Kapusta e algumas anotações sobre música que ficam por aí

Kapusta e algumas anotações sobre música que ficam por aí

Zupa kapusta é uma sopa polonesa de carne de porco, salsicha, chucrute e repolho. Há variações, claro. Quem vem de tão longe cria histórias pelo caminho. É deliciosa e salvou a noite de ontem de tal maneira e com pessoas tão agradáveis que quase não vim trabalhar hoje.

(Bocejo).

Ontem, fiz algumas anotações muito iniciais sobre algumas peças do repertório sinfônico. Ficariam perdidas por aí. Sei lá, podem ser úteis a alguém que queira ou tenha que escrever sobre as peças.

Ludwig van Beethoven, Concerto para piano nº 5, Op.73 (Imperador): O Concerto Nº 5 de Beethoven é de tal modo grandioso que acabou sendo chamado de Imperador. Imperador dos concertos foi o “nome comercial” arranjado pelo editor da obra. Beethoven não gostava do apelido. Foi composto em 1809 e é uma verdadeira sinfonia para piano. O primeiro movimento alterna belos momentos com um heroísmo de relativa vulgaridade. Lembro do clássico A Fazenda Africana, de Isak Dinesen (Karen Christence, baronesa de Blixen-Finecke), quando Karen e seu amante Denis discutem acerca de possíveis vulgaridades nos Concertos para Piano de Beethoven. Dou-lhes razão. O legal deste primeiro movimento é que foi algo revolucionário para a época: não há a introdução de temas pela orquestra e a repetição e desenvolvimento dos mesmos pelo piano. Orquestra e piano saem batendo de frente. A orquestra larga um acorde decidido e o piano lhe responde na lata com um poderoso arpejo. O adágio e o rondó são impecáveis. No adágio, o piano é simples e tocante, transando com violas e flauta. O rondó é luminoso e autenticamente triunfante, esquecido do encantamento jubilosamente bobo do primeiro movimento.

Beethoven, do pintor surrealista Alois Kolb (1900)
Beethoven, do pintor surrealista Alois Kolb (1900) | British Museum

Jean Sibelius, Sinfonia Nº 7, Op. 105: Pouco mais de um ano separa duas das maiores obras sinfônicas de Sibelius: a Sétima Sinfonia e o poema sinfônico Tapiola. Ambas estão muito próximas em construção, contenção e estilo. A Sinfonia foi planejada inicialmente como uma “Fantasia Sinfônica” e, ao que se sabe, ocupou Sibelius no início de 1924. Quando a composição foi terminada, em março daquele ano, o que Sibelius viu — tal como o Pestana de Machado de Assis e suas polcas — foi uma nova sinfonia. O clima sonoro dela é quase sempre de sombria contemplação, resultante da célula trágica com que o compositor inicia a obra. Mas antes de chegar a seu clímax, a sinfonia vai exprimir até mesmo certa descontração, através de alguns esforços e alongamentos para alcançar a felicidade. O débil sorriso esboçado, porém, não encontra amparo no soturno ambiente que tenta mudar. É uma música comovente que possui dois solos dilacerantes e nostálgicos de trombone, verdadeiras janelas que se abrem. Na opinião deste pequeno comentarista, é a melhor das sinfonias de Sibelius.

Jean Sibelius
Jean Sibelius: feliz com seu charuto

A Ospa, Mozart, Brahms, um piano sem tampa e o motel da UFRGS

A Ospa, Mozart, Brahms, um piano sem tampa e o motel da UFRGS
Nada de espelhos no teto nem tampa de piano.
Nada de espelhos no teto nem tampa de piano.

O concerto de ontem foi utilizado para homenagear os 119 anos do Correio do Povo. Se Juremir Machado da Silva teve o bom gosto de dar um discurso curto, a empresa responsável pelos espumantes servidos na porta do Salão de Atos da UFRGS poderia ter sido mais feliz. Havia muita gente rindo e reclamando da beberagem. Rindo porque a cavalo dado não se olha os dentes e reclamando porque, pô, caiu mal no estômago. Tão mal que quase não pude rir da citação laudatória de Juremir a Erico Verissimo, escritor com o qual ele contraiu conhecidos problemas póstumos.

O programa do concerto era o seguinte:

W. A. Mozart: Concerto para piano nº 22, K. 482
Johannes Brahms: Sinfonia nº 2, Op. 73
Regente e solista: Ira Levin

Tinha assistido o ensaio da Ospa na segunda-feira à noite. Nela, o concerto de Mozart já fora tocado de forma esplêndida pelo dublê de maestro e pianista Ira Levin. E ontem à noite, ele repetiu a dose, acrescentando ainda mais qualidade ao que fizera no dia anterior. A nova dosagem não foi excessiva, até tomaríamos mais dela, e serviu para que esquecêssemos um pouco o espumante da entrada. Mas houve emoção, e como!!! O pessoal do Salão de Atos resolveu brincar com a luz enquanto Levin esmerilhava na cadência do primeiro movimento. Como se estivéssemos numa versão de Mozart para motéis, a luz foi diminuiiiiiiiindo até que, no palco, víssemos apenas a silhueta de Levin ao piano — pois a orquestra já sumira antes, pudicamente. Depois, a luz retornou forte para voltar a diminuir lentamente mais umas duas ou três vezes. Ou seja, parecia que um casal estava regulando a luz para que esta servisse de catalisadora de prazeres ainda maiores. Olhei para o teto na expectativa de que surgissem espelhos, procurei preservativos e nada. Realmente, o serviço da noite não era de primeira qualidade.

Por falar em cadenzas, Ira Levin deve ter escrito suas próprias, pois estas eram longas, muito interessantes e originais, passando longe do padrão Paul Badura-Skoda, adotado pela maioria dos pianistas. O Concerto Nº 22 não é tão famoso quanto os dois que o antecederam (ele compôs o 20º, o 21º e o 22º de enfiada) possivelmente porque ele não possui os temas marcantes deles. Mozart não escreveu cadências para esses concertos ou, se as fez, foram perdidas. Não obstante as peripécias com a luz, a interpretação saiu pra lá de boa, com destaque para o solista e para a segurança do trompista Alexandre Ostrovski, tranquilo condutor de bons momentos da orquestra.

Após os aplausos ao concerto de Mozart, Levin não se fez de rogado e brilhou intensamente num bis complicado: São Francisco de Paula caminhando sobre as ondas, de Franz Liszt. Era adequado para a noite. Afinal, chovia.  Ah, o piano estava sem tampa. Por quê?

Se a primeira sinfonia de Brahms — minha obra preferida no gênero — é uma obra tensa e poderosa, a segunda é uma leve pastoral. E como os críticos são chatos, meu deus! A primeira sinfonia de Brahms foi denominada por alguns destes incompreensivos senhores de “a décima de Beethoven” e a segunda foi comparada com a sexta, a Pastoral, também do mestre de Bonn. Para piorar, Brahms escreveu a composição no campo… Porém, na verdade, todas as sinfonias citadas têm pouco a ver. E, bem, com exceção de seu adágio, a 2ª de Brahms é cheia da contida e densa felicidade típica do compositor. Curiosamente, sua maior preocupação era a de que o terceiro movimento não fosse confundido nem dançado como uma valsa…

A Ospa foi pra cima de Brahms com entusiasmo. Comentei com alguns músicos como a orquestra “gritava” a fim de tentar “molhar” a acústica seca do Salão de Atos. Tal artifício deixou especialmente claro o baixo número de violoncelos da orquestra. Os caras me pareceram no limite, por assim dizer. E o papel do naipe era importantíssimo na apresentação de temas no primeiro e segundo movimentos. Mas é impossível reclamar do comportamento do sexteto de cellos. Eles fizeram, literalmente, chover, como comprovamos na saída do teatro. Outro destaque foi novamente o trompista Ostrovski, sempre afinado e espécie de dono da noite ao lado de Levin. Só o citado adágio me decepcionou. Achei chocha a abordagem. Em compensação, a curta coda deixou todo mundo feliz e louco para aplaudir com a presença de fanfarras que utilizam o segundo tema do movimento final.

Como inútil recado final, digo que a Ospa deveria marcar seus concertos a cada duas semanas, com os programas devidamente ensaiados sendo apresentados mais de uma vez. Nada de realmente artístico amadurece em uma semana.