Mário de Andrade, os 70 anos da morte da figura central do modernismo

Mário de Andrade, os 70 anos da morte da figura central do modernismo
csc
Mário de Andrade (1893-1945)

Publicado no Sul21 em 28 de fevereiro de 2015

Durante o velório de Mário de Andrade, Edgard Cavalheiro me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?”. Respondi: “Até a morte de Machado de Assis.”

Antonio Candido

Mário de Andrade (1893-1945) viveu apenas 51 anos, mas foi por mais de duas décadas uma figura central da cultura brasileira. Sua morte completou 70 anos na última quarta-feira (25), permitindo que sua obra entre em domínio público em 1º de janeiro de 2016. Em 2015, ele será o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em julho, e receberá uma série de lançamentos.

Como dissemos, Mário foi, em seu tempo, figura central da vanguarda artística de São Paulo. Exerceu cargos públicos e foi também músico, mas ficou muito mais conhecido como poeta, ensaísta e romancista. Mário esteve pessoalmente envolvido em praticamente todas as áreas relacionadas com o movimento modernista de São Paulo. Seus ensaios cobriram grande variedade de assuntos e foram amplamente divulgados na imprensa da época. Mário foi o maior incentivador da Semana de Arte Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a literatura e as artes visuais no Brasil, tendo sido um dos integrantes do “Grupo dos Cinco” (os outros quatro foram Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade). Ninguém delineou melhor as ideias por trás da Semana do que o prefácio de seu livro de poesia Paulicéia Desvairada.

Mário de Andrade
Mário de Andrade, nacionalismo e múltiplos projetos

O prefácio não fala do livro, mas sim de uma atitude geral perante a literatura. É uma espécie de manifesto poético em versos livres. Depois de fundar o “Desvairismo”, Mário afirma que luta por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja agarrada ao passado. Outra das ideias expressas por Mário de Andrade neste Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão para a livre expressão do escritor no Brasil. Ele afirma a existência de uma “língua brasileira”, que seria das mais ricas e sonoras. Para reforçar esta ideia do brasileiro como língua, grafa propositadamente a ortografia de modo a ficar com o sotaque brasileiro. Deste modo, Mário de Andrade não apenas atava os parnasianos como era um nacionalista.

Também era contra a rima e todas as imposições externas. “A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas”. “Os portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros, na cidade. Eu sou brasileiro”.

Suas múltiplas atividades incluíam um meticuloso levantamento sobre a história, o povo, a cultura e especialmente a música do interior do Brasil, tanto em São Paulo quanto no Nordeste. Andrade também publicou ensaios em jornais de São Paulo, algumas vezes ilustrados por suas próprias fotografias, a respeito da vida e do folclore brasileiros. Entre as viagens, Andrade lecionava piano no Conservatório, havendo sido também aluno de estética do poeta Venceslau de Queirós, sucedendo-o como professor no Conservatório após sua morte em 1921.

Mário foi nota de Cr$ 500.000 em tempos de inflação
Mário foi nota de Cr$ 500.000 em tempos de inflação

Em 1938, Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros. Tinha como objetivo declarado “conquistar e divulgar a todo país, a cultura brasileira”. O âmbito do recém-criado — por ele, Mário — Departamento de Cultura foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, além de publicações culturais.

Assim dito, dá a impressão de que estamos falando sobre o criador de um projeto de arte vitorioso — mas não é bem assim.

A capa do volume da Nova Froneira
A capa do volume da Edições de Janeiro

Sua recém lançada biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade: vida e obra (Edições de Janeiro/Biblioteca Nacional), de Eduardo Jardim, mostra um homem que dedicou sua existência a um projeto artístico para vê-lo derrotado no fim da vida.

– Não à toa, ele vai ficando mais amargurado. O Mário morreu com 51 anos. Você pega as fotos dele e vê uma pessoa arrasada, um homem velho – afirma Jardim, professor aposentado do Departamento de Letras da PUC-RJ. – Os admiradores de Mário o apresentaram como um escritor consagrado, mas ele foi sacrificado pelo ponto de vista autoritário.

Depois de ser demitido do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, com o Estado Novo, Mário entra em um período de depressão. Enquanto esteve à frente do órgão, viu-se perto de concretizar seu credo modernista de uma arte social que servisse aos interesses coletivos do país. A reforma proposta por ele visava criar canais entre cultura erudita e popular, nacional e estrangeira, fundar uma arte para estabelecer vínculos comunitários.

Com a demissão — acompanhada de acusações de corrupção –, Mário mudou-se para o Rio, onde entregou-se à bebida, permanecendo afastado de amigos queridos que moravam na cidade, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Nomeado por Gustavo Capanema, passou a ocupar cargos menores no Ministério da Educação e Cultura, que seriam incompatíveis com quem já tivera centralidade na vida cultural do país. Mesmo assim, ele ajudou a fundar as bases do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E sua visão de conservação do patrimônio cultural é usada até hoje.

amar— O Capanema quebra o Mário de Andrade. Bota ele no Rio como um zé ninguém, um funcionário que tinha que bater ponto. Você imagina um intelectual da estatura dele batendo ponto? No meio do Estado Novo, ele tinha um projeto antiautoritário, de inclusão – afirma Jardim.

O trabalho de Eduardo Jardim não analisa a sexualidade de Mário, a qual sempre teria intimidado seus biógrafos. A família o trata como “solteirão assexuado, dedicado exclusivamente ao trabalho”, mas Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade – Exílio no Rio, foi o primeiro a tratá-lo como homossexual. Tal fato não altera sua obra, mas até hoje há um surpreendente pudor em torno do assunto.

Ele foi o autor de dois romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). O primeiro causou um escândalo na época, uma vez que descreve a iniciação sexual de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã contratada pelo pai do jovem. O segundo, desde sua primeira edição, é apresentado pelo autor como uma rapsódia, e não como romance. É considerado um dos romances capitais da literatura brasileira.

macunaimaA fonte principal para Macunaíma vem do trabalho etnográfico do alemão Koch-Grünberg, conforme relata o próprio autor. Koch-Grünberg, no livro Von Roraima zum Orinoco, recolheu lendas e histórias dos índios taulipangues e arecunás, da Venezuela e Amazônia brasileira. A partir desses materiais, Andrade criou o que ele chamou rapsódia, termo ligado a tradição oral da literatura. O protagonista, Macunaíma, é chamado de “o herói sem nenhum caráter”. A frase característica do personagem é “Ai, que preguiça!”. Como na língua indígena o som “aique” significa “preguiça”, Macunaíma seria duplamente preguiçoso. A parte inicial da obra assim o caracteriza: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.”

Mas estamos perdendo tempo. Há um belo texto Antonio Candido — publicado no livro Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta: Mário de Andrade visto por seus contemporâneos (Nova Fronteira) — que dá uma noção muito mais rica de Mário de Andrade do que aquela poderíamos ambicionar.

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O Mário que eu conheci
Antonio Candido

Acho que tomei conhecimento da obra de Mário de Andrade na antologia renovadora de Estêvão Cruz, adotada pelo meu professor de Português na 3ª série do curso secundário no Ginásio Municipal de Poços de Caldas. O primeiro livro dele que li deve ter sido Primeiro andar, comprado na excelente livraria da cidade, Vida Social, que além dos clássicos e das novidades, além de obras em francês e inglês, tinha essa coisa rara: alguns livros dos modernistas, sempre editados em pequenas tiragens e muito mal distribuídos. Foi a única livraria em toda a minha vida onde vi Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja edição quase secreta foi de 500 exemplares. Em 1938, já em São Paulo, li Macunaíma. Em 1939 e 1940 li os outros livros de Mário.

Só em 1940 vim a conhecê-lo pessoalmente, numa visita que lhe fizemos Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e eu. A partir dali tivemos relações cordiais mas meio cerimoniosas, embora nos víssemos com certa frequência, inclusive porque São Paulo era menor, com pouco mais de um milhão de habitantes e toda a gente se cruzava nas poucas exposições, livrarias e espetáculos.

No fim de 1942 comecei a namorar sua prima Gilda de Moraes Rocha. Ele sempre morou com a mãe, D. Mariquinha, e uma tia solteira, D. Nhanhã, da qual era afilhado. Em 1930 Gilda e a irmã, Maria Elisa, vieram de Araraquara, onde o pai era fazendeiro, estudar em São Paulo e ficaram residindo lá. O pai delas era sobrinho muito ligado a D. Mariquinha Andrade. Gilda tinha dez anos e se tornou uma espécie de pupila de Mário, morando na mesma casa até o dia em que se casou comigo, em dezembro de 1943.

Em 1941 fundamos a revista Clima e ele fez para o primeiro número, a pedido de Alfredo Mesquita, o admirável ensaio sobre a posição do intelectual naquele momento, “Elegia de Abril”. No número 8, janeiro de 1942, publiquei uma resenha da edição reunida das suas Poesias. Ele gostou e agradeceu. Antes de sua morte ainda publiquei uns três artigos sobre escritos dele.

Em 1942 foi fundada no Rio a Associação Brasileira de Escritores, a famosa ABDE, e logo se cuidou de criar a seção paulista. A finalidade era defender os direitos autorais e arregimentar os intelectuais contra a ditadura do Estado Novo. Lembro que assisti então a uma cena curiosa, que já contei em livro mas vale a pena repetir. Estávamos conversando sobre a fundação da seção paulista na sede provisória, um grupo grande, inclusive Mário de Andrade, quando chegou Oswald. Vendo Mário, com quem era brigado, parou na porta e disse: “Boa tarde a todos”. Todos respondemos, menos Mário. Então teve lugar um diálogo virtual entre os dois, que se comunicavam de certo modo sem se falarem. Oswald, que sempre quis sem êxito fazer as pazes com Mário, informou que estava chegando do Rio, onde era grande o entusiasmo pela associação e onde todos achavam que Mário deveria presidir a seção paulista, concluindo: “Esta é também a minha opinião.” Na conversa que se generalizou Mário disse, dirigindo-se ao grupo, que considerava de fato importante a ABDE, mas não aceitava ser presidente, achando que devia ser Sérgio Milliet. Esse diálogo sui generis continuou por algum tempo, até que Oswald soltou uma das suas piadas irresistíveis. Todos riram, Mário tentou ficar sério, não conseguiu e estourou também na risada. Afinal o presidente acabou mesmo sendo Sérgio Milliet. Mário ficou vice e eu, segundo-secretário.

Em janeiro de 1943 ele fez em sua casa uma leitura de “Café”, poema dramático que tinha acabado de redigir, estando presentes Gilda, Oneida Alvarenga, seu marido Sílvio, Luís Saia, um argentino de passagem, Norberto Frontini, e eu. Fiquei transportado ouvindo Mário ler. Hoje “Café” não me toca muito, mas lido por ele naquele momento me pareceu um exemplo extraordinário de literatura política, “participante”, como se dizia. Passados uns dias escrevi a ele uma carta longa manifestando a minha opinião. Ele respondeu com outra também longa, na qual explicava a gênese e a estrutura da peça. Nos anos de 1950 Décio de Almeida Prado a publicou no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.

A pedido de Otávio Tarqüínio de Sousa fui intermediário entre Mário e Frontini, que tinha vindo com o encargo de arranjar livros brasileiros para a coleção mexicana Tierra Firme, do Fondo de Cultura Económica, que estava começando. Ele queria que Mário escrevesse um livro sobre a música popular brasileira. Mário não quis, mas indicou Oneida, que fez uma obra fundamental sobre o assunto. Graças às gestões de Frontini, Caio Prado Júnior escreveu a História Econômica do Brasil para Tierra Firme.

Naquele janeiro de 1943 eu me tornei crítico oficial, chamado “crítico titular”, coisa que hoje não existe mais, da Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo, publicando todas as semanas um rodapé de cinco a seis laudas datilografadas tamanho ofício. Mário nunca comentou comigo artigos meus, mas acho que em geral os apreciava, porque uma vez me disse amavelmente: “Uma boa parada é artigo seu com caipirinha”, explicando que parada é como se designa no Nordeste uma boa combinação (goiabada com queijo, por exemplo), e contou: “Domingo (dia do meu rodapé) gosto de pegar o bonde, ir até o Largo Paissandu, tomar uma batida no Café Juca Pato, comprar o jornal e vir de volta lendo seu artigo”. Mas pelo menos uma vez criticou severamente um deles, de fato bastante errado, sobre mestiçagem e literatura, e mais tarde, quando Lauro Escorel começou a sua notável e infelizmente breve atuação como crítico titular d’A Manhã, do Rio, me disse rindo: “Tome cuidado, mineiro. Tem um paulista no Rio que está passando na sua frente.”

Eu costumava escrever os artigos à mão e ir à casa onde Gilda morava com as tias-avós para ela os datilografar. Eu tinha máquina, mas era um pretexto para vê-la. Às vezes, enquanto eu ditava, Mário entrava para pegar um livro e ouvia alguma coisa. Certo dia eu estava ditando um artigo sobre o novo romance de Oswald, Marco zero. Para me preparar, tinha lido a obra anterior dele e achara certos livros muito ruins. Aliás, sempre achei a obra de Oswald admirável numa parte e ruim na outra, e ele chegou a me atacar feio por escrito devido a isso, mas depois fizemos as pazes e ficamos bons amigos. Naquele momento eu estava comentando Estrela de absinto [de Oswald], quando Mário entrou e eu disse que o achava péssimo. Mário não retrucou, encontrou o livro e, saindo, virou-se da porta e disse com um sorriso meio sem graça: “Eu acho muito bom.”

Ainda nesse ano de 1943 dei uma grande mancada. Ele me pediu para ler um seu relato de viagem, O turista aprendiz, dizendo que não estava certo se valia a pena publicar e queria a minha opinião. Eu estava para casar, sobrecarregado de trabalho, fazendo a tradução de um enorme livro americano para juntar dinheiro, de modo que só dei uma olhada no texto e acabei não lendo, apesar do sentimento de culpa por essa desconsideração a um escritor da estatura de Mário, que tinha confiado em mim. Afinal chegou o dia do casamento. O civil foi na casa onde moravam a noiva e ele. Fui para lá com o manuscrito e quando entrei ele vinha descendo a escada. Entreguei-o dizendo que tinha achado muito interessante e depois conversaríamos a respeito…

Em 1944 resolvi fazer concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, na qual eu era assistente de Sociologia. Naquele tempo o sistema era diferente: abria-se a inscrição e qualquer pessoa que tivesse diploma superior podia concorrer. Eu era licenciado em Ciências Sociais, mas tinha vontade de passar para Literatura e pensei: “É uma oportunidade. Não vou ganhar a cadeira (tinha 25 anos), mas, se for aprovado, fico livre-docente, o que me dá o grau de doutor em Letras, e assim poderei um dia ensinar Literatura na Universidade” (o que de fato aconteceu anos mais tarde).

Para a tese resolvi pedir sugestões a Mário. Ele me escreveu então uma carta sugerindo vários temas, visivelmente de cunho acadêmico, tendo em vista a situação convencional. Acabei não aceitando nenhum, mas o interessante foram certas opiniões dele na ocasião.

O diretor da Faculdade (então de Filosofia, Ciências e Letras) era um biólogo eminente e muito culto, André Dreyfus, que insistiu com Mário para concorrer, mas ele não aceitou a sugestão. Pediu então que ao menos fizesse parte da banca, e ele recusou também isso. A mim, disse que detestava concursos, não acreditava na sua eficiência como critério de seleção e se tivesse aceitado seria para me dar o primeiro lugar (éramos seis concorrentes). Eu estranhei esta falta de objetividade e ele voltou ao argumento, dando um exemplo: só aceitara participar da banca de um concurso de História da Música, no Rio, porque decidira previamente votar num dos concorrentes, Luís Heitor Correia de Azevedo, por saber que era o melhor, independente de provas. E reiterou que achava detestável a situação de concurso e seu ritual. Eu disse que gostava, achava bonito. Ele comentou rindo: “Ô mineiro arrivista!” Afinal não chegou a ver o concurso, que começou cinco meses depois de sua morte.

Mário costumava ir à Livraria Jaraguá, na Rua Marconi, no mesmo lugar onde houve depois outra com o mesmo nome, mas esta não tinha nada a ver com a primeira, que era encantadora, com uma sala de chá no fundo. Mário saía do Patrimônio Histórico, quase em frente, e ficava lá batendo um papo. Para explicar a cena engraçada de que participou um dia na Jaraguá, abro parêntese.

Uma vez fiz uma brincadeira literária. Tendo dedicado um rodapé a certa tradução de Maiakovski para o espanhol, publicada em Buenos Aires, pouco depois escrevi em Clima, com pseudônimo de Fabrício Antunes, um artigo contra o meu, dizendo que o sr. Antonio Candido não tinha entendido nada. É que, comparando a tradução de um poema que em espanhol era “La nube en pantalones” com a francesa, intitulada “L’homme nuage” (O homem nuvem), dei um palpite: a tônica na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de homem se sentindo nuvem. A tônica se deslocava, portanto, do natural para o humano. Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e tinha razão, e me pedia para apresentá-la a ele. Eu lhe disse que se tratava de um rapaz muito esquisito do Sul de Minas, caixeiro viajante que passava raramente em São Paulo, de modo que talvez custasse a voltar, mas quando viesse eu certamente os aproximaria. Meus amigos da revista sabiam de tudo, é claro, e Gilda contou o caso a Mário, que se divertiu muito.

Ora, uma tarde estávamos na Livraria Jaraguá ele e eu quando entra Lívio Xavier, intelectual de grande saber, e me pergunta quem era esse Fabrício Antunes que certamente sabia bem russo. Repeti a história do rapaz sul-mineiro e Mário, da cadeira onde estava, vendo o desenrolar da conversa, tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Felizmente, Lívio não percebeu.

Em 1944 veio a São Paulo um argentino chamado Luís Riessig, que fundara em Buenos Aires uma instituição interessante, o Colégio Livre de Estudos Superiores. Ele escreveu a Mário dizendo que gostaria de conversar sobre a possibilidade de fundar um igual aqui. Mário me pediu para participar da conversa e marcou encontro às duas da tarde em frente ao Mappin, na Praça Ramos de Azevedo. Cheguei pontualmente, antes do argentino, e vi que Mário estava aborrecido, por um motivo que logo explicou mais ou menos assim: “Agora no almoço, em casa, houve uma cena desagradável. De vez em quando, para brincar, eu espicaço minha mãe contra minha tia. Minha mãe fica irritada, briga com minha tia, eu aí entro no meio, fico do lado desta e sou bruto com minha mãe. Foi o que aconteceu hoje. Não sei por que faço isso. Complexo de Édipo não é, porque já me auto-analisei…”

Em janeiro de 1945 houve em São Paulo o I Congresso Brasileiro de Escritores, verdadeira arregimentação dos intelectuais contra a ditadura. Foi um acontecimento memorável, com delegações maiores ou menores de todos os estados. Mário estava na Paulista, com Oswald, Sérgio Milliet, Monteiro Lobato, Fernando de Azevedo e outros, num total de 26, dos quais eu era o caçula. Mário foi assíduo, vestido sempre de branco no calorão que fazia, mas calado, sem participar dos debates nem das comissões.

Durante o Congresso houve um grande jantar na casa de Lasar Segall. Eu não fui, mas Paulo Mendes de Almeida foi e me contou uma cena divertidíssima. Estava lá um jovem escritor hispano-americano que se pôs a dizer coisas de um complicado pedantismo sobre a poesia a partir de Rimbaud, segundo ele o poeta supremo. Paulo, para o descartar, disse que quem entendia de Rimbaud era Rubens Borba de Moraes, a quem o rapaz se dirigiu com a mesma parolagem abstrusa. Rubens, por sua vez, tirou o corpo dizendo que cuidara de poesia na mocidade, mas agora era apenas bibliotecário, e passou a bola adiante, dizendo que bom conhecedor de Rimbaud era Mário de Andrade, ali presente. O rapaz delirou, bradando: “Mário de Andrade, el grande Mário de Andrade está acá? Quiero conocerlo, quiero conocerlo!” “É aquele ali”, disse Rubens mostrando. O rapaz se precipitou excitadíssimo, repicando o estranho jargão, que Paulo Mendes reproduzia na chave do bestialógico. Mário, já meio no pileque, exclamou: “Quanta besteira! Olhe aqui moço, poesia é safadeza! A gente quer pegar uma mulher, não pode, aí faz um poema. E comigo é na piririca!” Atarantado, o rapaz perguntava ansioso para os lados: “Que es esto de piririca? Que es esto de piririca?

Nesse Congresso Paulo Emilio e eu provocamos involuntariamente duas explosões de Mário. A primeira foi devida ao seguinte: Paulo alertou a mim e a outros que determinado intelectual, não sendo eleito por São Paulo, fora incluído meio de contrabando na delegação de outro estado, o que era irregular e nos contrariava politicamente. Redigiu-se então um protesto e fomos pedir a adesão de Mário, que ficou danado e recusou. Nós procuramos argumentar que era algo politicamente importante, aí ele estourou, dizendo que por isso é que não queria saber de política, que era uma indignidade e não assinava mesmo. Tremendo de raiva, foi se juntar a um grupo próximo formado por Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e, se não me engano, José Lins do Rego. Trinta e sete anos depois, em 1982, pouco antes e morrer, Sérgio Buarque me disse, como quem quer tirar um peso da consciência, que precisava confessar uma coisa: certa vez tinha me censurado com Caio Prado Júnior e Mário de Andrade. Percebendo do que se tratava, não o deixei explicar, dizendo: “Eu sei. Foi no I Congresso de Escritores e vocês tinham toda a razão”. De fato, nós estávamos agindo mal por birras políticas.

A segunda explosão foi no encerramento do Congresso, no Teatro Municipal, onde Oswald fez um discurso notável, no qual lançou a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. As oposições achavam que era cedo, o Partido Comunista não queria precipitação, mas nós socialistas independentes e também muitos liberais aplaudimos, porque era uma boa pancada na ditadura em declínio. Além disso, Oswald fez troças divertidas com a alta sociedade de São Paulo, provocando protestos violentos. Todo o mundo acabou berrando e lembro de um senhor agranfinado perto de mim que enfrentou as vaias (inclusive minhas) com muita coragem, parecendo pronto para dar bengaladas. Na saída, em frente do teatro, Paulo Emílio e eu fomos falar com Mário e gabamos o discurso de Oswald. Ingenuidade nossa. Ele perdeu a calma e falou exasperado que não reconhecia a Oswald autoridade moral para falar mal da sociedade paulistana. Nós ficamos passados e fomos tratando de dar o fora.

Isso foi no fim de janeiro de 1945. No dia 17 de fevereiro Gilda e eu recebemos um telegrama de Mário (não tínhamos telefone, coisa dificílima naquele tempo), convidando para irmos no dia 20 conhecer Henriqueta Lisboa, que viria a São Paulo e estaria presente na festinha de aniversário da sobrinha dele, em sua casa. Fomos, e em dado momento eu estava conversando com ele e seu irmão mais velho, Carlos de Moraes Andrade. Naturalmente ele tinha ficado constrangido por ter tido aquele rompante na porta do Municipal e perguntou risonho se eu o tinha levado a sério, alegando que era simples brincadeira. Eu fingi que acreditei e ele passou a manifestar muita amargura, dizendo já estar cansado de sofrer injustiças e ser atacado. Eu observei que não tinha razão, porque poucas pessoas eram mais estimadas e admiradas. “Eu é que sei”, disse ele bastante amargurado, e seu irmão o apoiou citando um dito popular: “Pimenta não arde no olho do vizinho.” Mário prosseguiu na mesma craveira, dizendo-se convencido de que o intelectual não devia se meter em política, que o recente Congresso lhe tinha ensinado isto e que a partir daquele momento se fecharia na torre de marfim. O que tivesse de dizer como cidadão diria da torre de marfim, não dentro de algum partido ou movimento.

Isso foi no dia 20 de fevereiro. No dia 25, morreu. Luís Martins foi nos avisar no começo da noite e Gilda e eu fomos para o velório. No dia seguinte vi uma cena impressionante: os Irmãos do Carmo, que ele fora e talvez nunca tenha deixado formalmente de ser, vieram rezar alinhados dos lados do caixão. Eram uns oito com o hábito, batina marrom e um manto comprido de lã creme.

Durante o velório, Edgard Cavalheiro, escritor bastante em voga naquele momento, autor de biografias de Fagundes Varela e de Monteiro Lobato, me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?” Respondi: “Até a de Machado de Assis.” “Pois é exatamente o que estou pensando”, disse ele. “Machado de Assis em 1908 e Mário de Andrade agora”. O enterro foi no Cemitério da Consolação, muito concorrido, e impressionava a tristeza profunda de todos, como se todos sentissem uma espécie de enorme vazio na cultura do Brasil.

Uns dias depois fui ao escritório do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional e Luís Saia, delegado deste em São Paulo, me disse com os olhos espantados: “Tem um envelope com o seu nome na mesa do Mário”. Depois da morte de um amigo, coisas desse tipo parecem mensagem, e, meio perturbados, fomos abri-lo. Lá estava, com a letra de Mário no envelope grande: “Para o Antonio Candido”. Eram alguns poemas de Lira Paulistana, inclusive a versão final de “Meditação sobre o Tietê”, datada de poucos dias antes.

Naquele ano de 1945 preparei a primeira edição de Lira Paulistana e do Carro da miséria, pois Mário queria que saíssem em tiragem independente, antes de serem incorporadas às Obras completas que o editor José de Barros Martins estava publicando. Editei-os com um título que contrariou Oneida Alvarenga e Luís Saia, conhecedores mais seguros das intenções do amigo: Lira Paulistana seguida de O carro da miséria. Segundo eles, deveria ser: Lira Paulistana e O carro da miséria. Preparei também a edição de Contos novos, que só saiu em 1947, salvo engano. A Nota do Editor, anônima, foi escrita por mim.

Não lembro em que altura (fim de 1945, começo de 1946?) foi inaugurado o busto dele por Bruno Giorgi no jardim da Biblioteca Municipal, onde está até hoje. Na inauguração falaram Sérgio Milliet, diretor da Biblioteca, e Carlos de Moraes Andrade em nome da família. Oswald compareceu emocionado e discreto. (Não tem qualquer fundamento o boato segundo o qual teria escrito palavras desagradáveis no pedestal.)

Decidiu-se então promover a leitura pública de “Café”, ainda inédito, e eu achei que a pessoa indicada era Carlos Lacerda, que fora muito amigo de Mário, tinha uma bela voz abaritonada e viera para a inauguração do busto. Falei com ele e ele aceitou, mas foi precipitação minha, porque Oneida Alvarenga e Luís Saia, discípulos queridos muito chegados a Mário, vetaram, alegando que este desaprovaria totalmente as atitudes políticas que Carlos vinha assumindo, que aliás eu também reprovava. Muito sem graça, tive de lhe dizer que era melhor eu próprio ler. “Já percebi”, disse magoado. “É coisa da Oneida e do Saia”. Assim, em vez da bela voz de Carlos, “Café” foi comunicado ao público na minha, fraca e abafada.

Mário de Andrade era um homenzarrão feio e simpático, muito cordial, com um riso bom que quando virava gargalhada sacudia o seu corpo inteiro. Era certamente um feio charmoso que despertou várias paixões. Vestia-se bem, usava uns chapéus de aba meio larga enterrados na cabeça e calçava sapatos sob medida da Sapataria Guarani, a mais cara de São Paulo, sempre no modelo escocês furadinho de bico afinado. Os pés e as mãos eram enormes e ele me parecia ter pouca naturalidade, mas com os íntimos devia ser diferente.

Um dos seus hábitos mais constantes era ir, geralmente à noite, tomar chope no Bar Franciscano, que ficava na Rua Líbero Badaró perto de uma esquina da Avenida São João, com fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú. Sentava numa mesa redonda de canto, perto do balcão, e ia consumindo sucessivas “pedras”, que são canecas grandes de louça clara. Os amigos sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e ele costumava marcar encontros lá, por vezes à tarde. Foi de tarde que me convocou uma vez para conhecer João Alphonsus, que estava de passagem e me pareceu de pouca fala. Outra tarde de 1942 fui conhecer Fernando Sabino, que ainda não tinha vinte anos e já publicara um livro de contos: Os grilos não cantam mais. Ele e Mário admiravam os romances de Otávio de Faria, de certo porque estes abordavam problemas da adolescência católica que lembravam os deles. Eu os achava ruins e nesse encontro Fernando os defendia enquanto eu os atacava. Ele quis conhecer as minhas razões e eu disse que eram várias, inclusive o fato de Otávio escrever prolixamente mal e os seus romances não questionarem a ordem burguesa, concluindo: “Eles não tiram o sono de Roberto Simonsen” ― figura de proa da alta burguesia industrial de São Paulo. O meu sectarismo elementar era devido ao período de militância bastante radical que eu estava vivendo. Mário escutava, risonho.

Em 1943 Jorge Amado publicou Terras do Sem Fim, que foi uma inflexão na sua obra, por ser menos panfletário e mais compreensivo, inclusive humanizando representantes da oligarquia agrária. Gostei muito e escrevi um artigo favorável, levando-o como de costume para Gilda bater à máquina. Vendo do que se tratava, Mário me disse: “Quero ver se você percebeu uma coisa em Terras do Sem Fim“, mas apesar da minha curiosidade, não explicou o que era. Mais tarde refiz a pergunta e ele disse com certa ironia: “Este livro não tira o sono de Roberto Simonsen (**)…”.

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Antonio Candido é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Foi professor de Literatura Brasileira da Universidade de Paris (1964-1966) e Professor Visitante de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade de Yale (1968). Recebeu vários prêmios, entre os quais Machado de Assis (da Academia Brasileira de Letras), Almirante Álvaro Alberto, Moinho Santista, Jabuti, Camões e Alfonso Reyes. Entre os seus principais livros estão o clássico Formação da Literatura Brasileira (1959), Tese e Antítese (1964), Os Parceiros do Rio Bonito (1964), Literatura e Sociedade (1965), O Discurso e a Cidade (1993).

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(*) Com informações da resenha de Maurício Meireles, publicada em O Globo.

(**) Político, economista e escritor, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).

70 anos da Bomba de Hiroxima: retornando ao mais horrível ‘Porque hoje é sábado’ de todos os tempos

70 anos da Bomba de Hiroxima: retornando ao mais horrível ‘Porque hoje é sábado’ de todos os tempos

Amigos.

Hoje, faz 70 anos que esta bomba foi jogada. No dia 3 de novembro de 2007, publiquei excepcionalmente um furibundo obituário em lugar do tradicional PHES (Porque hoje é sábado). O motivo era simples: naquela semana tinha falecido no maior conforto um dos homens cuja existência mais me abalavam — Paul Tibbets.

Quando criança, lá pelos 8, 9 anos, perguntei a meu pai sobre o homem que fizera “aquilo em Hiroxima” ao final da Segunda Guerra. Não sobre quem ordenara — lá ia eu me preocupar com isso! –, eu queria saber sobre quem fizera. Parecia-me impossível alguém viver sabendo o efeito de sua ação. Não conhecia a palavra CULPA no sentido que hoje conheço, mas tinha ideia de que existiam atos impossíveis de se carregar por aí. Meu pai fez uma pesquisa para me responder e, dias depois, me disse: “Ele não se arrependeu”. Naquele dia, entendi um pouco menos o mundo.

Volto a este post porque esta semana morreu o último tripulante do avião que bombardeou Hiroshima: Theodore van Kirk. Suas declarações sobre a bomba e as guerras eram bem diferentes das de Tibbets: “Gostaria de ver as guerras e as armas definitivamente abolidas”.

Abaixo, minha homenagem de 2007 a Paul Tibbets.

.oOo.

Ontem morreu Paul Tibbets, resultado da cruza entre Enola Gay e Paul Warfield Tibbets.

Viveu 92 anos, foi feliz e parece não ter sofrido dores

Nem físicas, nem morais, nem as da fome ou do desprezo.

Deus, em sua insistente não existência, deixou-lhe dizer que

“Não se arrependeu de ter ‘deixado cair'” em Hiroxima,

a bomba de 6 de agosto de 1945, que matou instantaneamente

78.000 e depois mais 62.000 japoneses.

O extremado amor de Paul por sua mãezinha ficou bem claro

quando ele batizou o B-29 com seu nome, hoje imortalizado.

Paul Tibbets era filho de Enola Gay e um grandíssimo filho da puta,

e partiu deste mundo para o inferno que existe, mas apenas sob o(a) Enola Gay.

Pensem nas crianças mudas telepáticas
Pensem nas meninas cegas inexatas,
Pensem nas mulheres rotas alteradas,
Pensem nas feridas como rosas cálidas,
Mas não se esqueçam da rosa da rosa,
Da rosa de Hiroxima a rosa hereditária,
A rosa radioativa estúpida e inválida,
A rosa com cirrose a anti-rosa atômica,
Sem cor nem perfume sem rosa sem nada

A Rosa de Hiroxima – Vinícius de Moraes

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continnua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.

A Bomba – Carlos Drummond de Andrade

hiroxima

Na ativa, Chico Buarque chega aos 70 anos de vida e a quase 50 de carreira

Na ativa, Chico Buarque chega aos 70 anos de vida e a quase 50 de carreira

Publicado em 19 de junho de 2014 no Sul21

Provavelmente, poucas pessoas conseguirão falar com Chico Buarque no dia de hoje, em que ele completa 70 anos. Ele é um sujeito muito reservado. Quando fez 60 anos, mentiu que viajaria para Paris a fim de ficar tranquilo. Porém, na tarde daquele dia, fez alongamentos e correu no Leblon. Para aqueles que o questionavam, respondia “Viajando nada!”. E ria. É que este verdadeiro patrimônio da cultura nacional, compositor, cantor e escritor, esta figura pública que não evita falar em política, que é ao mesmo tempo lírico, nostálgico e porta-voz das mulheres, é um cidadão mais afeito à tranquilidade do que a inevitável notoriedade que alcançou sua obra. Aliás, a notoriedade veio rápida, alçando-o em menos de um ano do anonimato ao posto de unanimidade nacional, concedido informalmente pelo amigo Millôr Fernandes.

Chico-Buarque

Cedendo ao pecado da primeira pessoa do singular, digo que certa vez estava em Parati e, após alguns dias de contenção, resolvi gastar algum dinheiro. Fui jantar em um dos melhores restaurantes da cidade. Logo que sentamos na mesa escolhida do restaurante quase vazio, dois garçons vieram falar conosco. “Na mesa ao lado, o Chico Buarque jantará com uma de suas filhas e amigos. Ele não tolera fãs. Espero que o senhor não o incomode”. Um tanto contrariado pela observação, respondi que saberia me comportar. Minutos depois, muito sorridente, Chico chegou, fazendo questão de cumprimentar a todos antes de sentar-se com seus amigos.

Conto esta história porque o restaurante está “prenhe de razão”, como diria Julinho da Adelaide. Chico Buarque é um homem especialmente talentoso e bonito. As pessoas têm curiosidade sobre ele, principalmente as mulheres. Algumas das moças que nos acompanhavam talvez ficassem atrapalhadas ao vê-lo adentrar o restaurante com seus olhos verdes para sentar na mesa logo ao lado. Era melhor avisar mesmo.

Chico-Buarque-crianca

Francisco Buarque de Holanda nasceu em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e de Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Holanda. Aos dois anos, mudou-se com a família para São Paulo. A primeira vez que apareceu na imprensa foi nas páginas policiais da Última Hora em razão de um ilícito: com um amigo, ele roubara um carro para passear. Acabou preso. A foto da delegacia foi parar na capa do disco Paratodos.

Chico Buarque paratodos

Quando trocou a editoria de Polícia pela de Cultura, havia um impasse na música brasileira. De um lado, estavam os defensores do samba tradicional e, de outro, o pessoal da bossa nova,com suas harmonias mais elaboradas. Chico nunca escolheu um dos lados pelo simples motivo de que tinha os dois em seu coração. Se suas letras revelavam um jovem nostálgico — ele parece reviver seu ídolo Noel Rosa (Chico diz que a maior canção brasileira de todos os tempos é Último Desejo) –, as harmonias não são mais as de Noel. É que em 1959, quando Chico tinha 15 anos, fora lançado o LP Chega de Saudade, de João Gilberto, e ele não passara incólume. Nem os vizinhos. Chico ouvia este disco tão repetidamente que a família Buarque de Holanda era alvo de reclamações.

sonho de un carnaval chico buarqueMúsica

Lançado há 49 anos, em 1965, seu primeiro compacto simples trazia duas canções: de um lado Pedro Pedreiro e do outro Sonho de um Carnaval. Pedro Pedreiro é uma canção com letra de conteúdo social, agregada a uma harmonia complexa que incorpora ao estilo tradicional o que lhe interessava da bossa nova. Chico nunca foi um revolucionário da arte, utiliza-se das formas disponíveis para elevá-las a um nível talvez inalcançável por nenhum outro artista popular. Suas combinações de letra e música deram tanto uma feição literária à MPB, como alçaram a música popular ao status de poesia.

Nos anos 60, Chico foi um estranho e talentoso jovem. Era um jovem nostálgico. Realejo e A Televisão mostram uma saudade esquisita em alguém de menos de 25 anos. Mas um de seus temas mais caros já se fazia presente: a preocupação com a condição feminina fazia-o criar personagens e ele convidava mulheres para cantar Com açúcar, com afeto e o dueto de Noite dos Mascarados. Ao lado destas, apareciam a malandragem de Noel em Logo eu? e o lirismo de Morena dos Olhos d´água, Januária e Olê Olá, por exemplo.

chico buarque de hollanda a bandaQuando foi lançada, A banda tornou-se um divisor de águas na carreira de Chico. Interpretada por ele e Nara Leão, dividiu o 1º lugar com Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, no 2º Festival de Música Popular Brasileira, em 1966. Vendeu mais de 100 mil cópias em uma semana.

Por falar em 100 mil, Chico participou da passeata dos 100 mil, em 1968. Ele militou contra a ditadura militar compondo canções e peças que criticavam o regime, às vezes de forma explícita, e em outras buscando driblar a censura de maneira alegórica. Não chegou a ser preso, mas foi interrogado no Dops e no 1º Exército. Também em 1968, Chico venceu o 3º Festival Internacional da Canção, em parceria com Tom Jobim, com a canção Sabiá. O público vaiou Chico, Tom e o Quarteto em Cy. Preferia Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré. Em 1969, Chico recebeu convite para gravar um disco na Itália e cantar na França. Seguiu para Roma com Marieta, grávida da primeira filha. Ao saber da prisão de Gil e Caetano, decidiu não voltar. O casal passou 14 meses na Europa.

Construção_chico_buarqueA maturidade como compositor

Na volta, Chico lançou Construção (1971), um disco absurdamente bom e completamente distinto dos anteriores. Chico se modernizara em tudo: as letras não são mais nostálgicas, as citações ao samba não estão mais em toda canção e os arranjos de Magro (MPB-4) e Rogério Duprat deram a roupagem que as canções já mereciam mas não tinham. O disco tem de tudo: sambas de exílio, canções intimistas, acalantos e a grandiosidade de Construção e Deus lhe pague. As letras estão carregadas de críticas ao regime militar e às condições sociais do país. Além da preciosidade técnica da letra de Construção — 41 versos, todos terminando com um proparoxítono de três sílabas –, a canção revela o engajamento social de seu autor. Foi uma redefinição e tanto. É seu primeiro disco adulto. Na época, ele disse que xingou o Sabiá, abandonou a Rita e empurrou a Carolina da janela para fazer esse disco.

No âmbito da canção, era a maturidade chegando aos 27 anos. Nos anos seguintes, ele abriu mais frentes. Sem açúcar, que está em Chico Buarque e Maria Bethânia ao Vivo, trazia um amargor nunca antes ouvido em seus discos. Por outro lado, a censura incomodava. “Eles me encheram o saco, mas também enchi muito o saco deles”. O compositor teve dezenas de canções proibidas ou “tesouradas”, mas algumas escapavam. As principais foram Apesar de você e Cálice. Quando se deram conta do vacilo, os censores já não podiam impedir as ruas de cantá-las. A fim de burlar a censura prévia, o compositor inventou o sambista Julinho da Adelaide, que “escreveu” a notável Acorda amor. A identidade de Julinho foi revelada em 1975, numa reportagem sobre a censura publicada no Jornal do Brasil.

Em 1974, Chico estreou na literatura com Fazenda modelo, definida por seu autor como uma “novela pecuária”. No mesmo ano, ele lançou Sinal Fechado só com canções de outros compositores, além de Acorda Amor. O disco é excelente, mas demonstra as dificuldades com a censura. Mas a fileira de discos de obras próprias aparecia lotada de obras-primas.

chico-amigos

Meus caros amigos (1976), Chico Buarque (1978), Ópera do Malandro (1979), Vida (1980), Almanaque (1981) e Chico Buarque (1984), mais parecem antologias de melhores músicas do que discos regulares. Não há nada que seja de segunda linha, fato que obrigou a Almir Chediak, por exemplo, a lotar de canções os oito CDs de seu Songbook de Chico Buarque. (Songbook é um livro impresso com partituras, letras e CDs, de uma ou mais bandas ou músicos).

Musicalmente liberado, Chico tanto se valeu da eletrificação — Jorge Maravilha, Hino de Duran, A Voz do Dono e o Dono da voz –, quanto de ritmos estrangeiros — Fado Tropical, Tanto amar, Tango do Covil, Bancarrora Blues –, do charleston — Ai, se eles me pegam –, das marchinhas sacanas — Não existe pecado no lado debaixo do Equador e a sensacional Boi voador não pode, etc. Ele ainda explorava preferencialmente o samba e as delicadas valsas — Terezinha, Eu te amo, João e Maria — e revelava auto-ironia em Corrente — “Pra confessar que andei sambando errado / Talvez até precisa tomar na cara”) e Até o fim, além do drama nos versos de Olhos nos Olhos, Folhetim ,Mil Perdões e Bastidores.

Após 1984, a produção de Chico Buarque diminuiu em número, mas não em qualidade. Chico também desenvolveu discos em parcerias com Caetano Veloso e, principalmente com outro gênio da MPB, Edu Lobo. De Francisco (1987) a Carioca (2006) e Chico (2011), seus últimos trabalhos na música nada ficam a dever ao Chico dos anos jovens ou ao Chico maduro.

chico2011

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra / Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora, canta Chico em Essa pequena, do disco Chico, certamente referindo-se a seu envolvimento com a cantora Thaís Gulin. Seu último disco é um esplêndido trabalho de canções de amor. Talvez a melhor música seja Nina, uma bela e imaginativa valsa de sabor russo e internético. Nina diz que tem a pele cor de neve / E dois olhos negros como o breu, canta.

A discussão sobre a relação entre a música, a letra de canção e a poesia é antiga. O Chico letrista escreve com profundo conhecimento das técnicas literárias, mas nunca perdem a comunicação e são embaladas por uma musicalidade interna quase natural. Herdeiro da linguagem urbana de Noel, estas incorporam elementos da poesia modernista de Manuel Bandeira, Drummond e Vinícius. A força da poesia das canções de Chico por muito tempo obscureceu a arte do melodista. Ainda mais que, mais recentemente, suas composições foram ganhando os elementos eruditos que lhe chegaram filtradas pela arte de Tom Jobim.

budapeste-livroLiteratura

Fazenda Modelo (1974) era quase uma brincadeira com A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Estorvo (1991) não é um bom romance, mas revela que o romancista não é somente uma extensão do cancionista. Em Benjamin (1995) já havia uma voz própria, mas tudo mudou com o extraordinário Budapeste (2003). Não obstante as críticas geralmente negativas a Estorvo e Benjamim, estes e Budapeste foram adaptados para o cinema. Seu mais recente romance é Leite derramado (2009). É o mais reconhecido deles, tendo recebido o Jabuti de melhor ficção do ano. Na época da premiação, houve grande debate pelo fato de que muitos acharam o livro inferior ao segundo colocado Se eu fechar os olhos agora, do repórter da Globo Edney Silvestre. Leite é a biografia de um homem em meio aos tormentos da memória, que simboliza a formação do país e suas feridas sociais. Seus dois últimos livros apresentam boa variação temática — a questão dos duplos, a velhice, a geopolítica brasileira — e protagonistas em que a fronteira entre a realidade e a imaginação está pouco definida, o que torna seus relatos muito pouco confiáveis.

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Fontes consultadas:
— Fascículo dedicado a Chico Buarque da História da Música Popular Brasileira
Conheça 70 fatos marcantes da vida de Chico Buarque

Hoje, os 70 anos de Joni Mitchell

Claro que hoje são os 100 de Camus, mas disso todo mundo falou. Já de Joni…

A música é The Dry Cleaner From Des Moines e o incrível baixista que a acompanha é, sim, Jaco Pastorius. No sax, Michael Brecker; Don Alias na bateria. A letra é de Joni, sobre a música monumental de Charlie Mingus. Excelente compositora, cantora maior.

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