A Ospa, Mozart, Brahms, um piano sem tampa e o motel da UFRGS

A Ospa, Mozart, Brahms, um piano sem tampa e o motel da UFRGS
Nada de espelhos no teto nem tampa de piano.
Nada de espelhos no teto nem tampa de piano.

O concerto de ontem foi utilizado para homenagear os 119 anos do Correio do Povo. Se Juremir Machado da Silva teve o bom gosto de dar um discurso curto, a empresa responsável pelos espumantes servidos na porta do Salão de Atos da UFRGS poderia ter sido mais feliz. Havia muita gente rindo e reclamando da beberagem. Rindo porque a cavalo dado não se olha os dentes e reclamando porque, pô, caiu mal no estômago. Tão mal que quase não pude rir da citação laudatória de Juremir a Erico Verissimo, escritor com o qual ele contraiu conhecidos problemas póstumos.

O programa do concerto era o seguinte:

W. A. Mozart: Concerto para piano nº 22, K. 482
Johannes Brahms: Sinfonia nº 2, Op. 73
Regente e solista: Ira Levin

Tinha assistido o ensaio da Ospa na segunda-feira à noite. Nela, o concerto de Mozart já fora tocado de forma esplêndida pelo dublê de maestro e pianista Ira Levin. E ontem à noite, ele repetiu a dose, acrescentando ainda mais qualidade ao que fizera no dia anterior. A nova dosagem não foi excessiva, até tomaríamos mais dela, e serviu para que esquecêssemos um pouco o espumante da entrada. Mas houve emoção, e como!!! O pessoal do Salão de Atos resolveu brincar com a luz enquanto Levin esmerilhava na cadência do primeiro movimento. Como se estivéssemos numa versão de Mozart para motéis, a luz foi diminuiiiiiiiindo até que, no palco, víssemos apenas a silhueta de Levin ao piano — pois a orquestra já sumira antes, pudicamente. Depois, a luz retornou forte para voltar a diminuir lentamente mais umas duas ou três vezes. Ou seja, parecia que um casal estava regulando a luz para que esta servisse de catalisadora de prazeres ainda maiores. Olhei para o teto na expectativa de que surgissem espelhos, procurei preservativos e nada. Realmente, o serviço da noite não era de primeira qualidade.

Por falar em cadenzas, Ira Levin deve ter escrito suas próprias, pois estas eram longas, muito interessantes e originais, passando longe do padrão Paul Badura-Skoda, adotado pela maioria dos pianistas. O Concerto Nº 22 não é tão famoso quanto os dois que o antecederam (ele compôs o 20º, o 21º e o 22º de enfiada) possivelmente porque ele não possui os temas marcantes deles. Mozart não escreveu cadências para esses concertos ou, se as fez, foram perdidas. Não obstante as peripécias com a luz, a interpretação saiu pra lá de boa, com destaque para o solista e para a segurança do trompista Alexandre Ostrovski, tranquilo condutor de bons momentos da orquestra.

Após os aplausos ao concerto de Mozart, Levin não se fez de rogado e brilhou intensamente num bis complicado: São Francisco de Paula caminhando sobre as ondas, de Franz Liszt. Era adequado para a noite. Afinal, chovia.  Ah, o piano estava sem tampa. Por quê?

Se a primeira sinfonia de Brahms — minha obra preferida no gênero — é uma obra tensa e poderosa, a segunda é uma leve pastoral. E como os críticos são chatos, meu deus! A primeira sinfonia de Brahms foi denominada por alguns destes incompreensivos senhores de “a décima de Beethoven” e a segunda foi comparada com a sexta, a Pastoral, também do mestre de Bonn. Para piorar, Brahms escreveu a composição no campo… Porém, na verdade, todas as sinfonias citadas têm pouco a ver. E, bem, com exceção de seu adágio, a 2ª de Brahms é cheia da contida e densa felicidade típica do compositor. Curiosamente, sua maior preocupação era a de que o terceiro movimento não fosse confundido nem dançado como uma valsa…

A Ospa foi pra cima de Brahms com entusiasmo. Comentei com alguns músicos como a orquestra “gritava” a fim de tentar “molhar” a acústica seca do Salão de Atos. Tal artifício deixou especialmente claro o baixo número de violoncelos da orquestra. Os caras me pareceram no limite, por assim dizer. E o papel do naipe era importantíssimo na apresentação de temas no primeiro e segundo movimentos. Mas é impossível reclamar do comportamento do sexteto de cellos. Eles fizeram, literalmente, chover, como comprovamos na saída do teatro. Outro destaque foi novamente o trompista Ostrovski, sempre afinado e espécie de dono da noite ao lado de Levin. Só o citado adágio me decepcionou. Achei chocha a abordagem. Em compensação, a curta coda deixou todo mundo feliz e louco para aplaudir com a presença de fanfarras que utilizam o segundo tema do movimento final.

Como inútil recado final, digo que a Ospa deveria marcar seus concertos a cada duas semanas, com os programas devidamente ensaiados sendo apresentados mais de uma vez. Nada de realmente artístico amadurece em uma semana.