Londres, 18 de fevereiro: Wallace Collection e Maurizio Pollini

Londres, 18 de fevereiro: Wallace Collection e Maurizio Pollini

Para Gilberto Agostinho.

Será que este foi o melhor dia de nossa viagem? Acho que sim.

Quando nos dirigíamos para a Wallace Collection, caiu o maior toró e a bota Usaflex (conforto sem igual…) da Elena pegou-lhe uma peça nada engraçada. Apesar da boa aparência e da coisa ser “de marca”, entrava água por todos os lados. Eu pensava ouvir o som do chapinhar interno da bota. Tentamos nos esconder em vários lugares, mas a proximidade do pequeno museu fazia-nos avançar, mesmo na chuva. Quando chegamos lá, abriu o sol, claro.

Na minha opinião, The Wallace Collection é um dos melhores lugares do mundo. É uma casa linda e aconchegante que guarda uma coleção que pode não ser numerosa, mas de qualidade difícil de superar. Desta forma, não é cansativo como os grandes museus e a gente termina feliz a visita, no bar interno, comentando o que viu e falando apenas sobre arte, pois seria pouco respeitoso falar em coisas menores naquele ambiente. A Wallace está localizada na ex-residência — na verdade uma mansão nada humilde — de um colecionador que morreu no final do século XIX e cuja esposa transformou em museu e o estado encampou.

Vocês deveriam dar uma clicada no link da primeira linha a fim de ver tudo o que faz parte da Wallace. Tirei fotos de muitos quadros, mas vou colocar aqui apenas quatro. Dois estão aqui por sua beleza, o terceiro e quarto por serem curiosidades que mostram parte do espírito da coleção.

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The Music Party, de Jean-Antoine Watteau (1684-1721) é uma de minhas predileções desde sempre, assim como a pintura de que mais gosto de todo o museu:

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The Laughing Cavalier, de Frans Hals (1580-1666), certamente a pintura mais divulgada nos folders da Wallace. 

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Já a pintura acima está aqui pelo cômico. Aliás, várias obras da coleção de Sir Richard Wallace que contam histórias cotidianas. Há uma muito curiosa que resolvi agora mostrar para vocês:

Nicolaes Maes (1634-93)

The Listening Housewife, de Nicolaes Maes (1634-93), mostra o pecadilho de uma dona de casa que costumava ouvir as conversações amorosas de seus empregados. Não coloquei minha foto porque esta saiu escura, a do próprio museu é melhor… Ah, quando a gente vai ao banheiro, passa por uma “gravura” de Joseph Kosuth que contém somente uma citação, mas QUE citação:

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Depois, o bar. Igualmente localizado no centro do edifício, é um maravilhoso jardim coberto. E temos que registrar nossas caras alegres pós-Wallace. A Elena estava feliz, …

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… mais feliz …

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… e ainda mais feliz. (E não era só ela, vejam a gaitada da mulher que está na outra mesa, à esquerda da cabeça de Elena).

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Como a próxima atração seria o maior dos pianistas — Maurizio Pollini — começamos a falar sobre o estilo de diversos desses seres. A partir da foto em que estou “tocando” Bach, Elena corrigiu minha postura, arredondando meus dedos. Bem, então eu comecei a imitar os gestos delicados dos pianistas de tocam Schumann, …

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… o estilo grosseirão de quem vai atacar o percussivo Concerto N° 1 de Bartók, …

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… as singelas tentativas matemáticas de alguns quando tocam Bach, …

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e o jeitinho Glenn Gould de dialogar com Johann Sebastian:

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E então, ao final da tarde, fomos para o Southbank Center, localizado em mais um dos corações culturais de Londres. De um lado, o Parlamento e o Big Ben; de outro, o London Eye e o Southbank; no meio, o Tâmisa ao entardecer.

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O Tâmisa com Elena, ao entardecer.

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E às 19h, ele entrou no palco do Royal Festival Hall. Antes da sua entrada, o locutor do teatro anunciou que o repertório do recital — cuja primeira parte seria formada por obras de Chopin e a segunda por Debussy — fora ampliado por decisão de Pollini: era estava incluindo a Sonata N° 2 do compositor polonês na primeira parte. E completou dizendo que Maurizio dedicava pessoalmente o concerto à memória de Claudio Abbado. Aquilo fez com que um arrepio percorresse a espinha de todo o teatro, desde as primeiras e caras cadeiras até o lugar mais barato onde nos encontrávamos. Ato contínuo, enquanto o teatro com mais de mil pessoas mudava o tom da algaravia comum pré-concerto, traindo a emoção de todos, Pollini caminhou para o piano. Era o início de um dos maiores momentos de minha vida.

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Naquela noite, anotei no Facebook:

Hoje foi um dia especialíssimo e irrepetível — quem sabe? — em Londres. Eu e Elena assistimos ao concerto de Maurizio Pollini no Royal Festival Hall, sala principal do Southbank Center. O programa era vasto, mas centrado em peças de Chopin e Debussy. Ele tocou o primeiro livro dos prelúdios do francês e peças esparsas do primeiro. O concerto foi dedicado por Pollini à memória de Claudio Abbado. Talvez isso explique a recolocação no programa da Sonata nº 2 para piano, Op. 35, cujo terceiro movimento é a célebre Marcha Fúnebre.

Tudo isso contribuiu para que a eletricidade estivesse no ar. Mas talvez o melhor seja passar a palavra para a Elena, que não tivera muito contato com Pollini, enquanto que eu o conhecia de gravações desde os anos 70, chamando-o de deus no PQP Bach e considerando-o um dos maiores artistas vivos de nosso planeta, tão vulgar.

No intervalo, após uma série de Chopins, a Elena já me dizia: “Ele é um sábio. Tem altíssima cultura musical e concisão. Enquanto o ouvia, pensava em diversas formas de reciclagem: ecológica, emocional, psíquica… Sua interpretação é a de um asceta que pode tudo, mas demonstra humildade e grandeza em trabalhar apenas para a música. Pollini não fica jogando rubatos e efeitos fáceis para o próprio brilho, mas me fez rezar e chorar. Que humanidade, quanto conhecimento! Depois desse concerto, minha vida não será a mesma”.

Foi a primeira vez que vi Pollini em ação, após ouvir dúzias de seus discos. Acho que não vou esquecer da emoção puramente musical — pois ela existe, como não? — de ouvir meu pianista predileto. Já estava com pena dele, tantas foram as vezes que retornou ao palco para ser aplaudido. Para Pollini ser absolutamente fabuloso, só falta o que não quero que aconteça e que já ocorreu com Abbado.

Foi isso que nos aconteceu hoje.

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No intervalo, falávamos da facilidade telepática com que Pollini passava suas instruções ao piano, sobre a forma como ele depurara aquelas interpretações até chegar àquele ponto de limpidez e compreensão. E, inteiramente felizes e tranquilos, íamos registrando nossa presença.

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Pedimos que alguém tirasse uma rara foto de nós dois juntos.

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Ainda durante o intervalo, Elena mostra a cara de felicidade de quem está vendo algo especialíssimo. Aliás, o efeito Pollini foi duradouro e passou a atrapalhar os concertos seguintes. Tudo o que víamos era comparado a Pollini e sistematicamente derrotado….

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Depois, cometemos um jantar não previsto em nosso orçamento. Mas, digam-me, como evitar ficar bem locupletado após de tanta euforia e descobertas?

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