Calma, a luz que incide sobre o rosto de Enzo Guglieri Bestetti e de seu pai Dario não é a do Pokemon Go, creio eu. E nem teria problema se fosse, digo, discordando de mim mesmo mas sendo gentil.
Parecia fazer anos que eu não via o Dario e a Claudia Guglieri, ele de barba e ainda careca, ela de cabelos longos, muito jovem e tatuada.
Então, o Dario resolveu rezar — foto acima — para que nos encontrássemos mais.
Aqui, explicamos aos jovens que nos conhecemos no setor de informática das Lojas Manlec em 1985. Enzo reflete no quanto de tempo seriam 31 anos.
Depois chega o Arthur e nós começamos a falar sobre masturbação na adolescência.
Eu minto que nunca me masturbei na idade do Arthur. A psicóloga me encara, os outros desviam o olhar.
Mas que acho normal fazê-lo seis vezes ao dia.
O Enzo não dá a mínima para aquela conversa idiota.
Eu conheço essa cara do Dario. Ela significa: “Mas é um boca-aberta”.
Este grupo estava num canto da mesa, impedidos de caminhar. Passaram a noite bebendo chope sem poder urinar, o que tornou esta noite certamente inesquecível para eles.
Quando ouvia a conversa deles — Ricardo Branco, Jussara Musse e Francisco Marshall –, tratavam da política nacional.
Esses três são pessoas realmente brilhantes, mas acho que chegaram à evidente conclusão
O Augusto pegou algumas sequências extremamente engraçadas. Aparentemente, não houve briga nem discussões na festa. Todos estavam tranquilos, apesar das discussões políticas do Francisco Marshall e do Ricardo Branco, mas…
… não é o que mostra o flagrante abaixo.
Notem como o meu cunhado Sylvio Gonçalves dispara uma risada,
como os outros — Vicente Cortese à esquerda, minha filha Bárbara a seu lado e o filho da Elena, Nikolay — o acompanham,
como a Bárbara inicia uma explicação,
como a resposta gera revolta,
mais explicações e tédio.
(So disgusting)
Não vou seguir porque tenho absoluta certeza de que vou apanhar de minha linda filha em razão destas fotos.
O Augusto é o autor da série de fotos que estarão nos próximos posts. Abaixo, as duas primeiras não foram tiradas por ele, é óbvio.
O Arthur estava doido querendo que o café pós-festa fosse na casa deles. Mas não deu, fomos até tarde no bar e não rolou.
É que minhas festas de aniversário são tradicionalmente feitas na casa da Astrid — ausente sexta-feira por motivo de trabalho — e do Augusto e, com seus doze anos, talvez o Arthur não lembre de algo diferente.
Depois haverá uma sequência só de Milton e Arthur. Afinal, tive que examinar sua mão a fim de verificar os pelos.
Desenvolvimento do mandarim é influenciado pelo canto dos progenitores. Descoberta mostra que há espécies que podem adaptar-se melhor às alterações climáticas.
É uma surpresa no mundo animal. Uma ave australiana consegue ativamente influenciar o desenvolvimento da sua descendência quando os embriões ainda estão nos ovos. Nos dias mais quentes, os progenitores da espécie mandarim (Taeniopygia guttata) têm um canto especial para os seus ovos. Isso faz com que os pintos, depois de saírem dos ovos, cresçam menos do que outros indivíduos da espécie que não ouviram o canto especial, mostra um estudo publicado na revista científica Science.
Estudos feitos no passado mostravam que os embriões dentro dos ovos conseguiam ouvir e até emitir sons. Este tipo de comunicação tem importância na vida das aves. Segundo o artigo: “Já se tinha descoberto que a comunicação acústica pré-natal pode influenciar a sincronização da altura em que os pintos saem do ovo e permitir aos embriões pedirem aos progenitores para incubarem os ovos.”
Mas esta capacidade dos mandarins tinha passado despercebida até agora. Estas aves vivem em habitats secos na Austrália. Uma das suas características comportamentais é produzirem ninhadas quando há bom tempo, independentemente das estações do ano.
Mylene Mariette, co-autora do artigo com Katherine Buchanan, ambas do Centro de Ecologia Integrativa da Universidade de Deakin em Waurn Ponds, na Austrália, foi quem identificou a existência destes cantos especiais, que tanto as fêmeas como os machos fazem quando o parceiro ou a parceira está longe do ninho.
A curiosidade levou Mylene Mariette a tentar descobrir a razão destes cantos. A investigadora verificou que os cantos só se davam nos últimos cinco dias do desenvolvimento dos embriões dentro dos ovos e apenas quando a temperatura máxima desse dia ultrapassava os 26 graus Celsius.
Para tentar compreender o efeito destes cantos, a equipa fez uma série de experiências em ambiente controlado. Na primeira, as investigadoras submeteram um grupo de ovos de mandarim, nos últimos cinco dias de desenvolvimento, aos cantos descobertos por Mylene Mariette que entretanto foram gravados. Um segundo grupo de ovos foi submetido às mesmas condições de humidade e temperatura, mas com os cantos normais.
Ao nascerem, os pintainhos de ambos os grupos tinham o mesmo tamanho normal. Mas passados alguns dias, as investigadoras mediram os pintainhos e verificaram que os que tinham sido submetidos ao canto especial eram mais pequenos. “Isto significa que o ambiente acústico antes do nascimento tem um impacto maior do que pensávamos”, sublinha Mylene Mariette, citada numa notícia da BBC News.
A equipa pensa que o corpo menor é uma resposta a um clima mais quente. “Com um corpo mais pequeno, os mandarins perdem calor mais facilmente”, explica Mylene Mariette, citada numa notícia da Science. Além disso, as cientistas colocam a hipótese de que um corpo mais pequeno evita reacções celulares com efeitos negativos que são mais frequentes quando a temperatura ambiente é maior.
Mas as mudanças desta população não se ficam por aqui. As aves submetidas aos cantos especiais têm tendência a fazer o ninho num ambiente mais quente do que o outro grupo. Além disso, quando submetidas a temperaturas maiores, elas põem mais ovos do que as aves maiores que não ouviram o canto a anunciar mais calor. Por outro lado, em ambientes mais frios, são as aves maiores que põem mais ovos.
Este tipo de controlo no desenvolvimento dos pintos, que tem influência no próprio comportamento quando são adultos, pode ser importante num mundo cada vez mais quente devido às alterações climáticas.
“Não quer dizer que estas aves vão ser capazes de se reproduzirem a temperaturas extremas”, avisa Mylene Mariette, citada pela BBC News. “Mas o que é encorajador é que é uma estratégia que os pássaros usam para ajustar o crescimento da sua descendência à temperatura do ambiente.”
Dentre as figuras exponenciais da cultura do século 20, nenhuma outra teve a sua vida ligada, tão tragicamente, a fatos extremos da polaridade política Direita x Esquerda quanto Federico García Lorca, o grande poeta espanhol assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal.
Lorca era andaluz, e foi fuzilado dois dias depois de ser preso por uma milícia fascista, na sua cidade, a Granada da Alhambra encarapitada nos morros que a cercam assim como, até hoje, a memória de Federico segue preenchendo a história granadina e contribuindo para fazer de Andaluzia um dos destinos turísticos mais carismáticos da Europa.
De certo modo, Granada se tornou duas legendas: Alhambra & Lorca – uma no seu esplendor arquitetônico e outro nos seus cantares “gitanos” e, por fim, no pranto de condenado à morte quase podendo ser ouvido pelos amigos e pela família detentora de boas propriedades de gente abastada, na cidade e no campo.
Quando alguém as visita, é possível deduzir, de imediato, que um fuzilamento assim, uma agressão fatal contra o membro mais destacado – intelectualmente – daquela linhagem andaluza, teve algo de “afoito” demais, de muito brutal e despropositado, por assim dizer, mesmo para o bando de fascistas aos quais tudo foi atribuído como intenção de prender, decisão de “julgar” (mais que sumariamente) e ordem, por fim, de executar sem mais delongas.
Quem foi o responsável? E por quê?
Essa pergunta esteve posta desde que começou a circular largamente a notícia da morte do homem que, segundo relatos da época, chorou na madrugada, diante do inacreditável fato de que iriam realmente fuzilá-lo de face para aquela manhã clara da Andaluzia que ele, filho da região, havia cantado em versos imortais.
Haveria motivos para matar um poeta já muito conhecido, um jovem com um vasto círculo de amizades na Espanha e também no exterior? Sabemos que fascistas são temerários (a palavra é essa), mas sempre houve algo de estranho nesse crime, além de obscuridades diversas, telefonemas vários, discussões, ordens e contraordens… e até uma arma apontada para o subgovernador militar de Granada – por um fascista da Falange! – em defesa veemente do preso.
É preciso, na verdade, recontar um pouco dessa tragédia, desde antes da manhã fatídica e, para isso, devemos ver Federico, ainda em Madri, sendo desaconselhado no intuito de seguir “para casa”, justamente para fugir dos perigos políticos da capital, naquele primeiro ano da Guerra Civil. Os amigos tentaram fazê-lo desistir da viagem e permanecer entre eles. Alegavam que, na pequena Granada, ele estaria muito “mais exposto” do que na grande cidade, porém o poeta retrucou que lá, na sua Andaluzia, todos o conheciam e sabiam das suas origens etc. Ninguém conseguiu demovê-lo da ideia de proteção (ligada à família tradicional) e, assim, o poeta viajaria para Granada – e para a morte.
GRANADA PRESTES A EXPLODIR
Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta iria encontrar na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado por muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “maricóns”)…
A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações familiares, Federico se transferiu da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales igualmente bem relacionados, porém com integrantes da Falange ((a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também um poeta ainda adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La Casa Encendida. Parecia seguro e conveniente para a proteção do rapaz das noitadas madrilenas.
Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, dias depois, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Nela, nessa aurora nascida para a morte – inesperada –, começaria a se compor o retrato sacrificial, isto é, a efígie coberta de sangue de uma vítima republicana a mais ilustre possível: o bardo dos “amores bruxos”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas “plazas” de areia e sangue.
Sangue, sim, se derrama por toda a ardente península ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos Cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) e nos ferimentos graves de um conflito interno que, em agosto de 1936, iria envolver o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos.
Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vêm se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos se ocultaram, talvez, num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do pais de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum Quixote, não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem por “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado.
Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fraticida. Naquela altura, mais do que nunca um Lorca vivaz, um ser risonho e animado e tudo o mais, mantinha outros interesses muito para além da política que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado.
Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende o povo de Granada, antes de mais ninguém, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade-verdadeira”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família que possuía riquezas e membros ressentidos, parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodrigues.
QUEM MATOU FEDERICO GARCÍA LORCA?
Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente político) certamente lembram do nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do poeta caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.
Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficientes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os Garcia da linhagem paterna do poeta assassinado.
Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda da morte: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”.
Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de “Granada, 1936 (Editorial Stella Maris), também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, podia ser extravagante, incômodo e e afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na verdade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Ele foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo na prisão tão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico García Rodrigues”…
Não é, de modo algum, uma “teoria conspiratória” surgida oitenta anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar mesmo as antigas certezas do Gibson, que está, no momento, empenhado em rever sua descrição de um crime de “natureza política”, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando até mesmo alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartel-general de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.
“BERNADA ALBA” NA – SINISTRA – BERLINDA DE 1936
Miguel Caballero é quem traz uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada, escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oitenta anos depois do crime, assume outra dimensão. A Casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Ele vê a famosa peça – que correu o mundo – como um dos fios de meada da tragédia, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde meados do século 19. Naquela altura, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e vai cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba.
Caballero descreve: “Eles vão comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. Estes campos adquirem muito valor para o plantio açucareiro, e Granada se converte numa das províncias mais ricas da Espanha, com 21 engenhos. O pai de Lorca participa como acionista de vários. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras porque nem todos têm a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que procedem os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”.
Ora, para a tragédia rural A Casa de Bernada ALBA, Federico Garcia Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas.
A “HUERTA” ASSALTADA ANTES DO ATO FINAL
Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente – que foi assaltada, em 9 de agosto de 1936, por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, que eram conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de detenção e execução de Lorca, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta, e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a cabeça do artista voltado para a beleza das últimas árvores avistadas entre Alfacar e Víznar, na manhã desatada de ódios não só políticos de mistura com preconceitos etc.
Além desse pano de fundo (nada teatral), existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Federico Lorca para a sua vida prestes a findar no dia 19: consta que ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro) que havia se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil española, em virtudes de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro também pode haver sido bem “reforçado” pelo fato de ter trabalhado para um Roldán (Alejandro Benavides) no caso de uma fuga de camponeses da Vega sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…
Um rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “morte do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) às buscas. Isso é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala comum há muito tempo, e que parece ter sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há oitenta anos), porque não foi um crime propriamente político, não foi a execução de um “maricón rojo” – mas a perda de um ente querido, de um grande poeta e de um mito jogado entre porcos vorazes dignos do romance Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, a vida imita a arte, no caso.
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Existe no Youtube uma coisa curiosa:
O poeta Luis Rosales — que visitou Federico na prisão durante os dias em que ele lá esteve — estava dando uma entrevista sobre o assunto “morte de Lorca”, filmada por Ian Gibson, e, num certo momento, ele pensou que a câmera estava desligada. Então, fala, em off, sobre Lorca lhe ter manifestado simpatias por um “governo forte” que pusesse ordem na Espanha caótica de então, e — mais incrível ainda — diz, em alto e bom som, que “TERIA SIDO MUITO FÁCIL SOLTAR, LIBERTAR LORCA, caso imaginassem — o pai, a mãe, os amigos — que ele corria qualquer perigo de vida” (SC)!
Rosales — o grande poeta Luis, mais tarde — era, vc sabe, o irmão mais novo dos dois falangistas bem situados na hierarquia fascista de Granada, que realmente lutaram (de fato) pela imediata libertação do poeta, um deles tendo chegado a apontar a arma para o governador militar franquista, “exigindo” que Lorca fosse solto.
(****) Filmado em boa parte no Museu do Louvre, Sokúrov questiona a permanência da arte mesmo em um momento tão grave quanto a 2ª Guerra Mundial. Jacques Jaujard, diretor do Louvre, e o Conde Wolff-Metternich, general da ocupação nazista em Paris, inimigos e posteriormente colaboradores, formaram uma aliança para a preservação dos tesouros do museu francês. Explorando as relações entre arte e poder, o filme mostra o Louvre como um exemplo de nossa civilização. Misturando documentário e ficção, o denso filme do grande Aleksander Sokúrov (de Arca Russa e Fausto) reflete poeticamente sobre os papéis da arte e da civilização. Como pano de fundo, vemos toda a grande cultura europeia tendo que escapar de ser pisoteada. Belo filme.
(***) Esta comédia dirigida por Gennaro Nunziante arrecadou mais de € 65 milhões (US$ 71 milhões), transformando-se no filme italiano mais rentável de todos os tempos. Com humor ácido e muitas críticas ao funcionalismo público na Itália, o longa traz a história de Checco, interpretado por Checco Zalone. Ele nasceu numa família que possui uma larga linhagem de burocratas que nunca soube o que é ter que colocar a mão na massa e trabalhar duro. Em sua vida adulta, ele desfruta da confortável e ultra vantajosa posição de funcionário público numa repartição que não exige muito. Uma verdadeira sinecura. Depois de muito evitar o trabalho duro, sua situação começa a mudar quando um governo mais austero assume a missão de fazer cortes no funcionalismo público, forçando sua demissão ao colocá-lo em funções cada vez piores. Eu curti.
Não sei o que mais dizer sobre a foto abaixo além de que são três grandíssimos artistas que amo muito. Maurizio Pollini (74), Martha Argerich (75) e Daniel Barenboim (73) estiveram juntos ontem num camarim, em Lucerna. Como escreveu Norman Lebrecht, são “seis mãos de ouro” que ouvi muito e das quais espero ouvir ainda muito mais.
As desclassificações sem medalhas do futebol e do vôlei feminino encheram Porto Alegre de nuvens. Eu compreendo perfeitamente a derrota no futebol. Já a do vôlei é bem mais complicada de engolir.
Cá pra nós, o time de Marta e Cia. era uma bagunça. Postava-se bem defensivamente e deixava o resto para as individualidades. Isto é o velho e conhecido futebol brasileiro… A gente não acredita ao mesmo tempo que sabe que vai perder. Para completar, houve aquela partida contra a África do Sul. Já classificadas para as quartas-de-final, fomos jogar na quentíssima Manaus com as titulares. E elas fizeram um supremo esforço. Acabou 0 x 0. Nas quartas, um time cansado conseguiu um novo 0 x 0 contra a Austrália. Ganhou nos pênaltis com o sinal vermelho de alerta já piscando. Ontem, tivemos o terceiro 0 x 0 seguido de derrota nos pênaltis. As adversárias suecas, após levarem 5 x 1 na primeira fase, mapearam tudo direitinho e enfim… Tchau. Cristiane disse que “é a segunda ou terceira Olimpíada que só dá a gente e no final saímos eliminadas”. Pois é, conheço isso. Chamem um(a) técnico(a) de verdade na próxima.
O vôlei caiu fora criminosamente. Melhor time da competição, bicampeãs olímpicas, nossa equipe relaxou após vencer facilmente as chinesas no primeiro set. Perdeu o segundo set e simplesmente não conseguiu retomar as rédeas do jogo. O que parecia um passeio transformou-se em pesadelo. As chinesas se empolgaram, tudo começou a dar certo para elas — pouco para nós –, o nervosismo foi tomando conta de jogadores e de nós na frente da TV e… É triste ter o melhor time disparado e ver outras comemorarem. Altamente digno de análise é o desequilíbrio emocional brasileiro. Está em todo o lugar, até no trabalho da gente. E sempre acaba mal. O que era alegria transformou-se rapidamente em descontrole e choro, vide Thiago Silva na Copa de 2014.
Para terminar: que absurdo foi a vaia para o francês Lavillenie na hora da entrega das medalhas. Os apupos na hora do salto podem até serem admitidos em razão de ter um brasileiro como adversário, mas na hora das medalhas? Lavillenie ficou chorando em silêncio em pleno pódio. O mesmo vale para a vaia a Gatlin, adversário de Bolt. Para demonstrar amor a Bolt, temos que massacrar quem passe no seu caminho? Há muito ódio e desejo de linchamento no Brasil. Uma vergonha completa. Ao menos mostramos ao mundo que linchamento é a modalidade brasileira preferida.
Mesmo que o porto-alegrense não seja educado, mesmo que alguns fiquem conversando continuamente em voz baixa, ir ao meio-dia até a Sala de Leitura na Biblioteca Pública da Rua Riachuelo é como se eu tivesse recebido férias de 30 minutos. Alivia. Tenho uma hora de almoço, me alimento rapidamente e subo a Ladeira para chegar até o velho prédio. Aviso o gentil senhor que cuida da sala que entrei com um livro, anoto seu nome e autor e descanso um pouco das más e péssimas notícias de todos os dias.
Hoje eu saí mais tarde e fiquei apenas 15 minutos. Deu para ler apenas dez páginas, mas é uma alegria poder descer a rua com a cabeça em outro contexto. É um conforto moral, um consolo, desafoga.
Como torcedor eu esperava mais, mas como observador sou obrigado a dizer que o desastre contra a Chapecoense foi algo normal, apenas mais um episódio deste triste 2016. A responsabilidade geral pelo que está acontecendo com o Inter — 3 pontos conquistados dos últimos 36 disputados, aproveitamento de 8% em 12 jogos — não é tua, é do indigitado presidente Vitorio — ou Derrotório — Carlos Costi Piffero, mas ontem tu resolveste meter tua pata na lama ao escalar mal e substituir ainda pior.
Conseguiste melhorar nossa defesa, porém os times que namoram o rebaixamento são assim. Aos 45 do segundo tempo, Paulão e Lomba deram um jeito da Chape marcar seu gol para nos tirar um pontinho que pode ser precioso lá no final. Paulão não foi na bola e Lomba foi lomba abaixo. A bola passou por baixo de seu corpo saudoso de Danilo Fernandes. Nós também estamos sofrendo coma ausência de DF.
Agora estou mais calmo. Ontem estava subindo pelas paredes por tua causa, Juarez. Antes do gol da Chape e depois de tuas alterações, já tinha previsto tudo no Face. Está lá. Com Nico López no banco, tu fizeste entrar Ariel e Ferrareis. Juro, pensei que fosse enfartar ou ter uma convulsão. E deixaste Sasha em campo, tirando Seijas e Valdívia! É de enlouquecer.
Já na tua reestreia fizeste sumir o Celso Roth para nos mostrar a face Juarez. Ferrareis tem que ser emprestado para ver se vinga, não dá para colocá-lo em campo. Não dá para vê-lo jogar. O coitado está triste e deprimido. Já Ariel é outro braço roubado à agricultura argentina. Com sua altura, deveria estar em Mendoza podando parreiras. Está na hora correta de fazer isso para podermos naufragar em vinho nos desdourados anos vindouros. Ou seja, sem mais filigranas, digo que tiraste dois jogadores de futebol para colocar duas nulidades.
Danilo Fernandes; William, Paulão (Eduardo), Ernando e Alguém; Fernando Bob, Rodrigo Dourado, Anderson e Seijas; Valdivia e Nico Lopes. Esse time é melhor do que boa parte da Série A, mas quero ver tu escalá-lo. Vai começar a nos enrolar com Sashas, Ferrareis e Ariéis e, assim, vamos para o vinagre.
Gente, o rebaixamento está anunciado. Estamos prontos para ele, a um pontinho da linha da degola e nem adianta fazer muitos cálculos. O negócio é ficar de olho nas marolinhas para descobrir se a água vai fazer mesmo a sacanagem de nos cobrir. Se morrer afogado, meus últimos pensamentos serão para Piffero e Juarez.
Me esqueçam nas próximas eleições, tá? E, domingo, devemos ampliar nosso recorde sem vitórias contra o São Paulo e a maior vaia do Beira-Rio. (Claro que espero que ganhem, mas…)
Na última sexta-feira, eu e Elena estávamos atravessando a Redenção em direção ao Guion Cinemas quando vimos um enorme grupo parado no jardim japonês. Havia grande silêncio, o que fazia com que parecessem zumbis. Perguntei que faziam e me disseram que o motivo era que ali havia uma grande concentração de Pokémons. Todos estavam de cabeça baixa, observando seus celulares, caçando os pobres bichinhos. Jamais imaginei ver isso e tirei umas fotos bem ruinzinhas com meu celular. Um amigo disse: “Pelo menos não estão rezando”. Olha, sei lá se não estão. Outro conhecido me disse que o mesmo ocorre no Campus da UFRGS, no Vale.
“Ignoro tudo o que venha daquele canalha”, escreveu Tchaikovsky em seu diário em 1886. “É um idiota sem talento!”.
Mas não era verdade, Tchaikovsky não ignorava nada que viesse de Brahms. Conhecia muito bem a obra daquele que considerava seu oponente e parecia ter muito a dizer sobre ele.
Johannes Brahms, mesmo sem ser tão direto quanto o russo, também não parecia gostar muito da música de Tchaikovsky. Ele assistiu um ensaio da Quinta Sinfonia de Tchai e adormeceu.
Embora compartilhassem a data de aniversário — 7 de maio, sendo Brahms, nascido em 1833, sete anos mais velho — eles ilustram pólos opostos do espectro de composição. Brahms foi o grande classicista, o construtor de uma densa e particular música de câmara e sinfônica, ao lado de quem Tchaikovsky parecia um emotivo.
“Irrita-me que esta mediocridade vaidosa seja considerada genial”, segue Tchaikovsky em seu diário.
As citações poderiam encher um livro. Por vezes, a aversão parece ser inveja. Também as coincidências no lançamento de concertos e sinfonias — lançadas quase sempre na mesma época e na mesma tonalidade — irritava a ambos os compositores.
“Brahms é uma celebridade; eu sou um ninguém. E, no entanto, sem falsa modéstia, eu lhe digo que me considero superior a Brahms. Eu, que honesto e verdadeiro, diria a ele: “Herr Brahms! Eu considero você seja uma pessoa muito sem talento, cheia de pretensões, totalmente desprovida de inspiração criativa. Para ver sua música eu simplesmente tenho que olhar para baixo”.
Talvez Tchai apenas detestasse a música germânica. Sobre Wagner, escreveu: “Após as últimas notas de Gotterdammerung, eu senti como se tivesse sido libertado da prisão.”
A ideia que Tchaikovsky tinha da música era simplesmente diferente: ele criava coloridas melodias, cheias de graça. Era leve e direto, enquanto Brahms estava interessado na arquitetura, em olhar a parte de trás da tapeçaria.
“Brahms, como personalidade musical, é simplesmente antipático para mim. Eu não posso suportá-lo. Não importa o quanto ele tente, eu sempre permaneço frio e hostil. É uma reação instintiva”, escreveu Tchaikovsky em outra carta. Ele não encontrou muitas companhias para dividir suas opiniões, talvez apenas Benjamin Britten tenha vindo em seu auxílio, décadas depois: “Não me refiro ao mau Brahms, é o bom Brahms que eu não suporto.”
Pois hoje, tais opiniões então longe de ser maioria. Brahms e sua música são quase universalmente amados por aqueles que ouvem música erudita.
Um crítico a época contra-alfinetou: “A música de Tchaikovsky soa melhor do que é; a música de Brahms é melhor do que parece”.
O Concerto para Violino de Brahms (1878) era um alvo particular de Tchaikovsky, talvez porque o seu fora escrito anos antes, em 1865, e mal recebido, ao contrário do de Brahms. (Hoje, o de Tchai é também aceito como uma obra-prima). “O Concerto para Violino de Brahms me atraiu tão pouco como tudo o mais que ele compôs”, escreveu Tchaikovsky em 1880 para seu patrono, Nadezhda von Meck. “É muita preparação para alguma coisa, muitas pistas de que algo vai aparecer em breve para nos encantar, mas nada acontece, só o tédio”.
Mais tarde, na mesma carta, vem a mais famosa citação sobre Brahms.
“É como um pedestal esplêndido para uma coluna, mas a coluna está faltando. Em vez disso, o que vem é simplesmente um novo pedestal.”
O surpreendente é que, quando os dois compositores se conheceram, gostaram um do outro.
Eles se encontraram no dia de Ano Novo de 1888, quando o violinista Adolph Brodsky estava ensaiando um trio de Brahms. Brodsky tinha recém estreado o Concerto para Violino de Tchaikovsky e ambos foram convidados para jantar após o ensaio.
Tchaikovsky entrou na sala enquanto a música ainda estava tocando, e depois do jantar, eles beberam juntos.
Tchai logo viu que Brahms estava fazendo o seu melhor para ser amigável e gostou disso. Eram muito diferentes, Tchaikovsky era elegante e fumava cigarros finos; Brahms vestia-se mal, tinha cheiro de charuto e restos de cinza na barba. Conversaram animadamente.
Brahms era conhecido por sua língua afiada. Uma vez, quando participou de um ensaio de um dos seus quartetos de cordas, disse ao violista, “Eu gostei dos tempos, especialmente do seu.”
Mas Brahms estava apaziguado naquela noite na casa de Brodsky, e eles beberam muito. Encontraram-se mais uma vez e beberam novamente.
“Brahms é uma pessoa excelente, educado e inteligente”, escreveu Tchaikovsky de volta à Rússia. No entanto, o fato nunca alterou sua opinião sobre a música de Brahms.
Na saída, após o jantar com os Brodskys, Anna Brodsky perguntou se ele gostara do que tinha ouvido durante o ensaio. “Não fique zangado comigo, meu querido amigo”, ele respondeu, “mas eu não gostei nem um pouco daquilo”.
Uma literatura que se inaugura – no patamar mais alto – com a obra de um Machado de Assis deveria ter podido manter o rumo firmado por tal começo (magnífico, reconheça-se) pela nada tímida mão de um mulato de gênio.
Na cronologia que prefiro usar – e que não diz respeito somente ao tempo que passa em calendários novos e velhos – a data do ponta-pé inicial não remontaria a Alencar nem a nada antes da grande ficção machadiana (de gosto já tão moderno). Que sorte. Começamos com o pé direito chutando não na trave de Iracema, mas criando a Capitu que ainda resiste como um mistério psicológico, neste vigésimo primeiro século…
Se eu fosse professor de Literatura, começaria por ensinar esse pentiment: o pequeno-grande milagre de ter tido Matacavalos por sobre as praias indianistas ingênuas, e, nele, Machado tirando a mão de uma primeira luva, a fim de encarar diretamente o Rio e a vida – como um enigma.
Estamos falando de sorte grande (e meu assunto não é Machado, nem loterias, mas – surpresa – Lúcio Cardoso), e agora devemos fixar o Brasil perdulário que foi, pouco a pouco, perdendo o rumo literário dado por instrumentos assim de ouro, nos seus inícios: a bússola épica de Euclides da Cunha (autor de um livro tão grandioso que já acolheu Vargas Llosa, um húngaro e dois argentinos enfiados no mesmo camisolão de Antonio Conselheiro) ao mesmo tempo em que produzia o intimismo, nos seus cueiros, de um Le grand Meaulnes tupiniquim mais gostoso do que o francês de Alain Fournier. Refiro-me, é claro, ao romance O Ateneu, de Raul Pompéia, que antecedeu Fournier também nas febres da imaginação transida pelos não-acontecimentos durante as adolescências especialmente nervosas… Com o que chegamos às pistas de pouso e aos portos da preferência do mineiro nascido há exatos cem anos: Joaquim Lúcio Cardoso Filho.
SEGUNDA ESCALA NO RUMO DE LÚCIO
Eis, então, uma literatura que começa com pelo menos três mestres criadores de obras de alta voltagem literária – o que torna mais incompreensível, ainda, que ela esteja produzindo, agora, apenas algumas receitas de monotonia das editoras nas cabines de comando, ultimamente.
Foi uma gradual, progressiva e paulatina – e paulificante também, como um travelling ao contrário, pois Afrânio Peixoto poderia ser visto, em seguida, a copiar o modelo do romance francês de segunda (ou de terceira?), à maneira dos diluidores de Balzac ou daqueles dois anões descartáveis, Paul Bourget e Marcel Prevost. Foram as tutelares “divindades” de cartório que Afrânio escolheu para si, enquanto o inquieto Monteiro Lobato – inquieto demais – começava a sua caminhada de articulista de jornalecos até se tornar no (o bravo, o fundamental) editor e criador de literatura infanto-juvenil docemente rural, em nossas letras. Lobato legou à criança brasileira, não só do seu tempo, sítios cheios de cores e gentes candidamente caipiras, enquanto o espírito sombrio de Lima Barreto olhava para além daquela cerca, vendo a estranheza dos destinos adultos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado… mas isso não foi suficiente para emancipar o seu olhar (ainda assim, original) de influências conflitantes demais para lhe darem sossego e ânimo de seguir o próprio faro – independentemente – para o pequeno e o não-relevante, tomados como temas, à Bartleby, na melhor linhagem das obsessões de Kafka, Svevo e Joyce.
Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo de João do Rio, enveredaria por dentro das noites – elegantes e deselegantes –, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art-nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo.
Enfim, o que estou querendo ressaltar é que, desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial, de raiz “psicológica” (vá lá a palavrinha!), incrementada por um Dionélio Machado, no Sul, e um Cornélio Penna, até chegar o mineiro Lúcio Cardoso, fixando os porões dos velhos solares da alma que se tornarão o emblema da sua obra.
Se o arco desta nossa volta talvez “estiver a ser” bem acompanhada etc, eu peço às vertigens que demorem a duvidar da minha autoridade para sínteses da arte romanesca tramada com dois modelos de obras exemplares – a de Machado e a de Cardoso – para que se compreenda o que aconteceu depois do mulato criar a sua obra genial e ir fundar uma Casa para abrigar gigantes e anões literários deliciando-se com bolinhos e empadas.
Firmando o leme desta viagem sem doces nem salgados, enfrentemos as águas, agora, do romance regional como um sub-produto modernista. (Lúcio, aliás, começou aderindo – na primeira hora da poderosa influência de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego – ao publicar seu romance de estreia Maleita, em 1934).
Na própria carne ficcional da obra que vai publicando de forma quase sequenciada (1935, 1936), o que esse escritor “à margem” vai operar, na verdade, é a passagem de volta para o futuro da literatura que perdemos – se é que me faço entender, no curso sinuoso que estou antecipando. Porque Lúcio Cardoso se assemelharia à restauração de algo como um “elo” perdido, como legítimo herdeiro daquela modernidade inicial da nossa (melhor) literatura, se a ele juntamos, numa etapa posterior, os nomes de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, num mesmo platô introspectivo e de invenção literária.
Para a ótica mais ortodoxa – em se tratando do que apenas parece “linear” na evolução da narrativa brasileira –, certamente que eu acabo de dar alguns saltos mortais, ao propor uma espécie de elipse do regionalismo do qual só recentemente fomos nos emancipando. É, entretanto, o único recurso que permite (numa quantidade de páginas não estourada dos limites desta revista) que se possa chegar a Lúcio como “módulo intercambiável” do quadro, e se fazendo o pulo necessário do longo hiato que torna Lúcio, agora, o nosso romancista psicológico “de volta” ao cenário modificado.
No meio do salto, acho que, de algum modo, foi atropelado o carioca Octávio de Faria – e lamento-o, sinceramente. Pois tentou escrever seu roman fleuve – a “Tragédia Brasileira” –, não conseguiu (mas tentou!), e a sua obra-prima está fora da “Tragédia”: leiam as Novelas da Masmorra, no dia de São Nunca-de-tarde em que forem reeditadas (atenção, editores dorminhocos sonhando em jantar com Jonathan Franzen!), e estarão a braços com três das melhores ficções brasileiras de todos os tempos. Octávio talvez precisasse apenas alargar a visão católica, para dar o outro tipo de salto mortal necessário – embora a força estivesse, naquela altura, com o tipo de asa “torta” do Modernismo que foi o romance regionalista, convenhamos.
LÚCIO, O GRANDE PEIXE DE ÁGUAS PROFUNDAS
Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-30. Daquele “ponta-pé” inicial – e seus desdobramentos – é ele, com certeza, um criador mais ambicioso do que Cornélio Penna e sua literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde algum pálido retrato.
O vento também sopra as cortinas das grandes janelas e, no Sul, iria trazer a voz de Veríssimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americana. Não era. Ninguém irá se impactar, atualmente, com novelas ao estilo de Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços farroupilhas – em tom épico forçado –, quando o vento forte da literatura latino-americana vem a soprar, nos ouvidos de Érico, com trompa rouca demais para ser ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, casa arrombada, casa de demônios, a casa assassinada de Lúcio Cardoso.
A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do pontilhista Luiz Jardim – com vocação de voyeur (em Confissões do Meu Tio Gonzaga) que recuou um passo do tema do incesto – e, assim, é Lúcio mesmo o único Faulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e sentindo, na carne, a morada do diabólico Outro.
Antonio Gala nos diz que “o corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”. Ora, somente em Lúcio o leitor de verticalidades enxerga – no romance pós-regionalista, reiteremos – o portador daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver, não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar”. Quando o poeta Lêdo Ivo (que, nos anos 40, dividiu apartamento com o escritor) afirma ser Lúcio “o grande emissário da noite, da sombra e do silêncio numa literatura que sempre foi solar e tropical”, ele situa bem o escritor cuja estreia foi quase desajeitada, com um romance que traça a trajetória do seu pai aventureiro, Joaquim Lúcio Cardoso, fundador de Pirapora.
O romance seguinte – Salgueiro, de 1935 – seguiria ainda a mesma receita, mas A Luz no Subsolo, do ano seguinte, e principalmente Dias Perdidos (1938) e a novela Mãos Vazias, fariam desviar a sua ficção para o intimismo avant-la-lettre que Cardoso vai representar – mesmo “fora de lugar” – na prosa brasileira do pós-guerra. A Luz no Subsolo é ainda um texto indeciso entre as duas pulsões – a solar e a noturna, para ecoar a palavras de Lêdo –, porém já trazia uma força nova, que Mário de Andrade de imediato reconheceu: “Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas compreendi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas.”
Mário não poderia imaginar que, anos mais tarde, Lúcio daria início justamente à sua “Trilogia do Mundo sem Deus” – focado na terra desolada do mesmo Rio de Janeiro a que se devotou Octávio de Faria, infelizmente sem a coragem do mergulho de Cardoso no submundo das modernas cidades ornadas dos colares das prostitutas, das garrafas no lixo dos alcoólatras e nas manchas de sangue na parede dos assassinos. As novelas Inácio, O Enfeitiçado e Baltazar (esta, inédita), todas relançadas pela Editora Record, fazem parte do projeto de investigação que Lúcio não chegou a completar com relação ao submundo carioca. Sob a pele das coisas, seu olhar não se deixa fascinar pela cidade – ao contrário da insustentável leveza da literatura do amigo Aníbal Machado, por exemplo.
NAS PALAVRAS ABISMAIS
O próprio Lúcio explica a diferença, abismal, de atitudes: “Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto. Digo TUDO: as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, os grandes becos da necrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, tudo.”
A “lenda urbana” da vida do escritor dá conta de que, nesse período, ele teria chegado a contratar um matador de aluguel para persegui-lo, de modo a sentir na pele a sensação do seu personagem jurado de morte. O que há de certo é o que Lúcio escreveu em cartas como as destinadas a Cornélio Penna, o autor de A Menina Morta que merecia toda a confiança do mineiro profundo: “É impossível a alguém viver como eu vivo, sem explodir ou morrer um dia. Estou aqui sem coragem de atravessar o dia, de reunir as minhas numerosas máscaras…”
Clarice Lispector também manteve correspondência com Lúcio, e comprova essa tormenta interior (ou a “máquina infernal da mente que Deus me deu”, nas palavras do próprio escritor), ao mesmo tempo em que testemunha a respeito também da influência que ele exerceu sobre os autores da sua geração, a partir de quando o seu caminho (para a interioridade) se esclareceu para LC. Tanto quanto detestou o título O Lustre, foi Lúcio quem “batizou” Perto do Coragem Selvagem (nunca achei esse título “parecido” com Clarice; sempre achei que deveria ser de uma Carson MacCullers ou de um… Lúcio Cardoso!) e, ainda segundo a Lispector, foi o seu “muito querido amigo” quem lhe ensinou “a conhecer as pessoas através das máscaras”.
Alguns amigos de Clarice dão como certo que a admiração da escritora resvalava para o terreno amoroso, num sentimento impossível de ser correspondido por Lúcio, homossexual apaixonado pelas mulheres apenas como criador capaz de instilar vida em personagens como a “Nina” de Crônica da Casa Assassinada – que Wilson Martins tem certeza de que “ficará como uma das grandes mulheres do romance brasileiro. Sua personalidade imperiosa e despótica, seu enigma secreto dominam não somente a chácara e a família dos Menezes, mas, ainda , e sobretudo, o próprio leitor”.
Essa é a obra-prima de Lúcio – e ainda pede uma viagem mais longa do que tentei esboçar aqui, à volta de uma casa quase inviolada (no que ela tem, ainda, de mais íntimo e secreto), no fundo do quarto escuro da alma. Precisa ser urgentemente relida, neste momento agônico de uma ficção que se esgarça em realismo datado, violência e confusão com crônica do dia a dia. A “casa assassinada” de Lúcio talvez aponte para uma literatura de ficção que, aqui e agora, ainda pode ser salva pela leitura de um assassino da banalidade, de um talento maior que muita gente está deixando de ler para perder tempo com os escritores menores que pululam na mídia, reescrevendo – ou tentando reescrever – coisas que já foram ditas por outros, de melhor modo e com maior alcance. Que voltem os mestres (e Cardoso é um deles) às girândolas das livrarias culturais brilhando com aquelas últimas novidades que não acrescentam nada.
Só hoje soube que a editora Estação Liberdade fez nova tradução deste País das Neves. A nova tradução deve ser ótima, conheço a autora, Neide Hissae Nagae. Li outras traduções de Kawabata pela Estação e elas foram totalmente satisfatórias. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer desta tradução (capa ao lado) de Marina Colasanti, feita lá pelos anos 70 para a Nova Fronteira. É a que acabo de ler… Cheia de erros de pontuação e concordância, a tradução não é direta do japonês, tendo vindo do alemão… Foi uma luta não apenas chegar ao final, mas tentar espreitar o Kawabata que estava por trás de tanta confusão. Não obstante, o livro por trás parece ser bom.
Este pequeno romance de Kawabata foi publicado primeiramente em 1937, depois passou por diversas revisões até chegar a seu formato definitivo em 1948. Tantos cuidados… Bem, vou tentar esquecer a tradução.
Shimamura é um homem de Tóquio, casado e com filhos, que viaja repetidamente ao “país das neves” região alta e fria do Japão, cuja neve muitas vezes isola povoados inteiros. É um intelectual observador e tranquilo, mas com enorme fascinação pelo feminino. Já no trem que o leva, fica apaixonado pela voz da jovem Yoko. Depois, tendo se fixado em uma hospedaria de águas termais, Shimamura é apresentado a Komako, uma das gueixas mais requisitadas no povoado. Ele retorna anualmente, sempre na estação fria, ao local e lá forma um estranho triângulo amoroso com Yoko e Komako.
Kawabata é um escritor poético, provocativo e delicadamente indecente. Este livro é o que dá maior liberdade ao leitor. As cenas são jogadas e interrompidas de tal forma que nunca são conclusivas. É um anti-naturalista que causa estranheza e prazer. Como sempre, Kawabata não descreve nenhuma cena de sexo, mas só um louco não veria o enorme erotismo da história.
Kawabata é sempre bom, mas, por favor, fujam desta edição da Nova Fronteira. Busquem a da Estação Liberdade, feita direto do japonês por quem sabe traduzir.