Não há nenhum problema em um livro ser divertido, né?, desde que seja bem escrito e com bons artifícios para a gente ficar preso à leitura. Um escritor não precisa tentar sempre escrever a bíblia. Por exemplo, várias histórias da incensada Mariana Enriquez — e eu sou dos que a adoram — são apenas isso: divertidos. Eu gostei demais deste As Willis, de Carlos Gerbase. Largava e pegava o livro novamente, para ler mais um capítulo. É preciso que haja livros assim, capazes de desviar nossa atenção da loucura diária e, se eles forem intrigantes e inteligentes, melhor. Ainda melhor se tiverem uma pitada de humor negro. E se incluir sexo, magnífico! Aqui tem tudo isso.
Originalmente, as Willis são espíritos de virgens que morreram antes de casarem e que aparecem no balé Giselle ou Les Willis, de Adolphe Adam. Giselle é um dos mais famosos balés românticos e costuma ser dançado na ponta dos pés, como manda a tradição. No argumento original, as Willis saem de suas tumbas à noite para atrair homens com a dança e levá-los à morte. O balé tem música bastante chata, mas, se esquecermos desta e dos bailarinos nas pontas dos pés, vai sobrar uma história perfeitamente gótica.
O gótico literário foi uma vertente do romantismo voltada para o obscuro. Fala de morte, insanidade, sonhos e demônios, coisas assim do tipo Frankenstein (1818), de Mary Shelley. A origem das Willis parece estar em Heine (1797-1856) que escreveu sobre uma lenda alemã em que os espíritos das noivas que morreram antes do casamento atraem seus noivos para a floresta, a fim de fazê-los dançarem até a morte. Acho que o nome deveria ser dito vilís (francês) ou vilis (alemão?) e não como o nome do ex-deputado Jean Wyllys, que não foi ameaçado exatamente por virgens.
As Willis tem quase tudo do gótico — claro, os cemitérios também se fazem presentes, no caso, o da Santa Casa em Porto Alegre. Não se preocupem, ninguém dança até morrer, não foi um spoiler, mas, obviamente, o autor baseou-se na história original e faz referências à tradição, apesar de desobedecê-la. Há uma Giselle na trama, há um Alberto apaixonado por ela — no original ele é Albrecht –, e há a Rainha das Willis, que se chama Myrtha em ambas as histórias. Tem também uma bailarina que se chama Margot (Fonteyn?).
Faço este “intermezzo culto” não para me mostrar nem para dizer que Gerbase copiou uma história existente. A história original é ínfima e há muito de invenção nas Willis de Gerbase, que também são virgens que morreram antes do casamento e que podem, sim, matar. E matam facilmente por serem belas e por se alimentarem de suas conquistas através de mecanismos não antropofágicos que não irei explicar por motivos óbvios. Estaria contando parte fundamental da história.
As Willis é um tremendo livro de entretenimento, passado todo em Porto Alegre. Eu me diverti bastante com a boa trama criada sobre a base que expliquei acima, A coisa funciona maravilhosamente. O livro não é sanguinolento, o bom humor perpassa toda a história. Há uma interessante dupla de policiais, uma dupla de irmãs Willis sensacionais e um pastor evangélico que é exatamente aquilo que se espera dele. E, já disse, a coisa funciona.
O livro é uma espécie de tese acadêmica muito livre, escrita por Irina, uma willi. Sabe-se que Gerbase é ou foi professor na PUCRS e que deve ter sofrido horrores com alunos e com o formato insípido das teses (opinião minha). Além de professor, Gerbase dirigiu e fez o roteiro de vários filmes e isto está claro no livro. Como numa boa série, ele consegue envolver o leitor, deixando para o final o desenlace de várias tramas. Eu engoli o livro rapidinho. E curti.
Recomendo!
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Marco da moderna literatura ocidental, Ulysses, de James Joyce, completou 100 anos de publicação em 2022. E completou bem vivo. Como muitas das grandes obras de arte, o Ulysses de James Joyce tem existência para além da página impressa. Prova disso são as festas anuais, os Bloomsdays, que ocorrem a cada 16 de junho, dia em que se passa a ação do romance em 1904. Trata-se de um livro que deixa obcecadas muitas pessoas, que acabam passando boa parte de seu tempo refletindo sobre suas páginas. O livro refere-se a tantas coisas, deixando tantas pontas soltas, que puxar uma delas pode trazer um novelo de cor inesperada. Poderíamos falar do fato de Leopold Bloom ser judeu e o novelo começaria por sua briga, num bar, com um antissemita. Mas poderíamos tocar nas conexões com a Odisseia de Homero e acabaríamos certamente considerações sobre o paralelismo entre os livros; ou sobre o homem-feminino que Bloom também representa e concluiríamos que esta é uma das primeiras desconstruções do macho; ou quem sabe sobre o verdadeiro paroxismo de invenções linguísticas promovido pelo autor para falar de uma possível loucura – dele. Mas não seria melhor falarmos sobre o monólogo ultra franco e moderno de Molly Bloom – uma verdadeira DR noturna em solilóquio? Ou ainda sobre o medo que o calhamaço de Joyce causa em algumas pessoas?
“Coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os eruditos ocupados por séculos, discutindo sobre o que eu quis dizer. Essa é a única maneira de garantir a imortalidade.” A postura de Joyce é irreverente, mas o fato é que Ulysses intriga de verdade. Ele desconcerta a sabedoria convencional, ignora crenças, ataca lugares-comuns, desafia padrões. Muitas das emoções e ações inseridas no romance são contraditórias e inquietantes.
É curioso, apesar de toda a erudição e de todos os enigmas e quebra-cabeças, Ulysses é um romance ao qual parece faltar sutileza, ao menos na superfície. Há águas profundas, mas elas estão sob uma série de coisas que parecem pouco literárias. É um texto nada empolado e que não tem relação com a literatura praticada no século XIX. Fica fácil imaginar a surpresa que causou em 1922.
A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é muito simples e humano. No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com o amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia. Leopold Bloom, vendedor, pensando em uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca, responde a carta recebida, quase leva uma surra de um antissemita, masturba-se na praia observando uma garota, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de indignação, lirismo e pornografia. Fim. Isso em apenas um dia. São 18 horas e 18 capítulos, sendo que cada capítulo tem estilo próprio, cada cena faz mil referências – os tais enigmas a que Joyce se referiu acima –, principalmente à Odisseia de Homero.
Este anti-épico por excelência fala muito sobre o fracasso do casamento dos Bloom, com Leopold e Molly finalmente reconhecendo suas responsabilidades no impasse. Molly, a substituta irônica da Penélope da Odisseia de Homero, fica, como sua contraparte clássica, em casa, tendo sido privada de relações sexuais com o marido por 10 anos, 5 meses e 18 dias após a morte do filho Rudy aos 11 dias de vida. Bloom sente-se impotente e desimportante. Em parte devido ao seu conteúdo sexual, o livro de Joyce foi processado por imoralidade em vários países. Há realmente um sentimento de desafio na decisão do autor de apresentar o prazer sexual em uma obra publicada em 1922. E, de fato, os enigmas do romance criaram debates contínuos. O que será de Molly e seu amante Blazes Boylan? Leopold, como o Ulysses de Homero, colocará sua própria casa em ordem? Molly e Leopold conseguirão fazer reviver seu relacionamento moribundo? Essas perguntas podem facilmente se tornar obsessões. Este, é claro, é um resumo muito parcial de um livro que é todo um mundo.
Mas vamos puxar com cuidado a primeira das pontas. Elas parecem montar umas por cima das outras, procurando ganhar importância. Acho que os 18 estilos narrativos têm papel fundamental. Acho que o paralelismo com a Odisseia é lindo. O labirinto das referências nem se fala. Acho que o homem feminil Leopold Bloom, cujo comportamento causa até hoje tanta discussão — um homem sensível, que fazia café para a mulher com a qual não tinha mais relações sexuais, que se preocupava com os filhos, que tolerava o amante em sua cama na sua ausência, isso em 1904 –, é um tipo fundamental, claro. Ou será que as piadas grossas, os incríveis e coloridos trocadilhos, a falta de limite entre erotismo, pornografia e higiene é ainda mais central no livro? Por exemplo, na cena com Gerty MacDowell em que ele se masturba na praia, embevecido pela beleza da moça, ela vê o que ele faz (sem problemas), ele ejacula nas calças (OK), mas Joyce vai além: Bloom caminha, a coisa seca, gruda. o prepúcio fica fora do lugar, ele precisa ajeitar as coisas no púbis. Vamos por este caminho?
Também quando Molly — à noite, sempre à noite, antes de dormir, como as mulheres gostam (pedimos escusas pela joyceana fraqueza) — faz sua DR em solilóquio, num furioso fluxo de consciência, o autor não recua, usa todos os termos e diz o que até em nossos dias ainda evitamos. Esta é uma das razões pelas quais todos nós dizemos “sim, eu digo sim” à Ulysses. Tem muito sexo no romance. Ele não é nada conservador. Ele totalmente diz na cara. E o mundo parece não ter evoluído suficientemente para absorvê-lo. Enquanto não o fizer, as quase mil páginas do livro permanecerão pulando, vivas, na nossa frente.
Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enormes, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela se expõe ao leitor de uma forma muito transgressora — mas está sozinha enquanto o marido dorme ao lado — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo os pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a literatura ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o do monólogo de Molly, é revelada sua promiscuidade, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, de muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo ao fundo, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita (e excita) Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco à existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo livro exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, ideias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos, “edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes”.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana.
As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. Fico fascinado também pelos 18 estilos diferentes, os 18 “escritores diferentes” chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX.
Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações.
Voltemos ao assunto da censura. O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. Mas havia outra cópia, menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código, algo vital para o inimigo…
Suas características satíricas, viscerais e brutalmente realistas, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, pela louca musicalidade e certamente pela descontrolada potência semântica.
Sim, ainda é o mais extravagante, divertido e sujo dos livros.
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* Milton Ribeiro é escritor, jornalista e livreiro, proprietário da Livraria Bamboletras em Porto Alegre / RS.
Cora e Julia foram mais do que simples amigas durante a faculdade. A relação foi subitamente interrompida pela partida de Julia para Montreal. Tempos depois, Cora também foi ao exterior a fim de estudar moda em Paris. Certo dia, Cora liga seu computador e lá está um “Oi, tudo bem?, há quanto tempo” de Julia. Cora responde e logo está passeando pelo quarto de Julia através do Skype. Numa das cenas mais belas de Todos nós adorávamos caubóis, Julia caminha pelo apartamento, mostrando à Cora suas coisas e a neve de Montreal. Entre outras coisas, ela mostra, através da janela, o semáforo da esquina, que passa do vermelho para o verde, permitindo aos carros se moverem entre as árvores secas da cidade.
Elas combinam o reencontro. Pretendem fazer a viagem sempre adiada pelo interior do Rio Grande do Sul. A viagem seria feita sem planejamento, apenas com um mapa levando-as de uma cidade a outra. As duas trazem bagagens e expectativas distintas. Cora viera para assistir o nascimento do irmão — seu pai recém casara com uma jovem de sua idade, algo que Cora parece aprovar com reservas –, enquanto Julia parece estar ambivalente em relação ao namorado estrangeiro. O que uma espera da outra?
Enquanto isso, vagam sem objetivos pelo interior gaúcho. Um interior que não aparece da forma gaudéria, alegre e hospitaleira das histórias do 20 de setembro. Não que apareça hostil, apenas mostra-se estranho, sem pontos de contato com a urbanidade das moças. Mesmo que Julia tenha nascido em Soledade, elas são e estão de fora.
Após Pó de Parede e Sinuca embaixo d`água, o excelente Todos nós amávamos caubóis é o terceiro livro publicado pela porto-alegrense Carol Bensimon. Ela falou ao Sul21 no bar Tuim, tradicional local da Gen. Câmara. Por algum motivo, o formalismo habitual das entrevistas foi logo abandonado, tanto que a primeira interrogação foi desferida por Carol e não pelo entrevistador, o que transformou tudo numa agradável conversa.
Sul21: A ideia de falar contigo surgiu quando Todos nós adorávamos caubóis chega a Antônio Prado. Mais exatamente quando Cora e Julia saem da cidade e vão até aquela estátua, a dos caras que introduziram a bateria na música gauchesca.
Carol Bensimon: Não é que outro dia um cara no Facebook me compartilha uma foto com o monumento, botando: “Ah, a Carol fez uma bela homenagem” e daí os caras da música gaudéria começaram a comentar. Mas a ideia da entrevista veio dali por quê?
Sul21: Porque a literatura e o jornalismo gaúcho não costuma ser irônico. A tua referência não é especialmente ácida, mas também não é nada laudatória. Naquela cena tu achas graça da estátua, isso está na cara. Mas comecei a entrevista respondendo uma pergunta tua…
Carol Bensimon: Sim, a personagem faz gracinha com a história da bateria na música gaudéria. Meus personagens têm claramente uma visão urbana que estranha o interior, disso eu não tenho dúvida. Um jornal do Recife escreveu algo sobre “uma visão muito elitizada, uma visão muito burguesa”, me acusou de estar tripudiando sobre aquelas pessoas. Não é nada disso, mas é óbvio que minhas personagens são essencialmente urbanas, sentem-se mais ligadas e melhor numa grande capital do mundo do que propriamente no interior do seu estado. Trabalhei esses estranhamentos. Acho que, excetuando-se o romance histórico, a literatura das últimas décadas não está olhando muito pro interior.
Sul21: Na verdade, eu andei lendo Assim na Terra, do Metz. Ele fala de forma muito poética do homem do campo, é uma viagem de toda a vida sobre um cavalo, por assim dizer. O teu livro contrasta muito neste aspecto. Há a estátua, depois tu falas de toda a energia posta na customização de carros, da baixa qualidade dos vinhos brasileiros, de Cambará — “onde as pessoas caminham entorpecidas” –, do deserto de Minas de Camaquã, há a briga entre a Julia e o irmão fazendeiro.
Carol Bensimon: Uma coisa que descobri, quando me dispus a fazer essas viagens é que, na verdade, as pessoas destas cidades do interior não estão muito interessadas em “serem do interior”. Seu ideal é o de se afastar da aura de bucolismo. Para elas, quanto mais urbanas elas parecerem, melhor. Por exemplo, as casas históricas de Antônio Prado… Lá, houve uma grande polêmica que não está no livro. Nos anos 90, aquelas casas foram tombadas. São casas de madeiras enormes, bem típicas. As pessoas não queriam mantê-las. Teve gente que botou fogo na própria casa. O mesmo não aconteceu há pouco em Santo Ângelo? Queriam tombar várias casas e as pessoas estavam revoltadíssimas. O pessoal não tem muita consciência histórica. Querem derrubar e “modernizar” tudo.
Sul21: Acabam destruindo também uma possibilidade de turismo.
Carol Bensimon: Sim, a maioria das cidades é feia. São piores que Porto Alegre. Porto Alegre pelo menos é em parte arborizada. Essas cidades médias, como Santa Maria, não tem uma grande identidade visual.
Sul21: Qual é teu grau de interesse em urbanismo? Tu me escreveste no Facebook que estava lendo apenas livros de urbanismo.
Carol Bensimon: É uma coisa pessoal. Tanto que apareceu no meu primeiro livro (Pó de parede, 2008). Não urbanismo, mas arquitetura. Todos os contos eram centrados em coisas arquitetônicas. Meu interesse mais em cidades deve ter vindo da minha experiência em Paris. Lá há um pensamento, um planejamento que está ausente no Brasil.
Sul21: Vamos voltar ao livro. A questão da estrutura.
Carol Bensimon: A estrutura é mais ou menos linear. É a viagem, mas dentro disso tem rememorações o tempo todo. Acho que é um pouco do meu estilo. Eu queria que ficasse essa coisa para a frente e para trás. Não estou inventando nada de novo. É mais ou menos como funciona a memória, apesar de não ser como um fluxo de consciência. Vou montando.
Sul21: Como um mosaico?
Carol Bensimon: Tu achas que funcionou como um mosaico? Onde tudo fecha?
Sul21: Não é que feche. É um livro construído com cuidado. Eu queria saber se tu organizas a colocação dos mosaicos ou se tu os joga por livre-associação.
Carol Bensimon: Via de regra, as memórias de cada capítulo estão relacionadas com os acontecimentos presentes. Mas algumas coisas foram por tentativa e erro. Por exemplo, onde colocar a parte do pensionato? A festa à fantasia também foi uma cena que eu não sabia muito bem em que ponto ela deveria ser revelada.
Sul21: E Thelma e Louise?
Carol Bensimon: Quando eu estava escrevendo o livro, li uma obra teórica sobre road movies. O livro é Driving Visions, de David Laderman. Ele fala que essas narrativas de estrada foram inauguradas com On the road, de Kerouac. Mas aí o cinema se apropriou do gênero. São analisados vários filmes divididos por décadas e vai mostrando como o gênero muda. O fato é que raramente as mulheres protagonizam esse tipo de narrativa. Thelma e Louise é quase inaugural nesse sentido. Mas fico muito intrigada com o final do filme. Dá pra fazer uma leitura feminista e também o contrário. E vários desses filmes acabam em morte. Eu tinha preocupação em não fazer um final assim.
Sul21: Mas não é um livro alegre, na minha opinião.
Carol Bensimon: Não sei. Acho que ele tem um quê de esperança. Tem a coisa da viagem, do movimento e da ideia de liberdade. Acho luminoso. Mas, também concordo, lá tem uma coisa melancólica: a questão de que a viagem acontece com anos de atraso.
Sul21: Sim, há muita coisa fora do lugar. A hora escolhida para a viagem não é adequada, segundo a família. Quando Julia encontra sua família é um horror completo. Mas me fala sobre isso aqui na página 19. “Era como se você passasse meses cogitando pintar o cabelo de azul, e de repente percebesse que tanto tempo cogitando, analisando, imaginando, tinha acabado por satisfazer por completo seu desejo de rebeldia”. Tu já tinhas visto Azul é a cor mais quente quando escrevesses isso?
Carol Bensimon: (risadas) Hoje eu pensei nisso. Quando escrevi, não existia o Azul cor mais quente. O filme apareceu em maio em Cannes. Ele ganhou o festival, li a história e fiquei muito empolgada para ver o filme. Mas nessa época eu já tinha terminado o livro. Então é casual. Pura coincidência. Mas mesmo se não tivesse isso do Azul, já daria pra fazer uma certa conexão com o filme. Eu achei muito universal, me identifiquei. Se tu não tiveres preconceito, é uma história de amor. Por exemplo, aquela cena das duas no café, a tentativa de reconciliação. Aquilo é foda. E quem nunca vivenciou uma cena daquelas? Tu vais lá com a pessoa e suplicas mesmo.
Sul21: Onde entra, na tua opinião, a questão da militância gay?
Carol Bensimon: Não sei se ele entra na militância gay. Eu acho que ele entra mais na experiência particular de quem vai pegar o livro e se identificar com aquilo em termos de sexualidade feminina ambígua. Acho que a gente está num momento posterior a isso, desse rótulo de literatura “gay”. Talvez fosse um escândalo lançar o livro há 10, 15 anos. Eu tenho uma pequena lista de filmes onde duas gurias se envolvem. Pequena lista de três. (risadas). Tem um filme argentino chamado El niño pez, de Lucia Puenzo. Ela também fez aquele filme que se chama XXY. Nos dois filmes, ela trabalha essa questão da sexualidade, de gênero. Depois tem um filme ótimo, francês, chamado Lírios d’água, de Céline Sciamma. É um universo curioso porque são duas meninas que fazem nado sincronizado e uma delas está meio em negação e a outra sofre.
Sul21: Queria que tu comentasses a frase: “Minha atração pelo sexo feminino era uma doce aventura e ao mesmo tempo uma condenação ao mais claustrofóbico dos universos”.
Carol Bensimon: Vamos lá. Acho que a personagem vê o exercício de seu lado gay como uma certa transgressão. Ao mesmo tempo há uma limitação, prisão, sei lá como diz, um universo claustrofóbico. Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema. Ela fala nisso. Ela queria ter uma chance com qualquer pessoa que encontrasse na rua. Com a frase, ela também se refere à questão familiar. Não chega a ser o drama do livro, mas a família não encara os fatos. O livro fala mais das questões mal resolvidas entre Cora e Julia. Em nenhum momento a Cora chega a confrontar a Julia. Nem no passado, nem na viagem. Não há do tipo ”Tá! O que é isso que a gente tá tendo?”. Mantém-se uma ambiguidade que tem o seu lado aventureiro e seu lado angustiante.
Sul21: Tu falaste numa sexualidade mais fluida que seria uma característica de nosso tempo. Tu achas que esse tipo de sexualidade fluída pode ocorrer entre homens, assim como ocorre entre mulheres?
Carol Bensimon: Não, é mais difícil. Porque o papel está mais delimitado no gênero masculino. É uma coisa cultural. As gurias experimentam. Namorar uma guria e daqui dois ou três anos ela estar casada, com filhos… Ninguém vai achar isso tão estranho assim. Com caras não acontece isso. É uma coisa cultural, simplesmente. Dia desses, assisti a um documentário francês sobre bissexualidade. A maioria das entrevistas eram feitas na França, e aí já temos uma dimensão totalmente diferente, por exemplo, da bissexualidade masculina, até porque vários caras que participavam eram pessoas do ramo das artes e se declaravam bissexuais. Eram figuras públicas e tal. Certamente isso ainda não chegou ao Brasil. A noção de masculinidade varia de país para país. O francês pode parecer efeminado e ser hétero.
Sul21: Há preconceito das lésbicas contra as bi?
Carol Bensimon: Sim, bá, total. A gente tem essa sigla LGBT e, nos anos 90, lembra que era só GLS? O B está ali só como uma letra. Acho que há um preconceito forte dentro da comunidade, em vários sentidos. Primeiro, parece que os bissexuais são meio que “traidores” do ponto de vista das feministas. Então podem ser mais ainda entre as lésbicas feministas. Que mais posso dizer sobre isso? Há também este rótulo de promiscuidade… Vários gays e lésbicas acham que bissexuais são gays enrustidos que não saíram do armário.
Sul21: Há meninas que ficam com gurias em festas, mas se dizem hétero…
Carol Bensimon: Aí acho que entra outro fator que é muito contemporâneo, que é a coisa das gurias ficarem para chamar atenção dos homens. Aí é muito confuso. Há diferenças sobre como são vistas as mulheres bi e os homens bi. O senso comum acha legais mulheres bi – tem a ver com a pornografia. Parece que as mulheres estão fazendo um espetáculo pros caras. São como nos filmes pornô. As mulheres ficam se pegando, mas só enquanto o cara não chega pra comer. É sempre uma questão de preliminares. A meninas a que tu te referiste são chamadas pelo termo heteroflexíveis. A pessoa se considera hétero mas as vezes ela fica com o mesmo gênero. Então, várias dessas meninas das festas podem ser heteroflexíveis, mas não se consideram assim.
Sul21: Evidentemente, o nome da narradora, Cora, é uma brincadeira com teu nome, né? Coloca o L e muda o lugar da vogal e chegamos à Carol.
Carol Bensimon: Não, não foi de propósito. É sério.
Sul21: Tu vais querer me vender essa??
Carol Bensimon: É que se eu contar a história de verdade vai ser pior ainda.
Sul21: Vai ter que contar!!!
Carol Bensimon: Em off só, realmente não tem nada a ver.
(…)
Sul21: Tu me falaste, também em off, que tinha algum plano pro livro de virar mini-série ou filme.
Carol Bensimon: Eu vendi os direitos. Eu vendi para a RT Features do Rodrigo Teixeira. Ele compra bastante coisas contemporâneas. Ele comprou o Sinuca embaixo d`água.
Sul21: Não o Caubóis?
Carol Bensimon: O Caubóis também. Mas primeiro ele comprou o Sinuca. Ele comprou Caubóis antes do livro ser escrito.
Sul21: Isso tem tempo de validade?
Carol Bensimon: Se não me engano é um contrato de dez anos. É um pouco angustiante, porque não sei se virar mesmo filme. As pessoas dizem que daria um puta filme. É difícil saber quando vai sair. O Sinuca ainda não saiu. Mas tu viu o book trailer?
Sul21: Não.
Carol Bensimon: Sério?
Sul21: Eu vi só o book trailer do livro do Marcelo Backes, O último minuto, muito bom.
Carol Bensimon: Tu tens que ver. É incomparável, é uma coisa muito foda que a Liliana Sulzbach fez. É um filme. É um trailer de filme. E vê-lo deu ainda mais vontade de ver em filme. Até porque não sei até quando aqueles lugares vão durar.
Sul21: Como é que é Minas de Camaquã? O que é aquilo? É abandonado? Tipo a Paraty de antes dos anos 70?
Carol Bensimon: A comparação não é muito válida. Era uma cidade de mineração que tinha vivia da exploração de cobre desde o século 19, com os belgas.
Sul21: Onde fica isso?
Carol Bensimon: Entre Bagé e Caçapava. O Baby Pignatari era o dono das minas da Companhia Brasileira do Cobre (CBC). Eles construíram essa cidade pros mineiros e pras pessoas que trabalhavam. Então foi uma cidade planejada. Toda ela é circular, as ruas são circulares. Então num primeiro raio tu tens as casas dos engenheiros, depois as dos mineiros, etc. As casas vão ficando mais simples. Acho que a população era maior do que a de Caçapava. Lá tinha cinema, Caçapava não. E então acabou o cobre. Quebrou a Companhia. Daí, nos anos 2000, houve um leilão e eles venderam aquelas casas por um preço ridículo, 500 reais cada uma. Então essas casas voltaram a ser ocupadas como casas de fim de semana das pessoas que moram em Caçapava ou Bagé.
Sul21: Mas tem alguma coisa de atrativo lá?
Carol Bensimon: Sim. São aproximadamente 500 habitantes. A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe? O local tem uma aura, uma personalidade. Irei novamente para Minas de Camaquã agora no final de janeiro.
Sul21: Como é que tu descobriste?
Carol Bensimon: Uns amigos me falaram. Porque ali perto tem umas formações rochosas que chamam de guaritas. Eles começaram a falar desse lugar. E daí eu conheci uma leitora de Caçapava que entrou em contato comigo e quando eu falei das Minas ela disse que a família dela tinha casa lá e que poderíamos fazer uma visita. Foi a primeira vez. No book trailer, fomos pra lá. Tu me perguntaste sobre os atrativos. O atrativo é a paisagem que é muito massa, tem lugares pra subir. Há o rio Camaquã que passa ali e tem toda essa estrutura abandonada. As casas têm certa manutenção, mas os prédios da mineração estão bem detonados.
Sul21: E os OVNIs de lá…?
Carol Bensimon: Ah, sim, tem a sede do projeto Portal lá.
Sul21: Tem mesmo?
Carol Bensimon: Sim. É enorme. Pavilhões.
Sul21: Tu conversaste com os caras?
Carol Bensimon: Não. Nunca vi ninguém lá.
Sul21: Mudando utra vez de assunto, me diz uma coisa, o que tu achas das oficinas literárias? Tu participaste da oficina literária do Assis Brasil, tu achas que ela acrescentou algo pra ti?
Carol Bensimon: É sempre meio que clichê essa resposta, sabe? Porque encurtou caminhos talvez. Indicou leituras, apresentou teorias. Eu poderia ter intuído tudo, mas talvez demorasse mais tempo assim. E, depois, talvez o mais importante seja a troca com o Assis e com os colegas, porque chega um momento em que uma pessoa escreve um conto e todos têm que analisar aquele conto. A aula inteira debatendo. Antes disso tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido é importante.
Sul21: Como tem sido a repercussão do livro?
Carol Bensimon: Não sei se tu conheces o Skoob, aquela rede social? Às vezes entro pra olhar. Primeiro tem uma discrepância absurda entre o número de homens e mulheres que estão lendo o livro. Mulheres são mais de 80%. Se pegar meus outros livros, é mais equilibrado. E tem esses blogs com resenhas. Blogs sobre livros, muitos de fantasia. Eles leem o livro e gostam, é curioso. Mas um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível. Tudo bem.
Sul21: Eu fico surpreso de alguém achar previsível, porque o previsível é quando tu provocas um conflito e dá um final esperado. Não é o caso do teu livro. E esse negócio da música no livro? Tu usas como recurso expressivo ou o quê? A Cora num momento diz “que as músicas gaudérias estão tão longe dela quanto a música celta, batuques aborígenes “.
Carol Bensimon: Eu acho que eu uso a música um pouco como frustração, porque eu queria que o livro tivesse trilha sonora. Então cito uma série de músicas. Inclusive dou opiniões do tipo: “essa música abre o melhor disco do Led Zeppelin”. Tem um pouco a ver com o processo criativo. Eu postei uma playlist no Facebook e fez um tremendo sucesso, não sei por quê.
Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque — que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Em super resumo, estas são as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria.
Pois então abrimos o Ulysses de Joyce e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, não é nada fiel. Bloom é um Ulisses nada heróico, é antes um judeu irlandês de vida comum, que sabe das traições de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue.
Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.
O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.
Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente abordagens sexuais inteiramente diversas de tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas e masturbatórias. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é mais pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Ulysses é um texto que procura minar as noções de gênero. O romance não promove a superioridade masculina, mas sim eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde a noção de gênero com a criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, está fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Bloom comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”. Também, como talvez uma mulher o fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela veja seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que, na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. Antes do famoso monólogo de Molly, Bloom recapitula o primeiro encontro sexual com a mulher, em consonância com que já sabíamos: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca).
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o famoso monólogo de Molly, o leitor entra nos pensamentos dela na cama ao lado de Bloom, que dorme ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de família. Quando lembra da amamentação da filha, ela recorda que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para ele chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser a provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil.
Porém, em qualquer hipótese, o texto de Joyce afunda e afunda a masculinidade.
Todo ano é a mesma coisa. Ainda bem. Desde o final da década de 20 do século passado, sempre no dia 16 de junho, um número crescente de leitores e admiradores de James Joyce reúnem-se para celebrar o autor de Ulysses (1922), obra que se passa no dia 16 de junho de 1904. Naquelas quase mil páginas, há sexo por todo lado e, em uma palestra que dei para o Bloomsday de 2012, tratei desse assunto. Claro, não é uma palestra acadêmica e dei risadas com a primeira pergunta que surgiu após a mesma: “Já assisti mais de dez palestras em Bloomsdays, porque só me diverti nesta aqui?”.
Abaixo, está todo o texto de preparação que escrevi para aquele dia.
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A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Como escreve Idelber, naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
A imagem ao lado pode ser eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não omemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. A segunda tradução foi a da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
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Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heroico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
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Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
NORA BARNACLE
Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast, não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.
Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus:
Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.
O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.
Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D. H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.
Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Poderíamos definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Ulysses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”.
É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo, há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.
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Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana..
O filme Diário de um Jornalista Bêbado reúne algumas importantes celebridades. A primeira é o autor do livro que deu origem ao filme, Hunter S. Thompson (1937-2005). Thompson não é apenas o autor do livro The Rum Diary, mas também um dos jornalistas que criou o gonzo. O jornalismo gonzo é um estilo de narrativa jornalística ou cinematográfica onde o autor abandona a objetividade ou o distanciamento, misturando-se à ação, argumentação ou enredo. Além de Thompson, o diretor Bruce Robinson é uma dupla ou tripla celebridade. Diretor de cinema de mão cheia, roteirista e dramaturgo de sucesso, Robinson também é ator – muitos devem lembrar-se dele como o ator principal do clássico A História de Adèle H., de François Truffaut. Como artista de múltiplos talentos, Robinson é competente porém bissexto em tudo o que faz, tanto que dirigiu apenas quatro filmes nos últimos 25 anos. E a terceira celebridade é o ator que encarna Thompson, Johnny Depp, que dispensa apresentações e que acumula em si o fato de ter sido amigo pessoal do jornalista. Em 1998, Depp atuou na adaptação de outro livro de Thompson, Medo e delírio (Fear end loathing in Las Vegas), lisérgico filme de Terry Gilliam.
Para além do jornalista e escritor, Thompson ficou conhecido pelo consumo intensivo de bebidas alcoólicas, LSD, mescalina e cocaína, entre outras substâncias. Também era sobejamente conhecido seu amor às armas de fogo, 0 ódio a Richard Nixon e o constante combate ao autoritarismo. Sofrendo graves problemas de saúde, cometeu suicídio em 2005, aos 67 anos.
O termo “gonzo” foi criado por Bill Cardoso, repórter do Boston Sunday Globe, para se referir a um artigo de Thompson. Segundo Cardoso, a palavra seria uma gíria irlandesa do sul de Boston para designar o último homem em pé após uma bebedeira generalizada. Por exemplo, a reportagem Fear and Loathing in Las Vegas — lançado em livro no Brasil em 1984 como Las Vegas na Cabeça – , era planejado como uma matéria sobre uma corrida no deserto, a Mint 400, que fora encomendada pela revista Rolling Stone. Porém Thompson gastou todo o dinheiro com drogas e álcool, fez dívidas, destruiu quartos e fugiu sem pagar. Em lugar da matéria que deveria escrever — sobre um evento esportivo — , o resultado foi a descrição de um ambiente, digamos, bastante distorcido pelo original ponto de vista do autor.
O jornalismo gonzo costuma favorecer o estilo em detrimento da realidade a fim de alcançar outro tipo de precisão, ou de imprecisão, permeada pelas experiências pessoais e as emoções do autor, fornecendo um contexto parcial — apesar de profundo — do evento ou tema que está sendo coberto. O equilíbrio e equidistância da edição são deixadas de lado em favor de uma abordagem participativa. A personalidade e a opinião do autor interagem com o tema e o uso de citações, sarcasmo, humor e palavrões é comum.
Thompson baseou seus trabalhos no conceito de William Faulkner de que “a ficção é frequentemente o melhor fato”. Apesar de Thompson não ter criado ficção, ele sempre fazia uso da sátira e do exagero em seus textos. O termo “gonzo” também é muitas vezes utilizado pejorativamente para descrever uma espécie de fluxo de consciência nada joyceano, regido menos pela erudição do que pelo álcool e as drogas. Na verdade, o New Journalism proposto por Thompson é uma radicalização do já existente jornalismo literário, uma abordagem que se utiliza da literatura, da arte e do humor negro a fim de afrontar o senso comum americano.
Tom Wolfe afirmou em entrevista que a cena jornalística entre os anos 60 e 70 estava cheia de literatos em busca de escrever “o grande romance”. O emprego numa redação era algo passageiro, algo que lhes daria inspiração para este texto seminal. Wolfe descreve aquele ambiente como “um enxame de fantasias fervendo, proliferando no húmus do ego da América”. Foi neste contexto que prosperou o talento de Thompson.
Obviamente, as tentativas de Thompson seriam ignoradas se ele fosse um escritor menor. Não era o caso. De escrita exagerada e sempre imerso no ambiente da notícia, Thompson era dotado de uma visão artística dos fatos que se aliava a um notável talento descritivo. Recorria muitas vezes às hipérboles, como dissemos. Thompson costumava fazer-se acompanhar não de um fotógrafo, mas de um ilustrador. Uma lente seria realista demais. Então, o desenhista Ralph Steadman dava-lhe um gênero de apoio que nenhum fotógrafo obteria, o de adaptar-se perfeitamente ao texto, vendo os acontecimentos sob a perspectiva dos exageros e da literatura do autor. Seus textos giravam basicamente sobre sexo, drogas, política e esportes – raramente saía deste quarteto – e habitualmente eram iniciados por uma citação literária, fruto de uma memória digna de outro grande jornalista que consumia toneladas de álcool, Christopher Hitchens. Ele também não recusava as aspas e travessões para explicitar diálogos. Como um romance.
O filme de Bruce Robinson é consistente e bastante fiel ao livro e à personalidade de Thompson. Paul Kemp é evidentemente um alter ego do autor. Assim como Kemp, Thompson foi a Porto Rico no começo dos anos 60 para trabalhar como jornalista num periódico que logo fechou. De início é complicado ver em Johnny Depp, de 48 anos, um jovem jornalista de menos de 30 anos, mas sua atuação é tão convincente que esquecemos rapidamente do fato. Vendo vídeos de Thompson no YouTube, notamos o quanto não são casuais os tiques nervosos de Deep no filme de Robinson. Deep era efetivamente íntimo do jornalista, tanto que foi ele quem incentivou a publicação de The Rum Diary, escrito nos anos 60 e só publicado em 1998.
A história é simples: Paul Kemp candidata-se a uma vaga num jornal de San Juan, Porto Rico. Sempre bêbado e provavelmente com o mercado fechado para ele nos EUA, Kemp é admitido, recebendo a missão de escrever a coluna de horóscopo. Então, é convidado por um investidor americano para auxiliar em um grande e abusivo empreendimento imobiliário. Ele escreveria textos que levariam a opinião pública a simpatizar com a mega-construção. Assim, ele passa a viver entre o trabalho, o frila, a péssima moradia que arranja, o interesse na mulher do investidor e o rum, principalmente o último. Várias cenas com seus colegas Sala e Moberg (Michael Rispoli e Giovanni Ribisi) são hilariantes, tanto pelas bebedeiras quanto pelas situações em que se metem. Como trata-se de um texto de juventude, Thompson ainda gira em torno do rum, sem experimentar as drogas presentes em Medo e Delírio, livro posterior e filme mais antigo.
Mas há uma cena que liga Medo e Delírio ao Diário. É quando Kemp experimenta ácido e, sob sua influência, vê o amigo Sala sob um formato delirante e engraçadíssimo. Se Medo e Delírio levava isso ao extremo, Diário de um Jornalista Bêbado encaminha o gonzo com maior sutileza, mas nunca sem defini-lo ou demonstrá-lo.
A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
Não lembro quem utilizou esta imagem, mas ela é bastante eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não comemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. Foi com ela que conheci o extraordinário romance. Até hoje, foram 21 edições e este Ulysses ainda está no catálogo da editora ao preço de R$ 80. Li o livro aos 22 anos, quando muita gente dizia que era um livro para ser lido apenas aos 40, com maior vivência, maturidade, etc. Para mim, naquela idade, seria absolutamente incompreensível. Não foi, mas o mérito não foi meu. Ulysses não um livro fácil, mas sua inacessibilidade é um mito. Foi com a tal maior vivência que li a segunda tradução, da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. A edição é da Objetiva e custa dez centavos a menos que a da Civilização Brasileira. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. O preço é simpático, apenas R$ 47. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
Abaixo, a primeira tradução francesa do romance com autógrafo do autor. Aliás, esta tradução foi revisada por Joyce. O livro me foi emprestado por seu dono, o poeta e romancista Fernando Monteiro.
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Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heróico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
Epígrafe para o próximo texto:
Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
Fonte: Copiado do site da Rádio Tabajara (banhos de audiência), de São Benedito (CE).
Pesquisa comprova que mulheres não fazem sexo apenas por amor
O papinho mole de que mulher só faz sexo quando ama é uma daquelas patacoadas que nem deveriam existir. Mulher transa quando sente tesão, vontade, desejo — igualzinho aos homens. Mulheres buscam prazer e não deveriam ter nenhuma vergonha disso.
No livro “Why Women Have Sex?”, Cindy Meston e David Buss, psicólogos da Universidade do Texas, descobriram 237 motivos pelos quais mulheres resolvem ir pra cama com um cara. E o amor não aparece nem como último colocado dessa disputa!
Alguns dos motivos são melhorar a autoestima, deixar o cara seguro, fazê-lo acreditar que a relação vai bem, conseguir uma promoção, por dinheiro ou drogas — na lista também aparecem as tristes opções “porque são forçadas ou violentadas”, o que não deveria existir nunca! Outras das inspirações para o momento são vingança, agradecimento e tédio.
A novidade do comportamento feminino — que nem deveria ser tão novidade assim — já era esperada pelos pesquisadores, que a chamam de “benefícios genéticos”. Geneticamente as mulheres buscam um homem capaz de dar filhos e crescimento para o casal mas, hoje, nós preferimos seguir a razão e buscar outras coisas um pouco mais interessantes.
A página panamenha do Terra nos mostra uma “pesquisa” mas não diz onde, nem quando, nem quem foi pesquisado. Provavelmente criada dentro da redação do site, a “pesquisa” tem jeito de Revista Contigo, mas me diverte. Os comentários do ponto de vista feminino são da redação e os itálicos, meus.
1. Você é tão bom de cama.
Não só é uma questão de fazer o outro se sentir bem e massagear seu ego, mas uma forma de esconder que muitas vezes não nos sentimos satisfeitas e acreditamos que seja por nossa culpa. Essa mentira se confirma com o alto índice de mulheres que fingem seus orgasmos, o que demonstra a pouca comunicação que existe sobre esse assunto.
Já ouvi esta. Não acreditei, mas ao mesmo tempo surpreendi-me pensando em como é baixa minha auto-estima. Prova de que gostaria de ter acreditado… ou de que acreditei, claro.
2. Que simpática a sua ex.
Mesmo que nos consuma de ódio cada vez que encontramos com ela, ou quando ela está perto do nosso namorado, não podemos demonstrar insegurança e cair matando em críticas. Pretendemos ser uma boa parceira e isso inclui tolerância. E além disso, é melhor estar próxima dos inimigos para poder ter o controle.
Essa eu nunca ouvi. Até porque, considerando-se minha ex, seria uma mentira por demais descarada. Sobre a penúltima ouvi: “como é bonita”. E era verdade.
3. O problema sou eu, não você.
Parece mais uma mentira masculina do que feminina? Ainda que seja, a verdade é que as mulheres costumam dizer essa frase mais vezes do que os homens, já que possuem muito mais conflitos internos com relação à certeza dos sentimentos, sendo assim, diante de qualquer dúvida, acabam se escondendo por meio dessa mentira. É uma forma simples e reservada de sair de um problema.
Sim, sim, claro que ouvi. Mas – contrariamente ao que redação escreve – é uma frase que pede uma conversa e, toda a vez que esta evoluiu, grande parte da culpa acabou caindo no meu colo.
4. Que delícia a comida que você fez.
Ainda que seja o prato mais desagradável que você já tenha provado na sua vida, não existe a possibilidade de dizer que não gostou, já que essa é a única forma para que a nossa batalha para que ele nos ajude na cozinha não seja perdida. Diante de alguma crítica, ele jamais voltaria a se meter no nosso terreno. Melhor engolir, tomar água e fingir.
Acho que não ouvi como mentira. Só faço churrasco e acho que os elogios e críticas sempre foram sinceros.
5. Não está acontecendo nada.
Quantas vezes não usamos esta frase para evitar que ele perceba como estamos furiosas? Milhares. E só fazermos isso para não entrarmos em conflito ou quem sabe para que ele não se dê conta de que o que nos incomoda é algo que eles consideram grandes bobagens. O problema é que em algum momento explodimos e mais do que deveríamos.
Ouvi várias vezes. Porém, costumeiramente esta frase é dita de forma histérica ou mesmo gritada. Não é uma mentira, portanto; é uma ironia ou deboche.
6. Saia com seus amigos, não tem problema.
Ciumenta eu? Não, confio 100% em você. Mesmo que a gente morra de ciúmes e que seja impossível não pensar que entre homens seu namorado pode fazer mais de uma besteira, não podemos permitir que ele ou os amigos dele nos vejam como a “bruxa”. É fundamental que, acima de tudo, os amigos dele nos vejam como uma aliada. Dessa forma, teremos a aprovação deles e isso evitará que o incentivem a trair-nos com outra mulher.
Ouvi, mas acho que não foi pelos motivos acima. Costumava sair com os amigos para jogar futebol…
7. Tem um cara no meu trabalho que me paquera.
É óbvio que “esse homem” não existe, mas claro que ele não precisa saber disso. Esta é uma mentira clássica e que contamos nos mínimos detalhes para deixar claro que na vida não há nada 100% seguro e que ele deve estar constantemente nos conquistando, caso contrário podemos mudar para o outro lado.
E quando existe? No meu caso, há uns vinte anos, pude constatar inclusive por escrito. Depois de ficar indignado, reagi como o descrito acima e mais: numa festa com a presença do desgraçado, troquei muitos abraços com minha mulher, dei-lhe muitos beijos, nos acariciamos, fizemos brindes particulares… O outro lado sumiu. Ou será fui enganado e tudo era tudo mentira – até o bilhete?
8. Tenho que fazer tantas coisas, a gente se vê outro dia.
É inevitável, existem momentos em que queremos ficar sozinhas, caminhar, olhar as vitrines ou simplesmente não fazer nada. E não é que não queremos estar com ele nunca mais, só que há momentos em que preferimos a nossa própria companhia. É uma mentira ingênua para evitar que ele fique imaginando coisas.
Ouvi e acreditei.
9. Não, não fiz nada. Você acha que estou diferente?
Quer coisa melhor do que ele pensar que somos lindas e maravilhosas por natureza? Mesmo que tenhamos passado a tarde toda no salão de beleza, ido a um spa ou feito uma maquiagem diferente, mas natural, queremos que ele nos veja e se dê conta de como somos charmosas sem fazer o menor esforço. Além disso, sejamos honestas: por acaso eles se dão conta quando fazemos algo? Não, só nos vêem de modo diferente.
A frase que já ouvi era recriminatória, direta e verdadeira: “Você não notou nada de diferente em mim?!?!”
10. Não estou a fim de fazer sexo. Estou cansada.
Uma resposta que para eles é catastrófica, sobretudo quando vão direto para casa com a intenção de passar um bom momento junto da sua parceira. Há duas razões cruciais para esta mentira: uma, é que queremos fazê-lo esperar e aumentar ainda mais a sua excitação ou estamos com raiva dele por alguma coisa que aconteceu há pouco tempo e queremos castigá-lo.
Um clássico. Já ouvi, mas faz tempo. Nos últimos tempos, sou eu quem às vezes diz… E não é mentira, penso.
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Gostei dos comentários:
Ombundas: Este blog já foi melhor.
Eu: É verdade, já vimos melhores dias.
Flavio Prada: Eu acho que voce inventou a pesquisa sobre mentiras e inventou que a mesma foi inventada, pra que a gente pensasse que era algo inventado, mas nem tanto quanto é na verdade. Verdade?
Eu: Eu nunca minto, Flavio.
Fernando: Milton : Vê-se bem como para você, como para qualquer outro homem, é importante deglutir e ejacular. Mas adivinho que Milton Ribeiro não se resume nisso. Lembro-me do dia em que imitou, bastante bem, Mauro Castro (do TAXITRAMAS – está aqui nos seus links). Por isso eu, fazendo das tripas coração, continuo a visitar este seu blogue, na esperança de cá o encontrar em dias bons. Na esperança de o ver dar saída ao seu “talent de bien faire”.
Nina -Fenômenos: hahahahaha quer dizer entao que vc le Contigo??? Conta a historia direito, Milton. e “ja vimos dias melhores” foi demais!!! uhuahauhauah e nos achando q vc ia correr do tema “mulherzinha” do desafio fenomenal! bjs
Sandra: Fala baixinho, só para mim: aprendeu agora a notar quando ela corta meio centímetro do cabelo??? hahahahahahaha Beijos
Eduardo Lunardelli: O post esta ótimo, mas essa sua resposta ao comentário: já vimos dias melhores, superou todas!!! Hahaha. Muito bom! É isso aí, e vale para homens e mulheres…
Viva: Milton, melhor que a “pesquisa” (com cara de Revista Nova) foram as suas respostas. Adorei!
Moacy: De fato, como disse Viva, as respostas estão ótimas. Um abraço.
Acordei hoje com considerável dor de cabeça, algo que era habitual até meus vinte anos, mas que não me ocorre mais. Dizem que eu sofria de enxaqueca, principalmente porque a luz piorava tudo. Logo descobri que o melhor era ficar num quarto sem muita luminosidade, lendo ou ouvindo música. Em algumas horas, voltava ao normal. Há pouco tomei um paracetamol. Ele resolveu o que nenhum remédio resolvia antes.
Por que será que a gente encafifa com assuntos passados sem nenhuma relação com o presente? Pois hoje, sei lá por quê, enleei-me num episódio cômico ma non troppo de uns dez anos atrás. Sorria enquanto tomava café. Meu casamento estava charfurdando na crise que o matou, eu ainda vivia com minha ex, mas não havia nenhum interesse nem dela, nem meu. A gente ficava junto por inércia e por não ser ruim o suficiente para sair batendo a porta. Éramos apenas amiguinhos. Não obstante, eu mantinha a fama real de não trair. E não traía mesmo.
Como sói acontecer, o local mais espetacular que frequentava era a academia. O resto era assexuado: trabalho, crianças, até amigos e amigas. Eu era uma espécie de piadista oficial da academia ou, sendo mais veraz, diria que era um dos vários focos de geradores de assuntos e atenção. Aquilo me deixava feliz, vaidoso. Alongava, cumpria todo o treino com afinco (verdade, adoro!), corria meus trinta minutos, alongava de novo e conversava muito durante os intervalos e no final. Contribuíam para isso o café, o chimarrão e a cozinha sempre aberta da enorme ex-residência onde se esbelecera a academia. Raramente faltava a meus dois os três compromissos semanais lá.
Claro, um dos sintomas que quem está a fim de trair é o de reservar amigos para si e a turma da academia era só minha. Lá, a presença de minha ex — chamada Suélen ou Pâmela, nunca lembro –, seria imprópria e, verdade seja dita, ela nunca quis juntar-se a nós, sinal inequívoco de que o que havia aqui, talvez houvesse lá. Então, não eram necessárias grandes preocupações nem cavar ou pedir um espaço para mim. Este me era dado de presente. Havia, ora se não, minhas instrutoras preferidas e aquela com a qual mais gostava de fazer meus alongamentos e receber orientações era a dona da academia. Muito competente, tinha uns dez anos a menos do que eu (deve ter ainda, parece que isto não costuma alterar-se…) e não costumava deixar sem respostas nenhuma das minhas perguntas sobre encurtamentos e nódulos musculares. Principalmente os do pescoço. Algumas vezes pedia-lhe que dissolvesse aqueles nódulos com massagens, o que ela fazia com miraculosa habilidade.
Alongamentos, encurtamentos, etc. e não lembro como a conversa esquentou, mas posso garantir que foi subitamente, sem obedecer a nenhum planejamento. Com o papo indo por aquele caminho que faz uma parte de nosso corpo de menino estremecer, ela resolveu me alongar deitando-se sobre minhas costas, coisa que já fizera outras vezes de forma absolutamente profissional. Não tenho inteira certeza da posição em que ficava, mas acho que rezava voltado para minha meca particular quando ela resolveu me empurrar mais para o chão. Aquilo era agradável, nem parecia que estava alongando alguma coisa. Devo ter dito alguma bobagem como “Hum… peso bom!”. Ela não riu, o que tinha significado óbvio. Afinal, mulheres adoram que as façamos rir, mas quando param é melhor analisar. Pode ser irritação, ora.
Bem, depois são detalhes. No mesmo dia, ocorreu um agarramento dentro da cozinha da academia, cuja porta foi fechada com certa violência por minha professora, houve algumas festas de fim de ano e, vocês sabem, futebol é bola na rede. Aqui, chego próximo ao ponto no qual pensava durante minha dor de cabeça matinal. Se algum de meus sete leitores pensam que passei a me esconder, a atender sobressaltado o celular, se pensam que a confusão me procurava, estão enganados. Eu não contava para Pâmela (ou Suélen, nunca sei), mas também não mudava nada em meu comportamento. Só saía mais de casa. Exatamente como também ela passou a fazer. Ficávamos alternadamente em casa. A única coisa que me atrapalhava a consciência era vê-la muito quieta. Sempre achava que ela estava pensando em meu caso. Mas nunca conversamos a respeito de nada que rondasse a palavra “traição”. Não fazia sentido, dado o desinteresse mútuo.
Aqui, bem aqui, chego ao ponto exato que me fez rir hoje de manhã enquanto escovava os dentes. Já estávamos frequentando uma “terapeuta de casal” que serviria para definir a questão dos filhos. Um dia, bem lá no final do “tratamento”, durante uma sessão, Suélen (ou seria Pâmela?) me disse que eu tinha sido visto no cinema pelo chefe dela. Preparei-me para ser acusado, devo até ter me ajeitado na cadeira, quando a ouvi dizer, toda sorridente, que eu estava sozinho. Virei santo.
Quis saber que filme era. Era Malena. Então foi minha vez de sorrir. Naquela noite, fora ao um velório da mãe de meu melhor amigo de infância, jantara com minha amiga F., mas, antes do filme, deixara-a em casa com uma crise de rinite. Ela não gostava muito dos filmes que eu escolhia. Preferia ver DVDs de blockbusters americanos em casa. Um saco. Curiosamente, aquilo passou a ser a prova inequívoca de minha… sei lá… idoneidade, honestidade? Muitas vezes tal prova foi citada quando se conjeturava a possibilidade de reconstruirmos a relação. Deixei assim.
Quando por fim nos separamos, também me separei de minha amiga e da academia. Meus sete leitores devem saber que depressão a gente curte privadamente, não em praça pública, fazendo piadas.
Faz uns cinco anos, uma amiga minha que é muito bonita, foi a um evento político aqui em Porto Alegre. Lá, conheceu Fernando Lugo. Não, não engravidou, mas me contou. O cara tinha todo o jeito da religioso que fez a opção pela pobreza e, de sandálias, disse que seria candidato à presidência do Paraguai. Ela não deu muita bola para os planos do ex-bispo nem para a parte política, prestou mais atenção no sorriso contagiante, na simpatia e nas piadas. Típico. Ano passado, num jantar aqui em casa, voltou a falar no bispo:
— Viram? Meu bispo será presidente do Paraguai, claro. Ele é cheio de charme, um verdadeiro “hot” bispo. Receberia tranquilamente meu voto…
Arrã. Lugo ocupou as manchetes na semana passada. Ele confirmou ter um filho de 10 anos e pululavam mais dois candidatos a filhos seus na mídia. Estes dois logo transformaram-se em seis. Provavelmente irá para o Guiness como o homem que mais fez exames de paternidade. Sua biografia é exemplar: infância pobre, família perseguida por Alfredo Stroessner, noviciado em 1970 (19 anos), padre em 1977 (26 anos), aproximação com a Teologia da Libertação, bispo em 1994 (43 anos), ex-bispo em 2004 (53 anos), presidente do país em 2008 (57 anos). Mesmo antes de tornar-se padre, Lugo sempre confessara a amigos um plano: aos 55 anos, largaria a Igreja para escrever, dar aulas, casar e ter filhos. E, bem, sexo é algo de que ele aparentemente nunca abriu mão.
Eu realmente não gostei do debate que se criou sobre o caso. Todos discutiam a queda de popularidade e o ocultamento da verdade. OK, são fatos políticos, mas podem ser perfeitamente passageiros. Poucos discutiram que, em 2004, o Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS) fez uma pesquisa onde 41% dos padres brasileiros admitiram terem tido relações sexuais depois de ordenados. Nem todo mundo consegue ficar só na masturbação, como Ratzinger. E pouquíssimos citaram o fato de Lugo ter-se afastado aos 53 anos, quando o natural é fazer isto lá pelos 75 anos — tal fato não apontaria para uma oposição de consciência?
O celibato é uma regra criada há 1000 anos; é, portanto, posterior ao cristianismo. Porém… O que me surpreende mesmo é que não li em nenhum lugar o motivo principal de sua existência: a Igreja Católica não quer ver padres com famílias e filhos pois eles teriam HERDEIROS e estes seriam incômodos para quem sempre se utilizou do trabalho dos padres, da fé e da liberação do pagamento de impostos para ficar mais rica, ops!, desculpem, para que as obras de suas vidas dedicadas a deus ficassem não para mulheres e filhos e sim para a Santa Igreja Romana.
Acho que a crise de confiança do eleitorado paraguaio em relação a Fernando Lugo poderá ocorrer assim como aconteceu com FHC, que não era bispo mas tem filho fora do casamento. Hoje, poucos falam em FHC como pai de “filho ilegítimo” (expressão horrível e preconceituosa). O Paraguai não é os EUA e alguém poderia espalhar por lá que o celibato é desumano. Alguns padres, inclusive, acabam envolvendo-se com adolescentes de mesmo sexo, lembram…? A Igreja sabe disso e a prova é que relaxou as punições por desvios sexuais aos padres. Elas foram reduzidas no Código de Direito Canônico. Ou seja, defendido o Santo Dinheiro, que grasse a pedofilia!
— Sabias que tens algo em comum com o FHC, papito? — Si, nuestro nombre es Fernando…