Traição

Acordei hoje com considerável dor de cabeça, algo que era habitual até meus vinte anos, mas que não me ocorre mais. Dizem que eu sofria de enxaqueca, principalmente porque a luz piorava tudo. Logo descobri que o melhor era ficar num quarto sem muita luminosidade, lendo ou ouvindo música. Em algumas horas, voltava ao normal. Há pouco tomei um paracetamol. Ele resolveu o que nenhum remédio resolvia antes.

Por que será que a gente encafifa com assuntos passados sem nenhuma relação com o presente? Pois hoje, sei lá por quê, enleei-me num episódio cômico ma non troppo de uns dez anos atrás. Sorria enquanto tomava café. Meu casamento estava charfurdando na crise que o matou, eu ainda vivia com minha ex, mas não havia nenhum interesse nem dela, nem meu. A gente ficava junto por inércia e por não ser ruim o suficiente para sair batendo a porta. Éramos apenas amiguinhos. Não obstante, eu mantinha a fama real de não trair. E não traía mesmo.

Como sói acontecer, o local mais espetacular que frequentava era a academia. O resto era assexuado: trabalho, crianças, até amigos e amigas. Eu era uma espécie de piadista oficial da academia ou, sendo mais veraz, diria que era um dos vários focos de geradores de assuntos e atenção. Aquilo me deixava feliz, vaidoso. Alongava, cumpria todo o treino com afinco (verdade, adoro!), corria meus trinta minutos, alongava de novo e conversava muito durante os intervalos e no final. Contribuíam para isso o café, o chimarrão e a cozinha sempre aberta da enorme ex-residência onde se esbelecera a academia. Raramente faltava a meus dois os três compromissos semanais lá.

Claro, um dos sintomas que quem está a fim de trair é o de reservar amigos para si e a turma da academia era só minha. Lá, a presença de minha ex — chamada Suélen ou Pâmela, nunca lembro –, seria imprópria e, verdade seja dita, ela nunca quis juntar-se a nós, sinal inequívoco de que o que havia aqui, talvez houvesse lá. Então, não eram necessárias grandes preocupações nem cavar ou pedir um espaço para mim. Este me era dado de presente. Havia, ora se não, minhas instrutoras preferidas e aquela com a qual mais gostava de fazer meus alongamentos e receber orientações era a dona da academia. Muito competente, tinha uns dez anos a menos do que eu (deve ter ainda, parece que isto não costuma alterar-se…) e não costumava deixar sem respostas nenhuma das minhas perguntas sobre encurtamentos e nódulos musculares. Principalmente os do pescoço. Algumas vezes pedia-lhe que dissolvesse aqueles nódulos com massagens, o que ela fazia com miraculosa habilidade.

Alongamentos, encurtamentos, etc. e não lembro como a conversa esquentou, mas posso garantir que foi subitamente, sem obedecer a nenhum planejamento. Com o papo indo por aquele caminho que faz uma parte de nosso corpo de menino estremecer, ela resolveu me alongar deitando-se sobre minhas costas, coisa que já fizera outras vezes de forma absolutamente profissional. Não tenho inteira certeza da posição em que ficava, mas acho que rezava voltado para minha meca particular quando ela resolveu me empurrar mais para o chão. Aquilo era agradável, nem parecia que estava alongando alguma coisa. Devo ter dito alguma bobagem como “Hum… peso bom!”. Ela não riu, o que tinha significado óbvio. Afinal, mulheres adoram que as façamos rir, mas quando param é melhor analisar. Pode ser irritação, ora.

Bem, depois são detalhes. No mesmo dia, ocorreu um agarramento dentro da cozinha da academia, cuja porta foi fechada com certa violência por minha professora, houve algumas festas de fim de ano e, vocês sabem, futebol é bola na rede. Aqui, chego próximo ao ponto no qual pensava durante minha dor de cabeça matinal. Se algum de meus sete leitores pensam que passei a me esconder, a atender sobressaltado o celular, se pensam que a confusão me procurava, estão enganados. Eu não contava para Pâmela (ou Suélen, nunca sei), mas também não mudava nada em meu comportamento. Só saía mais de casa. Exatamente como também ela passou a fazer. Ficávamos alternadamente em casa. A única coisa que me atrapalhava a consciência era vê-la muito quieta. Sempre achava que ela estava pensando em meu caso. Mas nunca conversamos a respeito de nada que rondasse a palavra “traição”. Não fazia sentido, dado o desinteresse mútuo.

Aqui, bem aqui, chego ao ponto exato que me fez rir hoje de manhã enquanto escovava os dentes. Já estávamos frequentando uma “terapeuta de casal” que serviria para definir a questão dos filhos. Um dia, bem lá no final do “tratamento”, durante uma sessão, Suélen (ou seria Pâmela?) me disse que eu tinha sido visto no cinema pelo chefe dela. Preparei-me para ser acusado, devo até ter me ajeitado na cadeira, quando a ouvi dizer, toda sorridente, que eu estava sozinho. Virei santo.

Quis saber que filme era. Era Malena. Então foi minha vez de sorrir. Naquela noite, fora ao um velório da mãe de meu melhor amigo de infância, jantara com minha amiga F., mas, antes do filme, deixara-a em casa com uma crise de rinite. Ela não gostava muito dos filmes que eu escolhia. Preferia ver DVDs de blockbusters americanos em casa. Um saco. Curiosamente, aquilo passou a ser a prova inequívoca de minha… sei lá… idoneidade, honestidade? Muitas vezes tal prova foi citada quando se conjeturava a possibilidade de reconstruirmos a relação. Deixei assim.

Quando por fim nos separamos, também me separei de minha amiga e da academia. Meus sete leitores devem saber que depressão a gente curte privadamente, não em praça pública, fazendo piadas.

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Amizades

Ontem, a Caminhante publicou um post sobre a finitude das amizades. Essa coisa de amizade eterna, guarida permanente, resistente a chuvas, trovoadas, empréstimos, traições e discordâncias funciona muitas vezes entre homens, casais de todo gênero ou mulheres, porém sua natureza é semelhante à dos casamentos – ou seja, podem acabar, com maior ou menor dor, maior ou menor convicção. Dentre as frases que Caetano Veloso escreveu, muitas delas ficaram em nossa memória por sua poesia e outras ficam apenas na memória de Dona Canô… Uma do primeiro grupo é esta de Língua:

E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E quem há de negar que esta lhe é superior
.

Pois é. A amizade talvez seja superior por sua pureza. Ela não é uma empresa como o casamento. Não costuma envolver patrimônio ou filhos, as traições são contornáveis, os ciúmes são raros ou menores, mas a amizade é uma forma de amor e acaba sim. E bem acabada.

No último dia 26, fez aniversário uma ex-grande amiga minha. Conheci-a por ela ter repentinamente surgido como namorada de um de meus melhores amigos, amizade esta preservada até hoje. Eles casaram, separaram-se e convivi mais com ela do que com ele no período após a separação. Nós, na verdade, tornamo-nos inseparáveis desde o primeiro momento. Penso que tenha contribuído para a amizade o nenhum interesse físico que nutríamos um pelo outro. Ela, uma baixinha que fazia questão de homens altos; eu, um nanico (1,71 m) sempre gostei de mulheres do meu tamanho. Ela, loiríssima de olhos azuis, era muito branca para meus padrões; e eu certamente não a atraía de modo nenhum. Não obstante a falta mútua de tesão, ambos tínhamos, separadamente, movimentada vida amorosa, tanto que, em mais de 20 anos de convivência, nunca pudemos sequer pensar em algo entre nós, pois quando um estava desocupado, o outro não estava, o que nos impedia de abrir o tal bar.

(Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar.

W. H. Auden.)

Sabíamos tudo um do outro, fazíamos visitas telefônicas a cada acontecimento importante, a cada bom filme, livro ou música. Os jantares a quatro eram semanais. Eu acompanhava o desenvolvimento de sua tese sobre linguagem e dava palpites. O mesmo acontecia em sentido contrário. Tínhamos liberdade para tocar em qualquer assunto, pessoal ou não, discutíamos o que convencionalmente não se fala, como as melhores posições sexuais na opinião de cada um, etc. Tive dois filhos, me separei, casei, ela teve uma filha com o novo marido e tudo ia muito bem entre jantares e telefonemas até que a houve a surpresa. Minha filha quis morar comigo e contei a novidade para ela. A recepção que ela deu à notícia foi inexplicável, ainda mais tratando-se de uma psicóloga ultraliberal (pero no mucho). Disse que os filhos eram da mãe e fim. Como sabia que seu novo casamento já estava aos cacos e que sua posição talvez estivesse sendo “ditada pela dor”, ouvi toda a absurda argumentação quieto, por mais que me ofendesse ouvir aquilo. Passados alguns dias, tudo voltou ao normal, mas a nuvem não sairia dali; demorou um pouco, mas logo começou a despejar seus raios.

Eu voltei ao assunto e ela pediu que eu não falasse naquilo. Só que eu estava monotemático. Pensava que, se não admitisse a vontade da Bárbara e lutasse por ela, estaria causando um mal indelével à nossa relação de pai e filha. Além do mais, aquilo era mais fácil de prever do que a vitória do Flamengo sobre o Grêmio no fim de semana. Tinha que agir, mesmo que tivesse pedido seis meses para que nós dois pensássemos. O resto foi o resto. Ganhei a guarda da Bárbara e tenho certeza de que foi bom para nós; porém, neste ínterim, o afastamento para com minha amiga foi aumentando de tal forma que hoje nem nos falamos.

Soube que hoje está separada do pai de sua filha, minha afilhada. Deve ter outra pessoa. Mas não sei quem é e hoje não há mais jeito. Foi demais. Ou seja, a amizade acaba. Acho que um casamento não acaba por pequenas diferenças, as pequenas diferenças são contornáveis, ele acaba por diferenças que tornam impossível o convívio. O mesmo ocorre com as amizades. As pessoas mudam e as linhas paralelas que deixavam com que os amigos pudessem sorrir um para o outro de forma reconhecível, às vezes afastam-se, fazendo com que se desconheçam.

Amizade para sempre é bobagem. Concordo com a Caminhante quando ela diz: “Quando as amizades chegam ao fim, não vejo como fracasso ou culpa”.

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Um certo livro infantil

Em minha curta experiência na Biblioteca do Instituto Santa Luzia, sempre perguntava quais eram os livros mais retirados e amados pelos alunos. O primeiro da lista era uma unanimidade entre as bibliotecárias: o belíssimo A Casa Sonolenta, de Audrey Wood (desenhos de Don Wood). Este livro foi lido e mostrado por mim e por minha ex para meus filhos incontáveis vezes. Trata-se de um dia chuvoso e chato em que todas as pessoas da casa só desejam dormir. Todos, desde a avó, vão se empilhando sobre uma cama periclitante até que uma pulga resolve morder o gato que está no alto da pilha. Este dá um salto e o resultado é mais do que acordar todo mundo. O bom é observar o susto de cada um, todos de pijamas, em trajes mais ou menos íntimos.

O que a criançada mais gosta são dos contos de repetição. Há uma situação — boa ou ruim — que se repete. Tal situação ou está ameaçada ou afirma-se inevitavelmente, sob as circunstâncias mais improváveis. Também contribui para o sucesso o fato de que tais histórias simples permitem certa “atuação” ao adulto que as relata. É divertido. As crianças amam as repetições e pedem para que a gente as conte trocentas vezes. Lembro de muitas outras que obviamemente acabei decorando. Uma das melhores é também do casal Wood: a deliciosa O Rei Bigodeira e sua Banheira. Ambas estavam entre os livros que mais recontava para meus filhos, mas havia um que acabei fazendo sumir lá de casa.

Um belo dia, provavelmente em 25 de setembro de 2001, vi que a Bárbara ganhara (de quem?, não lembro) um livro anormalmente bonito chamado O Homem que amava caixas, de Stephen Michael King. O livro foi dado a ela fora da festa, talvez por um colega de aula, pois lembro que ela chegara inesperadamente com a novidade e, ato contínuo, pediu para que eu lesse a história. Olha, não sei como cheguei ao fim. Não sou de chorar em filmes nem na vida. No final de As Pontes de Madison, por exemplo, olhei divertido o festival de homens e mulheres fungantes de olhos vermelhos, mas o livro que a Bárbara ganhara me fazia desmanchar a ponto de eu acabar por retirá-lo de circulação. Por quê? Ora, um certo pudor me dizia que era melhor não demonstrar uma comoção além da conta. Não faço a mínima ideia de onde o escondi, talvez tenha sumido na casa de minha mãe. Durante o feriado andei por aí atrás dele. Nada.

Fui à Internet e descobri que tem status de clássico. Muitos adultos escreveram a respeito, é a história preferida de vários, seu texto está reproduzido por todo lado e ele é mostrado e contado no YouTube. Acredito que esta história ocupe uma posição diversa do habitual. Pois ela fala demais ao adulto. Tenho certeza de que minha emoção vinha mais da minha relação com meu pai, já morto em 2001, e menos do relacionamento com meus filhos. Ou talvez fosse mais correto dizer que misture tudo.

Então hoje é o dia de submeter meus sete leitores a uma “contação de histórias” (isto se eles conseguiram chegar até este ponto do post). Uma certa Kika gravou um vídeo em que ela mostra o livro e lê O homem que amava caixas. Primeiro vai o vídeo e após o texto. Sim, mesmo que a tia Kika nos conte bem devagarinho e mexa o livro deixando o foco quase maluco, ainda fico comovido… Fazer o quê? Não, não choro mais, só faço ela contar de novo…

O homem que amava caixas

Era uma vez um homem
O homem tinha um filho
O filho amava o homem
e o homem amava caixas.

Caixas grandes
caixas redondas
caixas pequenas
caixas altas
todos os tipos de caixas!

O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava;
então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.
Ele era perito em fazer castelos
e seus aviões sempre voavam…
a não ser, claro, que chovesse.

As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam…
e brincavam…
e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho.
Os velhos apontavam para ele.
As velhas olhavam zangadas para ele.
Seus vizinhos riam dele pelas costas.

Mas nada disso preocupava o homem,
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem…
o amor de um pelo outro.

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Nós Que Nos Amamos Tanto

X. e eu (ela começa):
— Hummm, resolveste pôr um perfume? Que perfume é este?
— É um que tá aí faz tempo.
— “Faz tempo” significa “antes da minha gestão”?
— Sim.
— Cheiro horrível.

Minha mãe, em dia de alguma lucidez, e eu:
— Mãe, desculpe, mas tu estás ficando surda. A gente tem que gritar prá tu entender.
— Olha, fui no otorrino e ele disse que estou muito bem.
— Me diz o nome deste otorrino.
— A tua irmã me disse mas eu não ouvi direito.

X. e eu:
— Lendo as notícias do Grêmio, querido?
— Sim, adoro a decadência. Isto aqui é melhor que Os Buddenbrook.

Casal ao qual não pedi autorização para identificar:
Ele: Um amigo me disse que existem quatro tipos de mulher. A primeira é do tipo que faz você se sentir um completo idiota… Eu não lembro das outras duas…
Ela: Mas dá 3!
Ele: Às vezes tu podias ser menos loira…
Ela: E às vezes sinto saudades do tempo em que tu não tomava antidepressivos…

Dias depois, a mesma dupla:
Ela: Tu sabe que meu cabelo é castanho claro…
Ele: Tu é loira, dizer que é castanho claro é um casuísmo que usas na hora das piadas. É loiro escuro, pronto. Tu me atraíste por ser loira.
Ela: Pelo que sinto, certamente não foi por minha capacidade, claro…
Ele: Há coisas que não são miscíveis, amor.

X. e eu, na cama:
— Quando eu ficar impotente, tomo Viagra.
— E para os neurônios?

X. e eu na cama, novamente:
— Vocês mulheres vivem 10 anos mais do que a gente.
— Hummm.
— Eu tenho 9 anos mais do que tu.
— Hummm, e daí?
— E daí que serás minha viúva por 19 anos.
— Para senão eu vou começar a chorar. É sério!

Bernardo, na secretária eletrônica do celular:
— Pai, tô te ligando para saber o resultado do jogo do Grêmio. Se bem que eles devem ter perdido. Já tô até feliz. (risadas) Só me diz de quanto. Um beijo.

X. e sua mãe:
— Mãe, por que tu me deste o nome de X.?
— Ora, porque eu gostava e tinha uma amiga cheia de vida e muito bonita chamada X.
— Sabe o que significa?
— Não.
— “Manca”.
— …
— Conheces a palavra claudicante?

Ela, ele e garçom num restaurante do interior da ex-Tchecoslováquia. Ela olha atentamente para o menu em tcheco. Por fim, aponta um prato:
— Cocó? – diz, enquanto mexe os cotovelos como asas.
— Muuuuuuuuuuuuu – responde o circunspecto garçom.

Bárbara e eu.
— Pai, quero fazer uma tatuagem.
— Sou contra.
— Mas é pequena, na parte interna do pulso. Só o contorno de um cavalo.
— Não fica vulgar?
— Vulgaridade é postura, pai. Tu estás aí há 52 anos e não te deste conta?

(Ela fez a tatuagem. Disse que quase morreu de dor. Ficou bonito.)

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2666, de Roberto Bolaño (2ª Parte – La parte de Amalfitano)

Benno Von Archimboldi? Esqueçam. Seu nome nem é citado. A segunda é a parte mais curta de 2666 e se a violência e a morte são os panos de fundo do romance, esta é a parte em que a morte domina sozinha. Domina a primeira metade do capítulo, onde o professor de filosofia Amalfitano dedica-se a evocar sua ex-mulher Lola, uma bicho-grilo das mais radicais que o deixa sozinho com a filha Rosa em Barcelona para ir atrás, ir atrás e ir atrás — como tantos personagens de Bolaño — de um poeta, enquanto o melancólico Amalfitano instala-se com a filha na cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA. E domina também a segunda metade, em que ficamos incomodados pelos sintomas de uma loucura que começa a insinuar-se em Amalfitano, o qual ouve vozes, comete pequenas esquisitices, preocupa-se com a segurança de Rosa numa cidade de repetidos assassinatos e sonha, sonha muito.

O personagem Oscar Amalfitano tem na decadência física sua dimensão trágica. A descrição que Bolaño realiza ao descrever rapidamente suas aulas e seus diálogos com a “voz” é comovente. Também o aparecimento de um livro do qual absolutamente não lembrava — O Testamento Geometrico, do galego Rafael Dieste — e seu entorno são narrados de forma inalcançável por autores menos capazes, a grande maioria. Inspirado por Marcel Duchamp, Amalfitano pendura o livro no varal de sua casa, de forma que este possa aprender sobre a vida cotidiana de Santa Teresa e proteger sua filha, tudo isso dentro de uma série de livres associações que funcionam espetacularmente neste capítulo que é finalizado por mais um sonho. Aposto que a história de Amalfitano e de seu destino serão deixados assim mesmo, no máximo ele reaparecerá como personagem secundária. Afinal, estamos lendo Bolaño e cabe a nós dar continuidade ou nexo à superfetação de ficções.

E aqui está o final de A parte de Amalfitano (trad. portuguesa de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, copiada daqui e “tropicalizada” (ho, ho, ho) por este abusivo resenhista:

… Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, até um conjunto de majólicas (azulejos pintados) listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (…) Quando o último filósofo do comunismo estava finalmente chegando à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria estupefato que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar tais disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pluma. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E lhe dizia: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou te explicar qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou te explicar. E depois me deixa em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a se desmoronar nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância e dos Urais e da Sibéria e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da bolso e dizia:

— Acho que é hora de beber um copinho.

Obs.: A Livraria Cultura (link acima, na coluna do meio) tem 2666 na edição espanhola da Anagrama. Pelo que é, custa bem baratinho, R$ 71,34. Afinal, veio de um país onde as edições são enormes. A propósito, lançado em 26 de setembro em Portugal, 2666 já vendeu 23.000 exemplares. Pobre Brasil-sil-sil…

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Não faz falcatrua com o tio

Fui vítima de um sequestro relâmpago em 2002. Não foi nada divertido. Eu estava chegando na residência de minha mãe quando vi um jovem vestido como qualquer pessoa de classe média aproximar-se da porta de meu carro. Veio numa velocidade inequívoca, deixando bem à mostra uma arma que apontava para algum lugar abaixo de minha cabeça, ou seja, a porta, pois eu estava sentado no carro, esperando que a porta automática abrisse. Fazendo o que sempre vira nos filmes, saí do carro com as mãos para o alto, em total silêncio. Ele me mandou sentar no banco de trás, onde logo recebi a companhia do mais agitado do grupo. Os bancos da frente foram ocupados pelo rapaz da arma e sua namorada. Eram 19h30, mais ou menos.

Mantive o silêncio que insiste em me acompanhar nas situações críticas e apenas notava vagamente que o motorista desejava dirigir rapidamente, mas que era inexperiente, muito inexperiente. Não parecia drogado, apenas dirigia mal. Já meu companheiro de banco parecia bastante alterado. De forma descontrolada, gritava palavrões e batia em minha cabeça com o cano do revólver que recebera do motorista. Ele apontava a arma para um local acima de meu ouvido direito — bem onde eu suponho que esteja meu cérebro — e batia ali com força. Eu não consigo refazer perfeitamente este período em minha memória. Acho que meu estado era mais de perplexidade e menos de medo, mas talvez isso seja uma fantasia posterior: meu estado devia ser de medo paralisante e só. Afinal de contas, eu nunca peguei um revólver e imagino que este seja uma coisa para ser manuseada com certo cuidado, como se maneja algo prestes a explodir. Não deve ser um instrumento para bater na cabeça de alguém, ainda mais com o cano apontado. Tratava de ficar o mais quieto possível ouvindo um monte de ofensas, quando o motorista mandou o sujeito parar de babaquice e ver se eu tinha dinheiro. Em resposta, o sujeito abriu minha pasta e logo achou a carteira. Tinha R$ 30,00. O cara ficou puto.

Antes que ele voltasse a se divertir com minha cabeça, resolvi falar:

— No bolso de trás da calça, tem R$ 1.700,00.

O casal no banco da frente comemorou, dizendo que o tiozinho era legal. Meu colega começou a dar risadinhas enquanto demonstrava enorme dificuldade para pegar o dinheiro, apesar de eu ter virado quase 90º a fim de que ele pegasse. Então, ele mandou que eu entregasse o dinheiro para ele. Não pensem que ando sempre com R$ 1.700,00. O que ocorrera é que eu achei que tinha dinheiro demais no caixa da firma e resolvi levar comigo. Era uma atitude rotineira para evitar, digamos, faxineiras mais curiosas. Disse para eles que não tinha dinheiro em caixa automática, que pegara tudo. O cara do meu lado duvidou aos berros, perguntando se eu tinha certeza absoluta daquilo. Confirmei e confirmei e confirmei. A menina do banco do acompanhante disse que era melhor assim pois

— fico muito “tensionada” nesses caixa automático.

Empreendemos um longo passeio aparentemente sem objetivo nenhum. O motorista dizia que o rádio do carro era uma bosta, que nem valia a pena roubar. Partiram para as avaliações: meu relógio era legal, o celular era outra bosta, a pasta era das caras e eles levariam, etc. E assim chegaram a conclusão que o saldo do sequestro seria R$ 1.730,00, minha pasta e o relógio. Apesar disso, ligaram o rádio na Atlântida, da RBS. A conversa era pouca e o motorista nos levou à periferia de Canoas, voltou a Porto Alegre, andou por umas vilas, etc. O que procuravam? Era algum plano para mim? Em certo momento, vi que o rapaz ia dobrar numa rua onde eu tinha visto rapidamente as luzes de um carro da Brigada Militar. Dei um grito:

— Não entra aí, tem um carro da Brigada!

Pode parecer paradoxal, mas achei que poderia haver algum gênero de tiroteio ou confronto e que eu seria um detalhe insignificante para ambos os lados. Além do mais, minha pequena experiência manda evitar autoridades como criminosos, brigadianos, juízes de direito e de futebol. Mais paradoxal ainda, sempre me entendi bem com policiais, os quais sempre foram razoáveis. Mas tergiverso. Minha atitude foi saudada pelos inquilinos (ou novos donos) de meu carro como um grande passo em minha vida como celerado.

— Porra, o tiozinho aprende rápido!
— Cacete, como é que ele viu?

Como já estava me tornando um ídolo, já conseguia pensar claramente que eles estavam procurando um lugar para me matar ou para utilizar meu inexpugnável ânus para seu prazer, algo assim. Como ninguém me impedia de falar, empreendi o mais patético dos discursos: tinha dois filhos pequenos (verdade), era separado (verdade), cuidava de uma mãe doente (verdade), era filho único (mentira…), trabalhava para todos eles (mentira) e que haveria muito sofrimento se alguma coisa me acontecesse (não sei); enfim, apelei. Então, subimos um morro de Porto Alegre que atende pelo delicado nome de Maria Degolada. O rapaz foi parando num local que, se não era um descampado, também não era desabitado. Então, a menina do banco da frente falou com veemência para o motorista:

— Não faz falcatrua com o tio! Ele é legal!

O cara olhou para ela e disse:

— Calma, …inha.

Me mandaram sair do carro. Saí lentamente, como se estivesse entre amigos, mas na verdade pensando que, se corresse, poderia levar um tiro (sabem aquele instinto que manda a gente NÃO correr de cachorros?, pois é, foi o que pensei indistintamente). Dei alguns passos e me chamaram. Quase me caguei. Era o motorista. O rapaz, com um sorriso, dizia para eu levar minha carteira vazia de dinheiro e meu celular de merda. Devia ter pedido dinheiro para o ônibus, talvez ele me desse. Me explicou que dava trabalho fazer os documentos que estavam na carteira e que tinha tirado a bateria do celular para eu ter não telefonar para meus amigos brigadianos. Peguei as coisas e caminhei devagar. Nunca mais os vi.

Depois de algumas quadras, notei que estava fedendo. Era o pior cheiro que já tinha sentido em mim. Era uma coisa animalesca, chegava a arder no nariz. Horrível. Caminhei, acho, por três horas. A sede era imensa. Quando cheguei à casa da minha mãe, ela dormia. Melhor assim. Devo ter ficado meia hora esperando a banheira encher, coisa que nunca fizera antes. Mergulhei na água pensando em meu azar e sorte, e no significado de “falcatrua” para aqueles caras. (Ouvi depois essa palavra ser usada no sentido de sacanagem).

No dia seguinte, às 8h em ponto, avisei o seguro sobre o carro e eles me mandaram fazer uma ocorrência. Fui trabalhar, não estava com nenhuma pressa de ir à polícia. Raciocinava confusamente que o problema era meu e que não tinha necessidade de ficar falando naquilo. Por volta das 10h30, um funcionário da seguradora me ligou, dizendo que meu carro estava na Rua Botafogo, estacionado em local proibido, com as janelas abertas. Meu rádio devia ser uma bosta mesmo, o resto também. Nunca fiz a ocorrência e nem liguei de volta para o seguro. Ninguém, além de meus filhos, soube da história. Naquela época, era doloroso demais contá-la.

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Todas as filas a fila

1. Dizem que o OPS trocará de servidor neste fim de semana. Estaremos certamente parados por algumas horas antes que paremos por completo.

2. Ontem foi o dia de instalar programas. Troquei meu velho notebook por um desktop bem mais parrudo. Queria trocar de notebook, mas digamos que era mais “fácil” comprar uma configuração com mais disco e memória se voltasse ao velho desktop. Sem problemas. Por conta da confusão, perdi de acompanhar a formação de mais um belo grupo de comentários, mas era necessário: os 40 GB e o XP ainda original — nunca reinstalado — do meu velho Dell Latitude mereciam aposentadoria. Ele se pagou, foram quatro anos de trabalho intenso. Hoje ele vai se assustar por não ter sido ligado. Talvez ele sirva para viagens. É incrível como consigo não estragar minhas coisas, mas a fila tem de andar.

3. Ontem também foi o dia de conversar com as assistentes sociais que acompanham o cumprimento de minha pena. Elas me pediram um tempo antes de fazerem a provável (certa) transferência. Fiquei tão indignado com aqueles acontecimentos que fiz questão de agregar a meu processo um texto que não era outro senão o post linkado acima. Elas ficaram tão pasmas com o acontecimento quanto eu, ou ao menos fingiram muito bem. Fui claro, disse que considereva-me ofendido. Querem contatar a instituição, o juiz, o escambau. Só espero que não lembrem de direcionar as consequências para meu combalido ânus. Chega, né? Querem saber?, temo muito passar de vítima a vilão.

4. À noite, fui ao show do Guinga, do baixista Max Robert e da cantora Marcê Porena no Teatro São Pedro. A desproporção entre o que toca e compõe Guinga em relação a Max Robert é acachapante. Não sei o motivo de se apresentarem juntos. Já está mais do que na hora de Guinga, 59 anos, assumir-se como chefe e fazer-se acompanhar de um pequeno grupo e de uma cantora ou cantor eficiente. Esse negócio de ficar longos minutos — tempo emocional — suportando composições e interpretações de segunda categoria à espera de alguns minutinhos — tempo emocional — do grande violonista e dentista Guinga, é como ir ver um show de Chico Buarque e ele convidar Joana para cantar por uns 45 minutinhos.

5. Há gente louca para tudo. Tanto que uma pequena e simpaticíssima editora me convidou para publicar O Monólogo Amoroso com eles. Teria que finalizar, né?

6. Vou tentar produzir algo futebolístico para o Impedimento hoje. Há algum tempo comecei uma série chamada “A ascensão e a ascensão dos negociantes”. Burramente, parei no segundo ou terceiro capítulo. Pior, deixei de fazer anotações. A tese será baseada no Inter, mas serve para todos. O Internacional é hoje um balcão de negócios, porém a estrutura comercial não consegue criar resultados, apenas lucro, egos e esperanças de contratos no exterior para os jogadores. Tudo o que chega ao Inter, excetuando-se Guiñazu e Clemer, tem o imediato horizonte da venda. Os caras são tão bons nisso que até Magrão conseguiu ser negociado, mesmo que tivesse se arrastado por meses em campo. Bastou duas boas partidas e tchau. O técnico Tite há que ser compreendido. Ele esta lá não para fazer futebol, mas para fazer a fila de vendas andar. Então, só joga quem estiver na hora de ser vendido. Se fosse investidor, acho que gostaria deste “técnico”. Quem sabe o Inter passa a informar a torcida sobre os balancetes? A gente torceria por eles, mas sempre haveria um chato para contestar as comissões…

7. Ah, e acho que está na hora de tratar disso. Afinal, nove entre dez conselheiros independentes sabem que o Beira-Rio tem de ser derrubado para a Copa. Não há conserto. É sucata. E, olha, a questão é muito séria. Há um grupo de pessoas que estão esperando o time melhorar para denunciar a verdade. Só que o time não lhes dá a mínima chance. Em tempo: acho ridícula toda esta movimentação para vermos dois ou três jogos da Copa na cidade. Já pensaram se nos couber Gana x EUA, Equador x Japão, Arábia Saudita x Bélgica?

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25 de setembro de 1994, 19h40, Bárbara

Te vi poucos segundos depois de apareceres
a médica passou a toda velocidade, estava sorrindo
o teu grito era imenso, um bocão de 2,5 Kg
ela te limpava, dizendo nossa ela é forte
e aí te peguei, tu estavas toda rígida,
ainda berrando, embrulhada em panos,
quem eras?

Cuidei muito de ti, tu eras pequena
e me enxergavas imenso
o que sempre me diminuía;
te acostumaste com minha falta de jeito
sempre bem escondida
sob a torrencial chuva de bobagens
das quais sou refém

A infância foi uma infância
e tu nem lembras mais que me pedias, rindo sedutora
na porta da creche
pai, me entrega daquele jeito?
e eu te entregava na porta, segura por um pé, de ponta cabeça
dizendo pelo amor de deus
fiquem com esta porcaria

E aí houve a separação
e deixei tudo para o dado e para ti

mas querias vir
eu cá dizendo que deixara tudo para ti lá
tu dizendo não
e vieste para cá
para mim
para nós

Confesso sem vontade nenhuma de dizer, que tua decisão me (nos) assustou
imaginava anos de despojamento vendo de longe tua formação
quando pediste e pediste e pediste por meses para vir
e, bobo que sou, quando quis ajustar a vida cá
recuperando algo que deixará lá
vi só egoísmo, ódio e cus-
tas

Mas
como foi bom;
quando penso no futuro
quando estou infeliz de dar dó
ou alegre porque houve alguma coisa legal
e a vida voltou a ser uma aventura boa e estamos os
três rindo na cama ou na mesa, penso em ti e o resto vira
lenda e o medo da vida vira medo do dia em que tudo acabará
— pois acabará, querendo ou não —
e que seja numa noite após um desses dias em que mal nos suportamos,
de tão debilóides

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Milton versão portuguesa

Ora, pois pois, recebi minha cidadania portuguesa. Não que tenha algum interesse em me mudar ou mesmo em conhecer os parentes de meu pai. Dia desses, a internet me permitiu saber que há alguns Ribeiros nos endereços esperados em São João do Loure, distrito de Aveiro. Um deles é dono de um motel. Vi fotos dos quartos. Talvez conseguisse um test drive gratuito lá. O que gostaria de saber mesmo é porque Manuel Martins Ribeiro, meu avô, deixou Portugal. Certamente foi a pobreza que empurrou aquele homem à aventura de vir trabalhar como estivador no cais de Porto Alegre, depois conseguiu abrir uma padaria (enfim, é o caso típico do portuga chamado Manuel, dono de uma padaria chamada Lisboa…). O que gostaria de saber seriam os detalhes, as circunstâncias todas e isso só com ele (veio com quem, por que metade da família ficou, ele era da parte pobre dos Ribeiro?, etc.). Acho que sempre fomos realistas. Já tive contatos com descendentes de ucranianos que eram parentes da princesa Anastácia… Outros diziam que ela estava no navio que os trouxera. Já ouvi narrativas de imigrantes italianos que eram nobres e ricos, muito ricos na Itália. Ora, ninguém vinha para o Brasil por ser rico. Há poloneses com histórias incríveis também. Lendas e lendas.

Diziam que meu avô era um grande piadista e bem-sucedido mulherengo. Nas fotos, sempre sorri muito. Era mais bonito do que meu pai e eu. Morreu em 1960, quando eu tinha 3 anos. Parece que ficou muito feliz quando soube que se segundo neto era varão, pois tal fato garantiria a continuidade do nome Ribeiro, um sobrenome raro, exclusividade nossa. Não lembro de nada, mas soube que ele gostava de me atirar para o alto e depois pegar, coisa que sempre fiz com meus filhos. Costumava amarrar fios em notas de dinheiro que deixava na calçada em frente à padaria. As brincadeiras do filho eram mais punks, meu pai tinha a mania de cuspir em quem afagava seus belos cachinhos. As pessoas concordam que minha avó, Maria Nazaré, prima-irmã do marido Manuel e que morreu em 1954, era uma santa. E eu tenho a cara dela, como minha mulher descobriu, surpresa. Todos gente comum. Sua filha, minha tia, aprendeu a tocar piano e era professora do instrumento; mas quem adorava música era meu pai, que chegou a compor valsas… Uma delas, Férias de Julho, era dedicada a mim e minha irmã. Sei a melodia até hoje. Às vezes, ele sentava no piano e dava um recital de… Férias de Julho. (Era uma geração de pianistas. Minha mãe também tocava, preferencialmente tangos, fato que fez com que seu professor – o maestro Leo Schneider – fechasse violentamente a tampa do piano em suas mãos. Ela estava divertindo as meninas do internato que dançavam quando chegou o maestro. Ele queria que ela tocasse apenas clássicos, não aquela música degenerada…) Mas, voltando à nossa casa, um dia, o piano sumiu. Todos o haviam abandonado e o utilizavam para largar suas coisas. Minha mãe se irritava com aquilo e vendeu-o.

Há um escritor na família. Era irmão de minha avó, viveu sua vida no Rio de Janeiro e atendia pelo nome artístico de Cardoso Filho. Meu pai achava seus livros uma merda.

Então, em resumo, não conheci quem me deu a cidadania, apenas os filhos dos imigrantes. Do ponto de vista cultural, herdamos muitas coisas deles – do ponto de vista material, puf! –, mas quem deverá aproveitar a cidadania é minha filha, que poderá utilizá-la para estudar fora, se quiser. Meu filho tem 18 anos e não obterá vantagens por ser maior de idade. E eu, quando for à Europa, agora não preciso mais entrar na fila dos não comunitários, serei considerado cidadão de primeira linha. Além do mais, na improvável hipótese de desejar ir aos EUA, entro direto sem me humilhar no Consulado em São Paulo.

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Da vida besta

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

CIDADEZINHA QUALQUER – Carlos Drummond de Andrade

Acho que enganei vocês. O post de ontem à tarde tinha fotos mais antigas, de outro fim de semana passado em Itapema/SC. Como vocês perguntaram sobre o hotel fazenda onde eu estava e que presumivelmente teria uma praia próxima, vou explicar como não é nada disso.

Nós — eu, minha mulher, minha filha Bárbara, meu sobrinho e meus sogros — estávamos no Hotel Fazenda Olho d`Água em Camaquã, longe do mar. O lugar é lindo, a comida é esplêndida, mas se os avós estavam lá para descansar e eu para ler e ouvir música tranquilamente, os outros queriam andar a cavalo pelos campos por horas e horas. Só que o sistema da fazenda exigia que o monitor acompanhasse os cavaleiros, que os cavalos fizessem as mesmas trilhas e tudo se tornou muito chato. Quem conhece um pouco de cavalos sabem que eles decoram os caminhos e então nem precisam ser dirigidos. É chato mesmo. A gente sobe no animal, ele identifica a programação do turno e cumpre apressadamente o circuito, louco que está para voltar à sua vida besta. No ano passado, fomos a um outro local em que as cavalgadas eram livres… Tinham prometido que o mesmo ocorreria na Olho d`Água, mas…

Mas meu sogro resolveu cair da cama de cara no chão. Chegou para tomar o café da manhã cheio de esparadrapos. Parecia um palestino vítima de estilhaços de uma bomba. Não obstante, sorria, sabedor do cessar-fogo. Estava confiante de que se equibraria sobre a cama nas noites seguintes. Parece que foi bem sucedido, mas…

Mas a comida me fez engordar. Estava fazendo um enorme esforço para diminuir minha capa de gordura. Em três semanas, tinha baixado de 80,5 Kg para 76,3. Uma odisséia esse negócio de tornar-se uma picanha menos apetitosa. Pois quatro dias de vida besta e extraordinária gastronomia foram deletérios, muito. Dona Valdirene, a cozinheira da fazenda, calibrou meus pneus em 78,8 Kg. Dois quilos e meio ganhos em honra dela.

Voltei para trabalhar, mas eles acabarão voltando antes. Hipoequinemia severa, sacam? são uns doidos.

Confiram abaixo a beleza da fazenda:


Na falta de cavalos, joga-se o ódio nas pobres bicicletas…


Não é uma grande obra, mas é surpreendente que esteja onde está.


O lado direito do hotel.


O outro lado. Incrível, não tirei fotos frontais…


Bárbara observa as possibilidades da piscina…


… que é muito boa, apesar da hipoequinemia que se alastra por seu corpo.


A buganvília.


E eu, brincando de Magritte ou Hopper. E fim.

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Feriado

Hoje é feriado municipal em Porto Alegre. Dia lento, cidade vazia, muita gente na praia. Acordei desejando que fosse necessário ir à padaria buscar leite e pão, mas estávamos abastecidos. Gosto de ir à padaria da esquina; moro na desconhecida rua Gaurama há um ano e pouco e sou um personagem coadjuvante de nossa vicinal de jeito interiorano. Porém, na padaria, sou uma estrela. Os donos são uns italianos bem humorados que trabalham feito uns condenados — só fecharam no dia 1º de janeiro, abriram até no Natal. Eu sou o cliente engraçado que comenta a vida amorosa das atendentes, que inventa encontros para elas, sou o colorado que deve ser perseguido nas derrotas, o chato que comenta a qualidade dos pães e faz o padeiro vir lá de dentro discutir, o dono do cachorro que deixa o bicho deitado na porta sem amarrá-lo, o cara que mora na casa cuja janela da cozinha mais parece uma exposição de panelas e é decorada com uma galinha pendurada pelos pés, onde botamos os sacos de supermercado. Sou famoso na Zanini.

Ir à padaria de manhã enquanto os de casa ainda estão com suas caras enfiadas nos travesseiros pode parecer um carinho que lhes faço… (Lembro de Tom Jobim dizer às gargalhadas que ia todas as manhãs à padaria de seu bairro com a finalidade de não estressar a criadagem. Conta-se que ele nunca comprava nada. Ia só conversar.) … mas talvez é mais a necessidade de conversar e rir um pouco das bobagens que saem de nossas conversas. Estou com vontade de contar que fui ver Inter x Sapucaiense. Já sei que as mulheres vão dizer que posso ter cara de inteligente — são as únicas pessoas no mundo que dizem isso –, mas que sou um débil mental como todos os homens. O gremista da caixa vai me chamar de fanático, vamos discutir o fim-de-semana da balconista gorda que está há um ano prometendo separar-se do marido e alguns vão fazer um carinho na minha pastor alemão, a Juno, que ficará observando a conversa, esperando que eu me decida a voltar para casa. Sempre compro alguma coisa e minha mulher fica irritada com a quantidade de pão, frios e leite que trago. Nosso freezer está sempre lotado e ela diz que falta espaço para o que interessa.

O vizinho começou a cortar sua grama e a cachorra deve estar estranhando que ninguém desceu ainda. Minha filha e seus amigos vão acordar ao meio-dia e estou cheio de e-mails para responder, então acho melhor trocar o pijama por uma roupa civil e ir logo à padaria.

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Equilibrando-me entre o futebol e o tênis

Sou daqueles homens que podem passar horas abobalhados assistindo a um jogo de futebol ou de tênis. O que fazer se nascemos com esta estranha necessidade, tão comum entre os homens e tão rara entre as mulheres? Tenho absoluta certeza de que o motivo maior pelo qual fico vendo futebol não é o ódio mortal (e perfeitamente natural) que cultivo ao Grêmio nem o amor que devoto ao Inter (algo mais natural ainda). Posso ficar igualmente hipnotizado se a atração for Boca X River, Manchester United X Milan, Náutico X Íbis ou uma pelada entre garotos. Trata-se de um defeito de fabricação muito comum entre nós, seres mais apreciados por elas pela produção de testoterona.

E o pior é que tenho absoluta certeza de que o motivo pelo qual gosto de futebol e tênis é estético, é plástico… Entendem? O futebol, principalmente quando visto no campo, é algo belíssimo, digníssimas senhoras. A movimentação, a tática que os jogadores obedecem ou não, é muito interessante. A dinâmica do jogo é complexa e alguns treinadores levam enorme tempo para gerar aquela sincronia a qual denominamos bom futebol. Tá bom, concordo que isto é parcialmente desmentido pelas entrevistas que ouvimos aos finais de jogos. Nossas mulheres devem questionar se a mente de quem fala daquela maneira pode gerar, noutras circunstâncias, quaisquer pensamentos abstratos. Outra dúvida possível é se a complexidade do futebol não é um fato apenas imaginado por nós com a finalidade de valorizar o triste fato de sermos fanáticos adoradores de algo imbecil. Mas sei que alguns jogadores podem ser verdadeiramente geniais dentro de campo, tal como Johan Cruyff, Tostão e Zidane; enquanto que outros — como Ronaldinho Gaúcho — são provas vivas de que uma excepcional coordenação motora pode ser comandada por um cérebro burro sem grandes problemas…

Algumas mulheres se irritam conosco, outras — mais espertas — suportam bravamente nossas características. A minha está no segundo time. Ela já foi adestrada (desculpe, meu amor) por um marido italiano que passava todo o domingo na frente da televisão em Verona. Como sou capaz de ficar apenas 3 horas contínuas atento aos jogos, talvez eu seja uma evolução em sua vida. Semana passada, durante uma preguiçosa e amorosa manhã, víamos um torneio de tênis e tratei de explicar-lhe as regras que regem um jogo daqueles. Foi complicado, pois não conheço a raiz histórica que faz com que contemos os pontos de forma tão estapafúrdia — 1 a 0 no game é 15-0, 2 a 0 é 30-0, 3 a 0 é 40-0… –, só sei que é assim. Como ela não costuma aceitar explicações vagas, tendo a irritante mania de dominar todos os conceitos fundamentais, não é adequado dizer-lhe que é assim porque é. Graças ao bom Deus, ela concluiu que devia ser algo inventado por ingleses, povo que tem o sistema monetário e de medidas mais complicado do planeta. No final, ela já estava até fazendo comentários pertinentes…

Ontem pela manhã, liguei a TV para ver LDU x Pachuca. Me entusiasmei além da conta com a cobrança de falta de Bolaños e disse o que deveria ter evitado: Olha, a trajetória desta bola! Não é pura arte? E completei a merda de forma condigna: Parece um traço de Picasso. De onde tirei uma besteira dessas? Recebi de volta apenas um arquear de sobrancelhas. Aquele arquear, entendem? Aquele que significa 100% de ceticismo, que nos reduz a meros adoradores de algo que não vale coisa alguma e que só poderá ser reequilibrado se ela ficar duas horas se arrumando para uma festa, provocando constrangedor atraso…

Céus, quanto investimento jogado fora!

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11 de dezembro de 2008

Hoje, o compositor americano Elliott Carter completa 100 anos de vida. Escrevo este texto às 21h30 da noite de 10 de dezembro de 2008. Há 15 anos, mais ou menos neste horário, encontrei meu pai no Supermercado Zaffari da Av. Ipiranga, em Porto Alegre. Fiz o que sempre fazia com ele e ele comigo: dei-lhe um encontrão por trás e…

— Desculpe, senhor… Nossa! Pai! Tu aqui?

Conversamos sobre os CDs que ele comprara e que ouviríamos — um minuto por faixa, a toda velocidade — no dia seguinte, durante o almoço. Sempre almoçava lá aos sábados.

Às seis da madrugada daquele sábado, minha mãe ligou. Não gritava, apenas falava rápido parecendo que queria me acalmar. Disse que encontrara meu pai deitado no banheiro; não disse caído, disse deitado porque ele estava reto de costas, com a mão no peito, como se tivesse lentamente sentado no chão e depois deitado, esperando que a dor do enfarto passasse.

Quando cheguei em casa a equipe da Unimed, minha mãe e irmã cercavam o corpo. Ou não, acho que minha irmã chegou depois. O cara da Unimed me fez um sinal com o polegar para baixo. A mãe dizia que não o tinha visto sair da cama e que fizera tudo o que sabia: respiração boca a boca, pressão no peito, etc. Tratei de consolá-la. Fim.

Tive receio que Carter não chegasse ao fatídico 11 de dezembro, mas chegou. 100 anos! É incrível que esteja produzindo. Estreou 10 novas obras entre 2006 a 2008, dos 98 aos 100… Fantástico. No dia 8 de agosto passado, terminou uma peça para grande orquestra chamada Wind Rose. Suas obras são dificílimas, quase inviáveis. P.Q.P. Bach publicou seu Concerto para Piano e o Concerto para Orquestra. Talvez haja alguma homenagem hoje. Não consigo imaginar música mais complicada.

Espero um 11 de dezembro tranqüilo. Haverá concertos em Nova Iorque (onde Carter reside), Washington, Montreal, Amsterdam, Berlim, Helsinki, Viena, etc. e gostaria de saber se alguma publicação brasileira fará referência ao aniversário de Carter. Duvido muito. A conferir.

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Notas sobre um novo esporte, o Hipismo Canino

O Hipismo Canino é esporte muito praticado na Zona Sul de Porto Alegre. O material utilizado é simples. Basta você desalojar todos os vasos ornamentais da casa — eles nunca reclamam –, colocando seus suportes em fila. Observe na figura abaixo:

Notem que os obstáculos do Hipismo Canino podem ser colocados lado a lado como na figura acima, ajustados como duplos ou triplos — tipo em fila com espaços no meio para o cachorro tomar impulso, entende? –, ou serem amontoados uns sobre os outros — tipo montanha –, como na ilustração que segue. É muito divertido!

Fundamental é o preparo psicológico adequado do animal. Ele pode ficar nervoso, ainda mais em se tratando de filhotes fêmeas de 5 meses de pastor alemão, como é o caso de nossas ilustrações. A propósito, na figura abaixo, vemos a treinadora de Hipismo Canino mantendo o animal calmo e sob seu inteiro controle.

E aqui, o pai da treinadora faz o mesmo enquanto o animal lambe-se de prazer. Viram? Demonstrações de carinho fazem com que o cão submeta-se às maiores torturas provas!

A(o) treinadora(or) acompanha o cão com seu uniforme obrigatório: uma calça velha, uma pantufa recém dada pela boadrasta e já devidamente destruída pelo cão — para ter aquele cheirinho de afeto — e um blusão novo, do colégio, a fim de que lhe seja dado logo outro, porra. Na mão direita, como estímulo, é fundamental que a(o) treinador(a) tenha uma coxa de galinha congelada, mordida e recém aquecida no forno de microondas — não sabemos se no caso a coxa foi mordida, depois congelada e descongelada ou se a ordem dos fatos foi outra — e, na esquerda, o maior objeto de amor do animal: uma bola de futebol do irmão furada pelos dentes do cão. Observem bem, sem perder o detalhe do tamanho da língua do cão, a qual permanece externa à boca, prova de seu bom preparo psicológico:

O esporte é simples. Basta gritar “Vem, Juno!” e movimentar-se. Os olhos da filhote faminta ficarão mesmerizados pela coxa de galinha e pela bola furada ou por uma das duas. (Pensamos que o duplo estímulo funcione melhor). Em seu caminho haverá os obstáculos. Muitas vezes a cadela os contornará — coisa intolerável! Neste caso, nada de coxa ou bola para a cachorra feia, apenas pesadas admoestações, sempre em língua alemã. Mas quando ela salta é maravilhoso.

O prazer da treinadora e do irmão fotógrafo é algo indescritível!

Observem como, mesmo antes de cair, o animal apenas olha, salivando, a desejada coxa e a bola — seu objeto transacional (importantíssimo a qualquer criança, segundo os psicólogos) — sem preocupar-se com o chão.

É o esporte ideal para pátios internos e principalmente para condomínios que aceitem a presença de cães. Tire seu filho das drogas através do Hipismo Canino.

Fotos do meu filho Bernardo.

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O precursor foi o vinte (e cinco) de setembro (*)

O dia 25 de setembro tem alguma relevância, sabem? Foi num 25 de setembro de 1513 que o explorador espanhol Vasco de Balboa descobriu o Oceano Pacífico. Grande coisa! Como se ele não estivesse lá há milhões de anos e não fosse do conhecimento, por exemplo, dos chineses. Mais de quatro séculos depois, mais exatamente em 1897, a mãe de William Faulkner escolheu um outro desses 25 de setembros para apresentar os primeiros eflúvios de álcool ao filho. Nove anos depois, nascia no mesmo dia Dmitri Shostakovich, dando enorme peso à data. A coisa quase degringola em 1944, quando o velho Kirk e sua mulher puseram no mundo seu filho tarado Michael Douglas em 25 de setembro. Oito anos depois, veio à luz Christopher Reeve, ator norte-americano que fez Super-homem. Já em 1964, os moçambicanos escolheram o dia para iniciar sua luta pela independência. Após exatos 4 anos, nascia Will Smith e, 365 dias depois, nascia a mulher daquele Michael Douglas nascido 24 anos antes. Sim, hoje também é o aniversário de Catherine Zeta-Jones. O casal faz aniversário no mesmo dia, que meigo! Porém, há as mortes. O baterista do Led Zeppelin, John Bonham, escolheu inadvertidamente, ou não, um 25 de setembro, o de 1980, para morrer aos 32 anos. E… bem, Klaus Barbie fez o mesmo em 1991. Viveu demais. Em 1993, Portugal lançou no mesmo dia seu primeiro satélite, o Posat I, cuja inteligência deve ser toda artificial, e, em 2005, faleceu o imortal, ao menos para minha geração, Don Adams, o Agente 86 original, aos 82 anos.

Mas nada disso interessa muito, pois meu grande 25 de setembro foi o de 1994. Era um domingo bastante quente no qual passeamos num parque durante a manhã. Os suecos e Bergman dizem que as crianças de domingo são as mais felizes e especiais e ela chegou às 19h40. Chegou transtornada a este mundo, berrava demais e naquele dia não demonstrou nenhuma doçura, só se aquietando quando emborcou um seio, provocando breve grito na mãe, tal era a decisão. Decisão semelhante a fez escolher todas as fotos deste post e as do próximo Porque Hoje é Sábado, mas essa é outra história. Outra decisão a faz dizer que será Veterinária desde que soube o que era isso, o que me impedirá de repetir esta cena, acontecida na casa de Paulinho da Viola:

Tinha eu catorze anos de idade
Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar Filosofia
Medicina ou Engenharia
Tinha eu que ser doutor

Bárbara, 14 anos! Nada tenho de melhor a fazer do que transcrever o final deste post de Branco Leone, pois meu amor por ela teve o mesmo efeito:

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Sinto em mim o que escreve o Branco: cada vez mais dona de si e do mundo, torna menores todo o entorno e o inexorável e distante. Ou não.

Ah, as fotos!


Foto do último sábado, após vencer uma competição de hipismo. O do meio é o tratador do cavalo. É, segundo ela, um cara muito filosófico.


Pensativa, deve estar refletindo sobre que porcaria vai comer agora.


Cara de louca assassina Nº 43. Eu e ela fazemos competições de caretas, mas sou muito melhor.


Observando a movimentação da vizinhança.


Na cama com Olga.


Esta foto é meu wallpaper. Foi ela quem colocou, claro. O legal da foto é que ela já olha para o próximo obstáculo, o que é impossível ver nesta versão reduzida.


As meninas da geração de minha filha não apenas vão juntas ao banheiro como botam a máquina na janela e tiram fotos automáticas. Deve ser muuuuuito legal…


Ou é porque lá fora aparecem uns chatos para encher o saco?

(*) Só os gaúchos entenderão o título…

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Medo de Dentista

Hoje, às 18h, eu vou à dentista. Eu tenho horror a dentistas.

Não tenho medo de cirurgias, de altura, de avião, do Grêmio, de ratos, de insônia, da velhice. Tenho medo é de dentistas.

Às 18h. São 13h30 e só penso no que me fará a Dra. Simone daqui 4 horas e 30 minutos. Uma enorme obturação — quase 100% do dente — quebrou e hoje ela será refeita. Fui lá na semana passada e ela me disse hum, vai dar canal. Então me botou aquela coisa gélida no dente e quase me atirei pela janela. Sorte que pude pensar antes, o consultório é no 22º andar. Surpresa com a dor que eu tinha sentido, ela respondeu então não vai dar canal. Canal? Ficou louca? Nunca fiz tratamento de canal e só ouvir uma expressão dessas já me provoca pânico e desarranjo.

Meus pais eram ambos dentistas e sempre preferi fazer os tratamentos com meu pai (cirurgião-dentista), já falecido. Ele parecia me compreender melhor. O trauma começou lá na minha infância, quando minha mãe – que era…, bem, odontopediatra -, começou a eliminar minhas cáries. Hoje sabemos que uma mãe NÃO DEVE ser a dentista de seu filho, mas, nos anos 60, essa noção não era tão clara. A criança que eu era nunca entendeu porque a pessoa que mais amava neste mundo insistia com aquelas torturas. Era ela quem ligava aquela coisa giratória e de som insuportável em mim. Mas o pior era a emissão secundária de um ventinho frio, úmido e dolorido que me penetrava boca adentro e que me fazia automaticamente gritar, chorar e mexer as pernas. Hoje não faço mais fiascos, mas internamente choro e não entendo porque não me amam.

Morei muitos anos com meus pais em uma grande casa de dois andares. A família morava no andar de cima e o térreo servia para as atividades de nosso DOI-CODI. Com uma mãe odontopediatra, podia ouvir durante o dia os gritos, o choro e a indignação das criancinhas seviciadas. Não sei como ia tanta gente lá, eles estavam sempre com o consultório lotado! Ficava surpreso com a cordialidade com que os adultos mutilados se despediam de meu pai, quando acharia mais natural que praguejassem violentamente e buscassem reparação ou vingança. Mais surpreendente ainda era a reação cordial das mães das crianças às ações de minha mãe.

Hoje estarei na cadeira com a suave Dra. Simone. Ela é bonita e, apesar de perigosíssima, não parece. É um tipo mignon; tal como minha mãe, é magra e mede 1,55m, no máximo. Gostaria de suplicar-lhe cuidados maiores que o normal. Quando lhe falei sobre meus medos, ela riu muito e fiquei imaginado que crueldades poderiam estar escondidas sob cada ha que ouvia. Ha, ha, ha. Qual é a graça? Acordei pensando nela, louco para desmarcar a hora, ainda mais quando abri o jornal e ele dizia, inequivocamente: 13 de agosto. Disse isso para minha mulher que, após a tradicional inspeção feminina sobre quem seria a tal Dra. Simone e porque eu justamente a escolhera, ironizou falando alguma coisa sobre homens medrosos que ficam 10 anos sem ir ao dentista e que, com 50 anos, só vão uma vez fazer o tal exame de próstata, enquanto as mulheres, etc., chega! Despediu-se perguntando se eu não desejava que ela fosse junto para segurar minha mão…

Decididamente, as pessoas não são sérias.

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Diários de Motocicleta

Vi o filme de Walter Salles no último domingo. Foi um dia chuvoso que acabou lindo, ensolarado. Fui ao cinema com meu filho Bernardo, de 13 anos, e acabei encontrando lá, por coincidência, minha irmã acompanhada de minha mãe. O Bernardo é um novíssimo apreciador de cinema que já me confidenciou mudanças radicais em sua forma de ver filmes. A maior prova disto foi a surpreendente declaração de que, hoje, vê mais méritos em Cidade de Deus que em O Senhor dos Anéis. (Nas entrelinhas, vocês devem ler minha baba.)

Para quem não sabe do que se trata, o longa-metragem mostra a viagem de motocicleta realizada em 1952 pelo jovem estudante de medicina Ernesto “Che” Guevara de la Serna (Gael García Bernal), de 23 anos, junto com o amigo bioquímico Alberto Granados (Rodrigo de la Serna), de 29. O roteiro é baseado nos livros escritos respectivamente pelos dois: De Moto pela América do Sul e Con el Che por Sudamérica.

Gostei muito do filme. É um road-movie muito bem dirigido, com imagens belíssimas e atores em desempenhos impecáveis. Roberto Maxwell escreveu em seu blog que Walter Salles revela-se um humanista. Concordo inteiramente. O olhar interessado que Salles lança sobre todos os seus personagens dá ao filme surpreendente grandiosidade. É um diretor sensível e raro. Raro ao impor-se a dificuldade de fazer um “filme de formação”, isto é, de documentar artisticamente a tomada de consciência e o crescimento das convicções dos personagens principais. A forma mais simples seria a de partir para as pedradas panfletárias, mas WS é muito inteligente e esteta para cair nesta tentação. Quando o filme começou, até temi que viessem diálogos que parecessem saídos de alguma antologia de aforismos socialistas. Mas isto não ocorreu; Ken Loach estava longe daqui. A atuação e o entendimento da dupla Gael García Bernal e Rodrigo de la Serna é perfeita. Em cena, eles sempre se mostram dignos de seus personagens, adotando a esperada postura de jovens idealistas e inteligentes, acrescidos daquela acidez de humor tão comum entre nossos amigos argentinos e uruguaios.

Em minha opinião, o melhor filme de Walter Salles ainda é o pouco visto O Primeiro Dia, realizado logo após o super visto Central do Brasil, mas agora Diários de Motocicleta vai para o segundo lugar. No final do filme, minha irmã estava muito emocionada, com os olhos meio marejados. Eu também. O final do filme é para isto mesmo, mas meu motivo era o de ver 3 gerações de nossa família saindo calma e casualmente do cinema, ouvindo o Bernardo dizer que queria aprender espanhol. E o motivo dela, qual seria?

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A Maria Luiza e a anárquica Tina

Minha mãe completou 81 anos no dia 5 de julho. Seus 81 foram melhores que os 80 e os 79. Em seu último período no hospital, pensei (pensamos) muitas vezes que ela não voltaria mais para casa. Só que, após o isolamento em que ficou devido a uma infecção respiratória, os médicos puderam reavaliar a medicação que tomava e esta foi super-reduzida. E descobrimos que grande parte de sua prostração ocorria pelo excesso de remédios; ou seja, ela estava dopada.

Não culpo os médicos; afinal, em fevereiro de 2007, ela passou dois meses internada e, cada vez que os calmantes eram reduzidos, tornava-se agressiva e gritava a ponto dos outros pacientes ficarem irritados… Certamente os que a atenderam desta vez –- Dr. Sérgio Loss, Dr. Barbieux e um certo Adriano que nunca vi -–, usaram de bom senso ao aproveitar este longo período de hospitalização para repensar todo o coquetel. O resultado é que ela está sorridente, calma e vígil, apesar da absoluta confusão mental. Aqueles que a viram com a cabeça caída sobre o peito e com o olhar vago, vão se surpreender com a nova primavera da Dra. Maria Luiza, a querida bobinha feliz que muitas vezes não me reconhece, apesar de sempre repetir que fico melhor de cabelo curto.

Ele retornou para minha casa no dia de seu aniversário. Pois, logo após a volta da Dra. Maria Luiza, recebi a notícia do falecimento da Tina Oiticica Harris, do blog Universo Anárquico, habitual comentarista deste blog e com quem tinha trocas de e-mails bastante agitadas e… anárquicas. Faria 56 anos no dia 9 e sempre convidava a mim e à Claudia para irmos aos EUA visitá-la e a sua família. Prometia deixar seus gatos num hotel para que não me incomodassem… Uma vez, ela se referiu ao fato de que as trocas de letras em seus textos eram devidas a uma hidrocefalia, mas o assunto parou por aí porque tínhamos piadas a inventar um para o outro. Não sei qual foi a causa da morte, ocorrida dia 7, dois dias antes de seu aniversário. A notícia veio através de um post escrito por seu marido. Ele, o americano Nicolas, tentava manter o bom humor enquanto nos narrava a notícia num português arrevesado. O texto começa assim:

Um aniversário bem anárquico, por Nicolas Rouquette

Não consegui dormir a três horas da manha hoje, o dia de o aniversário de 56 anos de mi Tinazinha gostozinha; Infelizmente, a grande Madame no besteirol esta indisponível para resolver para a gente nesse anacronismo bem anárquico do aniversário dela.

Que aconteceu?

E então narra os acontecimentos, finalizando assim:

Já tem com muito saudade de o único amante da minha vida. Agora entende melhor que a vida da Tina estava anárquica em muito aspetos. Si você tem uma historia que você pode escrever, me gostaria muito ler disso. Por favor, em memória dela, da uma consideração para escrever qualquer memórias gostosa da Tina como um “guest” nesse blogo.

Ora, Nicolas, todas as memórias que tenho da Tina são tão alegres, pontuadas de “blasfêmias” -– palavra que ela sempre usava para caracterizar a forma como eu me referia a quase tudo –- e de tudo que fosse politicamente incorreto que não saberia por onde começar. A Madame do Besteirol me chamava de o seu Bad Boy e a melhor lembrança dela foram os inúmeros comentários que aquele Curriculum Vitae recebeu. Nos e-mails, ela me contou que os traduzia para ti, Nicolas, e que vocês riam dos absurdos. Guardo uma bela lembrança dela.

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O estado de espírito do dono do blog

Claro, este blog é a mistura de tudo o que passa por minha cabeça e de algumas coisas que ela recebe, mas quando passo por um período tenso a tendência é a de ele se torne mais e mais confessional. Só que desta vez a coisa tem doído um pouco mais e até deitar pensar os problemas no blog tem sido mais complicado que consolador. Estou com lógicos e péssimos pressentimentos sobre o futuro de minha mãe. Doente há muito tempo e cada vez mais vivendo em seu mundo, piorou muito nos últimos dias, mesmo tendo saído da UTI para uma zona chamada “Intermediária”.

Tenho a impressão de não estar nem irritado, nem deprimido, nem tenso, mas isto é falso, pois sei que poderia explodir à menor contrariedade. Fico meio abobalhado, olhando sem interesse as milhares de fotos que tenho no micro. Não há surpresa na situação; afinal, era o esperado para quem tem uma doença prima-irmã do Alzheimer (*), só que a constatação de que as doenças degenerativas são exatamente aquilo que as pessoas mais realistas me descreveram e que chegam a pontos solidamente injustos e desnecessários… Olha, é foda. Para que tanto sofrimento? Porém, ao passar por esta foto aqui…

Sean Connery Zardoz

… é impossível não rir e desviar o pensamento, desejando saber o que Sean Connery diria dela hoje. Amanhã, mais hospital. Dr. Cláudio Costa ligou amiga e gentilmente de Belo Horizonte e eu lhe disse com a maior calma do mundo que, se realmente tivermos que somar à inconsciência da doença outras impossibilidades, melhor seria a eutanásia. Dia cansativo. Agradeço a meu psiquiatra preferido por ter me ligado. Foi um bom momento que só vi repetido agora, ao chegar em casa.

(*) Algum tipo de demência resultante de uma queda ocorrida há quase dois anos. Não há sentido em fazer uma biópsia a fim de descobrir o nome correto da doença, pois o pequeno leque de possibilidades que não mudaria o tratamento.

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30 horas

As últimas 30 horas do fim de semana foram algo como um carrossel de emoções (como dizia a Bia).

1. Visita a minha mãe na UTI: ela sofre do Mal de Alzheimer ou de algo perto disso; foi fazer uns exames e, fraca, acabou na UTI. Sedada, deitada e intubada (*), era uma visão deprimente.

2. Inter 2 x 1 Botafogo: meu filho queria porque queria ir ao jogo. Não sei se queria mesmo ou se sua intenção era a de me afastar do trabalho e do hospital. Ganhamos o jogo. Surpreendentemente, a estréia do Tite foi boa.

3. Esplêndido convite: liga a Astrid, mulher do meu amigo Augusto, perguntando se temos programa para o sábado à noite. Não tínhamos. Então, ela perguntou quantos nós éramos, pediu que arrumássemos a mesa com pratos fundos, colher, garfo e faca, além de copos para água e vinho. Precisaríamos produzir uma sobremesa para esperá-los? Que vinho escolheríamos? Não, nada disso, ela e o Augusto trariam absolutamente tudo, da comida à sobremesa, passando pelo vinho. Noite inesquecível, companhia e música perfeitas. Só o meu cansaço destoava.

4. UTI: nova visita a minha mãe no domingo pela manhã. A mesma coisa. Inconsciente como quase sempre está.

5. Longe dela: talvez pelo contexto, quis ver o filme em que Julie Christie faz uma personagem que sofre de Alzheimer. Um filme muito bom que, se não nos dá a extensão do trabalho e do horror, dá o tamanho psicológico da perda.

6. Control: em seguida, mais um filme. Putz, e era mais deprimente ainda. Trata da curta vida de Ian Curtis, vocalista da banda Joy Division. A atuação dos atores é digna dos mais rasgados elogios. Notável.

7. Dunga: fico sabendo da derrota brasileira e penso na crônica que escreverei para o Impedimento. Explicarei meus motivos para comemorar este tipo de resultado.

(*) ENTUBAR – Entubar ou Intubar?
Entós (grego)= posição interior. Documenta-se em vocábulos introduzidos na linguagem científica a partir do século XIX.
Intus (latim)= para dentro.
Como tubo(cânula endotraqueal) vem do latim tubus, a palavra correta é intubar.

Retirado do Dicionário das Agressões Médicas à Língua Portuguesa.

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