Uma parte significativa da grande literatura inglesa foi escrita por irlandeses — Oscar Wilde, William Butler Yeast, Bram Stoker, George Bernard Shaw, James Joyce e Samuel Beckett são um exemplo perfeito. Nenhum deles alguma vez negou a sua dívida para com Laurence Sterne, um compatriota nascido em Clonmel, condado de Tipperary, um século antes. Esta dívida não se limita exclusivamente aos autores irlandeses: o francês Denis Diderot, para escrever Jacques, o fatalista”, baseou-se na construção paródica, na rejeição das convenções narrativas e na figura do anti-herói proposta por Sterne que, aliás, foi contemporâneo de Diderot: ambos nasceram em 1713. Dostoiévski em O Idiota narra como o príncipe Mishkin conta a Yelizabeta e suas três filhas a história de uma pobre mulher humilhada em uma aldeia suíça que é literalmente retirada de Viagem Sentimental pela França e Itália, de Sterne. A sua influência também pode ser percebida em autores tão diversos como ETA Hoffmann, Victor Hugo e Charles Dickens. “Eu li Sterne. É admirável”, confessou Tolstói, e traduziu-o imediatamente para o russo; uma admiração que Goethe também não escondeu. Nietzsche considerou que “ele é o escritor mais livre de todos os tempos e o grande mestre da incompreensão… este é o seu propósito, ter razão e não estar certo ao mesmo tempo, misturar profundidade e bufonaria… É preciso render-se à sua fantasia benevolente, sempre benevolente.” Schopenhauer sustentou que os melhores romances de todos os tempos foram: Dom Quixote de La Mancha, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Julia, ou a Nova Heloísa e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, Cavaleiro. A influência de Laurence Sterne não parou, ultrapassou línguas e continentes. Descobriremos que a escrita destemperada, cáustica e insubordinada nos textos de Julio Cortázar, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante e até Borges — a estratégia de apresentar autores e livros inexistentes como verdadeiros é típica de Sterne.
A contracapa de Tristram Shandy, que Planeta publicou em 1976, com prólogo de Víctor Sklovski e tradução de Ana María Aznar, traz uma gravura que supostamente seria o rosto de Laurence Sterne. A ironia que se percebe em seu olhar e a expressão mordaz que seus lábios refletem dão uma medida completa do personagem. Ao ver aquela gravura e ao ler seu romance, tende-se a pensar que sua biografia também poderia ser parte de uma farsa, outro truque do próprio Sterne. Porém, os dados são verdadeiros: ele nasceu em 24 de novembro de 1713, numa pequena cidade do condado de Tipperary, no sul da Irlanda. Estudou em Cambridge e em 1738, aos 25 anos, foi ordenado sacerdote da Igreja da Inglaterra. Em 1741 casou-se com Elizabeth Lumley, com quem, nas palavras de Alfonso Reyes, “não soube manter uma relação cordial”. Em 1760 obteve o vicariato de Coxwold, no norte da Inglaterra. Um ano antes, ele havia começado a publicar “Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”. Os nove livros que hoje compõem a obra foram publicados, os dois primeiros em 1759 e os restantes sete ao longo dos oito anos seguintes. Sterne morreria alguns meses depois.
Começou a escrever tarde e morreu cedo. Sua vida como escritor não durou mais que nove anos, mas foi tempo suficiente para forjar um romance que criou uma nova forma de narrar a partir da paródia. Em 1760, ele publicou Mister Yorick’s Sermons, um volume no qual compilou os excêntricos sermões que proferiu como vigário na Igreja de Coxwold. Em 1767, sob o título Cartas de Yorick para Eliza, publicou a correspondência que mantinha com sua amante Eliza Draper. Tanto para os sermões quanto para as cartas de amor, ele escolheu o nome do padre Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy e por sua vez uma espécie de alter ego do próprio Sterne. Não é por acaso que seu nome era Yorick, como o bobo da corte que Hamlet evoca no quinto ato do drama de Shakespeare. Um mês antes de morrer, apareceu A Sentimental Journey through France and Italy, que alguns consideram ser o epílogo de Tristram Shandy.
Admirador confesso de Cervantes, Rabelais, Swift, Pope e Locke, a influência de cada um deles foi essencial para que Sterne construísse uma obra-prima que, em suas quase quinhentas páginas, antecipa muitos dos recursos narrativos da vanguarda literária de final do século 19. Século 19 e início do século 20, desde peculiaridades tipográficas: duas páginas inteiramente pretas no capítulo 36 do livro terceiro e os capítulos 18 e 19 do livro nono completamente em branco, até capítulos que consistem em uma única frase ou a prévia do monólogo interior que Joyce desenvolveria em Ulisses um século e meio depois.
Pouco depois do aparecimento dos dois primeiros livros, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman tornou-se um sucesso, embora não para todos: o prestigiado Samuel Johnson destacou que o romance ignorava quase todas as regras gramaticais. “Senhor, você não sabe inglês”, disse ele a Sterne, e quando Sterne, sarcástico, reconheceu que era efetivamente ignorante dessa língua, Johnson, definitivamente, declarou: “nada extravagante pode durar”. Samuel Johnson é considerado o melhor crítico literário de língua inglesa de todos os tempos. É claro que mesmo os grandes críticos às vezes cometem erros.
Por Bernard Shaw (*)
Traduzido muito livre e irresponsavelmente pelo autor do blog Aqui, a primeira parte
Vale a pena assinalar aqui — eu não consigo resistir em mencionar isso — que o editor geralmente acha que o crítico de música é um inútil dentro do jornal. Ele sempre pensa que tem disponíveis críticos que servem a todo e qualquer propósito. Ele tem certeza de que o crítico cujos artigos são do interesse de pessoas que só querem informação cultural ou se divertir é um impostor. Sim, o editor tem certeza absoluta disso. Quando meus artigos sobre música começaram a atrair um pouco de atenção, a piada na redação dava conta do fato indiscutível de eu não saber nada sobre música. Muitas vezes aconteceu de eu ser apresentado a admiradores que, ao ouvirem minha resposta à pergunta: “O que você aprendeu para poder escrever sobre música?” — ficavam decepcionados, desiludidos, certos de meu nenhum mérito em razão de minha explicação sincera e prosaica. Minha resposta: “Nada em especial, a música é a forma de arte que eu mais conheço”.
Quando a hipótese de minha total ignorância consolidou-se, mesmo assim eu encontrava pessoas que candidamente pediam que eu admitisse publicamente que meus conhecimentos de música não se estendiam a aspectos técnicos. Eles tinham certeza de que eu apenas fazia exercícios parvos de análise para impressionar leigos, mais ou menos como um cavalo bem treinado impressiona o pessoal da cidade em uma feira.
Um mau crítico tem duas vantagens. Primeiro, se ele escreve para um jornal diário e precisa de assunto, ele pode fugir de análise, tornando-se útil e interessante coletando as últimas notícias sobre os próximos eventos e o escândalo mais divertido sobre os últimos. Em segundo lugar, sua incompetência só pode ser comprovada comparando-se suas opiniões de um mês atrás com as de hoje, coisa que ninguém vai se dar ao trabalho de fazer. Um jornalista pode descrever de forma imponente A ou B, mas se você ler a descrição feita um mês atrás para X ou Y, se ele não for crítico, será quase a mesma. Quando ele tentar particularizar as qualidades especiais dos artistas que ele analisa, você o encontrará louvando Sarasate e Paderewski pelos mesmas características presentes na forma de tocar de seus alunos…Mesmo que ele esteja louvando ou arrasando o artista, ele sempre se ocupará de algumas das centenas de pontos que todos os executantes têm em comum, e perderá os detalhes que fazem toda a diferença entre a mediocridade e o gênio. Vai escolher ao acaso, destacando quase sempre o que não distingue um artista do outro.
Eu conheço isso por experiência própria. Há quase vinte anos, um músico queria me ajudar a assumir um posto como crítico de música em um jornal de Londres. Eu escrevia as críticas, ele assinava e me repassava o dinheiro recebido sem descontos, contentando-se com o fato de me auxiliar financeiramente. Eu era um jovem literato desamparado. Ele ficava com a honra e a reputação decorrente de meus artigos. A tais textos devo todo o meu conhecimento sobre as características da má crítica musical. Não posso aqui transmitir uma impressão adequada de seus deméritos sem ultrapassar os limites do decoro. Eu ficava muito triste na época, sem saber o que acontecia comigo. O fato é que eu não era maduro o suficiente para entender que o que estava me torturando eram a culpa e a vergonha que acompanham a ignorância e a incompetência.
O jornal, com minha ajuda, morreu, e meus pecados estão enterrados com ele. Mas eu ainda mantenho, em um esconderijo seguro, um conjunto dos crimes de crítica que escrevi, mais ou menos como um assassino mantém a faca manchada de sangue, sob a qual sua vítima caiu. Sempre que sinto que estou muito presunçoso ou atribuindo-me uma superioridade natural junto a um irmão mais novo no ofício, releio algumas dessas coisas antigas. E vejam, eu não era deficiente nem na habilidade literária, nem no conhecimento da música.
Eu teria sido um crítico excelente para aquela idade, se soubesse como fazê-lo. Não sabendo, meu conhecimento musical e poder de expressão literária tornaram-me um ser muito mais nocivo do que se eu fosse um mero jornalista. Quando eu retornei ao ofício de crítico, cerca de dez anos depois, já era um cidadão (item muito importante) pelo trabalho constante como autor, crítico de livros, palestrante e político. Tudo isso não tinha nada a ver com a música, mas a experiência fez toda a diferença. Eu fui enormemente ajudado como crítico pelos meus estudos econômicos e minha prática política de reformador social. Isto me deu uma inestimável compreensão das condições comerciais a que a arte está sujeita.
Uma das funções do crítico é a de agitar, a de promover reformas e mudanças. E a menos que ele saiba o quanto as reformas irão custar, e se elas valem esse custo, e quem terá que pagar a conta, e uma dúzia de outras questões geralmente não incluídas em tratados sobre harmonia, ele não fará nenhuma impressão efetiva nas pessoas descansadas, conformadas e confortáveis com as situações. Na verdade, ele nem saberá quem são os responsáveis. Mesmo os seus vereditos artísticos serão muitas vezes destinados à pessoa errada. Um gerente ou um artista não podem ser julgados de maneira justa por qualquer crítico que não compreenda os movimentos econômicos que envolvem a arte. Uma coisa é criar um ideal de perfeição e reclamar que não são alcançados. Mas culpar os indivíduos por não alcançá-lo quando a coisa é economicamente inatingível é um absurdo. Por exemplo, o mau crítico culpa o artista quando a culpa é do gerente, ou o gerente quando a culpa é do público. Tais erros vão destruir metade da sua influência como crítico. Todo o contraponto ou brilho literário no mundo não salvará um crítico de erros deste tipo, a menos que ele entenda a economia da arte.
O salário de um crítico de música não é grande. Os proprietários de jornais oferecem de uma a cinco libras por semana para críticas de música, sendo o valor mais alto um caso excepcional, envolvendo a entrega de umas duas mil palavras de prosa extra brilhante todas as semanas. E, exceto na baixa temporada, o crítico deve passar a maior parte de suas tardes e noites, de três a meia-noite, em salas de concertos ou na ópera. Não preciso dizer que é praticamente inviável obter os serviços de um crítico de música qualificado nestes termos. É mais ou menos como obter um quilo de morangos frescos em todos os dias do inverno. Consequentemente, para todas as qualificações que sugeri, devo insistir que uma renda independente para sustentá-lo é fundamental. Também é basilar a crença no valor da crítica musical. E uma vez que a boa condição financeira do crítico é tão improvável, tão completamente fora do alcance do praticável, posso parar de pregar. Meu sermão terminaria, como todos os sermões que tenho feito, em mais uma demonstração de como nosso sistema econômico falha miseravelmente em proporcionar os incentivos necessários à produção de resultados de primeira linha.
.oOo.
Este artigo foi apresentado a mim por Augusto Maurer. Foi publicado primeiramente no Scottish Music Monthly em dezembro de 1894. Foi reimpresso no New York New Music Review em outubro de 1912 e em Bernard Shaw, How to become a Music Critic, ed. Dan H. Laurence (Londres: Rupert Hart-Davis, 1960), pp. 1-6.
.oOo.
(*) George Bernard Shaw (1856-1950) foi um dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e jornalista irlandês. Cofundador da London School of Economics, foi principalmente autor de comédias satíricas de espírito irreverente e inconformista. Ele e o cantor Bob Dylan são os únicos premiados com um Prêmio Nobel de Literatura (1925) e um Oscar (1938), por suas contribuições para a literatura e para o seu trabalho no filme Pigmalião, respectivamente. Uma curiosidade: Shaw quis recusar o Prêmio Nobel, pois não gostava de honrarias públicas, mas aceitou-o a mando de sua esposa. Ela considerou uma homenagem à Irlanda. Então, ele rejeitou o prêmio em dinheiro, pedindo que fosse utilizado para financiar a tradução de livros suecos para o inglês.
Por Bernard Shaw (*)
Traduzido muito livre e irresponsavelmente pelo autor do blog
Meu plano era simples. Entrei na equipe de um novo jornal como uma estrela. Nos primeiros tempos, minhas proezas espalharam tanto terror e confusão na redação que minha proposta de voltar minha atenção para a crítica musical foi aclamada com um alívio inexprimível. Na opinião geral, a música era um assunto que precisava de um lunático como responsável. Então me deram uma coluna de música como poderiam ter me dado uma sala confortável em um asilo e, desde aquele dia até hoje — um período de quase sete anos –, escrevi todas as semanas, nesse jornal ou em outro, um artigo sob o título geral de “Música”.
A condição que me impus era que a coluna de música deveria ser tão atraente para o leitor geral, músico ou não-músico, como qualquer outra seção. A maioria dos editores não acreditava que isso pudesse ser possível. Mas a maioria dos editores não sabe editar. O falecido Edmund Yates acreditava que uma boa coluna de música seria um reforço importante para seu jornal. Então ele disponibilizou uma página inteira do The World para tanto. O sucesso desta página provou que, nas mãos de um escritor capaz, a música é tão boa como assunto jornalístico como a pintura ou o drama, e que o interesse sobre ela é muito mais geral do que o da política partidária, a bolsa de valores ou mesmo a polícia. Deixe-me acrescentar que Edmund Yates não tinha mais interesse pela música do que tinha pela química. É claro que se a crítica musical ganhasse, em todos os jornais, o espaço e a consideração lhe foram dadas no The World, seria uma conquista incrível.
Para os jovens críticos, aviso que aquele jornalista que é apenas amante da música não serve para fazer frente à tarefa. Existem três qualificações principais para um crítico de música, além da qualificação geral de bom senso e de conhecimento do mundo. Ele deve ter um cultivado gosto musical, deve ter bom texto e deve ter experiência. Qualquer um destes três predicados pode ser encontrado sem os outros, mas a combinação de todos os três é indispensável para um bom trabalho. Pegue todas as nossas publicações de música e você encontrará muitos artigos escritos por homens com competência inquestionável em música, até mesmo encontrará verdadeiras eminências… como músicos. Vários desses cavalheiros escrevem sem encanto porque não aprenderam literatura. Eles podem se expressar e serem respeitados em seus respectivos ambientes mas jamais o serão para o público em geral. Ou seja, a eles, não adiantará nada conhecer seu ofício se não tiverem bom texto. Por que são tão impossíveis como críticos de música? Porque se expressam mal e não podem criticar. Para piorar, eles normalmente trabalham como se fossem professores de escolas que querem provar que isso ou aquilo é “certo” ou “errado”.
Eles debatem pontos importantes para autoridades como eles são, mas que têm tanta importância na república de arte quanto um mendigo tem na Câmara dos Comuns. Eles defendem com ciúmes suas teses e compositores de estimação contra os rivais mais ou menos como senhoras em um sarau musical doméstico. Eles não veem a diferença entre um professor ensinando a sua classe a resolver um acorde maior de sétima dominante e um crítico na presença do mundo inteiro. Ele pode ser uma sumidade, mas se tratar de forma petulante as coisas das quais discorda, ele obviamente será inaceitável como membro da equipe de qualquer jornal ou revista.
Não é tão fácil citar casos de críticos que falham porque não possuem habilidade literária ou cultura musical. Quando o bom escritor não é nem músico nem crítico, ele deve se dedicar à literatura pura, como o Srs. Stevenson ou Rudyard Kipling, e jamais à crítica. Mas uma vez que, para fins de jornalismo, a qualificação literária é o principal, não faltam casos de jornalistas que tomam a crítica de música apenas porque é a única abertura que lhes é apresentada. Estes ocultam suas deficiências por meio de relatórios descritivos e notícias sobre música e músicos. Porém, se tal crítico tiver um talento ou interesse musical latente, ele aprenderá seu ofício em alguns anos. Se não tiver, nunca aprenderá.
(*) George Bernard Shaw (1856-1950) foi um dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e jornalista irlandês. Cofundador da London School of Economics, foi principalmente autor de comédias satíricas de espírito irreverente e inconformista. Ele e o cantor Bob Dylan são os únicos premiados com um Prêmio Nobel de Literatura (1925) e um Oscar (1938), por suas contribuições para a literatura e para o seu trabalho no filme Pigmalião, respectivamente. Uma curiosidade: Shaw quis recusar o Prêmio Nobel, pois não gostava de honrarias públicas, mas aceitou-o a mando de sua esposa. Ela considerou uma homenagem à Irlanda. Então, ele rejeitou o prêmio em dinheiro, pedindo que fosse utilizado para financiar a tradução de livros suecos para o inglês.
Para abordar qualquer autor, é bom antes medir seu tamanho, só que Shakespeare é tão alto que jamais este pobre comentarista poderá subir sobre seus ombros a fim de admirar com clareza sua criação. E o que digo não é exagerado. William Shakespeare, nascido e morto na mesma Stratford-upon-Avon, no mesmo dia 23 de abril, o primeiro de 1564, o segundo de 1616, ocupa a mesma posição de Johann Sebastian Bach na música, a de pedra fundamental, a de base, referência e refúgio, a de religião secular de escritores, dramaturgos, atores e interessados na cultura. Por exemplo, o ensaísta Harold Bloom, em seu livro Shakespeare: a Invenção do Humano, pergunta: O que era o homem antes de Shakespeare? E responde, com certo exagero, que era um Personagem de dimensão quase inexistente.
É difícil de acreditar que Shakespeare tenha vivido apenas 52 anos. Sua obra é imensa em extensão e em qualidade mesmo que se considere o aspecto colaborativo existente entre os autores elisabetanos. Explico: os escritores do século XVI produziam e tinham perfis muito pouco romantizados. Talvez apenas os poetas escreviam para “expressarem-se”. Os ficcionistas e dramaturgos eram operários com prazos a cumprir. A necessidade ditava o ritmo e as companhias teatrais muitas vezes recorriam a diversos autores para chegar ao texto final de uma peça. E os autores não tinham pudor para pegar emprestados trabalhos alheios.
Com isso, não desejo de modo algum diminuir Shakespeare — afinal, os manuscritos demonstram a autoria de suas peças –, mas ele mesmo dizia roubar trechos de outros e brincava que, às vezes, “boas filhas nascem em más famílias” e que cumpria corrigir a natureza… É claro que ocorria também o contrário, pois era comum uma filha bem estabelecida migrar para uma família disfuncional. Porém, se você é desses que odeia plágio, pense no que escreveu Jorge Luis Borges: Sou todos os autores que li, todas as pessoas que conheci, todas as aventuras que vivi.
Entre os plagiados por Shakespeare, há autores como Robert Greene, Marlowe e muitos outros. Mas, meus amigos, a obra é de Shakespeare. Carradas de versos de suas peças apareceram pela primeira vez… nas suas peças. Por falar em versos, como é complicado encontrar uma boa tradução de Shakespeare! Minha mulher conheceu Shakespeare em seu país, em traduções de Boris Pasternak e Samuil Marshak para o russo. Quando pegou uma edição brasileira de Sonhos de uma noite de verão, não entendeu nada. Sua primeira pergunta foi Cadê as rimas? Como não os encontrou na edição que ganhara de um (grande) amigo nosso, largou o volume. Sim, Shakespeare escreveu tudo aquilo em versos, mas o que se lê no Brasil é quase sempre prosa. As traduções em verso parecem coisa do passado. E não considero grande coisa as traduções disponíveis, apesar da liberdade autoconcedida. A escolha da estratégia poderia variar muito: traduzir em prosa ou em verso, com rima ou sem rima, em decassílabos ou dodecassílabos ou em verso livre, aproximar a linguagem do leitor contemporâneo ou procurar manter um certo distanciamento recorrendo a um vocabulário mais arcaico. Enfim.
.oOo.
William Shakespeare foi poeta, dramaturgo e ator. Na verdade, como todos sabem, é tido como o maior escritor do idioma e o mais influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de “O Bardo”. De suas obras, incluindo aquelas em colaboração, restaram até os dias de hoje 38 peças, 154 sonetos, dois longos poemas narrativos, e mais alguns versos esparsos. É bastante coisa. Suas peças foram traduzidas para todas as principais línguas modernas e são mais encenadas que as de qualquer outro dramaturgo. Muitos de seus textos e temas, especialmente os do teatro, permanecem vivos e são revisitados até hoje.
Shakespeare nasceu e foi criado em Stratford-upon-Avon. Aos 18 anos, casou-se com Anne Hathaway. Tiveram 3 filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Entre 1585 e 1592, Shakespeare começou uma carreira bem-sucedida em Londres como ator, escritor e empresário teatral. Era um dos proprietários de uma companhia de teatro chamada Lord Chamberlain’s Men, mais tarde conhecida como King’s Men. Acredita-se que ele tenha retornado a Stratford em torno de 1613, morrendo três anos depois. Pouco se sabe da vida privada de Shakespeare, e há muitas especulações sobre sua aparência física, sexualidade, crenças religiosas, etc.
Shakespeare produziu a maior parte de sua obra entre 1590 e 1613. Suas primeiras peças eram principalmente comédias ou obras baseadas em eventos e personagens históricos, gêneros que levou ao ápice da sofisticação e do talento artístico. Depois, passou às tragédias, criando Hamlet, Rei Lear e Macbeth, consideradas algumas das obras mais importantes na língua inglesa. Na sua última fase, escreveu conjuntos de peças classificadas normalmente como tragicomédias, mas que mais parecem poesias, obras de alguém dotado de pleno e tranquilo domínio de sua arte.
Diversas edições de suas obras foram publicadas com variados graus de qualidade e precisão, durante sua vida. Em 1623, John Heminges and Henry Condell, dois atores e velhos amigos de Shakespeare, publicaram o chamado First Folio, uma coletânea de obras dramáticas que incluía todas as peças (com a exceção de duas) reconhecidas atualmente como sendo de sua autoria.
Shakespeare foi respeitado em sua própria época, porém mas sua reputação só viria a atingir níveis planetários duzentos anos depois, no século XIX. Foram os românticos vitorianos que aclamaram a genialidade de Shakespeare, idolatrando-o como herói. a tal “bardolatria” a que se referia George Bernard Shaw.
O pouco do que se sabe: os primeiros anos
William Shakespeare era filho de John Shakespeare, um bem-sucedido luveiro e sub-prefeito de Stratford, e Mary Arden, filha de um rico proprietário de terras. Embora sua data de nascimento seja desconhecida, admite-se o 23 de Abril de 1564 com base no registro de seu batizado. Shakespeare foi o terceiro filho de uma prole de oito e o mais velho a sobreviver.
Shakespeare foi educado em uma boa escola, no entanto, há indícios de que seu pai foi obrigado a retirá-lo da educação formal quando William tinha quinze ou dezesseis anos. O motivo foi financeiro. É que, na década de 1570, John foi rapidamente à falência. Tudo indica que Shakespeare precisou trabalhar cedo para ajudar a família, aprendendo, inclusive, a tarefa de esquartejar bois e abater carneiros.
Em 1582, aos 18 anos de idade, casou-se com Anne Hathaway, uma mulher de 26 anos que estava grávida dele. Anne era de uma família endinheirada e é quase certo que o casamento de Anne e Shakespeare teria sido forçado pelos Hathaway. Pouco se sabe dela. Anne apareceria escondida em vários escritos de seu famoso marido, como ao final do Soneto 145. Ele amava a mulher.
‘I hate’ from hate away she threw, And saved my life, saying ‘not you.’
Estes lábios que a mão do Amor criou,
Entreabriram-se para dizer, “Eu odeio”,
A mim que sofria de saudades dela:
Mas, ao ver meu estado desolado,
Seu coração se tomou de piedade,
Repreendendo a língua, que, sempre tão doce,
Foi gentilmente usada para me exterminar;
E ensinou-lhe, assim, a dizer, novamente:
“Eu odeio”, alterou-se, por fim, sua voz,
Que se seguiu como a noite
Segue o dia, que, como um demônio,
Do céu ao inferno é atirado.
“Eu odeio”, do ódio ela gritou,
E salvou-me a vida, dizendo – “Tu, não”.
Após o nascimento dos gêmeos, há pouquíssimos vestígios históricos a respeito de Shakespeare, até que ele é mencionado como parte da cena teatral de Londres em 1592. Os estudiosos referem-se aos anos de 1586 a 1592 como os “anos perdidos de Shakespeare”. As tentativas de explicar por onde andou William Shakespeare durante esses seis anos fizeram surgir dezenas de histórias, provavelmente mentirosas. Nicholagas Rowe, o primeiro biógrafo de Shakespeare, conta que ele fugiu de Stratford para Londres devido a uma acusação envolvendo o assassinato de um veado numa caça não permitida.
O período londrino e a morte
Não se sabe exatamente quando Shakespeare começou a escrever, mas registros de performances mostram que várias de suas peças foram representadas em Londres em 1592. A época, sob Elizabeth I, favorecia o desenvolvimento cultural e artístico. O teatro deste período, conhecido como elisabetano, foi de grande importância para os ingleses — da alta sociedade, claro. Na época, além de muito popular, o teatro também era também publicado, vendido e lido. Havia companhias que compravam os textos dos autores em voga e depois vendiam-nos para as tipografias. Estas tinham um grande público leitor, o qual fazia com que as obras se popularizassem rapidamente.
Certamente a carreira de Shakespeare começou em qualquer momento a partir de meados dos anos 1580. Ao chegar em Londres, há uma tradição que diz que Shakespeare não tinha amigos nem dinheiro. Não obstante a família de Anne, ele estaria arruinado. Segundo quase todos os biógrafos do século XVIII, ele foi arranjou um emprego numa companhia de teatro. Começou num serviço pequeno, e logo foi subindo de cargo, chegando a atuar. Ele dividiria suas atividades entre tomar conta dos cavalos dos espectadores do teatro, atuar no palco e auxiliar nos bastidores. Porém, segundo Rowe, Shakespeare entrou no teatro como ponto, encarregado de avisar os atores o momento de entrarem em cena.
Contudo, o grande Shakespeare era um mau ator e seu limitado talento o teria levado a experimentar escrever peças. Shakespeare teria voltado para Stratford algum tempo antes de sua morte; mas a aposentadoria ainda não tinha sido inventada e ele continuou a visitar Londres para ver sua filha que morava na cidade e apresentar novas peças suas a grupos teatrais.
William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário. Há lendas a respeito. Dizem que ele, já doente, teria se embriagado com os dramaturgos e poetas Ben Jonson e Michael Drayton e seu estado se agravou.
Ele deixou a maior parte de sua herança para sua filha mais velha, Susanna. Isso intriga os biógrafos, porque Anne Hathaway sobreviveu dez anos ao dramaturgo. O escritor Anthony Burgess tem uma explicação ficcional sobre isso. Em Nada como o Sol, ele cita que Shakespeare viu seu irmão Richard com Anne. Nus e abraçados. Tudo invenção.
Os restos mortais de Shakespeare foram sepultados na igreja da Santíssima Trindade (Holy Trinity Church) em Stratford-upon-Avon. Parece que sem o crânio… Acredita-se que Shakespeare temia o costume de sua época de esvaziar as sepulturas mais antigas para abrir espaços a novas e, por isso, fez questão de colocar um claro epitáfio na sua lápide, que anunciava uma maldição para quem removesse seus ossos.
Bom amigo, por Jesus, abstém-te de profanar o corpo aqui enterrado. Bendito seja o homem que respeite estas pedras, e maldito o que remover meus ossos.
Rápidos comentários sobre as peças
Os estudiosos costumam dividir a dramaturgia de Shakespeare em quatro períodos. Até meados de 1590, ele escreveu principalmente comédias e dramas históricos, influenciado por modelos de peças romanas e italianas. O segundo período iniciou-se aproximadamente em 1595 e seria o “romântico”. De 1600 a 1608, seria o “período sombrio”, o de grandes como tragédias Hamlet, Rei Lear e Macbeth. E entre 1608 a 1613, os das tragicomédias.
Os primeiros trabalhos conhecidos de Shakespeare são os dramas históricos Ricardo III e Henry V, escritos em 1590. É complicado datar as primeiras peças de Shakespeare, mas estudiosos de seus textos sugerem que A Megera Domada, A Comédia dos Erros e Titus Andronicus pertencem também ao seu primeiro período. Suas primeiras histórias dramatizam os resultados destrutivos da corrupção do Estado. São textos influenciados por obras de outros dramaturgos elisabetanos, especialmente Thomas Kyd e Christopher Marlowe, assim como pelas tradições do teatro medieval.
Em meados da década de 1590, o amor e a comédia tomou conta de sua obra. Sonho de uma Noite de Verão é uma deliciosa mistura de romance espirituoso e fantasia. Muito Barulho por Nada, O Mercador de Veneza, Tudo está bem quando acaba bem, As Alegres Comadres de Windsor, Trabalhos de Amores Perdidos, Do jeito que você gosta (As you like it) e Noite de Reis fazem parte de uma sequência de ótimas comédias.
Depois, seus personagens tornam-se cada vez mais complexos e alternam entre o cômico e o dramático, expandindo suas identidades. O chamado período “trágico” começou com Romeu e Julieta e durou de 1600 a 1608, embora durante esse período ele tenha escrito também a cômica Medida por medida. O auge de sua obra seria Hamlet. Provavelmente, é o personagem shakespeariano mais discutido dentre todos. Hamlet pensa antes de agir, é inteligente, perceptivo e observador. Porém, ao contrário do reflexivo Hamlet, os heróis das tragédias que se seguiram, em especial Otelo e Rei Lear, são precipitados e mais agem do que pensam. Tais atitudes acabam por destruí-los assim como a quem amam. Em Otelo, o ciumento personagem-título acaba assassinando sua mulher, por quem estava apaixonado. Ela era inocente. Em Rei Lear, o velho rei comete o erro de abdicar de seus poderes. Outra obra-prima. Segundo o crítico Frank Kermode, “a peça não oferece nenhum personagem divino ou bom, e não supre da audiência qualquer tipo de alívio de sua crueldade”. Macbeth, a mais curta e compacta tragédia shakespeariana, narra a incontrolável ambição de Macbeth e sua esposa, Lady Macbeth, que matam o rei da Escócia para acabarem num mar de corrupção, culpa e sangue.
No seu último período, Shakespeare centrou-se na tragicomédia, escrevendo três importantes peças: Cimbelino, Conto de Inverno e A Tempestade. Menos sombrias do que as tragédias, estas revelam um tom mais grave de comédia, com suas personagens reconciliando-se ao final e perdoando todos os erros uns dos outros. É uma mudança de estilo para a serenidade. Na minha opinião, A Tempestade, com personagens como Próspero, Miranda e Caliban, é a maior de suas peças. Ou a que mais gosto de ler.
“Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos;
com nossa curta vida cercada por dois sonos”.
Sonetos
Publicado em 1609, Sonetos não tinham fins dramáticos, era apenas poesia. Não há certeza sobre quando cada um dos 154 sonetos da obra foram compostos, mas evidências sugerem que Shakespeare as escreveu durante toda sua carreira para leitores particulares. Também é incerto se foram escritos para pessoas reais. São profundas meditações sobre a natureza do amor, a paixão, a morte e o tempo.
Poemas
Em 1593 e 94, os teatros foram fechados por causa da peste. Sem trabalho, Shakespeare publicou dois poemas eróticos, hoje conhecidos como Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia. Ele os dedica a Henry Wriothesley, o que fez com que houvesse várias especulações a respeito. Em Vênus e Adônis, um inocente Adônis rejeita os avanços sexuais de Vênus (mitologia); enquanto que o segundo poema descreve a virtuosa esposa Lucrécia que é violada sexualmente. Ambos os poemas, influenciados pelas Metamorfoses de Ovídio, demonstram a culpa e a confusão moral versus volúpia descontrolada. Ambos tornaram-se populares e foram diversas vezes republicados durante a vida de Shakespeare. Uma terceira narrativa poética acompanhava os Sonetos: em A Lover’s Complaint, uma jovem lamenta ter sido seduzida.
.oOo.
O Globe, palco de Shakespeare em Londres
O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.
No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.
A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²
Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.
Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.
O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.
Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.
Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de tragédias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.
Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Deem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.
Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.
.oOo.
Bar do bardo, por Nelson Moraes
Pensando aqui em montar o Bar do Bardo, todo erguido em arquitetura elisabetana, e com o cardápio e a carta de drinks, obviamente, também temáticos: teremos, de entrada, a Júlio César’s Salad e, nas guarnições, o filé Ricardo III (que você tem que pedir gritando “Meu cavalo por um bife!”) e o Hamlete (carne de hambúrguer com omelete); pra beber, a Bloody Mary à Lady MacBeth (onde a bartender, depois de acrescentar o suco de tomate, lava as mãos dizendo teatralmente “Sangue, sangue!”) e uma cerveja majestática, a Rei Beer. Além disso teremos a sobremesa mais óbvia de todos os tempos, o Mikshakespeare, e um maître especialista em responder contextualmente a eventuais reclamações de clientes:
– Você chama ISSO de porção?
– Assim é, se lhe parece…
Teremos também som ao vivo aos sábados, só com heavy metal, onde não cobraremos couvert artístico: é o circuito “Muito Barulho por Nada”, que…
Recentemente a Igreja Católica iniciou uma campanha cerrada contra o que denominou de “valores ateus” e suas supostas conseqüências (basicamente, coisas como ser a favor do aborto e do uso da camisinha e da clonagem de embriões). Um bispo brasileiro, exagerado, chegou a afirmar publicamente que “os ateus são pessoas más”, possivelmente porque muitos religiosos acreditam que a religião é a única fonte da moral. Logo…. ateus não têm moral. Mas não têm mesmo? Os ateus são em média mais imorais e maus do que os que têm religião? A evidência científica aponta que parece ser justamente o contrário… A Bíblia afirma, em Salmos 14:1, que “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem”. Então serão os ateus insensatos ou tolos? Corruptos e abomináveis? Incapazes de fazer o bem? Quanto à questão das “abominações”, a evidência é incontestável. Um estudo feito em 1997 pela Federal Prison Board, dos EUA mostrou que enquanto que 75% da população carcerária americana se declara religiosa e crente em Deus, apenas 0,2% se declaram ateus ou agnósticos! (na população em geral eles já representariam cerca de 10%). O divórcio (um pecado, segundo o catolicismo, mas não segundo os protestantes) ocorre em 40% dos católicos americanos, 27% de evangélicos e apenas em 21% dos ateus… Ou seja, a crença em um pecado é inversamente proporcional à sua adoção… Além disso, não é preciso pesquisar muito na história para constatar que, em nome de valores religiosos, foram praticadas grandes mortandades, infindáveis guerras, horrendas atrocidades (como a Inquisição) e nefandos atos terroristas. Ou matar em nome de Deus não é uma constante insana da humanidade? Quem é mau, então? Numerosos estudos sociológicos têm demonstrado cabalmente que ateus, em geral, cometem menos crimes, respeitam mais as leis, e criam seus filhos com mais critérios morais e familiares do que a maioria dos que acreditam em Deus. Conclusão: não é preciso acreditar em Deus para ser moral e respeitador dos costumes e das regras sociais. Eu mesmo, por exemplo, sou agnóstico, criei meus dois filhos sem batismo, Deus ou religião, e podemos nos incluir tranquilamente entre as pessoas mais morais e sérias e praticantes do bem que eu conheço. Tolos? Veja só a lista dos “tolos” e “insensatos” que foram ou são ateus ou agnósticos: Albert Einstein, Charles Darwin, Stephen Hawking, Francis Crick, James Watson, Richard Feynman, Paul Dirac, Linus Pauling, Alfred Kinsey, Karl Popper, Carl Sagan, Edward O.Wilson, Marvin Minsky, Thomas Edison, B.F. Skinner, Marie Curie, Bertrand Russell, Noam Chomsky, Isaac Asimov, Sigmund Freud, Michel Foucault, Richard Dawkins, Steven Pinker, Daniel Dennett, Stephen Jay Gould, Steve Jobs, Thomas Jefferson, Denis Diderot, Auguste Comte, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Karl Marx, Oscar Niemayer, George Bernard Shaw, Jorge Amado, Jorge Luis Borges, Gore Vidal, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Robert Frost, H.G. Wells, José Saramago, Salman Rushdie, Mark Twain, Arthur Clarke, Michael Crichton, Milan Kundera, Marcelo Gleiser, Drauzio Varella, Ernest Hemingway, Kurt Vonnegut Jr., Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Charlie Chaplin, John Lennon, Woody Allen, Angelina Jolie, Jodie Foster, Marlon Brando, Christopher Reeve, Juliana Moore, Jack Nicholson, Larry King, Chico Buarque, Paulo Autran e muitos outros. A nata da nata. Quase 40% de todos os cientistas declaram não ter religião. O ateísmo é muito mais prevalente entre pessoas de maior escolaridade, intelectuais e autores, do que no resto da população. Exceção: políticos (isso deve ser o resultado da democracia, ou seja. o fenômeno de seleção pelo eleitorado religioso, ou então medo de declarar publicamente seus “valores ateus”, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma vez, e perdeu a eleição para prefeito de São Paulo). Não fazem o bem? Os três maiores doadores de dinheiro para causas boas e nobres, de toda a história (conjuntamente doaram mais de 70 bilhões de dólares), George Soros e Warren Buffet (financistas) e o fundador da Microsoft, Bill Gates, são ateus declarados. Meu ídolo científico, o físico alemão Albert Einstein, eleito pela revista Time como a Maior Personalidade do Século XX (e erroneamente citado como sendo religioso) escreveu uma vez sobre isso: “Se as pessoas são boas apenas porque têm medo de punições, e esperam uma recompensa, então elas formam um grupo realmente lamentável“.