Londres, 21 de fevereiro: Cadogan Hall, o passeio final e a saudade antecipada

Londres, 21 de fevereiro: Cadogan Hall, o passeio final e a saudade antecipada

Depois da Tate Modern, fomos caminhar pela cidade em direção à loja da Twinings, que está desde 1706 na Strand. Eu namoro uma bielorrussa e as pessoas deste país não vivem sem chá. Nós tínhamos que comprar muitos chás, sacolas e sacolas, entendem? Abaixo, vemos a Strand, onde a Elena ainda permanecia faminta, lembram? E chega de perguntas. É um recurso de baixo nível.

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Então nós entramos num pequeno restaurante tailandês. A qualidade da comida era fantástica e o preço melhor ainda. Nossa fome ajudava, é claro. Das janelas do pequeno restaurante, víamos uma Igreja Ortodoxa Romena ao lado do prédio mais simpático do mundo. Ele abriga várias publicações. Não perguntei se eles queriam um correspondente no Brasil porque seria muito melhor ser correspondente do Brasil em Londres.

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E então, chegamos à Twinings. Ah, se soubéssemos que aquele chá de gengibre era o que era! Teríamos comprado centenas deles! Compramos tanto chás que ganhamos um monte de brindes. Um destes foi bebido por mim hoje. Eu dizia para a Elena: estamos pegando muita coisa, menos, Elena. Ah, arrependo-me. A loja é pequena. Apenas um longo corredor, mas a enorme variedade de cheiros não deixa ninguém dotado de nariz indiferente.

Twinings

Já estava dando aquela tristeza. Afinal, íamos abandonar no dia seguinte um local que tínhamos adorado e onde passamos dias felizes. Avisei a Elena que a Temple Station era ali perto. Nós iríamos pegar o metrô para deixar os chás no hotel antes do concerto da noite. Mas o caráter romântico de minha amiga impediu a bobagem. Ela me perguntou se eu me incomodaria de seguir carregando as duas sacolas de chá e, à minha resposta negativa, propôs um passeio. Três viagens à Londres me deixaram com bom conhecimento da geografia da cidade. Então, dobramos á esquerda e fomos para as margens do Tâmisa a fim de fazer nossa despedida.

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Era um final de tarde. As pessoas caminhavam bem mais apressadas do nós. Muitos saíam do trabalho com calções e camisetas e faziam uma corrida até em casa. (Lá, eles vendem umas mochilas que não apenas envolvem o ombro como são amarradas na barriga. Os caras vestem aquilo, mais calções, tênis e botam pra correr. O número de corredores é alto: a cada minuto, passavam uns 5 por nós).

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Estávamos nostálgicos, refazendo o circuito mais turístico da cidade. A Elena dizia que não queria mais ir para Paris, ríamos.

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Londres deve ser mesmo a melhor cidade do mundo. Tem tudo lá em grande quantidade e a preços acessíveis, basta usar a cabeça. Desde concertos até roupas, desde a comida até o transporte, tudo pode ser barato. Os concertos mantêm cadeiras para quem é apaixonado mas não pode pagar muito; as roupas são muito baratas em lojas como a Primark e assemelhadas; a comida pega-se no super e come-se no quarto com o vinho vendido e garrafas individuais; o transporte pode ser todo feito pelo Underground, ônibus e barcos, basta comprar o passe semanal da Oyster; os bens culturais estão todos à mão. Para melhorar ainda mais, os grandes museus são gratuitos, até a Wallace Collection é gratuita. Não tínhamos visitado todos os lugares que desejávamos e isso nos dava uma leve angústia, apesar do fato de que o que fizéramos fora bem feito.

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Londres, 18 de fevereiro: Wallace Collection e Maurizio Pollini

Londres, 18 de fevereiro: Wallace Collection e Maurizio Pollini

Para Gilberto Agostinho.

Será que este foi o melhor dia de nossa viagem? Acho que sim.

Quando nos dirigíamos para a Wallace Collection, caiu o maior toró e a bota Usaflex (conforto sem igual…) da Elena pegou-lhe uma peça nada engraçada. Apesar da boa aparência e da coisa ser “de marca”, entrava água por todos os lados. Eu pensava ouvir o som do chapinhar interno da bota. Tentamos nos esconder em vários lugares, mas a proximidade do pequeno museu fazia-nos avançar, mesmo na chuva. Quando chegamos lá, abriu o sol, claro.

Na minha opinião, The Wallace Collection é um dos melhores lugares do mundo. É uma casa linda e aconchegante que guarda uma coleção que pode não ser numerosa, mas de qualidade difícil de superar. Desta forma, não é cansativo como os grandes museus e a gente termina feliz a visita, no bar interno, comentando o que viu e falando apenas sobre arte, pois seria pouco respeitoso falar em coisas menores naquele ambiente. A Wallace está localizada na ex-residência — na verdade uma mansão nada humilde — de um colecionador que morreu no final do século XIX e cuja esposa transformou em museu e o estado encampou.

Vocês deveriam dar uma clicada no link da primeira linha a fim de ver tudo o que faz parte da Wallace. Tirei fotos de muitos quadros, mas vou colocar aqui apenas quatro. Dois estão aqui por sua beleza, o terceiro e quarto por serem curiosidades que mostram parte do espírito da coleção.

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The Music Party, de Jean-Antoine Watteau (1684-1721) é uma de minhas predileções desde sempre, assim como a pintura de que mais gosto de todo o museu:

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The Laughing Cavalier, de Frans Hals (1580-1666), certamente a pintura mais divulgada nos folders da Wallace. 

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Já a pintura acima está aqui pelo cômico. Aliás, várias obras da coleção de Sir Richard Wallace que contam histórias cotidianas. Há uma muito curiosa que resolvi agora mostrar para vocês:

Nicolaes Maes (1634-93)

The Listening Housewife, de Nicolaes Maes (1634-93), mostra o pecadilho de uma dona de casa que costumava ouvir as conversações amorosas de seus empregados. Não coloquei minha foto porque esta saiu escura, a do próprio museu é melhor… Ah, quando a gente vai ao banheiro, passa por uma “gravura” de Joseph Kosuth que contém somente uma citação, mas QUE citação:

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Depois, o bar. Igualmente localizado no centro do edifício, é um maravilhoso jardim coberto. E temos que registrar nossas caras alegres pós-Wallace. A Elena estava feliz, …

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… mais feliz …

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… e ainda mais feliz. (E não era só ela, vejam a gaitada da mulher que está na outra mesa, à esquerda da cabeça de Elena).

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Como a próxima atração seria o maior dos pianistas — Maurizio Pollini — começamos a falar sobre o estilo de diversos desses seres. A partir da foto em que estou “tocando” Bach, Elena corrigiu minha postura, arredondando meus dedos. Bem, então eu comecei a imitar os gestos delicados dos pianistas de tocam Schumann, …

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… o estilo grosseirão de quem vai atacar o percussivo Concerto N° 1 de Bartók, …

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… as singelas tentativas matemáticas de alguns quando tocam Bach, …

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e o jeitinho Glenn Gould de dialogar com Johann Sebastian:

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E então, ao final da tarde, fomos para o Southbank Center, localizado em mais um dos corações culturais de Londres. De um lado, o Parlamento e o Big Ben; de outro, o London Eye e o Southbank; no meio, o Tâmisa ao entardecer.

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O Tâmisa com Elena, ao entardecer.

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E às 19h, ele entrou no palco do Royal Festival Hall. Antes da sua entrada, o locutor do teatro anunciou que o repertório do recital — cuja primeira parte seria formada por obras de Chopin e a segunda por Debussy — fora ampliado por decisão de Pollini: era estava incluindo a Sonata N° 2 do compositor polonês na primeira parte. E completou dizendo que Maurizio dedicava pessoalmente o concerto à memória de Claudio Abbado. Aquilo fez com que um arrepio percorresse a espinha de todo o teatro, desde as primeiras e caras cadeiras até o lugar mais barato onde nos encontrávamos. Ato contínuo, enquanto o teatro com mais de mil pessoas mudava o tom da algaravia comum pré-concerto, traindo a emoção de todos, Pollini caminhou para o piano. Era o início de um dos maiores momentos de minha vida.

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Naquela noite, anotei no Facebook:

Hoje foi um dia especialíssimo e irrepetível — quem sabe? — em Londres. Eu e Elena assistimos ao concerto de Maurizio Pollini no Royal Festival Hall, sala principal do Southbank Center. O programa era vasto, mas centrado em peças de Chopin e Debussy. Ele tocou o primeiro livro dos prelúdios do francês e peças esparsas do primeiro. O concerto foi dedicado por Pollini à memória de Claudio Abbado. Talvez isso explique a recolocação no programa da Sonata nº 2 para piano, Op. 35, cujo terceiro movimento é a célebre Marcha Fúnebre.

Tudo isso contribuiu para que a eletricidade estivesse no ar. Mas talvez o melhor seja passar a palavra para a Elena, que não tivera muito contato com Pollini, enquanto que eu o conhecia de gravações desde os anos 70, chamando-o de deus no PQP Bach e considerando-o um dos maiores artistas vivos de nosso planeta, tão vulgar.

No intervalo, após uma série de Chopins, a Elena já me dizia: “Ele é um sábio. Tem altíssima cultura musical e concisão. Enquanto o ouvia, pensava em diversas formas de reciclagem: ecológica, emocional, psíquica… Sua interpretação é a de um asceta que pode tudo, mas demonstra humildade e grandeza em trabalhar apenas para a música. Pollini não fica jogando rubatos e efeitos fáceis para o próprio brilho, mas me fez rezar e chorar. Que humanidade, quanto conhecimento! Depois desse concerto, minha vida não será a mesma”.

Foi a primeira vez que vi Pollini em ação, após ouvir dúzias de seus discos. Acho que não vou esquecer da emoção puramente musical — pois ela existe, como não? — de ouvir meu pianista predileto. Já estava com pena dele, tantas foram as vezes que retornou ao palco para ser aplaudido. Para Pollini ser absolutamente fabuloso, só falta o que não quero que aconteça e que já ocorreu com Abbado.

Foi isso que nos aconteceu hoje.

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No intervalo, falávamos da facilidade telepática com que Pollini passava suas instruções ao piano, sobre a forma como ele depurara aquelas interpretações até chegar àquele ponto de limpidez e compreensão. E, inteiramente felizes e tranquilos, íamos registrando nossa presença.

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Pedimos que alguém tirasse uma rara foto de nós dois juntos.

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Ainda durante o intervalo, Elena mostra a cara de felicidade de quem está vendo algo especialíssimo. Aliás, o efeito Pollini foi duradouro e passou a atrapalhar os concertos seguintes. Tudo o que víamos era comparado a Pollini e sistematicamente derrotado….

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Depois, cometemos um jantar não previsto em nosso orçamento. Mas, digam-me, como evitar ficar bem locupletado após de tanta euforia e descobertas?

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Dia 13: The Wallace Collection e a National Gallery

Maravilha uma cidade onde todos os museus são de graça, né? Quando fomos conhecer a Wallace Collection esperávamos a cobrança de um ingresso; afinal, não estávamos num dos grandes museus da cidade, mas ali também era tudo free, como diria o Raul Seixas.

A Wallace Collection é um pequeno museu fundado a partir da coleção particular de Sir Richard Wallace, que foi legada ao estado por sua viúva em 1897. O museu foi aberto ao público em 1900 em Manchester Square. Na coleção, estão pinturas que vêm desde o século XVI. Há vários Rembrandt e obras de outros mestres holandeses, franceses, espanhóis e ingleses, como Frans Hals com seu O Cavaleiro Risonho, vários Watteau, Van Dyck, Velázquez e o auto-retrato do citado Rembrandt. Faz parte da exposição mobiliário e objetos de arte, tais como relógios e esculturas. O ambiente é tão bom dentro da Hertford House que eu aceitaria trabalhar lá como guarda.

Quando saímos de lá, estávamos apaixonados pela Coleção de Sir Richard e fomos até a London Library, sugestão de um de meus sete leitores. Deu tudo errado, as visitas eram são só às segundas-feiras às 18h e eu deveria ter aceitado o oferecimento de meu leitor como cicerone, porque minha visita solo foi um fracasso. Por que será que ele sugeriu uma segunda-feira? OK, idiotice minha não me informar melhor.

Então fomos para a National Gallery. Sim, concordo,aquilo lá é um patrimônio da humanidade, é algo quase imbatível em termos de arte do século XIX para trás. Na Europa, talvez só perca para o Louvre e o Prado em termos de quantidade e para o Musée d’Orsay em qualidade. Mas a rápida passagem da Wallace Collection para a National foi fatal para a segunda. Foi como se tivéssemos saído da Bamboletras para a Feira do Livro, isto é, de uma seleção de primeira linha para uma oferta indiscriminada e que ficou exagerada. Quando entramos lá, queríamos o filé e fomos passando meio reto pela pesada coleção de arte religiosa da National. Mas fazer o quê? Vínhamos de um local onde o feijão já fora escolhido e não estávamos mais a fim de trabalhar.

Claro que o que estou dizendo é uma brutal injustiça para com o acervo do National, com seus Van Gogh, Manet, Monet, Velásquez, Botticelli, Metsu, Seurat, Signac e até Da Vinci… Mas o momento psicológico não era para o excesso e a procura com a separação do joio. Sim, ficamos 3 dedicadas horas na National Gallery, mas nosso coração estava em Manchester Square.

Na Gallery é proibido tirar fotos, na Wallace, não. As fotos são péssimas, o principal é a memória da visita:

Esse aí é um Watteau.
Já este é um Metsu. Uma leitura inapropriada de uma carta…
Já este lindo é um Pourbus. O nome do quadro é “Uma alegoria do verdadeiro amor”.
Este incrível é de Zampieri.
Ah, Velazquez…
Canaletto existe fora das capas dos discos de Vivaldi!
Existe mesmo, há vários lá.
Sai pra lá, coisa do demônio! Do para mim desconhecido Papety.
Cena do Inferno de Dante, de Ary Scheffer.
Em vez de aceitar a proposta de um dos meus sete leitores… Cagada, né?
Um dos mais belos chafarizes da Trafalgar Square bem na frente da National Gallery.
E a moça que o desenhava sob 1° C. Se ela caísse na água eu buscava, viu? Pura solidariedade.