Zimbros, um encontro inesperado

Zimbros, um encontro inesperado

Por algum motivo, estamos sem o Facebook em nossa pousada. Mal consigo ver meu perfil. Então, esta postagem estilo rede social veio para cá.

Na verdade, eu deveria mudar meu número, pois é incrível como me ligam para me vender produtos bancários, TVs a cabo, imóveis, o diabo. Por algum motivo muito equivocado, todos pensam que sou rico. Então, eu recebo telefonemas em Zimbros, olho para o celular e só atendo aqueles de pessoas cadastradas dentre meus contatos. Só que meu sobrinho Filipe Gonçalves raramente me telefona. Estranho. Ele estava de férias em Ganchos, atravessara a baía de mais ou menos 15 quilômetros com seu Jet Ski e estava com a noiva-esposa Laura Blaya no Berro d`Água, melhor restaurante de Zimbros.

Como estamos numa pousada próxima, fomos até lá encontrá-los. Infelizmente, já tínhamos almoçado. Então, ficamos bebendo e comendo as batatas fritas sobrantes, enquanto víamos as pessoas posarem para fotos na frente no novo jet ski vermelho co Filipe. Elena, que viveu alguns anos em Manaus, explicou as propriedades do óleo de andiroba, um repelente natural que salva as pessoas dos insetos estilo porta-aviões do Amazonas, assim como dos nossos, muito menores. É que em Ganchos a coisa é inóspita e se vive entre os mosquitos. É como eu digo sempre, classe média sofre.

Abaixo, algumas fotenhas.

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Acima, Filipe, Laura, Elena e este que vos escreve.  A Laura vai ficar irritada porque publiquei sua foto com um olho fechado.

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E aqui a Elena vai me detestar por ter saído com jeitinho de desmaio.

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E agora, começando pela foto acima, uma sequência com a saída dos visitantes.

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Zimbros, a sombrinha vermelha

Zimbros, a sombrinha vermelha

Eu dei uma linda sombrinha em estilo japonês para a Elena. No primeiro passeio em Porto Alegre, todos os que passavam por nós sorriam. Algumas mulheres perguntavam onde ela tinha comprado aquela maravilha tão delicada. Hoje, tivemos a repetição do fato em Zimbros. Aconteceu um pequeno problema odontológico, então vestimos roupas de cidade e fomos resolvê-lo. Muitos, mas muitos sorrisos e uma pergunta de um homem: “Onde você comprou?”. Meu presente vermelho é um sucesso.

Sombrinha Elena

Um rascunho de Svetlana Alexievich, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Um rascunho de Svetlana Alexievich, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Publicado em 10 de outubro de 2015 no Sul21 (*)

O Nobel de Literatura, concedido à bielorrussa Svetlana Alexievich, 67 anos, na última quinta-feira (7), foi a senha para que se iniciassem duas barulhentas discussões em três países: a Bielorrússia (ou Belarus), a Rússia e a Ucrânia.

A primeira delas envolve a nacionalidade da literatura e da própria Alexievich. Os russos dizem que ela escreve em russo e nasceu na União Soviética. Colocando inadvertidamente lenha na fogueira, a própria autora disse, logo que recebeu o prêmio: “É muito perturbador. O Nobel evoca imediatamente os grandes nomes de Búnin, Pasternak e Brodsky”. Todos russos.

Ivan Búnin (Nobel de Literatura de 1933) e Boris Pasternak (recebeu em 1960) nasceram na Rússia czarista, produziram na União Soviética e foram opositores ao regime. Búnin, inclusive, emigrou e morreu na França. Joseph Brodsky (Nobel de 1987) nasceu durante a Segunda Guerra e morreu em Nova Iorque, exilado. Todos escreviam em russo. E Svetlana Alexievich também. Então, como ela não escreve em bielorrusso… Para os russos, ela é russa.

E a Ucrânia entre no jogo pelo simples fato da escritora ter nascido em seu solo e de ter mãe ucraniana, mesmo que tenha ido para Minsk ainda quando criança. Então é ucraniana.

Porém, para os bielorussos, ela cresceu, estudou e se formou como jornalista no país. O pai era um militar bielorrusso que fora transferido temporariamente para a Ucrânia. Além disso — e eles estão corretos –, ela sofreu enorme influência de grandes escritores do país, como Alés Adamóvich, o fundador do gênero de romance-documentário que a escritora pratica. Então é bielorrussa.

Lukashenko, o eterno
Lukashenko vê sua inimiga premiada

A outra discussão

A outra discussão gira em torno dos temas dos livros de Svetlana Alexievich. A partir de entrevistas — ela é uma extraordinária entrevistadora — a autora se dedica a criar painéis de vozes reais. Seus livros são “romances coletivos”, também conhecidos como “romances corais”, ou “romances de evidências”. São pessoas que falam de si mesmas numa espécie de coral.

Tais corais são formados por vozes de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, do acidente nuclear de Chernobyl, da campanha no Afeganistão, etc. Também há um livro sobre como o povo sentiu a passagem do comunismo para o capitalismo. São relatos pessoais, onde, apesar de a política permanecer subjacente, têm um tom de forte crítica a várias gerações de governantes da União Soviética, Bielorrússia e Rússia.

(A Bielorrússia tem o mesmo presidente desde a implosão da União Soviética. Aleksandr Lukashenko, conhecido como O Último Tirano da Europa, está no cargo desde 1994 em sucessivas e mui discutidas reeleições).

Deste modo, o Nobel teria sido concedido a uma pessoa que dedica-se a tecer críticas à sociedade russa e bielorrussa, isto é, a uma pessoa de posições claras, non grata para muitos.

Então, na quinta-feira à noite, enquanto os amigos de Svetlana Alexievich faziam uma enorme festa numa vinoteca de Minsk, parte dos jornais e redes sociais referiam-se a um Nobel dado a uma autora que “odeia nosso país”.

A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua
A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua

Europeia

A escritora fala com grande tranquilidade sobre a primeira questão levantada, a de sua nacionalidade. “Eu sou europeia. Nasci na Ucrânia, de uma família que era metade do local e metade bielorrussa. Quase imediatamente após meu nascimento, fomos para a Bielorrússia. Durante mais de 12 anos eu vivi na Itália, Alemanha, França e Suécia. E há dois anos, voltei para Minsk”.

A Academia Sueca, anunciando sua vitória, elogiou os “escritos polifônicos” de Alexievich, descrevendo-os como “um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”. Muito influenciada pelo escritor Alés Adamóvich, que considera como seu mestre, Alexievich tem a particularidade de deixar fluir diferentes vozes em torno de um tema. Ela esclarece diversos destinos individuais, descrevendo mosaicos que criam a certeza de tragédias reais. Alexievich trabalha decididamente na faixa do drama e da morte.

A edição portuguesa da Porto
A edição portuguesa da Porto

Os livros

Em 1989, ela publicou Tsinkovye Málchiki (Meninos de Zinco), sobre a experiência da guerra do Afeganistão. Para escrevê-lo, percorreu o país entrevistando mães de soldados mortos no confronto. Em 1993, publicou Zacharovannye Smertiu (Encantados pela morte), sobre os suicídios cometidos por aqueles que não haviam conseguido sobreviver ao fim do socialismo. Em 1997, foi a vez de Vozes de Chernobyl, um aterrador retrato da tragédia cuja devastação radioativa atingiu principalmente a Bielorrússia. O livro vendeu 2 milhões de exemplares em língua russa.

No ano passado, foi lançado O Tempo de Segunda Mão (ou O Fim do Homem Soviético, em Portugal). Nesse novo trabalho, Alexievich se propõe a “ouvir os participantes do drama socialista”. Para a escritora, o “homo sovieticus” ainda continua vivo, e não é apenas russo, mas também bielorrusso, turcomano, ucraniano, casaquistanês, etc. “Hoje vivemos em Estados distintos, falamos línguas distintas, mas somos inconfundíveis, rapidamente reconhecidos. Todos nós somos filhos do socialismo”, afirma, referindo-se a seus “vizinhos de memória”. “O mundo mudou completamente e não estávamos realmente preparados para isso”

Falando à emissora sueca SVT, Svetlana Alexijevich disse que o prêmio a deixou com um sentimento “complicado”. A academia telefonou para ela enquanto estava em casa “deixando passar o momento da divulgação do vencedor”, disse ela, acrescentando que os mais de 3 milhões de reais do prêmio “comprariam sua liberdade”. “Demoro muito para escrever meus livros, de cinco a 10 anos cada um. Eu tenho duas ideias para novos livros, por isso estou muito satisfeita: agora vou ter dinheiro e tranquilidade para trabalhar neles.”

Os romances corais

Alexievich nasceu no dia 31 de maio de 1948 na cidade ucraniana de Ivano-Frankovsk. Após a desmobilização do pai do exército, a família retornou à Bielorrússia e se estabeleceu em uma aldeia onde ambos os pais trabalhavam como professores. Ela deixou a escola para trabalhar como repórter no jornal local na cidade de Narovl.

Alexievich escreve contos, ensaios e reportagens, mas diz que só encontrou sua voz sob a influência de Alés Adamóvich. Na cerimônia de divulgação do prêmio, a crítica literária Sara Danius disse que “não se trata de uma escritora de eventos nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é realmente um mundo emocional. O desastre nuclear de Chernobyl e a guerra soviética no Afeganistão são pretextos para explorar a indivíduo soviético e pós-soviético”.

Chernobyl, o horror
Chernobyl, o horror

Em Vozes de Chernobyl, Alexievich entrevista centenas de pessoas afetadas pelo desastre nuclear, indo desde uma mulher que, agarrada a seu marido morto, ouve os enfermeiros lhe dizerem que “isso não é mais uma pessoa, é um reator nuclear”, até os soldados enviados ao local. Fala de suas raivas por terem sido “arremessados lá, como areia no reator”. Em Meninos de Zinco, ela reúne vozes da guerra do Afeganistão: soldados, médicos, viúvas e mães.

“Eu não pergunto às pessoas sobre a política, eu pergunto sobre suas vidas: o amor, o ciúme, a infância, a velhice”, escreveu Alexievich na introdução ao O Tempo de Segunda Mão (O Fim do Homem Soviético). “Me interessam não apenas as tragédias vividas, mas a música, as danças, as roupas, os penteados, os alimentos. Os detalhes diversos de uma maneira desaparecida de viver. Esta é a única maneira de perseguir a catástrofe”.

“A história está interessada apenas em fatos; as emoções são excluídas do seu âmbito de interesse. É considerado impróprio admiti-los na história. Eu olho para o mundo como uma escritora, não como uma historiadora. Eu sou fascinada por pessoas “.

Seu primeiro livro, A guerra não tem rosto de mulher, tem como base entrevistas com mulheres que participaram da Segunda Guerra Mundial. “É uma exploração da Segunda Guerra Mundial a partir de uma perspectiva que era, antes do livro, quase completamente desconhecido “, disse Danius . “Ela conta a história de mulheres que estavam na frente de batalha na segunda guerra mundial. Quase um milhão de mulheres soviéticas participaram na guerra, e esta era uma história desconhecida. A obra foi um enorme sucesso na União Soviética, vendendo mais de 3 milhões de cópias. É um documento comovente e íntimo, trazendo para muito perto de nós cada indivíduo.” 

Tradutores, editores e leitores

Embora Alexievich tenha sido traduzida para o alemão, francês e sueco, ganhando uma série de importantes prêmios por seu trabalho, as edições em inglês do seu trabalho são escassas. Em Portugal, O Fim do Homem Soviético saiu este ano pela Porto Editora.

Seu editor francês diz que este livro é uma pesquisa micro-histórica da Rússia da segunda metade do século XX, indo até os anos Putin. Aliás, Alexievich é uma das vozes de oposição, costumando criticar duramente Putin e Lukashenko em palestras para leitores.

Bela Shayevich, que atualmente está traduzindo Alexievich para o inglês disse que “esta vitória significa que mais leitores serão expostos às dimensões metafísicas de sobrevivência e desespero das tragédias da história soviética. Espero que mais pessoas entendam o sofrimento provocado por circunstâncias geopolíticas estranhas a elas”.

A opinião geral de seus admiradores é a de que seus livros são muito incomuns e difíceis de categorizar. São tecnicamente não-ficção, mas recebem um belíssimo tratamento literário e de trabalho de linguagem. Sua tradutora inglesa faz uma reclamação: “Os editores ingleses e americanos são relutantes em assumir riscos e não gostam de livros muito trágicos. Não investem em um livro só porque ele é bom. Agora, com Nobel, talvez a coisa mude”.

Nas entrevistas após o prêmio, perguntaram a Alexievich sobre os refugiados na Europa. “A Europa agora passa por mais um teste sobre sua própria humanidade. Estive recentemente em Mântua, na Itália, e alguns amigos me convidaram para “marchar de pés descalços”. Este tipo de marcha foi organizada pela primeira vez em Veneza e agora está indo para todas as cidades. As pessoas tiram os sapatos e caminham descalças pelas cidades em solidariedade aos refugiados. Lá estavam refugiados, imigrantes e italianos solidários a eles. E isto na Itália, onde o nacionalismo é muito forte. Espero que, desta vez, a Europa seja aprovada no teste”.

Svetlana Alexievich é apenas a 14ª mulher a receber o Nobel de Literatura. Ao todo, 111 autores já foram premiados.

(*) Com Elena Romanov

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Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert

Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert
Val e Dona Bárbara
Val e Dona Bárbara

Que Horas Ela Volta? entrou modestamente em cartaz, mas logo ganhou críticas entusiasmadas e o público apareceu. Lançado em 27 de agosto, o filme dobrou o circuito de exibidores e público em poucos dias. O número de ingressos vendidos por semana subiu 116% em um mês e o filme já está em terceiro lugar entre os mais vistos no Brasil em 2016, acima de produções como Missão Impossível – Nação Secreta e outros blockbusters.

A situação do brasileiro de classe média que vê Que horas ela volta? é bastante peculiar, pois o filme é um retrato seu na intimidade com seus serviçais. De certa forma, o filme acusa sua plateia. Por exemplo, hoje, eu não tenho empregada doméstica, porém, ver o filme foi como observar o mundo através dos olhos da velha Inah que morava com minha mãe. E minha familiaridade com o tratamento que Val recebe foi acrescida pela lembrança dos péssimos costumes de algumas pessoas com as quais convivi.

A história é simples e brasileiríssima. Depois de deixar a filha com a avó no interior de Pernambuco e passar 13 anos como babá de um menino de classe média em São Paulo, a empregada Val vive certa estabilidade financeira. Manda dinheiro para a família, orgulha-se do que tem em seu pequeno quarto nos fundos da casa, junta algum, mas convive com a culpa de não ter criado sua filha Jéssica.

Neste período, Val tornou-se uma segunda mãe para o menino Fabinho e também a administradora da casa dos patrões. Porém, às vésperas do vestibular do menino, ela recebe um telefonema da filha. Ela quer apoio para vir a São Paulo também fazer vestibular.

Aquilo parece uma segunda chance para Val. Afinal, ela finalmente poderá ser uma mãe para sua filha.

Val e Jéssica
Val e Jéssica

Val fala com os patrões e eles aceitam hospedar a menina junto com a mãe no quartinho. A família paulista está disposta a receber bem a menina por um tempo, porém, como ela não segue as regras de comportamento esperadas para uma filha de serviçal, a situação se complica. A menina é livre demais, inteligente demais, participante demais, não se submete com naturalidade às regras da casa.

Esses conflitos farão com que Val precise finalmente se movimentar. Regina Casé faz o papel de Val. Sua interpretação é notável, arrasadora mesmo, e saímos do cinema com a certeza de que ela passou a vida inteira trabalhando como empregada daquela casa.

É uma aula de Brasil, uma aula cheia de detalhes brilhantes. A Elena chamou atenção para a cena logo após o resultado do vestibular. A mãe reclama que o filho só aceita ser abraçado por Val, mas quando a situação subitamente se inverte — contar o motivo da inversão seria contar o filme –, o filho a abraça e é ela quem fica indiferente ao filho. O Idelber chamou a atenção para a cena da festa. Val serve quitutes sem que ninguém a olhe. Ela não existe. A cena é toda filmada do ponto de vista da empregada e é maravilhosa.

Mas o símbolo principal e visível do filme é a mítica piscina da classe média. Ali, nenhum serviçal que conheça seu lugar entra. Tal veto é uma cena chocante, notavelmente encenada por Muylaert.

Enéas de Souza disse que o filme é um pouco dilmista. Verdade. Ele se utiliza de alguns sonhos do período lulista, como a ascensão da classe C. O tema de fundo é o do preconceito de classe, essa instituição desumanizadora brasileira. A simpatia que sentimos por Val, a que nasceu sabendo seu lugar na sociedade, parece nascer menos dela e do fato de ser engraçada e mais do comportamento superior e asqueroso dos patrões. Causa-nos desconforto ver as mesquinharias típicas da classe média — como separar partes da casa para si e alimentos mais simples para os empregados.

O filme é discretamente libertário. Talvez boa parte de seu brilhantismo venha do desencanto. Não se sabe o futuro da filha Jéssica, mas a cena em que Val entra na piscina quase vazia é muito clara. Val entrou lá, comemorou e até deu uma tímida imitadinha no Gene Kelly de Cantando na Chuva. Mas a diretora e roteirista Muylaert fez com que ela entrasse lá à noite, de roupa, escondida, com a água pelas canelas. Motivo? Ora, a piscina acabara de ser limpa pela desconfiança da existência de “ratos”.

Recomendo muito,

Val e Fabinho
Val e Fabinho

Elena e a guerra

Elena veio para o Brasil no começo de 1998. Era verão aqui, inverno na sua Bielorrússia e ela mal falava inglês. O português era-lhe inteiramente desconhecido, mas a vida estava difícil na Europa Oriental, às vezes era complicado até conseguir cumprir as necessidades mais básicas — como, por exemplo, comer –, mas ela tinha uma arma: uma sólida formação musical que a ensinara a tocar maravilhosamente o violino. E ela viajou algum tempo depois de seu marido na época, que já fora aceito na Orquestra do Teatro Amazonas, em Manaus. E Elena foi para o mesmo local a fim de fazer um teste.

Era uma jovem mãe com uma filha de 5 anos e uma gravidez de 5 meses. O avião da Aeroflot chegou 2 DIAS (!!!) atrasado ao Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, fazendo-a, é claro, perder a conexão para a capital amazonense. Era uma bielorrussa falando russo em Congonhas. Ou seja, ampliando o quadro, era uma mulher falando russo num local onde ninguém a entedia, acompanhada de uma filha pequena, um inquilino na barriga e mais bagagem. A confusão e o nervosismo já tomava conta de nossa heroína quando apareceu uma pessoa que conhecia a língua num balcão que não tinha nada a ver com o problema. A moça se apresentou e encaminhou Elena para Manaus.

Lá chegando, ela não conseguia acreditar. Saíra de Minsk com -35°C e chegara a Manaus com 35°C. Mas não eram só os 70° de variação. Quando saiu do avião, ela teve a sensação de que se chocara contra uma desconhecida parede de calor úmido. E a inacreditável umidade tornava qualquer movimento difícil, ainda mais grávida, com filha e bagagem. Detalhe: e tendo que cuidar de dois violinos — o dela e o da filha –, o que não é o menor problema de um músico.

Mesmo com a notória barriga, foi aceita na orquestra como violinista. Cada vez mais grávida, por assim dizer, e sem saber uma palavra da língua que hoje fala tão bem, costumava tomar banho, levar a filha para passear nas calçadas quentes, sujas e esburacadas da cidade, e voltar para tomar outro banho. E a vida ia se ajeitando. Porém, um dia, ela saiu para a rua e voltou rapidamente para o apartamento. Estava em pânico. É que algo de muito grave tinha acontecido. Entrara em pânico. Não havia ninguém na rua. O que ocorrera? Do que eles, os russos, não sabiam?

De repente, ela ouviu explosões e ficou tão agitada que quase fez Nikolay nascer prematuramente. Viera certamente para um país em guerra. Começou a chorar e a pensar numa forma de proteger a si e à família. Mas as explosões eram apenas a comemoração de um gol.

Um dia glorioso de trabalho em Montevidéu

Elena Romanov, Roberto Markarian e eu na sala do reitor
Elena Romanov, Roberto Markarian e eu na sala “del Rectorado”

Fizemos uma bela entrevista com Roberto Markarian, Reitor da Udelar, Universidade da República do Uruguai. Na entrevista, fica claro o que é uma ‘pátria educadora” e a dimensão humana de um sistema gratuito e laico de ensino. Foram 63 minutos de perguntas e respostas, mas a Elena disse que o conteúdo equivale a um livro. Pedi ajuda a vários amigos acadêmicos para melhorar minhas perguntas e o resultado foi estupendo.

Acho que vou dividir a entrevista em duas partes para que não seja cansativo para o leitor e lhe dê certo tempo para refletir sobre modelos totalmente diferentes — e mais racionais — dos nossos. Tive a sorte de conhecer o genial Markarian durante os anos 80 quando ele fazia mestrado em Porto Alegre após sete anos de prisão durante a ditadura militar uruguaia. A mim, resta agora ser digno de Markarian, dos amigos e da Elena, que me ajudou com fotos, sugestões 100% aceitas e também com alguns questionamentos..

A arte urbana da Porto Alegre da CEEE e do prefeito José Fortunati

A arte urbana da Porto Alegre da CEEE e do prefeito José Fortunati

Eu e Elena costumamos caminhar sem rumo pela cidade. Ela diz que este hábito, realizado sem objetivos ou horários, dá-lhe uma tranquilizadora sensação de férias. Eu aderi. E, assim, é normal irmos para qualquer lado ou lugar, entrando nas exposições, livrarias, restaurantes e cinemas que quisermos, de forma desprogramada, só pela curiosidade. É uma bela interrupção, uma fuga da correria.

Uns dez dias antes, em nossas andanças, já tínhamos visto aquilo, mas achamos que era temporário e não valia o registro. Não era. Então, ao meio-dia do sábado passado, após visitarmos um restaurante tailandês da Rua Miguel Tostes, em Porto Alegre, vimos novamente a coisa. (A propósito, o tailandês é muito bom, mas fica melhor ainda com o desconto do Mobo. A foto de nossa refeição — abacaxi recheado de camarões — está abaixo. Aquelas flores também são comestíveis e a pimenta, apesar de docinha, transforma qualquer um num dragão.)

Mas voltemos a nosso tema.

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Depois seguimos na direção da Av. Protásio Alves e do mundo para ver que aquilo não era temporário, mas uma instalação elétrico-artística urbana, uma coisa da arte, com significado e beleza obscuros. Na altura do nº 934 da Miguel Tostes há um emaranhado de fios ao lado de um poste (foto abaixo). Trata-se certamente de uma metáfora de nossas vidas, pois permanecemos em pé, apesar da inextricável floresta de estímulos e problemas. Só alguém tão alto quanto o prefeito Fortunati (1,98m, quase um poste) poderia ter tido esta ideia maravilhosa. A coisa começa lá em cima, perto do céu, e desce até nós, pedestres, através de um aparelho especial, que nos faz concluir que a confusão que nos atinge vem de esferas mais altas.

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

A coisa certamente não é perigosa, então podemos brincar com as partes da geringonça que vão até quase o chão. Não tive coragem de tocar na instalação — afinal, se os museus fechados não apreciam que metamos a mão nas obras de arte, cumpre seguir a regra –, mas o instrumento tem um simpático ar de Lego decaído.

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Porém, se sou um adulto treinado em museus, a maioria das crianças não é. Certamente meus sete leitores permitiriam que seus filhos brincassem com a peça, puxando-a para baixo junto com os fios que a sustêm. Em nossa cidade, ninguém seria irresponsável a ponto de colocar nossas vidas em perigo. Temos segurança.

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Abaixo, mas dois aspectos da coisa. Não é lindo?

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Então, para caminhar em Porto Alegre, há que olhar para baixo a fim de que se desvie dos milhares de cocôs de cachorro onipresentes em nossas calçadas, para cima a fim de se ver arte urbana e para a frente a fim de que possamos evitar choques com outros pedestres assim como atropelamentos. Desta forma, olhando o mundo como fazem os peixes — as maravilhas podem estar ao lado, em cima ou abaixo — sugiro uma caminhada lenta para que se possa fruir adequadamente Porto Alegre, a cidade que é demais. Isso, é claro, se houver iluminação.

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Entrevista com Leonardo Padura

Entrevista com Leonardo Padura

Valeu a pena esperar quase uma hora por Padura, que dava uma entrevista de última hora em seu quarto para a Folha de São Paulo. Fiquei muito feliz entrevistando o escritor cubano Leonardo Padura. O resultado físico do encontro é a dedicatória que ele escreveu no meu exemplar de O homem que amava os cachorros, mas o resultado intangível e pessoal foi maior.

Abaixo, a dedicatória:

Para o amigo Milton, com o desejo que a vida lhe sorria e que visite Havana.
Com o abraço cubano de Padura
2015

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Por algum motivo incompreensível, eu sabia que nos entenderíamos perfeitamente e que meu roteiro de perguntas era bastante adequado a um autor que lera com boa dedicação. O resultado da entrevista foi acima da média, porém o que mais gostei foi o que ficou, a pedido de Padura, off the record, confidencial. Fiz algumas perguntas sobre o mercado editorial que foram respondidas como se estivéssemos numa mesa de bar. Adentramos outros temas, como a cidade de Havana e a cultura em geral. Aludi ao fato de ter gostado muito de algumas partes de seu maior romance, deixando no ar certa contrariedade com certas proximidades. Ele entendeu e explicou tudo com lógica e sorrisos. Não faria sentido inserir minhas especificidades pessoais numa entrevista que já tinha cinco laudas, mas fiquei com a impressão de que poderíamos ter ficado horas conversando.

Saí de lá com a Fofonka, conversando sobre como a maioria das pessoas brilhantes não são arrogantes. E também sobre o fato de ele não ter perguntado sobre minha formação em literatura, como costumam fazer algumas sumidades da música porto-alegrense, que dizem que eu não entendo nada de sua arte, apesar do meu conhecimento do repertório. No caso de Padura, bastou lê-lo; no caso da música, não basta ouvir. Piada, né?

Acho vale a pena meus sete leitores darem uma olhada no link da entrevista. O Charlles Campos leu:

Rapaz, finalmente publicou a entrevista. Parabéns, Milton! (Pena que eu, claro, não tive meios de saber antecipadamente do evento, assim teria pedido a você o desconfortável favor de requisitar um exemplar do livro com o autógrafo do Padura, prontificando-me a pagar todas as despesas).

O homem que amava os cachorros, recomendação sua, foi um dos melhores romances latino-americanos que li nos últimos vinte anos. Creio que ele perde apenas para A festa do bode.

Note que Padura nunca externou a pretensão de pertencer ao primeiro time dos escritores cubanos. Ele não almeja nem a erudição de Carpentier, nem o esteticismo mirabolante de Cabrera Infante. Ele se contenta em ser um escritor de gênero_ a literatura cubana tem essa semelhança com a literatura norte-americana: se presta muito bem tanto ao alto cânone quanto a uma excelência de gênero. Há um artigo sobre Padura, publicado na revista Piauí, em que Padura diz que seu desejo é ser, apenas, o Paul Auster cubano. Ele conseguiu superar Paul Auster, que nunca escreveu um livro tão intenso e expressivo quanto O homem que amava os cachorros. O livro está sendo muito bem lido aqui no Brasil, e já se encontra em não sei qual reedição.

Abaixo, duas fotos do papo.

Foto: Roberta Fofonka
Foto: Roberta Fofonka
Foto: Roberta Fofonka
Foto: Roberta Fofonka

Culpa do blog

Culpa do blog
Oiiiiiiiii...
Oiiiiiiiii…

História absolutamente deliciosa contada pelo Gustavo Melo Czekster em inbox e que eu divulgo indiscretamente:

Oi, Milton.

Na quarta feira, aconteceu um evento comigo que, em grande parte, foi culpa tua.

Estava eu na frente do Salão Mourisco, dentro da Biblioteca Pública, onde tinha acabado de falar sobre Literatura Inglesa escrita por mulheres. Eu estava conversando com as alunas do curso. Algumas pessoas subiam as escadas e passavam por nós, portando seus instrumentos musicais. De repente, vi um rosto conhecido galgando os degraus e na hora pensei, com grande intimidade “oh, olha ali a Elena Romanov, violinista e namorada do Milton!” Abri um sorriso e disse um “ooooi…” daqueles mais amistosos e respeitosos.

Quando estava na metade do “oooooi…”, naquele ponto instável entre o “o” e o “i” , percebi: eu não conhecia a Elena Romanov! Nunca conversei com ela. Nem sequer somos conhecidos virtuais. Eu só a conhecia por teu intermédio, através dos teus textos e postagens no FB e no blog. Mas ela parecia tão real que era como se eu a conhecesse por muito tempo e, pior ainda, fôssemos grandes amigos.

Fiquei completamente envergonhado. Em especial por que a Elena me olhou com o mais absoluto espanto – tentando lembrar de onde me conhecia e, naturalmente, não recordando – e respondendo, educada, com um “oi!’ rápido que eu também daria, pois pareci um psicopata. Mas fui um psicopata involuntário, se é que tal figura existe.

Compartilho esta história contigo por dois motivos. Em primeiro lugar, para que mandes meu pedido de desculpas para a Elena e diga que fiquei muito envergonhado. Em segundo lugar, para saudar o poder das tuas palavras e textos, que conseguiram criar em mim a ilusão perfeita: a de conhecer uma pessoa desconhecida. Espero que não uses este poder para o mal.

Um abraço!

E o Gustavo completa:

“Depois voltei para casa pensando no pavor de subir uma escada e, ao chegar no seu término, algum desconhecido dizer “oooooooi…”

Ospa em noite de zumbis, trompetes e porvires

Ospa em noite de zumbis, trompetes e porvires
A maestrina Valentina Peleggi durante os ensaios para o concerto de ontem. Clique para ampliar.
A maestrina Valentina Peleggi durante os ensaios para o concerto de ontem | Foto de Augusto Maurer | Clique para ampliar.

Foram tantas emoções… Entrei num camarote lateral do Theatro São Pedro, olhei para baixo, observando a plateia presente, e lá estava minha ex-ex toda sorridente. Ergui os olhos e, bem na minha frente, no camarote oposto, estava minha ex com má cara. Estava começando a ficar desconfiado de uma armação cósmica quando olhei ainda mais para cima e vi que ali se encontrava a PMDB. Então, notei que minha companhia no camarote era, nada mais nada menos, do que a atual cônjuge do ex-marido de minha futura mulher, Elena, que estava no palco.

Eu pensava que era o James Stewart de A Janela Indiscreta, assistindo não a um desfile de paixões amorosas, mas a uma fusão de passado, presente e futuro… Quando já sentia um gesso em minha perna, a qual já começava a coçar à espera de Grace Kelly… Quando conjeturava sobre o mito de que, na hora da morte, a gente revê toda nossa vida… Bem, então, no final do concerto, vieram três trompetistas da orquestra para trombetear junto ao meu ouvido, pois Sibelius quisera colocá-los fora do palco. Adivinhem onde eles escolheram ir? Do meu ladinho, ora! Ainda bem que sou um sujeito brando, ameno e pacífico, nada paranoico e sempre disposto a achar graça de tudo. Ou seja, se não fosse o bobo alegre que sou, sucumbiria aos fatos.

Bem, o programa da noite:

Pietro Mascagni: Preludio e Intermezzo “Cavalleria Rusticana”
Erich Wolfgang Korngold: Concerto para violino
Maurice Ravel: Ma Mère l’Oye
Jean Sibelius: Karelia Suite

Regente: Valentina Peleggi
Solista: Cármelo de los Santos (violino)

O concerto iniciou por uma abertura, o que é uma redundância apenas aparente. Nas garrafas, a diversão começa para abertura da tampa; já nos concertos, a diversão não precisa começar por uma abertura, como a Ospa infelizmente convencionou para 2015. O Preludio e Intermezzo de “Cavalleria Rusticana” foi a mais feliz das aberturas de concerto deste ano, o que não é grande mérito, é mais ou menos como ganhar por 2 a 1 da União Frederiquense. Mas pudemos ver uma novidade no palco, o trabalho claro da maestrina Valentina Peleggi.

Intermezzo: minha opinião sobre maestrinas foi dada quando fiz a tradução deste belíssimo texto de Barbara Hannigan. Concordo inteiramente com ela e vou tratar Peleggi sem citar mais o fato de ela ser uma mulher no pódio. Deveria ser normal.

O Concerto para violino de Erich Wolfgang Korngold é mal disfarçada música para cinema. Nos anos 30 e 40 do século passado, o austríaco Korngold trabalhou em Hollywood fazendo música para filmes. Suas trilhas sonoras impulsionavam adequadamente as cenas e eram bem recebidas por diretores e público, o que o tornou famoso nos EUA. É óbvio que conheceu Bernard Herrmann, autor da banda sonora de A Janela Indiscreta. Mas não conheceu John Williams, autor do bis, a canção-tema de A Lista de Schindler. Nestas duas intervenções, o violinista Cármelo de los Santos foi impecável, mostrando-se um cantor muito superior àquilo que cantava, obras dispensáveis.

O livro de Perrault é de 1695
O livro de Perrault é de 1695

Conforme o esperado, a melhor peça da noite foi Ma Mère l’Oye (Mamãe Gansa), de Ravel, um sujeito que, assim como Brahms, era infalível. A peça foi escrita originalmente em 1910 para piano a quatro mãos, como um presente a duas crianças próximas do compositor, Mimie e Jean Godebsky. Foi inspirada em contos de fada de Charles Perrault e da condessa d’Aulnoy. A Mamãe Gansa não é um personagem ficcional específico, ela representa as mulheres contadoras de histórias, normalmente mães, na época. É uma atividade gloriosa. Um ano depois, em 1911, a peça foi orquestrada e ampliada pelo próprio Ravel, que a transformou num balé. Aqui, a segurança e os gestos claros de Valentina Peleggi — às vezes apenas um olhar mais significativo — fizeram a diferença, ao lado do flautista Artur Elias e do corne inglês de Paulo Calloni.

Esta igreja existe na Carélia e e foi feita de madeira, OK? Clique para amplar.
Esta igreja existe na Carélia e e foi feita de madeira, OK? Clique para ampliar.

A função foi finalizada pela alegria nórdica da Suíte Karelia. Não, não cairei no mau gosto de fazer um trocadalho do carilho com o título da peça do finlandês que completa 150 anos de nascimento este ano.

Esta suíte é um dos primeiros trabalhos de Sibelius e é muito popular. Ele tinha especial afeto pela região da Karelia (ou Carélia), que é pouco habitada e fica bem na fronteira com a Rússia, banhada em parte pelo Báltico. Em anos anteriores, ele havia encontrado inspiração na música local e, depois, até passou sua lua de mel lá. O caráter simples da música é deliberado: a intenção estética é a de capturar a pureza da base folclórica. É claro, sabemos que Sibelius foi um mega-nacionalista.

É curioso, no Sibelius, quando os três trompetes, los tres amigos, subiram até o meu camarote para me mostrar que aquela não era uma noite qualquer, pude ouvir e separar perfeitamente o som de cada um deles. E é notável a leveza, delicadeza e profundidade do som de Elieser Ribeiro.

À saída, na porta do teatro, a Sofia Cortese nos proporcionou enorme alegria ao chegar para a Elena e dizer de forma espontânea algo mais ou menos assim: como é bom te ver tocar, a tua figura, a tua postura, são muito bonitas de se ver. De minha parte, eu concordo integralmente e acrescento que ela é bonita de se ouvir, também.

Para vocês verem como falo a verdade: os três trompetistas e eu, à direita
Para vocês verem como falo a verdade: os três trompetistas e eu, à direita | Foto: Ana Eidam / Ospa

Porque hoje é sábado, sapiossexualidade

Porque hoje é sábado, sapiossexualidade

Isso já deve ter acontecido com vocês, meus sete leitores. A gente acha alguém atraente, mas depois ela ou ele abrem a boca ou escrevem no Facebook e não fica pedra sobre pedra.

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Sim, porque a gente pode desistir de alguém lindo por burrice, gramática, ideologia ou mau cheiro.

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Mas, contrariamente, também pode acontecer de a gente começar a achar alguém interessante só depois que ele ou ela abrem a boca ou escrevem.

Brad Pitt

O fato é que a Elena, minha namorada, sempre me disse que não se importava com a beleza física.

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(É claro que não se importa. E nem com narigudos cambotas portadores de daltonismo).

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Já eu… Mas este não é o tema de hoje.

Marlon Brando

Elena diz que, para ela, o que conta é a inteligência e a profundidade de expressão.

friedrich-schiller

Tecnicamente, chama-se de sapiossexual a pessoa que tem fascínio pela inteligência ou pela cultura de outrem.

Penelope Cruz Woody Allen

Mas a Elena não deve ser o caso, pois ela fala muito no olhar e isto, até onde entendo, é um fato físico.

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Ou há um modo inteligente de olhar?

freeman

Agora, para que este PHES não pareça um mal disfarçado auto-elogio, constatem na foto abaixo como eu enganei direitinho a Elena.

Elena e Milton

Seleção de fotos: Elena Romanov

Um ano e nove meses

Um ano e nove meses
Elena e o espelho | Foto: Cau
Elena e o espelho | Foto: Cau Guebo

Tá certo que sou um indiscreto. Todas as três pessoas que se interessarem por mim podem saber muita coisa nas redes e é muito legal quando um fotógrafo como o Cau Guebo “persegue” a Elena no aquecimento antes de um concerto para tirar uma foto dela e me mandar no outro dia. Ele sabe que eu adoro ela e que ia ficar comovido com o presente. Fiquei.

(E como ela estava séria e cansada naquela terça-feira cheia de más noticias).

Mr. Gwyn, de Alessandro Baricco

Mr. Gwyn, de Alessandro Baricco

Mr. Gwyn Alessandro BariccoA Elena ganhou este livro de presente de aniversário, em 19 de maio de 2014. Quem lhe deu foram os conhecidos psicanalistas porto-alegrenses Lucia Serrano e Robson Pereira. Ela o leu há pouco tempo e mandou eu ler também. Ela tinha gostado muito e me fez uma curiosa observação. A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan, que tinha lido logo antes, seria um livro onde as coisas que acontecem são completamente reais, mas as consequências e as impressões do leitor são surreais. Já em Mr. Gwyn acontecem coisas surreais, mas a sensação é de normalidade, de isso-deve-ser-assim. Não sei se fui feliz ao reproduzir as frases da Elena. O que digo é que o livro da Baricco é extraordinário. São 68 capítulos em 219 páginas da uma história surpreendente que inicia com Jasper Gwyn, um escritor de sucesso, publicando no The Guardian 52 motivos para abandonar a escrita.

Seu editor e melhor amigo desespera-se, mas afirma que Gwyn vai voltar a escrever. Na verdade (sem spoilers), o escritor está atrás de outra atividade que ainda não existe. Ou seja, sua Síndrome de Bartleby não é tão severa. Ele mais ou menos deixa de publicar. E começa a escrever retratos. A ser um copista de pessoas. O texto de Baricco é poético e intrigante. Mesmo que não haja um tremendo mistério a ser revelado, a história faz com que pulemos de um capítulo para outro para saber mais. Afinal, é necessário saber onde Gwyn quer chegar.

Hábil, Baricco dá reviravoltas na história, acelera e freia, entrega pistas erradas, sempre mantendo a poesia do relato. O livro pode ter várias interpretações, mas creio que a mais inconsistente é a que está na contracapa do volume (algo como “o escritor precisa desaparecer para se reencontrar”…) e uma das mais consistentes é que os escritos poéticos e metafóricos captam melhor a essência desta rarefeita nuvem de sonhos que é o ser humano. Infelizmente, não posso dar detalhes que estragariam a surpresas contidas na história.

Fico pensando na relação que o casal de psicanalistas presenteadores pode ter com a história, mas, para discorrer a respeito, também teria que entrar em detalhes indesejados por um futuro leitor. Afinal, o livro pode ser lido também como uma metáfora do entendimento dos personagens-pacientes. Porém, para mim, a obra é sobre o fazer literário.

Mr. Gwyn é entusiasmante. Tanto que desejo conhecer as outras obras traduzidas de Baricco.

P.S. final — Este romance teria vida difícil no Brasil. Se um escritor brasileiro escrevesse um romance passado em Londres, com personagens exclusivamente ingleses, sem referências ao torrão natal, seria considerado “colonizado”, antipatriota e outras besteiras. A crítica politicamente correta tentaria escorraçá-lo das letras nacionais.

P.S. 2 — Ignorem capa da edição brasileira. Fiquem com essas

Alessandro Baricco (1958)
Alessandro Baricco (1958)

Tietagem na festa de 5 anos do Sul21

Tietagem na festa de 5 anos do Sul21

Depois, talvez, eu consiga mais fotos da festa de 5 anos do Sul21. Por enquanto, fiquem com esta reportagem fotográfica de Elena Romanov. Nela, o tietado chargista Carlos Latuff faz um retrato do garçom Maycon, do NB Steak, a pedido do último. A fotógrafa teve rara intuição jornalística ao documentar o quase silencioso encontro.

Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov
Foto: Elena Romanov

Feliz aniversário, Elena

Feliz aniversário, Elena
Elena e eu
Elena e eu

Hoje a Elena está de aniversário. Cioran disse que a arte de amar — é meu caso em relação a ela — é saber unir o temperamento de um vampiro à discrição de uma anêmona. Hum… É verdade. Neste belo tempo em que estamos juntos a gente fez e cumpriu planos, ficou doente e se recuperou, rimos tanto de nós e dos outros que deveria ser proibido agir tão bobamente assim, fizemos tantos passeios juntos que talvez já tenhamos ido a pé a Bielorrússia, entendemos na prática que só se é feliz dentro da liberdade e fizemos tantas declarações de amor um para o outro que fomos muito, mas muito ridículos. E Cioran, é claro, tem toda a razão, porque faz parte.

Só que me perdi. É ela que está de aniversário, não nós! Milton burro.

Feliz aniversário, Elena. Te desejo muitas alegrias e disposição para me aguentar neste novo ano que se abre. Acho que estaremos juntos por muitos deles, sempre como amadores.

No Rincão das Pombas, em busca do vazio perfeito

No Rincão das Pombas, em busca do vazio perfeito

Ontem, depois do meio-dia, fomos ao Rincão das Pombas na tentativa de tomarmos contato com o vazio perfeito. Era a promessa. Não, não se tratava de uma experiência filosófica ou religiosa, era tudo bem mais prosaico. Ou não. Vazio é a fraldinha, um corte de carne bovina que localiza-se entre a parte traseira e a costela do animal, representando aproximadamente 2,62% da carcaça. Um erro divino, pois deveria representar 5%, no mínimo. Fomos lá de carona com o Dario. Nosso encontro foi no Barra Shopping. Cheguei lá louco para fazer um xixizinho e corri ao banheiro antes que nossos amigos Claudia e Dario viessem.

O banheiro estava quase vazio, eu tinha pressa e parei ao lado de um rapaz num dos mictórios. Quando comecei a mijar, saíram-me duas barulhentas ventosidades (ou, de forma menos erudita, peidos).

O cara meio que se assustou e depois olhou enojado para o meu lado. Então eu, todo constrangido, disse a ele:

— Em condições normais, sou uma pessoa maravilhosa…

O cara teve um tal ataque de riso que interrompeu o que estava fazendo.

Mas tergiverso. O Rincão das Pombas, local do teste, é de propriedade da família Marshall. É antigo sítio à beira do Guaíba, em Itapuã, alguns metros antes da reserva. O próprio Chico Marshall pilotaria a churrasqueira. Estava maravilhoso. Como vocês, meus sete leitores, sabem que o blog é o local onde me coleciono, terão de aguentar 20 fotos de nosso sofrimento ao livre, na beira do Guaíba, finalmente aspirando ar, após semanas.

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Enquanto a Elena Romanov pensa compassivamente em algo para dizer, eu roubo sua comida.

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Eu e Elena olhamos admirados para o matambre. Eu já vou abrindo a boca.

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Astrid Müller, eu e Elena observamos o vazio.

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Ficamos na dúvida se é realmente o vazio perfeito, se é realmente o arqui-vazio.

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E voltamos a observar.

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O arqui-vazio.

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Havia gente tão bêbada que não conseguia encontrar a máquina fotográfica. Chico Marshall indica o caminho à Leonardo Winter. Eu acabara de perguntar ao Chico a origem da expressão “ó do borogodó”. A explicação me pareceu furada, mas sugiro que vocês lhe refaçam a pergunta diretamente. Só sei que  tudo começa na Bahia, em 1798.

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Fim de jogo. Acho que deu num belo carreteiro hoje.

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Clarisse Normann e Claudia Guglieri encontram a o fotógrafo com maior facilidade.

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Eu e o Arthur Maurer. Ele me contou coisas inconfessáveis…

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Arthur no meio do Guaíba, no stand-up do Dario.

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Bonito, né?

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Dario Bestetti chama o guri de volta.

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Eu fumo cubanos.

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Ele fuma cubanos.

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Nós fumamos cubanos.

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Um cão e um gato fotogênicos.

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O pôr-do-sol.

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5 homens e um destino (Eu, Pedro Maurer, Augusto Maurer, Chico e Dario).

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Nossa, bem melhor. (Clarisse Normann, Claudia, Rovena Marshall, Elena e Astrid).

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O grande autor das fotos, Augusto Maurer.

Do medo do Alzheimer, de meu não-casamento com Tolstói

Do medo do Alzheimer, de meu não-casamento com Tolstói

Minha mãe teve a doença e sua possibilidade é algo que me assusta, como não? É terrível a convivência e a manutenção de uma pessoa assim. Não quero ser um peso para os outros e a Elena e meus filhos não merecem. Então, trato de exercitar o cérebro. Faço contas de cabeça, leio, busco coisas na memória a cada momento.

E ontem dormi ouvindo a Rádio da Universidade. Eu e meu pai tínhamos um jogo que durou da minha infância até sua morte. Toda a vez que ligavávamos na Rádio da UFRGS — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou supertreinado em descobrir tudo o que ouço de clássico. Só que, lamentavelmente, hoje brinco sozinho, treinando contra o Alzheimer. Ontem à noite, começou a tocar uma obra complicada de adivinhar, mas eu, após, alguns minutos, pensei ter descoberto: era o Septeto de Franz Berwald. Quando terminou, aumentei o volume do rádio, mas ninguém disse nada. Logo entrou um concerto para violino. Fiquei puto, mas logo lembrei da greve e do direito e da boa razão dos trabalhadores. Então me atirei no meio dos discos e, depois de respirar muito pó, encontrei o Berwald e pus para tocar. Ufa, tinha acertado!

Os primeiros minutos depois de acordar são confusos para mim. Não sei em que dia estou nem o que tenho que fazer. Também a tristeza me invade com muita facilidade nestes momentos. Então, viro-me para o lado a fim de ganhar aquele “chorinho” de sono que me é certamente devido. Como complemento e para ganhar ainda mais tempo de consolo, abraço-me na Elena e a aceitação do abraço vai me arrancando da tristeza e dos pensamentos sobre a inutilidade de acordar e da vida. Mas hoje, virei-me, estendi o braço e nada. Tateei. Nada. Abri os olhos. Nada. Porra, mas o que houve? Querem me enlouquecer? Cadê a Elena? Revisei a memória pensando na chegada do alemão. Ela estava em casa ontem, não viajou. Ah, e está se recuperando de uma cirurgia! Será que teve uma crise de Tolstói e está numa estação da Trensurb? Saí da cama meio tonto atrás das alpargatas, abri a porta e lá estava ela, linda, dormindo na sala. Quando me aproximei, ouvi meu querido sotaque russo. Bom dia. Dormi às vinte para as seis e não quis te acordar. Vi toda a primeira temporada de Game of Thrones. Uma maratona. 

game of thrones

Antes dos gatinhos, a Ospa e muitas coisas

Antes dos gatinhos, a Ospa e muitas coisas

Há duas semanas, eu já tinha visto e resenhado o mesmo concerto. Afinal, este programa foi apresentado lá na igreja do Colégio Anchieta. Fui assisti-lo novamente para acompanhar a Elena e ir jantar depois, mas tenho uma coisa a citar, uma coisa a imaginar, uma coisa a nomear, uma coisa a esconder, uma coisa a esperar, uma coisa a lamentar, uma coisa a propor, uma coisa a prometer e uma coisa a imaginar, entre outras coisas.

Comecemos dizendo que, sentado lá em cima, na Igreja da Reconciliação (da Rua Senhor dos Passos) pude ouvir quão melhor é a acústica de lá em relação à Igreja da Ressurreição (a do Colégio Anchieta). Os luteranos têm melhor acústica do que os católicos, quem não sabia? Uma coisa que lamento é o fato de cada concerto da Ospa ser apresentado apenas uma vez. Sem dúvida, o desempenho da orquestra foi bem melhor ontem. É claro que há concertos de gatinhos — como o da próxima semana –, os quais é melhor nem pensar em repetir (melhor correndo fugir deles), mas há vários de nível aceitável que deveriam ser repetidos. Aliás, o próximo concerto da Ospa será num templo da Assembleia de Deus… Se iniciamos o ano assim, não consigo imaginar até onde irá a baixaria. Na boa, há que acabar com esta série de Ospa das Igrejas. Conheço pessoas que já desistiram. Chega disso, seja em igrejas católicas, luteranas ou evangélicas. É bunda dura, palco nenhum e deus demais. Deu.

Mas, voltando à calmaria, dizia eu que estava lá em cima na tal da Reconciliação, assistindo ao Réquiem de Fauré, e só tinha olhos para minha dama, que empalidecia tudo ao redor. A lua lá fora também estava pálida e eu só pensava em me aproximar de minha violinista, pois, como diria o Chico Buarque de Januária, até o mar faria maré cheia para chegar mais perto dela. Mas, dizia eu, este réquiem é tranquilo e apaziguador. Canta com delicadeza a chegada ao paraíso. Estava bom de assistir: o Coro Sinfônico da Ospa saiu-se benissimamente, o órgão estava em mãos seguras, a orquestra soava melhor na referida acústica, o solo de violino fazia curvas tranquilas pelo circuito até tocar de leve no muro de proteção, a dupla de cantores nos levava docemente pela mão… (rimou) Aliás, essa Elisa Machado, que não conheço, canta muito!

Depois veio o Tchaikovsky. A Fantasia para A Tempestade merece o esquecimento. A música horrenda — que, espero, seja reapresentada em Porto Alegre somente muitos anos após minha morte — fazia-me dizer internamente Come on, come on a cada dez segundos. Queria apressar a coisa. A memória veio em meu socorro e os Beatles pegaram aquele repetido Come on e atacaram Everybody’s Got Something to Hide Except Me and My Monkey. E simplesmente, como num quadro lisérgico de Chagall, saí voando com a Elena da Reconciliação, livrando-me daquilo. Afinal, está na letra, the deeper you go, the higher you fly (…) So come on.

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Aguardando mais fotos da festa de ontem…

Aguardando mais fotos da festa de ontem…

Ontem, houve uma baita festa para a Beatriz Gossweiler, clarinetista que se aposentou da Ospa no final de 2014. Todos os naipes estavam representados, à exceção das violas e da percussão — hum… piano não é percussão? A Beatriz é a mais querida das pessoas. Além dos músicos, estavam lá dois de seus filhos, mais noras e neto. Só que eu tirei poucas, pouquíssimas fotos e estas ficaram lamentáveis. Não em razão dos fotografados, mas da crise de minha pequena Sony. O Augusto é quem estava como uma máquina decente e deve ter muitas. Aqui vão duas e mais uma de nossas diversões da noite: o filme que o Philip Gastal Mayer mostrou para a gente lá no meio da madrugada. Alguém imagina como a orquestra consegue entrar junto na início da Quinta de Beethoven?

A ideia e a organização da festa foram da Astrid Müller e do Augusto Maurer, só para variar. Foi uma noite carinhosa e muito, mas muito engraçada.

Beatriz Gossweiler, Klaus Volkmann e Elena Romanov
Beatriz Gossweiler, Klaus Volkmann e Elena Romanov

Festa Beatriz 2

A Ospa trouxe o pterodáctilo para o paraíso

A Ospa trouxe o pterodáctilo para o paraíso
A Tempestade de Tchai chegando...
A Tempestade de Tchai chegando…

A noite era perigosa. Era necessário todo o cuidado. Concertos em igrejas deixam nossas bundas quadradas e as costas doendo. Sei por experiência própria que a Igreja do Colégio Anchieta tem cadeiras especialistas nestes quesitos. Acho que elas foram compradas do DOPS nos anos 80. O sofrimento foi amenizado pela presença amiga do Gustavo Melo Czekster, que pegava fogo — suando com um condenado — no banco atrás de mim. Ele tinha dois desconfortos; eu, inexplicavelmente, não sentia calor. Pingando, ele me disse que estas crônicas que escrevo sobre a Ospa são a continuação natural dos concertos e que ele as lia sempre. Como veem, um cara de bons hábitos. Mas, minha nossa, sei que nem todos gostam disso aqui!  Ele completou dizendo que apreciava as descrições do ambiente e eu pensei: como não fazer isso se aquele ventilador ali à esquerda mia como um gatinho faminto?

A última vez que tinha visto o Réquiem de Fauré fora na Saint-Martin-in-the-Fields em fevereiro de 2013. Saudades daquela viagem com a Bárbara. Mas não pensem que a versão ospiana da peça estava pior. Talvez estivesse até melhor que a versão londrina. O Coro Sinfônico da Ospa e o trabalho do pequeno efetivo orquestral utilizado garantiu uma bela viagem pelo peculiar universo de Fauré. Seu Réquiem não é nada desesperado e indica o caminho de um descanso eterno no paraíso. O Coro foi magnífico em toda a peça, mas especialmente na abertura do último movimento In Paradisum, quando anjos nos levam para lá pela mão. Não é um Réquiem para ser gritado e tal concepção da obra foi respeitada. O soprano Elisa Machado esteve um degrau acima de seu partner Daniel Germano. Elisa foi perfeita, demonstrando compreensão do estilo do Réquiem. Discreta, a orquestra esteve impecável.

No intervalo, a situação era a que segue: ainda embalados pelo Réquiem e em pé, tentando fazer nossas bundas retornarem a seus formatos originais. Tudo era alívio. Então, o paraíso foi invadido, mas não por trombadinhas fazendo um arrastão na praça de alimentação de um shopping, mas por algo muito mais primitivo e agressivo.

O maestro Manfredo Schmiedt, tão mansinho e compreensivo na primeira parte do concerto, começou a mexer os braços chamando os pterodáctilos para invadirem o paraíso. A tal Fantasia Sinfônica A Tempestade, Op. 18,de Tchaikovsky, era inédita em Porto Alegre. Deveria ter permanecido assim para sempre. Trata-se de bombásticos temas russos batendo firme nos personagens da última peça de Shakespeare. Pobre Próspero, pobre Miranda, coitado de Ferdinand, só o deformado Calibã pode ter gostado. Fiquei pensando que a tempestade que trouxera Alonso e Antônio para a ilha de Próspero talvez estivesse na música, mas não, nunca, a magia de Próspero e nem, jamais, nunca, haveria espaço para a gloriosa frase dita pelo pai de Miranda: Nós somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; com nossa curta vida cercada pelo sono. Ou, em tradução mais completa e competente que a minha: Esses atores eram todos espíritos e dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. Um dia, tal e qual a base ilusória desta visão, as altas torres envoltas em nuvens, os palácios, os templos solenes, e todo este imenso globo hão de sumir-se no ar como se deu com esse tênue espetáculo. Somos feitos da mesma substância dos sonhos e, entre um sono e outro, decorre a nossa curta existência. 

Onde estava o genial Próspero, Tchai?

No final do concerto, estava com desejo de música, claro. O Tchai tinha me matado. A noite acabou no Café Fon Fon, na festa de aniversário da Isolde. Bem tarde, com o bar quase vazio, acomodados naquele ambiente tranquilo, largado e risonho de fim de festa, a Elena foi sentar-se no lugar da Bethy Krieger para tocar — sim, no piano —  Beatles (Here, there and everywhere e Because) e, a meu pedido, de Bach, o BWV 639, Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ, que ela toca maravilhosamente e que deixo para vocês com a Lisitsa: