria uma espécie de revanche dos negros, ultrapassaria as meras dimensões individuais. Durante o ataque, Coetzee, que se limita a narrar os fatos concisamente, “larga” — o verbo melhor talvez seja mesmo este — uma frase-tese inteiramente estranha à linguagem utilizada pelo romance: Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil… Obviamente, Coetzee não é trouxa. A frase não está ali por acaso. Com ela, ele pretende demonstrar ela a inadaptação da velha moral e da velha cultura aos novos tempos violentos.

A prosa seca de Coetzee não é das mais agradáveis, mas é eficiente para contar uma história onde o engenho está em significar muito: há a inutilidade cultural daquilo que Lurie faz e diz — o que dizer da ópera que nunca será ouvida e que parece ter sido composta para um cão que será sacrificado? –, há as desonras — a da aluna, a do professor acusado por assédio, a da filha, a do pai, a dos agressores, a dos que tomam a terra, a dos que aceitam como verdade o politicamente correto… enfim, a desonra completa da sociedade — e há o principal: a falta de vontade de comunicação. Quando terminei de ler o romance, a impressão que tive foi a de ter lido uma série de diálogos e pensamentos de personagens que não encontram ouvintes ou repercussões em outros. Não há nenhum empenho de compreensão, nem residual.

Talvez nós, brasileiros, estejamos acostumados a isto e não nos choquemos tanto com este tipo de histórias e mesmo em histórias de cunho menos social, a incompreensão já foi diversas vezes palmilhada: a incomunicabilidade de Antonioni, a de Pamuk, McEwan ou Rushdie, para dar exemplos próximo de mim, mas nunca a tinha visto toldada de tal desilusão e impotência. O livro é bom? Sim, é ótimo. Tem de ser lido? Sem dúvida! Mas lhe falta alguma coisa.

A sucessão de tragédias é tão rápida e espetacular, os acontecimentos se precipitam de forma tão contundente, o romance é tão curto, que a estrutura da história fica por demais aparente. A partir da metade do livro, ficamos aguardando o que mais de ruim Coetzee nos trará. Eu não peço uma redenção final, nem maior suavidade, apenas acho que a máquina de geração de desgraças de Coetzee funcionou com tamanha rapidez que deu ao romance um excesso de situações limite em curto espaço de tempo. Ora, isto não apenas lhe retira verossimilhança como lhe dá um aspecto esquemático. Como disse acima, sigo gostando e indicando Desonra, mas acho que Coetzee criou material e situações para algo ainda melhor.

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Como o soldado conserta o gramofone, de Saša Stanišić

O livro de um bósnio que fala da Guerra dos Balcãs com a poesia possível. E muita poesia é possível naquele país de loucos, festas e guerras. Um livro cheio de ideias intrigantes e metáforas amalucadas que só, talvez, um bósnio pudesse criar. Cômico, pitoresco, comovente e trágico como um filme de Emir Kusturica, o romance é dividido em três partes para contar a história da infância e juventude de Aleksandar. A primeira parte narra a história de sua família em Višegrad, com especial afeto para com a figura do vovô Slavko, um nacionalista sérvio seguidor de Tito, que inspira o neto a contar histórias. Vovô Slavko morre enquanto a Iugoslávia sucumbe (1991), obrigando a família a emigrar para a Alemanha, fugindo da guerra. Filho de mãe muçulmana e pai sérvio (como o autor), não é adequado permanecer. A segunda parte é catalisada por um pacote de lembranças do avô, enviado a Aleksandar pela vovó Katarina, que permaneceu em Višegrad. Quando tudo era bom — um livro dentro do livro — é dedicado ao avô e é uma nostálgica reconstrução da vida anterior à guerra. A terceira parte conta como Aleksandar, adulto, retorna para sua Višegrad, tentando juntar os cacos do que já não existe mais e conhece o tio Miki, por demais informado sobre os crimes de guerra. Aqui, há o episódio inesquecível de um jogo de futebol entre sérvios e bósnios durante uma trégua. Contado de forma mirabolante e cômica, é o ponto alto do romance, assim como fora a história da amizade de Aleksandar com o italiano Francesco na segunda parte.

O ambiente é alegre, principalmente porque visto sob os olhos de uma criança e da nostalgia, mas o país, a cidade e Aleksandar sofrem com uma guerra onde mistura-se o ódio étnico (entre bósnios, sérvios e croatas) e o religioso (entre cristãos, muçulmanos e ortodoxos).

A ponte do Drina, rio-personagem que banha Višegrad. Dela, foram jogados
milhares de corpos. O rio da vida do vovô Slavko torna-se cemitério.

Bem, porém este é um blog cujos temas emergem conforme a vontade e o humor de seu autor. Hoje não quero falar sobre limpezas étnicas, OK? Bem, o ambiente de festa dos filmes de Kusturica deve ser mesmo o bosnian way of life

No exterior, as pessoas pensam que nós estamos sempre festejando por aqui. (…) Isso não corresponde muito bem à verdade, pois em algum momento temos que arrumar o que ficou desarrumado com os festejos.

O trecho acima vem logo antes de uma festa para a inauguração de uma privada nova, a primeira privada interna da casa.

Conheci Saša Stanišić em Porto Alegre. Tem apenas 31 anos e escreveu seu livro aos 28. Ele me foi apresentado pelo tradutor Marcelo Backes. Sim, o livro é em grande parte autobiográfico e possui algumas poucas falhas que coloco na conta da pouca idade, mas… que escritor ele poderá tornar-se, que imaginação! É original foi escrito em alemão, pois Saša (diz-se Sacha) vive na Alemanha, mas as metáforas e o ambiente regado a…

Autumn has arrived, along with the need for comfort,
delicious rich foods and of course hot plum brandy “sljivovica”.
Before 5PM it is medicine, after 5PM it’s alcohol
. )

… não pode ser mais bósnio. Vale a pena ler!

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Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos

O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.

Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.

Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.

Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

Grafite de Roberto Bolaño numa rua de Buenos Aires

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FHC teria recebido milhões de dólares da CIA

Resenha do jornal Correio do Brasil sobre um livro recém lançado Brasil abre algumas caixas pretas das ligações entre o alto tucanato e a CIA.

LIVRO ACUSA FHC DE RECEBER MILHÕES DE DÓLARES DA CIA

Mal chegou às livrarias e Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura — Frances Stonor Saunders (*), Record, tradução de Vera Ribeiro — já se transformou na gazua que os adversários dos tucanos e neoliberais de todos os matizes mais desejavam. Em mensagens distribuídas neste domingo pela internet, já é possível perceber o ambiente de enfrentamento que precede as eleições deste ano. A obra da pesquisadora inglesa, ao mesmo tempo em que pergunta, responde: Quem “pagava a conta” era a CIA, a mesma fonte que financiou os US$ 145 mil iniciais para a tentativa de dominação cultural e ideológica do Brasil, assim como os milhões de dólares que os procederam, todos entregues pela Fundação Ford a Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do país no período de 1994 a 2002. O comentário sobre o livro consta na coluna do jornalista Sebastião Nery, na edição deste sábado do diário carioca Tribuna da Imprensa: “Não dá para resumir em uma coluna de jornal um livro que é um terremoto. São 550 páginas documentadas, minuciosa e magistralmente escritas”. “Consistente e fascinante” (The Washington Post). “Um livro que é uma martelada, e que estabelece em definitivo a verdade sobre as atividades da CIA” (Spectator). “Uma história crucial sobre as energias comprometedoras e sobre a manipulação de toda uma era muito recente” (The Times).

DINHEIRO DA CIA PARA FHC

“Numa noite de inverno do ano de 1969, nos escritórios da Fundação Ford, no Rio, Fernando Henrique teve uma conversa com Peter Bell, o representante da Fundação Ford no Brasil. Peter Bell se entusiasma e lhe oferece uma ajuda financeira de 145 mil dólares. Nasce o Cebrap”. Esta história, assim aparentemente inocente, era a ponta de um iceberg. Está contada na página 154 do livro “Fernando Henrique Cardoso, o Brasil do possível”, da jornalista francesa Brigitte Hersant Leoni (Editora Nova Fronteira, Rio, 1997, tradução de Dora Rocha). O “inverno do ano de 1969” era fevereiro de 69.

FUNDAÇÃO FORD

Há menos de 60 dias, em 13 de dezembro, a ditadura havia lançado o AI-5 e jogado o País no ponto alto do terrorismo de estado pós-golpe de 64, desde o início financiado, comandado e sustentado pelos Estados Unidos. Centenas de novas cassações e suspensões de direitos políticos estavam sendo assinadas. As prisões, lotadas. Até Juscelino e Lacerda tinham sido presos. E Fernando Henrique recebia da poderosa e notória Fundação Ford, uma primeira parcela de 145 mil dólares para fundar o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). O total do financiamento nunca foi revelado. Na Universidade de São Paulo, sabia-se e se dizia que o compromisso final dos americanos era de 800 mil a um milhão de dólares.

A SERVIÇO DA CIA

Os americanos não estavam jogando dinheiro pela janela. Fernando Henrique já tinha serviços prestados. Eles sabiam em quem estavam aplicando sua grana. Com o economista chileno Faletto, Fernando Henrique havia acabado de lançar o livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, em que os dois defendiam a tese de que países em desenvolvimento ou mais atrasados poderiam desenvolver-se mantendo-se dependentes de outros países mais ricos. Como os Estados Unidos. Montado na cobertura e no dinheiro dos gringos, Fernando Henrique logo se tornou uma “personalidade internacional” e passou a dar aulas e fazer conferências em universidades norte-americanas e européias. Era “um homem da Fundação Ford”. E o que era a Fundação Ford? Um dos braços da CIA, o serviço secreto dos EUA.

MILHÕES DE DÓLARES

1 – “A Fundação Farfield era uma fundação da CIA… As fundações autênticas, como a Ford, a Rockfeller, a Carnegie, eram consideradas o tipo melhor e mais plausível de disfarce para os financiamentos… permitiu que a CIA financiasse um leque aparentemente ilimitado de programas secretos de ação que afetavam grupos de jovens, sindicatos de trabalhadores, universidades, editoras e outras instituições privadas” (pág. 153).

2 – “O uso de fundações filantrópicas era uma maneira conveniente de transferir grandes somas para projetos da CIA, sem alertar para sua origem. Em meados da década de 50, a intromissão no campo das fundações foi maciça…” (pág. 152). “A CIA e a Fundação Ford, entre outras agências, haviam montado e financiado um aparelho de intelectuais escolhidos por sua postura correta na guerra fria” (pág. 443).

3 – “A liberdade cultural não foi barata. A CIA bombeou dezenas de milhões de dólares… Ela funcionava, na verdade, como o ministério da Cultura dos Estados Unidos… com a organização sistemática de uma rede de grupos ou amigos, que trabalhavam de mãos dadas com a CIA, para proporcionar o financiamento de seus programas secretos” (pág. 147).

4 – “Não conseguíamos gastar tudo. Lembro-me de ter encontrado o tesoureiro. Santo Deus, disse eu, como podemos gastar isso? Não havia limites, ninguém tinha que prestar contas. Era impressionante” (pág. 123).

5 – “Surgiu uma profusão de sucursais, não apenas na Europa (havia escritorios na Alemanha Ocidental, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Dinamarca e na Islândia), mas também noutras regiões: no Japão, na Índia, na Argentina, no Chile, na Austrália, no Líbano, no México, no Peru, no Uruguai, na Colômbia, no Paquistão e no Brasil” (pág. 119).

6 – “A ajuda financeira teria de ser complementada por um programa concentrado de guerra cultural, numa das mais ambiciosas operações secretas da guerra fria: conquistar a intelectualidade ocidental para a proposta norte-americana” (pág. 45).

(*) O nome correto da autora é Frances Stonor Saunders e não como está na capa do livro.

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