Minha mãe morou por uns três anos numa edícula que há em minha casa. Ali, ficava com um fantástico time de “cuidadoras de idosos” (1). Porém, no último primeiro de maio, a levamos para uma casa geriátrica. Lá, haveria mais revisões médicas, além de fisioterapeutas, nutricionistas, etc., pois o estágio em que está a doença da Dra. Maria Luiza não permite que ela comunique nenhum problema, dor, sede ou fome. Pensa-se que ela sofra de uma doença parkinsoniana (como o Mal de Alzheimer) chamada Demência por Corpos de Lewy (ou Lewis). É quase a mesma coisa que o Alz.
Foi estranha sua saída daqui. Eu pouco ía ali atrás, mas ouvia tudo. Por um interessante fenômeno físico, o som sobe mais facilmente do que desce e eu ouvia cada grito durante o banho, cada reclamação e cada telefonema dado pelas cuidadoras. Estabelecia um controle não presencial e, para demonstrar minha ubiquidade, perguntava sacanamante sobre os assuntos que as cuidadoras discutiam durante seus telefonemas pessoais.
— E daí, e o caso da fulaninha, como ficou?
Tudo pela mãe da gente… Isto demonstrava que eu sabia de tudo, como se fosse o Grande Irmão de Orwell.
Ontem, 5 de julho, minha mãe completou 83 anos e, por uma dessas coisas inexplicáveis, ela estava interagindo com as pessoas. Cheguei lá às 14h30 e ela não apenas me reconheceu e chamou pelo nome, como disse que havia uma mulher chata que não parava de berrar no quarto ao lado. Este é um gênero de fato que faz os filhos pensarem numa impossível recuperação. Infelizmente, desejo não significa possibilidade. Sabemos que tais episódios de lucidez são como se ela tivesse encontrado algum canto limpo num parabrisa irremediavelmente sujo que logo receberá mais pó. Mas a gente gosta de se enganar e dizer que ela está melhor. E ontem estava muito melhor. Então a gente sai de lá animado, sem conseguir ou querer pensar que está sendo ilógico. Aproveitei para perguntar se ela estava bem, se sentia alguma dor.
— Não, Milton, estou muito bem.
Fazia meses que eu não interagia com ela. Em minhas visitas à clínica, ficávamos apenas de mãos dadas e eu dava-lhe uns beijos. Esta linguagem sempre foi bem compreendida. Pode estar no mais distante dos mundos, na maior das alucinações, mas, se sente um rosto próximo, faz um biquinho e beija. Porém, ontem ela bateu papo e deu risadas. Quando arrotou, por exemplo. Após reclamar que estava comendo um doce muito doce, pediu água e arrotou. Caiu na risada, prova de que seu vislumbre incluía alguma noção de conveniência. Quando propus-lhe passear na rua de cadeira de rodas, sua resposta veio no perfeito português que sempre utilizou:
— Não julgo conveniente.
OK, Maria Luiza.
Canso quando vou lá. Não parece me atingir — será isso o que chamam de “coragem”?… e o que seria não ter a tal coragem? — e apenas me dou conta quando volto para casa. Parece que corri 10 Km. Me dá vontade de dormir. Perco a fome. Meus desejos ficam simples e nem quero ver meus inimigos pendurados nas árvores (2). Me bastaria um final de vida sem dor para minha bobinha feliz… Acho que ela poderia ficar igualzinha a quem vê muita TV, né?
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(1) Uma delas, A MELHOR DE TODAS, está desempregada. Quem precisar que aproveite. Tenho o telefone dela.
(2) Citação de famoso trecho de Heine, que não tem nada a ver com a circunstância descrita:
Eu tenho uma mentalidade pacífica. Meus desejos são simples: uma cabana modesta, telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite e manteiga; em frente à janela, flores; em frente à porta, algumas belas árvores. E, se o bom Deus quiser me fazer completamente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos nelas pendurados. De coração comovido eu haverei, antes de suas mortes, de perdoar todas as iniqüidades que em vida me infligiram — sim, temos de perdoar nossos inimigos, jamais antes, porém, de eles serem enforcados.
Trad. de Marcelo Backes.
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