Por Hélio Schwartsman
Nestas férias, levei as crianças para passar uma temporada num acampamento ateu nos EUA. Durante duas semanas eu, minha mulher e os dois garotos fizemos programas familiares na região de Washington DC, fustigada por um calor senegalês. Eram 40 graus à sombra. Na semana seguinte, enquanto eu e Josiane gozávamos um idílio romântico, os gêmeos Ian e David, agora com dez anos, eram iniciados nos evangelhos de Dawkins, brincando com outras crianças enquanto recebiam lições de ciência e ceticismo. Era um daqueles acampamentos de filme, em que os meninos dormiam em cabanas de madeira bem primitivas no meio de uma floresta e derretiam marshmellow na fogueira.
Minha ideia inicial não era a de doutrinar os garotos, que já são por constituição dois bons ateuzinhos. Pretendia apenas promover uma viagem em família e aproveitar para reciclar-lhes o inglês, aprendido no período em que moramos em Michigan, internando-os num “summer camp”. Mas, durante minhas buscas na internet por um lugar adequado, sempre topava com descrições que frisavam os “valores cristãos” ali ensinados. Aos poucos, aquilo foi me deixando irritado. Os garotos já aprendem mais valores cristãos do que eu desejaria na escola católica em que estudam em São Paulo (não tenho nada contra religiosos desde que promovam um bom ensino). Eu queria apenas um acampamento de verão que fosse divertido. Assim, num momento de exasperação, joguei no Google “atheist summer camp” e, para minha surpresa, apareceu o Camp Quest, no qual logo os matriculei.
Trata-se, na verdade, de uma rede com acampamentos em vários Estados dos EUA e no Reino Unido. Eles até tentam, sem muito esforço, negar a pecha de ateus, preferindo termos como “secular” e “freetought” (pensamento livre), mas o caráter da instituição fica claro no nome com que batizaram a barraca em que Ian e David ficaram: “Magic of Reality”, título do último livro de Richard Dawkins, em que ele explica ciência e prega ateísmo para crianças.
Os garotos adoraram. Ressentiram-se um pouco de não ter conseguido jogar futebol como pretendiam, mas divertiram-se a valer, aprenderam os rudimentos do pensamento crítico e atualizaram seu inglês. Ian, que tem um talento especial para idiomas, chegou arrastando um sotaque levemente sulista, já que a maioria dos “campers” vinha da Virgínia, de Maryland e da Carolina do Norte.
Essa pequena mágica, a mudança de acento, esconde uma espécie de segredo de polichinelo da psicologia, algo que está bem na nossa cara, mas que nos recusamos a ver: pais importam muito menos para a formação dos filhos do que estamos dispostos a admitir. Quem primeiro lançou essa tese foi Judith Harris em “The Nurture Assumption – Why Children Turn Out the Way They Do” (a hipótese da criação – por que crianças se tornam o que se tornam), lançado em meio a muita polêmica em 1998. Esse foi um dos bons livros que li nas férias.
Harris sustenta que a socialização dos jovens não se dá através dos pais, como nossa cultura prega, mas por meio de seus pares, isto é, de outras crianças da mesma faixa etária e sexo. Um dos muitos argumentos que ela usa para apoiar sua teoria é o fato de que filhos de imigrantes não terminam falando com a pronúncia dos pais, mas sim com a dos jovens com os quais convivem. Pode parecer até meio banal, mas a conexão linguística é especialmente interessante para o debate hereditariedade X educação porque ela é uma das poucas características que não embaralha fatores genéticos e ambientais. Com efeito, o idioma que falamos e a forma como o fazemos não são determinados pelos genes, mas só pelo meio em que vivemos. E, nesse meio, a força dos pares claramente prevalece sobre a dos pais. Harris se pergunta se esse mesmo esquema não valeria para outras características, ainda que entremeadas com condicionantes genéticas, como personalidade, religiosidade, propensão a vícios, a cometer crimes etc.
E ela acredita que sim. Para a pesquisadora, a influência dos pares supera a dos pais em quase tudo. É apenas por uma herança cultural relativamente recente, que valoriza sobremaneira a criação, que imaginamos o contrário. É verdade que existe toda uma biblioteca de pesquisas supostamente científicas que aponta para os efeitos paternos, mas Harris afirma que esses estudos sofrem de graves falhas metodológicas. Eles continuam a ser produzidos porque dizem o que queremos ouvir.
Boa parte das conclusões a que Harris chegou tem como base os estudos de gêmeos e adotados, que permitem não apenas discriminar efeitos genéticos de ambientais como também distinguir, nesta segunda categoria, o que seria o ambiente reprodutível (aquilo que passa para todos os que são criados no mesmo lar, escola etc.) do ambiente único (aquilo que faz parte da história exclusiva de cada indivíduo). E a somatória desses trabalhos aponta de forma mais ou menos clara que o ambiente reprodutível, onde os efeitos gerados pela criação se incluiriam, tem muito pouca força no longo prazo.
Um caso eloquente é o do comportamento criminoso. Um estudo dinamarquês que mantinha registros dos pais biológicos e dos adotivos e acompanhava o desenvolvimento das crianças, inclusive as condenações penais que receberiam como adolescentes e adultos, mostrou que 15% dos filhos de pais sem problemas judiciais criados por delinquentes acabaram tornando-se criminosos. Já entre os descendentes de gente honesta criados por pais adotivos também honestos, a taxa de desencaminhados foi de 14%, uma diferença irrisória.
A história muda um pouco para os filhos de criminosos criados por pais honestos. Aqui, a delinquência atingiu 20%, um bom indício de que a genética influi na sanha infracional. Na ponta final temos os filhos de criminosos educados por criminosos. A taxa de desviados nessa categoria foi de 25%. Esse seria um sinal de que a criação, afinal, faz diferença, ainda que apenas para o mal. Mas o resultado deve ser relativizado à luz de um outro dado. Nas cidades pequenas, o efeito do pai adotivo criminoso simplesmente desaparecia, o que se explica se pensarmos menos em termos de pais e mais da vizinhança em que a criança cresceu. De novo, são os pares que importam mais.
Para Harris, essa sensibilidade extrema do ser humano a seus iguais faz sentido do ponto de vista da evolução. No ambiente darwiniano em que nossa espécie passou a maior parte do tempo, tornar-se órfão ainda em tenra idade era, senão a regra, ao menos uma possibilidade bastante concreta. A melhor chance de um jovem sobreviver nessas condições era ser capaz de aprender e socializar-se com o grupo, não com os genitores.
A hipótese encontra amparo no fato de que crianças que são criadas em condições razoáveis de vínculos, vá lá, amorosos, por um dos pais ou um substituto pelo menos até os quatro anos acabam se tornando adultos funcionais mesmo que, dos 4 aos 18, passem por um festival de horrores em orfanatos ou nas ruas. Já quando traumas e abusos vêm antes dos quatro anos, o mais provável é que a criança se torne um adulto problemático, mesmo que, depois da idade crítica, seja tratada a pão de ló. Na Idade da Pedra em que o homem foi forjado, perder os pais antes dos quatro e não encontrar nenhum substituto equivalia a uma sentença de morte.
Para Harris, o efeito dos pares sobre o indivíduo é inafastável. Mesmo que a criança seja rejeitada pelos colegas num bullying maciço e não tenha nenhum amigo, ainda será ao grupo de semelhantes que ela irá se comparar e do qual tirará suas referências e inferirá as regras sob as quais o mundo funciona. É nesse processo de comparações e busca de inserção social que ela consolidará as características de sua personalidade, em boa medida genéticas.
O que o ambiente moderno fez, sustenta a pesquisadora, é criar uma multiplicidade de nichos por causa das grandes aglomerações em que vivemos. Entre caçadores-coletores, as crianças são “criadas” pelo grupo de jovens que reúne tipicamente meninos e meninas de várias idades. Hoje em dia, com escolas de centenas de alunos, o garoto(a) socializa-se apenas com coleguinhas do mesmo sexo e idade. O resultado é a exacerbação das características. Meninas se tornam hiperfemininas e meninos, hiperativos. O mau aluno encontra outros maus alunos, que constituirão um grupo onde rejeitar a escola é percebido como uma característica positiva. O mesmo vale para a violência e o uso de drogas. Na outra ponta, podem surgir subculturas que valorizem a leitura, a utilização de computadores e outras “nerdices”.
O livro de Harris é muito bom. Mesmo que não compremos todas as suas conclusões pelo valor de face, é difícil rejeitar todas as evidências que ela oferece e seguir acreditando piamente no mito da boa criação. E reconhecer que o papel dos pais não era bem aquilo que imaginávamos não significa que os genitores sejam inúteis ou impotentes.
Para começar, cada um deles fornece 50% da matéria-prima, que são os genes. A melhor maneira de ajudar o futuro de seu rebento é encontrar um bom(a) parceiro(a) para gerá-lo. Depois disso, é preciso mantê-lo vivo pelas próximas duas décadas e recebendo quantidades adequadas de nutrientes e informações. A fase até os quatro anos de vida é especialmente sensível. Se você não cometer abusos nem submetê-lo a maus-tratos nessa janela, o mais provável é que ele se torne um adulto funcional.
Há ainda outras maneiras de influir. É bem verdade que você pode pouco contra os pares, mas, como adulto, tem o poder de determinar a área em que a família vai viver o que, em boa medida, determina os colegas e amigos que ele terá à sua disposição. Se o seu filho está nas piores companhias, em vias de tornar-se um marginal, você pode mudar-se para uma cidade menor, onde não será tão fácil encontrar um grupo de “bad boys”. Não é garantia de dar certo, mas é uma chance.
Outra coisa que pais podem fazer é transmitir hábitos e práticas que não são escrutinados pelo grupo e, portanto, tendem a manter-se incontestados. É nessa categoria que entram coisas como cozinhar ou tocar piano. É difícil uma criança ser ridicularizada por algo que não entra nas conversas do grupo e, portanto, ninguém sabe que ela faz. Se a prática não é condenada, pode ser conservada.
De resto, o importante, como já coloquei num outro texto em que comentava aspectos da criação, é aproveitar a jornada. Mesmo que o poder dos pais de imprimir características duradouras aos filhos seja pequeno, o de gerar momentos prazerosos que se consolidarão em memórias carregadas por toda a vida é quase ilimitado. E, como sabe todo ateu, a capacidade de deixar lembranças é a única forma de transcendência cientificamente comprovada.
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