Este é o melhor dos romances do detetive Mario Conde. Dizer isto não é dizer pouca coisa. Em mais esta novela policial, Padura trata do assassinato de um ex-ministro cubano num momento de grande efervescência em Cuba, com a visita de Barack Obama e dos Rolling Stones. O assassinado é Reynaldo Quevedo, uma pessoa absolutamente asquerosa. Muita gente gostaria de ter a honra de por fim a seus dias, pois era o Jdanov cubano, o homem que perseguia os artistas a fim de colocá-los na linha, o cara que acabou com a carreira de vários deles e que também não facilitava a vida de gays e lésbicas. Porém, apesar de estar quase feliz com a morte do sujeito, cabe a um Mario Conde já aposentado dar uma mão a seus ex-colegas policiais. Afinal, eles estavam atarefados com Obama e os Stones. Para quem não sabe, Conde é uma espécie de alter ego dos desencantados cubanos, um cético que perdeu toda a esperança. Já o morto é um filho da puta sob todos os aspectos e, através da busca de seu assassino, é revisto todo um processo histórico obscuro da revolução.
Mas há outra história e outro crime. Como muitos de vocês sabem, Padura gosta de contar duas histórias em capítulos alternados. Vamos a elas, sem spoilers.
Havana, 1910. Naquele tempo, Havana era chamada a Nice da América. Significava dizer uma cidade de festa, alegria, álcool e prazeres. Lá vivia o cafetão mais famoso e querido de Havana, Alberto Yarini y Ponce de León, grande amigo do detetive Arturo Saborit. Havia uma bonita história de amizade e fidelidade entre ambos, entre o “cafetão bom”, que tinha aspirações mais elevadas do que administrar jogos de azar e suas prostitutas, e o policial. Um caso de assassinato de duas mulheres em Havana Velha expõe a luta entre Yarini, refinado e de boa família, e seu rival Lotot, um francês, que contesta sua posição de proeminência. O desenvolvimento destes acontecimentos terá uma ligação com a história do presente de uma forma que nem o próprio Mário Conde suspeita. Ah, importante: Alberto Yarini foi um personagem real, ele existiu.
Havana, 2016. Um acontecimento histórico abala Cuba: a visita de Barack Obama no que foi chamado de “Degelo Cubano” – a primeira visita oficial de um presidente dos EUA desde 1928 –, acompanhada de eventos como um show dos Rolling Stones e de desfile da Chanel, vira o ritmo pachorrento da ilha de cabeça para baixo. Assim, quando um ex-líder do Governo cubano é encontrado assassinado no seu apartamento, a polícia, ocupada com a visita presidencial, recorre a Mario Conde para auxiliar na investigação. Como já disse, o morto tinha muitos inimigos, pois no passado atuara como censor para que os artistas não se desviassem dos slogans da Revolução. Fora um homem despótico e cruel que encerrara a carreira de muitos artistas que não queriam ceder a seus pedidos e extorsões. Quando aparece um segundo corpo assassinado com o mesmo método poucos dias depois, Conde deve descobrir se as duas mortes estão relacionadas e o que está por trás desses assassinatos.
Como sempre, Padura remonta acontecimentos históricos e políticos. No caso de 2016, revemos a arte dos contrarrevolucionários e os excessos do processo de Inquisição. A conjuntura é o assassinato de um daqueles inquisidores que, como sempre, se beneficiou de abusos de poder. O cenário das duas histórias é bastante peculiar e funcional à narrativa, com muito cubanismo e bom humor. Porém, em ambas as ficções prevalece um tom melancólico — o entusiasmo dos amigos de Conde pelas degelo que vivem não o atinge e, a certa altura, falando sobre essas mudanças, conta ao amigo e irmão de vida, o magrelo Carlos: “Claro que é necessário, muito necessário. Deixe que as coisas aconteçam… Mas não creio que aconteça nada além do que está acontecendo. E a qualquer momento tudo volta e a gente se ferra”. Sim, foi o que aconteceu. Houve um grande revés nos anos seguintes, em grande parte graças às decisões teimosas de Donald Trump.
A estratégia narrativa de alternar as duas histórias funciona muito bem, os diálogos são trabalhados detalhadamente, as cotas humorísticas são entregues fundamentalmente nessas conversas dos personagens. Havana é a protagonista do romance, o ambiente que existia em Cuba em 2016 é transmitido com grande precisão e há uma elaborada reconstrução daquela cidade em 1910.
Será que eu deveria manter a primeira frase desta resenha? Padura tem 14 romances, 10 com Mario Conde. Talvez eu não devesse me atrever a fazer uma avaliação de todas as obras do grande escritor cubano, mas afirmo com segurança que Pessoas Decentes está entre as melhores. Não tem como não estar.
Recomendo muito.
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Parece bem possível que tudo o que aconteceu em Cuba desde o último domingo, 11 de julho, tenha sido encorajado por um maior ou menor número de pessoas contrárias ao sistema, algumas delas até mesmo pagas, com o objetivo de desestabilizar o país e causar uma situação de caos e insegurança. Também é verdade que em seguida, como costuma acontecer nesses eventos, ocorreram atos oportunistas e lamentáveis de vandalismo. Mas acredito que nenhuma das evidências tira um pingo de razão do grito que escutamos. Um grito que também é fruto do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise econômica e uma crise pontual de saúde, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas.
A esse clamor desesperado, as autoridades cubanas não deveriam responder com os habituais lemas, repetidos há anos, e com as respostas que essas autoridades querem ouvir. Nem mesmo com explicações, por mais convincentes e necessárias que sejam. O que se impõe são as soluções que muitos cidadãos esperam ou exigem, alguns se manifestando na rua, outros dando sua opinião nas redes sociais e expressando sua desilusão ou discordância, muitos contando com os poucos e desvalorizados pesos que têm em seus empobrecidos bolsos e muitos, muitos mais, fazendo filas em um silêncio resignado por várias horas sob sol ou chuva, inclusive com a pandemia, filas nos mercados para comprar comida, filas nas farmácias para comprar medicamentos, filas para conseguir o pão nosso de cada dia e para tudo imaginável e necessário.
Acredito que ninguém com um mínimo de sentimento de pertencimento, com um sentido de soberania, com uma responsabilidade cívica pode querer (ou mesmo acreditar) que a solução para esses problemas venha de qualquer tipo de intervenção estrangeira, muito menos de natureza militar, como chegaram a pedir alguns, e que, também é verdade, representa uma ameaça que não deixa de ser um cenário possível.
Também acredito que qualquer cubano dentro ou fora da ilha sabe que o bloqueio, ou embargo comercial e financeiro dos Estados Unidos, como queiram chamá-lo, é real e se internacionalizou e intensificou nos últimos anos. E é um fardo muito pesado para a economia cubana (como seria para qualquer outra economia). Aqueles que vivem fora da ilha e querem hoje ajudar seus familiares em meio a uma situação crítica, podem comprovar que existe e o quanto existe ao serem praticamente impedidos de enviar uma remessa para seus familiares, só para citar uma situação que afeta muitos. É uma política antiga que, aliás (às vezes alguns esquecem), praticamente todo o mundo tem condenado por muitos anos nas sucessivas assembleias das Nações Unidas.
E não acredito que alguém possa negar que também foi desencadeada uma campanha midiática na qual, até das formas mais grosseiras, foram divulgadas informações falsas que, do princípio ao fim, só servem para diminuir a credibilidade de seus gestores.
Mas acredito, junto a tudo o que foi dito acima, que os cubanos precisam recuperar a esperança e ter uma imagem possível de futuro. Se a esperança se perde, perde-se o sentido de qualquer projeto social humanista. E a esperança não é recuperada pela força. Ela é resgatada e alimentada com soluções, mudanças e diálogos sociais, que por não chegarem têm causado, entre tantos outros efeitos devastadores, os anseios migratórios de tantos cubanos e agora provocam o grito de desespero de pessoas entre as quais certamente havia criminosos oportunistas e pessoas pagas para tanto. Embora eu me recuse a acreditar que no meu país, a esta altura, possa haver tanta gente, tantas pessoas nascidas e educadas entre nós que se vendam ou cometam crimes. Porque se assim fosse, isso seria fruto da sociedade que os fomentou.
A forma espontânea com que um número notável de pessoas também tem se manifestado nas ruas e nas redes, sem se atrelar a nenhuma liderança, sem receber nada em troca ou roubar nada pelo caminho, deveria ser um alerta. E penso que é uma amostra alarmante das distâncias que se abriram entre as esferas políticas dirigentes e as ruas (e isso foi até mesmo reconhecido pelos dirigentes cubanos). Só assim se explica que o que aconteceu, sobretudo em um país onde quase tudo se sabe quando se quer saber, como todos nós também sabemos.
Para convencer e acalmar os desesperados o método não pode ser o das soluções de força e obscuridade, como impor um apagão digital que cortou há dias as comunicações de muitos, mas que não impede as ligações de quem quer dizer alguma coisa, a favor ou contra. Muito menos pode se empregar como argumento de convencimento a resposta violenta, especialmente contra os não violentos. E já se sabe que a violência pode ser não apenas física.
Muitas coisas parecem estar em jogo hoje. Talvez até depois da tempestade venha a calmaria. Talvez os extremistas e fundamentalistas não consigam impor suas soluções extremistas e fundamentalistas, e não se enraíze um perigoso estado de ódio que tem crescido nos últimos anos.
Mas, de qualquer forma, é necessário que cheguem as soluções, respostas que não deveriam ser apenas de natureza material mas também de caráter político. E assim uma Cuba melhor e inclusiva poderia responder às razões desse grito de desespero e perda de esperanças que, em silêncio, mas com força desde antes do 11 de julho, vinham de muitos de nossos compatriotas. Esses lamentos que não foram escutados e cujas chuvas originaram esse lamaçal.
Como cubano que vive em Cuba, trabalha e acredita em Cuba, presumo que tenho o direito de pensar e expressar minha opinião sobre o país em que vivo, trabalho e acredito. Já sei que em momentos como este e ao tentar expressar uma opinião, acontece de ser “sempre reacionário para alguns e radical para outros”, como disse certa vez Claudio Sánchez Albornoz. Também assumo esse risco, como um homem que almeja ser livre, que espera ser cada vez mais livre.
Autor desconhecido. Foi muito alterado e acrescentado por mim e amigos — o texto mais que dobrou.
– Você é Nietzsche?
– Sou sim.
– Então fala: “comi um miojo”
– Deveras obscura a ideia de que uma ração precária e arbitrariamente nomeada alimento, possa, de fato, nutrir ao ponto de esquecermos de que toda a vontade de potência manifesta na determinante ideia diante da tragédia do eu, cuja única escolha possível é o aniquilamento total de toda divindade contida na ignorância e na natureza da matéria dormente e vagante a que chamam: homem. Era sim um prato de massa delicadamente disforme que sentia adentrar minhas entranhas, embebida em um suco pobre e tépido, salino! humano demasiado humano e arbitrário afirmar que de fato é um miojo.
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– Você é Suassuna?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”
– Já cansado dessa agonia de passa fome, come gororoba, passa fome, come gororoba, achei por bem de engolir essa papa e torcer pra não chegar tão cedo a hora de descomer!
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– Você é Cervantes?
– Sou sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Calhou de aquele dia ser sexta-feira, e não havia em toda a estalagem nada além de umas rações de uma massa que em Castela chamam miojo, e na Andaluzia macarrão instantâneo, e noutras partes lámen, e noutras ainda noodles. Perguntaram-lhe se porventura comeria ele noodles, pois não havia outra massa que dar-lhe de comer.
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– Você é Gabriel García Márquez?
– Sou sim.
-Então fala: “comi um miojo”.
– Minhas únicas viagens foram quatro aos Jogos Florais de Cartagena de índias, antes dos meus trinta anos, e uma noite ruim na lancha a motor, convidado por Sacramento Montiel para a inauguração de um de seus bordéis em Santa Marta. Quanto à minha vida doméstica, sou de comer pouco e de gostos fáceis. Quando Damiana ficou velha não se tornou a cozinhar em casa, e minha única refeição regular desde então foi um macarrão de rápido cozimento, embebido em um caldo salgado que me confundia o paladar, depois do fechamento do jornal.
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– Você é Tolkien?
– Sim
– Então fala: “comi um miojo”
– Adentrei a cozinha naquela tarde ensolarada. Os raios atravessavam as janelas fazendo traços paralelos que tocavam a parede cimentada e pintada de azul. Um azul profundo como de um céu a tarde a beira do crepúsculo em Valfenda. O teto contrastava com o azul, a madeira me lembrava as florestas de carvalho. O assoalho era de madeira de lei, rangia enquanto eu caminhava para pegar minha tigela favorita. Quando a água começou a borbulhar na panela, introduzi o macarrão em meio a fervura. O fogo crepitava sob a panela de ferro, era uma leve brisa que invadia pelo corredor longo. Coloquei os temperos e senti subir o aroma. Despejei na tigela a sopa e sorvi ainda quente. Era como o fogo de Aldruin, com o sabor dos banquetes em Minas Tirith.
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– Você é Augusto dos Anjos?
– Sou sim.
– Então fala “Comi um miojo”.
– Senti como que preso a um ferrolho
Incapaz de saciar minha própria fome
Prostrado diante da massa disforme
Coberta de um ígneo e mal cheiroso molho
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– Você é Bukowski?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”.
– Tomei um último gole de vinho do porto. Olhei pro pacote em cima da mesa. Abri. Joguei a massa seca e fedorenta na água fervente. Não era nada saboroso mas ia garantir uma boa cagada. É necessário ter algo pra se cagar além de cerveja e vinho barato.
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– Você é Drummond?
– Sou sim
– Então fala “comi um miojo”.
– No meio da fome tinha um miojo,
Tinha um miojo no meio da fome
Fome vasta que dá nojo
Se eu comesse um miojo
Seria uma rima, não uma solução.
Fome vasta, mais vasto é meu coração.
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– Você é Clarice Lispector?
– Sim.
– Então fala: “Comi um miojo”.
– Se ela ao menos soubesse onde está o macarrão desidratado nessa casa desidratada, pouparia o mundo do constrangimento de se deixar flagrar agora no centro ordinário da cozinha que sequer treme, e não responde ao sussurro “Onde está o miojo?”. Pare de buscar. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério”. “Se tivesse a tolice de se perguntar ”quem sou eu?” ao invés de “onde pus o miojo?”, cairia estatelada e em cheio no chão, com o pacote do lámen sabor blattodea na mão . Sabor barata. Comeria já frio o miojo que não comi.
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– Você é Fernando Pessoa?
– Sim e não. Sou outros.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Falo a três vozes. A quatro. A mil.
(Ricardo Reis) Enquanto a biblioteca de Alexandria arde em chamas, como esse miojo e é tudo. Sábio é o que assiste ao espetáculo do mundo.
(Alberto Caeiro) A flor é a flor, o tempo é só flor. Pensar é mastigar. O mais é flor, chuva, miojo.
(Álvaro de Campos) Eia, engrenagens que moem, trituram a moderna nutrição dos argonautas do amanhã! Eia, uhaaa, r-r-r-r-r-r de meus dentes apolíneos contra o trigo do gêmeo cop-noodles que fermenta o filho odisseico e já regurgito o novo homem-lámen das auroras sanguinárias.
(Fernando Pessoa) O miojo de vossa mesa não é mais belo e triste que o miojo de minha aldeia.
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– Você é Homero?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Canto a brava sofreguidão de Aquiles, que tomando da inexorável colher de bronze investia contra a massa semelhante aos cabelos de Medusa, que fervilhava fumegante sobre as bem construídas mesas. Briseida, tá sem sal! bradou o filho de Peleu. Eu avisei! retrucou Cassandra do alto das inexpugnáveis muralhas.
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– Você é Leonardo Padura?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Ele sabia que a velha Josefina não o perdoaria pelas folhas de taioba não entregues. Precisava falar com o magro Carlos e pedir que intercedesse a seu favor com a velha. Mas a cabeça ainda latejava devido as duas garrafas de rum vagabundo que conseguira comprar com o que lhe restou da venda do último livro, uma espécie de guia de como remover pulgas de cães. Acordou com o focinho gelado de Lixeira II no seu braço testando se ainda havia ali, naquele moribundo, um resquício de alma ou se teria de voltar a cavocar o pote com massa que havia lhe servido na noite anterior.
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– Você é Guimarães Rosa?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Nonada, minha barriga estava desinquieta. Como diz meu compadre Quelemém, lá das bandas do Andrequicé, se ouvir uns roncos das entranhas homem, Deus esteja. Varei o pacotinho das minhoquinha a vir a ser um caldo cramunhado e salgado com as lágrimas do visitado pelo sem nome. Meti-lhe goela adentro. Travessia.
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– Você é Anaïs Nin?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– A massa contra o prato produz asco, mas o contato com a língua apenas engendra repulsa e resignação.
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– Você é Monterroso?
– Sim.
– Então fala: “comi um miojo”.
– Quando viu, o miojo ainda estava lá.
Bêbado, logo após uma virada de ano bastante alcoolizada, o detetive Mario Conde é acordado por seu chefe, o Velho, com uma urgência: Rafael Morín, um executivo do Ministério da Indústria, homem que viaja pelo mundo negociando produtos da ilha, está desaparecido. Morín é um ex-colega de aula que ostenta a fama de ser rigorosamente honesto e competente. Um grande quadro, dos maiores. Conde chega a reclamar dos elogios unânimes que são feitos a ele. Tinha um passado perfeito. Para completar é casado com Tamara, espécie de símbolo sexual da escola, a mulher por quem todos eram apaixonados 17 anos antes. Já Mario, triste e desiludido, é a antítese de Rafael.
Não leio muitos livros policiais. Alguns amigos mais especializados na área aprovam com reservas a série de livros policiais de Padura que tem Conde com personagem principal. Faltariam o humor e as frases de efeito típicas do gênero, sobrariam sexo e cenas de Havana. Chego à conclusão de que, com efeito, não sou um grande admirador do gênero, pois achei que Passado Perfeito está muito acima da média que gênero. Gostei demais da cor do romance, da criação do ambiente e das pessoas que circulam tratando uns ao outro como latinos — queridos, afáveis e corruptos. Importante: Padura jamais deixa de fazer críticas à cidade e ao país. Parece ter menos medo de criticar a situação do que os escritores brasileiros, que desejam convites para feiras e eventos e evitam críticas aos políticos…
Li, em algumas outras críticas, certa má vontade com o fato de haver tanta gente esperta e viva em Havana. Também com o fato de Padura descrever a prostituição, a pobreza, a vida de pessoas que vão se ajudando, se amando e sobrevivendo bem — inclusive a do amigo Magro, que ficou paraplégico em razão de um tiro que levou na Guerra de Angola –, sem grandes ranzinzices. Mas estes são os nossos tempos, né?. Já eu, que estou aqui pela literatura mesmo
Sou fascinado pela boa prosa, escrita ou falada. Digo a vocês que o tema da palestra de Padura pouco me importou. OK, era um bom tema o da Insularidade, a maldita circunstância da água por todos os lados. Acompanhei com atenção adequada tudo o que ele disse sobre o malecón, o interminável muro de 60 cm de largura que separa Havana do mar e do resto do mundo, ouvi com prazer as histórias que envolviam meu amado Alejo Carpentier, gostei mesmo quando ele falou da pobreza e da fome dos anos 90, com tudo o que fica e vai, mas achei muito melhores as frases, a colocação cuidadosa e hábil dos pensamentos, como quando, por exemplo, ele explicou a sedução que o romance noir e o mal exercem sobre os escritores, quando falou nos absurdos que ele comete, em termos literários, quando ele e sua mulher criam um roteiro a partir do próprio livro, cortando quase todas as melhores frases e palavras para deixar tudo nas mãos das imagens. Nas mãos das imagens! Eu realmente estava adorando todas aquelas frases que finalmente me acalmaram e, em momento de puro prazer, me fizeram cabecear. Juro, fizeram e foi tão bom dormir aqueles 5 culpados minutos para voltar com tudo para as ondas de frases do espanhol de Padura!
Aí, só porque eu sou bobão mesmo, tirei uma foto inútil no escuro, com o celular. Estava bom, foi uma grande palestra sobre o fazer literário. Parecida com a que Mia Couto proferiu anos atrás na mesma Ufrgs. Gostei do público. Não estava lotado e quase ninguém perguntou sobre a política de Cuba. Já estão chatas as perguntas da direita sobre se há liberdade por lá, etc. Foi só uma pergunta:
— Falando com tanta franqueza, criticando e amando Havana, como é sua relação com os governantes do país?
— Eu não sei o que eles pensam de mim.
E todos riram.
Para terminar: Padura leu sua palestra. Correto. Sei que a esmagadora maioria dos brasileiros gosta da oratória. Eu não. Na minha opinião, vir com um texto na mão é respeitar o público. Prefiro a coisa à europeia.
Quando conversei com Leonardo Padura, ele foi muito franco sobre seu país. Pediu que ficassem off-the-record apenas algumas de suas impressões sobre o Brasil. Falou que há uma esquerda romântica que vê Cuba como paraíso socialista e há uma direita muito agressiva, que a vê como um inferno comunista. E Cuba não é uma coisa nem outra. Segundo ele, o país parece mais com o purgatório. Porém… “Como leste em meus livros, sabes o quanto sou crítico de muitas coisas que ocorrem em Cuba, mas posso te dizer com toda certeza que, por sorte, lá nunca houve os excessos que ocorreram na União Soviética, na Alemanha e nos países do oeste. É uma sociedade que teve e tem, sobretudo, grandes problemas econômicos. A economia não funciona bem e a política está presente na vida das pessoas, mas nunca tivemos grande repressão. Há controle, é uma sociedade muito controlada, de um partido único, em que o estado e o governo são os mesmos. Há controle, repito, mas sem excessos. Lezama Lima, por exemplo, jamais teria sido publicado na URSS ou na Europa Oriental comunista. Até hoje teria problemas na Rússia. Em Cuba, foi. E isso aconteceu nos anos 60”.
Sobre a relação dos escritores cubanos com o mercado, foi ainda mais tranquilo: “Até 1990, 91, cada vez que um escritor cubano publicava um livro fora do país, tinha que fazê-lo através de uma agência literária do Ministério da Cultura. Ela cobrava os direitos e dava a parte do escritor. Já a partir dos anos 90, foi possível a livre contratação. Eu, no ano de 1995, comecei a publicar através de uma editora espanhola. E, desde então, minha relação econômica com o governo cubano é a de um escritor que recebe direitos e que paga impostos, como qualquer trabalhador independente. Pago pontual e religiosamente meus impostos, mas os direitos são meus e de uma agência da Espanha”.
Conversamos muito sobre Cuba. Sobre a dificuldade de alguém realizar-se no país — parecia que falávamos de toda a América Latina –, sobre a casa onde mora, que é a mesma em que nasceu. Aliás, seu pai e seus avós também viveram no mesmo local. Riu quando, ironicamente, perguntei se a revolução não quisera levá-la. Também sobre a sensação de pertencimento de todo povo cubano. Sobre a pobreza e as fugas. Sobre o excelente sistema de saúde, uma das obsessões de Fidel. E ele contou a piada que já conhecia: “Acaba o comunismo e o pai diz para o filho em Cuba: meu filho, tudo o que te disseram sobre as maravilhas do comunismo eram mentiras, mas tudo o que te disseram sobre o capitalismo era verdade”.
A ingenuidade de tanta gente que vê um país latino tão semelhante ao Brasil como se fosse outra dimensão…
Hoje, dia da morte de Fidel Castro, não é dia de entrar no Facebook. Li cada coisa sobre Cuba… Uns falando no tal paraíso, outros falando em pobreza e que Fidel não deveria ter nascido… Olho para lá, para cá, e concluo que essa gente certamente não mora no Brasil.
O consumo de cultura em Cuba sempre foi um fenômeno polêmico e complexo. As eternas dificuldades econômicas da estrutura socialista da ilha raramente possibilitaram que se gastassem os recursos necessários para levar ao cidadão as criações artísticas mais recentes e reconhecidas consumidas no resto do mundo (pelo menos no resto do mundo com possibilidades de fazê-lo).
Mesmo assim, graças a programas culturais e educativos, o espectador cubano teve oportunidade de consumir cultura de alta qualidade oferecida pelas instituições oficiais. Nos últimos tempos, por vias alternativas, também circularam as mais recentes séries da Netflix ou HBO, os últimos filmes de Alejandro González Iñárritu e Woody Allen, e o PDF pirata de algum livro recém-chegado ao mercado.
É algo diferente –ao longo de quase seis décadas, as instituições políticas cubanas decidiram o que o cidadão deve consumir culturalmente.
Assim, desde as proibições ou barreiras ao rock e beat nos anos 1960 até a decisão de não publicar autores cubanos que vivem no exílio, sempre existiu um mecanismo institucional que pensa na melhor educação ideológica, cultural e artística do cidadão, desestimulando ou censurando o que alguém com poder decide ser prejudicial ou impróprio.
Dessa última lista constam desde livros a filmes, de partidas de beisebol profissional a shows de TV de produção local. É o que parece ter acontecido com alguns episódios do programa “Vivir del Cuento”, comédia de costumes que tem a maior audiência da televisão nacional cubana (estatal, evidentemente).
Seria possível supor que um sistema tão esmerado de controle educativo e ideológico, praticado por instituições políticas e culturais oficiais, garantiria a criação entre os cubanos de uma alta capacidade de discernimento no consumo cultural, levando-os a dar preferência a produtos de alto nível estético, conceitual, ético e humanista.
Mas os meios de comunicação nem sempre alcançam essas metas previstas, nem sequer nas condições acima descritas. Hoje, em Cuba, por exemplo, a música mais ouvida pelo povo é o chamado reggaeton ou alguma de suas variantes, uma música elementar e cansativa, com letras geralmente de enorme pobreza lírica e, às vezes, obscenas.
E não apenas o reggaeton é consumido, como se adotou o hábito de as pessoas o tocarem em suas casas em volumes altíssimos, para o incômodo de quem preferiria outra música ou o silêncio. E isso é feito com total impunidade, como se fosse sinal de identidade e até de poder.
Algo semelhante ocorre com os programas de televisão. Muitas das pessoas que conseguem acessar programas estrangeiros privilegiam os piores programas da televisão “trash” gerados por alguns dos canais hispânicos do sul da Flórida, como o célebre “Caso Cerrado”, em que algumas pessoas levam a público suas misérias éticas, pessoais e familiares diante de uma espécie de juíza.
Mas uma das maiores aberrações foi a recente promoção do “livro do ano” em Cuba. Entre os títulos preferidos pelos cubanos em 2015, o mais destacado e divulgado foi um livro de receitas culinárias! Para escancarar ainda mais a pobreza cultural desse fato, um programa jornalístico da TV oficial cubana difundiu o acontecimento e, segundo pude ler, dedicou vários minutos a uma entrevista com o “escritor” vitorioso.
O que acontece nas entranhas e na inteligência de uma sociedade quando seus cidadãos escolhem como um de seus livros do ano um livro de receitas? E quando sua televisão oficial dá mais destaque a esse fato que a grande parte da produção literária do país? Simplesmente ocorreu um processo de degradação da capacidade intelectual dessa sociedade. Ou então se está manipulando a trama cultural para que um texto sem conflitos alcance essa distinção e seja, além disso, exaltado pela altamente politizada imprensa oficial do país.
Para quem se dedica ao trabalho literário em Cuba, não é apenas ofensivo que tais manifestações se produzam à nossa volta. Os leitores cubanos não puderam encontrar em seu país um único livro ao qual dar sua preferência?
Para onde se encaminha uma sociedade na qual, com certeza, a comida nunca foi suficiente para satisfazer as necessidades da população, e, ao mesmo tempo, um livro de receitas culinárias é o paradigma da leitura que mais e melhor se difunde, consome e promove? Quais são as escolhas possíveis para os leitores cubanos quando sua principal instituição editorial, o Instituto Cubano do Livro, se propõe a editar 624 títulos no ano e só consegue imprimir 231?
Depois de tanto controlar e decidir o que devíamos consumir culturalmente, será que vamos acabar assistindo a televisão “trash”, ouvindo baixarias de reggaeton em alto volume e lendo livros de receitas de cozinha em lugar de literatura? Depois de tanto esforço e controle, estaríamos vivendo uma alarmante regressão à banalidade e ao mau gosto?
O escritor cubano Leonardo Padura, 60 anos, conhecido autor de livros como O homem que amava os cachorros e da série de romances policiais com o detetive Mario Conde, esteve em Canoas neste final de semana a fim de participar da Feira do Livro da cidade. Grande estrela do evento, ele conversou tranquilamente conosco no hotel onde estava hospedado. Claro que há Cuba, mas o grande assunto ainda é O homem que amava os cachorros.
O relato do exílio e assassinato de Trótski, o percurso de seu algoz Ramón Mercader até o encontro entre ambos, é uma extraordinária história que mostra o que foi boa parte do século XX. É um narrativa de perversão e morte — de seres humanos e de utopias –, que vai desde a Revolução de 1917 até a Guerra Fria. Raras histórias são tão amplas temporal e fisicamente. Tendo nas mãos este tema grandioso e ainda quente, Padura respondeu com um romance extraordinário.
O homem que amava os cachorros é uma espécie de acertos de contas de uma geração. O livro toca em aspectos dolorosos de vários países comunistas, dentre eles Cuba.
Mas passemos à entrevista:
Sul21 – Antes de conversarmos sobre Cuba e o romance O homem que amava os cachorros, gostaria que tu falasses sobre o projeto literário que envolve o detetive Mario Conde e das tuas influências na área da literatura policial. Aliás, lá também há muitas referências ao ambiente social cubano e de Havana.
Padura – Eu escrevi o primeiro desses romances em 1989-90. A publicação ocorreu em 1991. O primeiro chama-se Passado Perfeito. Eu tinha 35 anos pouca ideia do que pretendia. Só sabia que desejava escrever romances policiais que seriam, sobretudo, romances sociais. O gênero é perfeito para comentar a sociedade cubana contemporânea, então eu escrevi uma série de quatro romances, que são anteriores a A Neblina do Passado. Todos esses quatro romances têm suas ações no ano de 1989. Mario Conde é um policial, um investigador da polícia, e os quatro romances ocorrem um em cada uma das quatro estações deste ano, tendo por tema diferentes aspectos da sociedade cubana e da cidade de Havana. A corrupção, o tráfico de influência, a repressão aos homossexuais e aos intelectuais nos anos 30 e o abuso de poder. Enfim, são romances que tinham uma missão social muito diferente do gênero policial praticado anteriormente em Cuba, que era muito oficial, no sentido de que eram propaganda do sistema. São livros parecidos com o que faz Rubem Fonseca aqui no Brasil.
Sul21 – Tu nasceste em Havana e tens um grande amor pela cidade. Ainda moras lá?
Padura – Sim, eu vivo em Havana, mas não somente em Havana. É mais do que isso. Eu vivo na mesma casa onde nasci, em um bairro da periferia da cidade. É um bairro comum, onde nasceu meu pai e meus avós. Sinto que pertenço àquele lugar. Essa é uma das razões que me fez decidir continuar morando em Cuba e em Havana. É uma relação de amor, claro, mas de um amor doloroso, porque eu e a cidade estamos nos deteriorando, ainda que ela siga sendo mágica.
Sul21 – No Brasil, a imprensa de direita criou a imagem de uma Cuba ditatorial, fechada, cheia de presos políticos e artistas censurados. Nos teus livros, tu falas livre e criticamente tanto do período Batista, do período revolucionário e do período pós-89. Onde está a censura?
Padura – Eu já disse outras vezes, há uma esquerda romântica que vê Cuba como paraíso socialista e há uma direita muito agressiva, que nos vê como um inferno comunista. E Cuba não é uma coisa nem outra. Parece mais o purgatório. Tu leste como sou crítico de muitas coisas e posso te dizer com toda certeza que, por sorte, em Cuba nunca houve os excessos que ocorreram na União Soviética, na Alemanha e nos países do oeste. É uma sociedade que teve e tem, sobretudo, grandes problemas econômicos. A economia não funciona bem e a política está presente na vida das pessoas, mas nunca tivemos grande repressão. Há controle, é uma sociedade muito controlada, de um partido único, em que o estado e o governo são os mesmos. Há controle, repito, mas sem excessos.
Sul21 – Nós podemos dividir a tua obra entre os livros policiais, O Homem e os livros jornalísticos?
Padura – A divisão existe, mas é apenas de gêneros. Eu escrevi relatos breves, romances policiais, contos, romances históricos, ensaios literários e roteiros para cinema. Trabalhei muito como jornalista e vários dos meus livros publicados são de jornalismo. Sempre tentei fazer um jornalismo de vida um pouco mais longa do que o momento que se vive e se publica. Tenho livros sobre jogadores de beisebol, artistas, músicos e todos estão escritos sob o mesmo conceito de explicar contextos e de fazer com que a notícia, a entrevista ou a crônica jornalística durem um pouco mais. Quando escrevo para o jornal, trato de fazê-lo da mesma maneira com que escrevo um livro durante cinco anos como foi o caso de O homem que amava cachorros. Trato de manter sempre a dignidade, o respeito por mim, pelo livro e pelo leitor. É meu trabalho. Sei que o jornal é diferente de um roteiro para o cinema, o qual é diferente de um romance. Mas, mesmo sendo às vezes leve, tenho a mesma postura de responsabilidade. Talvez não tenha sido tua pergunta, mas acabei dizendo que são diferentes trabalhos, mas onde coloco sempre o mesmo esforço.
Sul21 – Mario Conde é um policial bêbado, desencantado, “que arrasta consigo uma melancolia”. O Iván de O homem que amava os cachorros também é um “fracassado”. Em tua experiência de vida, tens algo em comum com eles?
Padura – Por sorte não! (risadas) Eu sempre tive uma recompensa muito satisfatória com meu trabalho e ganhei coisas que nunca imaginei que podia ter. Em Cuba, fui Prêmio Internacional de Literatura, agora acabo de receber na Espanha o Prêmio Princesa de Asturias de las Letras 2015, que é muito importante e me deixou entre surpreso e encantado. Mas é claro que tenho uma visão de mundo que é expressa na literatura. Faço parte de uma geração desencantada. Uma geração que participou e viveu a revolução e que depois começou a perder coisas, a perder possibilidades de realização e que, em boa parte, foi para o exílio. O tema do exílio é muito importante em meus livros. Como escritor, tento retratar esta experiência coletiva, apesar de que não é, realmente, uma experiência diretamente pessoal.
Sul21 – Em algum sentido semelhante, Trótski também é um derrotado?
Padura – Trótski é um derrotado distinto, porque até o final foi um homem persistente, um homem que acreditou em seus projetos e ideias. Inclusive, quando estava mais sozinho e derrotado, ele seguia acreditando em seu projeto político. Diferentemente de muitos de meus personagens, era um homem ativo, essencialmente político e que tinha participado não somente como líder de uma revolução como havia sido um de seus grandes dirigentes. Era um filósofo, um pensador e sua derrota é uma derrota humana, mas não filosófica, porque ao final, Trótski converte-se no primeiro crítico do comunismo praticado na União Soviética. O stalinismo perverteu o marxismo e Trótski faz a primeira grande crítica do fato.
Sul21 – Há duas narrativas principais que correm paralelamente em O Homem que amava os cachorros. A de Ramón Mercader e a de Trótski. Isso se alonga por mais de 400 páginas até o encontro dos dois. O lado de Trótski é quase jornalístico, porque a vida dele está documentadíssima, todo mundo pode conhecer cada um de seus passos, enquanto que o outro é exatamente o contrário. Mercader não era, obviamente, uma figura pública, sabe-se pouco sobre ele. Creio que este seja o grande desafio que tiveste ao escrever o romance.
Padura – Exatamente. Sabe-se de cada passo de Trótski. Eu começo a história de Trótski onde termina sua autobiografia. Ela termina em 1929, que é quando eu começo o romance. Mas a vida dele está documentada praticamente dia a dia. Nós, jornalistas e biógrafos, documentamos tudo. Já com Mercader ocorria justamente o contrário. Conheciam-se fatos de sua vida anterior a 1940, sabia-se que tinha entrado para a história do século 20 no dia em que tinha matado Trótski, que tinha ficado 20 anos na prisão e que depois praticamente desapareceu em Moscou. É um personagem sem história, mas que está dentro de minha história. O equilíbrio entre os dois personagens era muito difícil de alcançar. Num primeiro momento, preferi escrever a vida de Trótski em primeira pessoa, porque estava cheio de informações, mas me dei conta de que não poderia dominar seu pensamento – era um homem de outra cultura, de outra época e tinha outra forma de entender a vida. Então, optei por tomar uma certa distância. No entanto, com Mercader, tratei de entrar mais dentro dele, porque havia pouca informação e mais espaço para a literatura, para a ficção. Acaba de sair, na Espanha, a primeira biografia de Mercader, com 700 páginas. Porém, quando escrevi meu romance, só tinha um livro pequeno escrito pelo irmão de Ramón, um livro muito favorável a ele. Tudo o que encontrei de informações foi em lugares muito dispersos e com muita dificuldade. Algumas pessoas que poderiam me dar informações não quiseram falar. Ainda hoje, nem todos querem falar de Mercader.
Sul21 – Ramón Mercader tinha mesmo aqueles cachorros?
Padura – Sim! Esta parte é tão verdadeira que te convido que procure no youtube um filme cubano chamado Los sobrivivientes, do diretor Tomás Gutiérrez Alea, que você conhece, como conversamos antes. A primeira parte do filme é a história de uma família da grande burguesia cubana. Quando Fidel chegou ao poder, eles decidem se fechar em casa, esperando que a revolução passe. Neste primeiro momento, em todo o esplendor da família burguesa, os cachorros que lá aparecem são os de Ramón Mercader. Gutiérrez Alea utilizou-os porque eram os cachorros mais bonitos que havia em Havana. Então, os dois borsóis russos de Mercader não apenas existiram como podemos vê-los.
Aos 9:15, por exemplo, os cães de Mercader
Sul21 – Em seu exílio, Trótski viajou muito: Cazaquistão, Turquia, França, Escandinávia, México… Tu visitaste todos esses lugares?
Padura – Quase todos. Foi muito trabalhoso escrever o romance. Foram cinco anos de trabalho e alguns desencontros. Viajei a vários lugares onde ele viveu, compus vários cenários de acordo com o que vi, mas não consegui conhecer todos. A casa de Trótski no México era um cenário fundamental e eu não pude conhecê-la. A altitude mexicana me afeta sobremaneira, minha saúde não permite que eu vá até lá, mas consegui fotografias de cada detalhe. Remontei a casa através de fotos. Muito importante foi visitar Moscou, não a Moscou de Trótski, mas a de Ramón Mercader. A Moscou onde ele viveu nos anos 60 e 70, antes de ir para Cuba.
Sul21 – Trótski era uma figura desconhecida em Cuba, certo?
Padura – Não havia informação sobre ele no país. Ele praticamente não existia. As únicas informações que poderiam ser encontradas na biblioteca da universidade, eram apenas dois livros moscovitas escritos em espanhol: um se chamava El traidor e outro Trotsky: El falso profeta. Tinham a visão soviética, claro. Portanto, este foi um dos elementos que despertou minha curiosidade: como é possível que este homem, que era um demônio e havia sido um dos lideres da revolução, como é possível que tantas pessoas brilhantes estivessem ao redor dele e nada dissessem a seu respeito?
Sul21 – Ele não era fácil…
Padura – Trotski tinha um caráter muito difícil e no final terminava brigando com todo mundo. Ele era muito fundamentalista, mas muito inteligente. Trótski era muito superior a Stálin, do ponto de vista intelectual.
Sul21 – E chegamos a Stálin. Mercader e Trotski, no livro, parecem marionetes controladas por um ser muito mau, descontrolado e perigoso.
Padura – Stálin não aparece como personagem, mas é quem decide praticamente tudo o que ocorre. É uma figura antagônica. Como sabes, Stalin foi, durante quarenta anos, um deus na União Soviética. E, depois, foram aparecendo estudos e se descobriu que ele era profundamente doente. Era um homem que podia ter um nível de crueldade inimaginável, mesmo para com uma pessoa próxima. Era de um sadismo tremendo e fez o pior: perverteu a grande ideia utópica do comunismo. Para qualquer pessoa boa, o ideal comunista pode parecer bom – todos vamos ter os mesmos direitos, as mesmas possibilidades, vai haver grande liberdade, grande democracia, etc. Mas o que Stalin praticou na União Soviética fugia totalmente a este ideal.
Sul21 – Tu vives da literatura atualmente?
Padura – Por sorte, sou um desses escritores que podem viver da literatura, ainda que escreva para cinema e para jornais.
Sul21 – Como recebes teus direitos autorais vivendo em Cuba? Dás boa parte para o estado? Pretendes pedir asilo político no Brasil? (risadas)
Padura – (risadas) Até 1990, 91, cada vez que um escritor cubano publicava um livro fora do país, tinha que fazê-lo através de uma agência literária do Ministério da Cultura. Ela cobrava os direitos e dava a parte do escritor. Já a partir dos anos 90, foi possível a livre contratação. Eu, no ano de 1995, comecei a publicar através de uma editora espanhola. E, desde então, minha relação econômica com o governo cubano é a de um escritor que recebe direitos e que paga impostos, como qualquer trabalhador independente. Pago pontual e religiosamente meus impostos, mas os direitos são meus e de uma agência da Espanha.
Sul21 — Sei que tu te sentes asfixiado de “tanta Cuba”, mas creio que seja inevitável perguntar sobre a aproximação do país com os Estados Unidos.
Padura – Verdade. Estamos apenas no princípio de um processo — porque ainda não se restabeleceram inteiramente as relações, está ainda em curso uma complicada negociação. Mas a tensão foi quebrada, inclusive Cuba não está mais na lista de patrocinadores do terrorismo. O embargo segue existindo, mas acho que cada vez mais haverá comércio entre os países. Certamente, o governo cubano não vai ceder muitos espaços de maneira imediata. Vai ser uma negociação lenta, mas benéfica. Nos EUA há uma grande população cubana. Alguns são possuidores de grandes fortunas e querem voltar a investir em Cuba. Outros têm muito receio. E há os inimigos absolutos do sistema. Fala-se que a Bacardi , que era inimiga política de Cuba, está agora dizendo: “bem, se as coisas mudaram, gostaríamos de ver nossos negócios em Cuba”. Acho que a reaproximação vai mover a economia cubana, que tem muitos problemas. Em Cuba, temos um povo de bom nível cultural, mas faltam grandes investimentos em infraestrutura e, por exemplo, o Brasil ajudou muito na construção do Porto de Mariel. Este porto e todas as obras turísticas que estão sendo construídas na praia de Varadero são sinais de mudanças. Acabo de estar em Varadero. Lá existe agora um hotel que foi inaugurado há 4 meses com 1200 espaços para iates. Só que em Cuba há 20 iates! Para quem são os 1080 restantes? Eu creio que tudo isso vai mobilizar a economia e a sociedade cubanas. Muitos norte-americanos estão lá com licenças especiais, já que não existe ainda o visto de turista. Também há programas da televisão norte-americana sobre Cuba. Equipes chegam a cada momento e as coisas vão se movendo.
Chamar o Brasil de “Pátria Educadora” parece uma anedota, principalmente se compararmos nossa situação o aquilo que se faz há mais de um século no vizinho Uruguai. Com uma secular tradição de educação laica, gratuita e obrigatória, implantada pelo reformador José Pedro Varela (1845-1879), o Uruguai hoje está na ponta de lança da educação latino-americana. Na longa entrevista que segue, começo por uma curta biografia de Roberto Markarian Abrahamian, de quem sou amigo, e depois envereda pelos detalhes da universidade e da educação uruguaia de uma forma geral.
Conheci Roberto Markarian em Porto Alegre, quando estudava engenharia e ele era estudante do Curso de Matemática da Ufrgs, logo após os sete anos em que esteve preso pela ditadura uruguaia. Na época, ele era do Partido Comunista.
Não obstante o fato de sermos estudantes da área de exatas da mesma Universidade e de estarmos, por assim dizer, em trincheiras ideológicas muito próximas, nossa amizade mantinha-se mais pelo amor ao cinema, à música e à literatura. Demorou muito para eu saber que meu amigo era um matemático brilhante que, poucos anos depois, teria destaque mundial em sua área.
Neste ano de 2015, após quase meia década sem contato, tive de escrever sobre os 100 anos do genocídio armênio. E, já que Markarian é filho de armênios que fugiram da perseguição turca — há ainda um Abrahamian em seu nome — consultei sem maiores objetivos seu nome no Google, fato que me fez dar de cara com uma série de fotos de meu amigo com o presidente José Mujica. O que teria acontecido? Do que não me informaram?
Markarian é um sujeito amável e tranquilo, dono de uma respeitável e variada erudição. Nela, curiosamente, nunca coube o futebol e ele reclama que muitas vezes é confundido com o irmão Sergio, famoso treinador que já comandou, por exemplo, as seleções do Paraguai, Peru e Grécia. Roberto é chamado por Sergio de “o irmão inteligente”, enquanto Sergio, no dizer de Roberto, seria “o irmão famoso”.
Markarian tem pelo menos oito livros publicados e dezenas de artigos que refletem seu trabalho como pesquisador. Até sua eleição como Reitor, investigava principalmente as propriedades não uniformes dos sistemas dinâmicos. Com a modéstia habitual, como se fosse algo comum, ele diz ser difícil alguém estudar o tema sem se referir a seus trabalhos. Para os leigos, trata-se de movimentos semelhantes aos de bolas movendo-se numa mesa de bilhar, sem atrito. Tais movimentos acabam por enquadrar-se em algumas definições de caos e têm aplicações na área tecnológica.
Bilhar? Markarian adverte que esteve apenas duas vezes inclinado sobre o pano verde. No entanto, conta que recebe rotineiramente publicidade de fabricantes de mesas de bilhar. Além de propostas para treinar times de futebol.
Agradeço à Elena Romanov, minha violinista favorita que se travestiu de fotógrafa, e aos professores Nikelen Witter e Éder Silveira, que me sugeriram algumas perguntas que talvez não me ocorressem.
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Milton Ribeiro – Gostaria que tu descrevesses resumidamente tua atividade política e acadêmica até aquele período em que te conheci, no início dos anos 80.
Roberto Markarian – Comecei a estudar engenharia quando tinha 17 anos. Apesar de ir bem nos estudos, vi que a Engenharia não era minha vocação e fiquei na dúvida entre ir para a Geologia ou para a Matemática. Então eu visitei os dois institutos e decidi que a matemática era um bom lugar para mim. Obtive lá uma pequena posição de horista. E comecei a estudar dedicadamente matemática. Uns 4 ou 5 anos depois, entre 1968 e 1970, fiz um concurso para entrar como docente. O concurso era de nível de mestrado. E ganhei a posição mesmo sem ter qualquer outro título. Era outra época. Por exemplo, o maior matemático do Uruguai, José Luis Massera, não foi mestre em matemática, ele só tinha o diploma de engenheiro. Na época do concurso, eu já estava envolvido com a política. Entrei na escola de engenharia num ano e, no ano seguinte, era o secretário-geral do Grêmio Estudantil da Engenharia (CEIA). Era uma turma muito estudiosa, tentamos várias vezes expulsar professores ruins, mas acabamos renunciando após algumas derrotas…
Milton Ribeiro – Tu chegaste a assumir como docente ou não?
Roberto Markarian – Sim, assumi e comecei a dar aulas. Eu vivia disso. O dinheiro era bastante razoável. Quando veio a ditadura, em 1973, eu estava completamente envolvido com a atividade acadêmica e política, integrando a direção da juventude comunista. Também ocupava um cargo na Federação dos Estudantes (FEUU) e tinha sido membro do comitê de mobilização no agitado ano de 68. Acabei preso em 76 por minhas atividades no âmbito político. Fui processado e estive na prisão por 6 anos e 8 meses contínuos, mas já estivera lá outras vezes, entre 69 e 73, por um total de 4 meses.
Milton Ribeiro – Tu achas que a participação e a atuação política dos estudantes colaboram com a modernização educacional? Porque no Brasil, existe a política estudantil, a Universidade e há os professores, que costumam ficar alheios.
Roberto Markarian – Aqui no Uruguai, a influência do movimento estudantil foi e continua sendo muito forte. Por exemplo: a lei orgânica que regula o sistema universitário público, não existiria se não fosse pelo movimento estudantil. As formas educacionais são elaboradas pelos docentes, mas muitas coisas foram promovidas pelo movimento estudantil e continua sendo assim. Por exemplo, há uma influência muito forte dos estudantes nas eleições das autoridades das escolas. O sistema uruguaio é muito aberto, os estudantes têm influência real no corpo universitário. É difícil que uma autoridade importante seja eleita com oposição estudantil. No meu caso, na eleição de Reitor, eles se dividiram, mas tiveram participação ativa. Dos 105 votantes, 30 são estudantes. Eu diria que movimento estudantil tem uma influência muito grande, mas menor do que a que teve entre os anos 50 e 70. Depois da ditadura e modernamente, todo o sistema de influência democrática no mundo foi alterado, não só o do Uruguai. Mas os estudantes são sistematicamente ouvidos sim.
Milton Ribeiro – E tua vida depois da prisão?
Roberto Markarian – Depois de sair da prisão, decidi ficar no Uruguai por problemas familiares. Muita gente que saía da prisão saía do país também. Não foi o meu caso. Ficamos, eu, minha mulher na época e minha filha morando aqui e eu decidi que deveria continuar sendo matemático. Claro que perdi meu cargo em 1976, mas o recuperei em 85, quando voltou a democracia. Voltei ao mesmo cargo e ao mesmo nível que tinha na época anterior, quase dez anos antes. Então, meu amigo Marco Sebastiani e a professora Gelsa Knijnik me convidaram a ir para a Ufrgs. Eu fiz vestibular como se fosse um iniciante, consegui depois equivalência de algumas cadeiras. Eu tinha dificuldades para conseguir a equivalência porque estávamos ainda na ditadura. Os documentos me fugiam. Eu ficava viajando entre Montevidéu e Porto Alegre, dava e recebia aulas. Fazia provas e mais provas. A cada viagem, tinha que pedir autorização à polícia. Eu dizia sempre que ia visitar Marco Sebastiani e me autorizavam. No início, ficava na casa dele, depois na casa de outro grande amigo, Alejandro Borche Casalas. Nem tinha terminado o bacharelado e, simultaneamente, comecei a trabalhar na tese de mestrado. Em pouco tempo, dois anos, finalizei a graduação e o mestrado, tudo na Ufrgs. Então o pessoal do Impa, do Rio de Janeiro, ficou sabendo que tinha aparecido um cara com um trabalho grande de mestrado e com resultados interessantes — na verdade, meu trabalho foi publicado por uma importante revista — e me convidaram para ser aluno do Impa. E comecei a estudar lá no ano de 88. Doutorei-me em 1990. Foi tudo muito rápido. Entre 85 e 90, eu recebi três títulos: de bacharel, mestre e doutor.
Milton Ribeiro – Sempre indo e vindo, entre Brasil e Uruguai.
Roberto Markarian – Sim, fiz o mesmo sistema de ir e voltar. No Rio de Janeiro, morei menos de dois anos, foi o período que eu fiz cursos e a tese de doutorado.
Milton Ribeiro – Tu és um matemático muito respeitado. Quais são teus principais trabalhos?
Roberto Markarian – A disciplina a que mais me dediquei chama-se Dinâmica Caótica. É o estudo matemático da desordem. Há modelos simples de sistemas dinâmicos chamados de bilhares caóticos. Trata-se do estudo matemático dos movimentos desordenados. Nesta área, eu escrevi um livro, que só posso chamar de importante, com um colega russo chamado Nikolai Chernov, falecido faz pouco tempo. Trabalhamos a partir de modelos simples de movimentos desordenados e chegamos a resultados consistentes. Nosso trabalho foi publicado numa coleção de monografias da American Mathematical Society. O título é Chaotic Billiards. Publiquei outros livros, em parceria ou não, que serviram como preparação para este principal com Chernov.
Milton Ribeiro – Como foi teu contato com Chernov?
Roberto Markarian – Ele trabalhava em Moscou. Os principais estudos da área, naquele momento, vinham de Moscou. O grupo principal estava sediado lá com Chernov e seu chefe Yakov Sinai. Eu propus um pós-doutorado em Moscou, fui aceito, e viajei pouco tempo depois. Conheci Sinai e passei a trabalhar com Chernov, que estava no Centro Nuclear de Dubna, que fora criado pouco depois da 2ª Guerra Mundial por Stalin. Era o local de desenvolvimento de pesquisas nucleares para todos os países socialistas. A cidade fica a 110 km de Moscou, às margens do Volga. Chernov trabalhava no Centro Nuclear. Passei quase um mês morando com ele, fazendo matemática.
Milton Ribeiro – Eu imagino que esse teu trabalho com Chernov seja muito citado em trabalhos acadêmicos. Qual é a importância dele?
Roberto Markarian – Qualquer pessoa que queira estudar os elementos básicos da dinâmica caótica vai usar nosso livro como uma de suas principais referências. Eu não estava muito convencido disso, mas ultimamente, já como Reitor, fui a duas ou três grandes reuniões, uma delas em homenagem a Sinai, que tinha recebido o Nobel de matemática, o Prêmio Abel, concedido pelo noruegueses no valor de quase 1 milhão de dólares. Sim, é o maior prêmio para matemáticos. Depois, houve uma reunião de homenagem a Chernov, que morreu ano passado no Alabama, onde trabalhou no final de sua carreira. Aí, me convenci que era um livro de referência.
Milton Ribeiro – E isso é utilizado em quê?
Roberto Markarian – Além de ser usado nos cursos de pós-graduação de quem queira estudar o caos, é uma ferramenta teórica que serve à mecânica quântica e a outras aplicações tecnológicas. Há aproximadamente 30 pessoas no mundo que trabalham nisso no momento e eu fazia parte dessa turma.
Milton Ribeiro — Fazia?
Roberto Markarian — Porque agora, como Reitor, é muito complicado seguir produzindo.
Milton Ribeiro – O cargo de Reitor é muito importante no Uruguai. Até o presidente Mujica veio te saudar quando foste eleito.
Roberto Markarian – Sim, quando eu tomei posse no cargo, Mujica apareceu aqui. Afinal, era o Presidente da República e a posição de Reitor em nosso pequeno país é importante. Tabaré Vázquez também já veio nos visitar.A relação da Reitoria com o sistema político é muito grande e Mujica apareceu logo após a eleição, fez um discurso elogioso. Usou um provérbio que me parece ser utilizado no Quixote, Genio y figura hasta la sepultura, que significa que as características de algumas pessoas duram toda a vida, que não são fáceis de mudar.
Milton Ribeiro – Tua neta diz que és a terceira pessoa mais importante do país….
Roberto Markarian – (risadas) A Udelar é uma grande Universidade pública e de livre acesso em um país pequeno. Não há vestibular, quem desejar entrar, entra. Temos 100.000 estudantes e 10.000 professores. Do ponto de vista numérico ela é maior do que a Ufrgs. No Uruguai há uma outra Universidade, a Utec, com menos de 1000 estudantes. Ou seja, praticamente só existe a Udelar. Dos 10.000 professores, temos alguns que cumprem uma hora de obrigação semanal de trabalho e outros com dedicação exclusiva. O número de docentes com dedicação exclusiva são aproximadamente 1000.
Milton Ribeiro – Há estabilidade para os professores?
Roberto Markarian – Não, todas as posições docentes na Universidade são ocupadas inicialmente por dois anos e, depois, há as chamadas reeleições a cada cinco anos. Eu, por exemplo, mesmo depois que ganhei posições mais altas, tive que continuar comprovando merecimento para permanecer naquela posição. Cada professor tem que apresentar um informativo do que produziu, dos planos que tem para o período seguinte. Os Conselhos decidem se cada professor vai continuar ou não. A cada cinco anos, há possibilidade de você não ser eleito. A cada cinco anos, sua cabeça é colocada a prêmio. Não temos maiores proteções.
Milton Ribeiro – Em que casos acontecem as demissões?
Roberto Markarian – Se o professor não faz pesquisas, se ele não produz nenhum trabalho original ou criativo. Falo em criativo porque, se você é um artista deve produzir arte — ou projetos artísticos ou de pesquisas sobre arte — , se você é engenheiro tem que fazer projetos, patentes ou coisas referentes a alguma pesquisa. Se você é um professor muito ruim também pode não ser reconduzido, pois os estudantes podem te “jogar fora”, o que já aconteceu. Eu diria que, em geral, o sistema é muito bom. Não se pode dar nunca lugar à arbitrariedade. Claro que membros do Conselho podem detestar certos professores, mas normalmente prevalecem os critérios objetivos. A capacidade de autocrítica, de aplicar bem os critérios, está funcionando adequadamente. Houve um período em que algumas pessoas saíram por razões subjetivas ou políticas, mas isto não ocorre mais.
Milton Ribeiro – E como são os salários desses professores?
Roberto Markarian – O salário do professor melhorou nos últimos dez anos, especialmente no primeiro período do governo da Frente Ampla. Porém, se comparados com os salários da região, continuam baixos. É muito difícil comparar nossa remuneração com a dos professores brasileiros, porque o custo de vida está sempre se alterando, as moedas se desvalorizam, etc. Eu diria que, no início da carreira, os docentes daqui ganham menos que seus colegas brasileiros. Se você chega a um nível mais alto na carreira, os valores são semelhantes aos normalmente pagos pelas Universidades federais brasileiras, só que sem os extras que os professores brasileiros ganham. Não temos isso aqui. Ou seja, se você comparar, o salário básico é parecido, mas se você comparar o salário total, os salários dos brasileiros são melhores.
Milton Ribeiro – O Uruguai é atrativo para um jovem doutor ou há muita fuga de cérebros? É bom para um jovem doutor permanecer aqui, ter uma carreira ou é melhor ir embora?
Roberto Markarian – Depende muito da área. Temos áreas onde a capacidade de absorção dos jovens doutores pelo sistema acadêmico é muito grande. Praticamente não há fugas de matemáticos, por exemplo. Em outras áreas, como as engenharias, existe uma saída maior, não obstante o fato de que há mercado de trabalho para todos engenheiros uruguaios dentro do país. Mas mesmo assim existe a fuga. De um modo geral, a fuga foi diminuindo. Sendo mais específico, há 4 ou 5 anos a situação era melhor e agora tem aumentado novamente. Há um fato dentro da Udelar que tem evitado a fuga do pessoal acadêmico: é que a Universidade, com o apoio do governo, cresceu no interior. Com isso, foram criadas muitas novas posições.
Milton Ribeiro — Como está sendo feita tal expansão?
Roberto Markarian — A Udelar expandiu-se muito pelo país e agora temos que concentrar esforços em manter a qualidade do trabalho em todos os lugares. Não pode haver uma Universidade do interior e outra de Montevidéu. Ambas — ou todas as unidades — têm que ser de mesma qualidade. Isso não é fácil, os recursos humanos no interior são diferentes dos de Montevidéu. O Uruguai é subdividido em 19 departamentos e todos nós sabemos que é um exagero. A Udelar tenta promover uma estrutura administrativa mais racional e eficaz. É um problema.
Milton Ribeiro – E a tua vida como Reitor, quais são os outros desafios?
Roberto Markarian – Olha, minha principal obrigação como Reitor é assinar todos os títulos que a Universidade dá… É um trabalho maluco. Hoje já assinei mais de cem certificados e títulos. (risadas) Qualquer categoria de título tem que ser assinada pelo Reitor da Universidade. A lei é esta. (Ele pega um certificado) Veja só, aqui temos uma nova contadora pública, que se chama Griselda. Seu documento tem que ser assinado pelo Reitor. (Markarian assina) Aqui temos uma licenciada em economia, a Maria Catalina, que também vai ter o título legalizado por mim. (Markarian assina) Só Bach e Beethoven me ajudam nestas leituras e assinaturas! Mas vamos à pergunta. Neste momento, estamos às voltas com a questão orçamentária. Ontem, o Conselho Universitário aprovou o período para os próximos cinco anos. Essa não é uma responsabilidade exclusiva do Reitor. O Reitor preside de um Conselho de 25 pessoas, que funciona a cada duas semanas. Então, a decisão é coletiva. Os planos de estudos de todas as carreiras dependem de questões orçamentárias que temos que discutir com o governo nacional, porque somos praticamente financiados por ele. Cerca de 80% do orçamento da Universidade é financiado pelo governo. Apenas 20% vêm de recursos de contratos e convênios com organismos estatais e privados.
Milton Ribeiro — E quanto vocês pediram para o próximo quinquênio?
Roberto Markarian — O Conselho aprovou um pedido de aumento de 90% em valores nominais. Agora aguardamos a resposta governamental. Temos que preencher várias lacunas que ficaram em aberto a partir do orçamento anterior. A proposta é de que se eleve o investimento na educação para 6% do PIB.
Milton Ribeiro – O ensino uruguaio parece muito avançado em relação ao brasileiro.
Roberto Markarian – Talvez. Estamos aplicando algumas tecnologias modernas no ensino. Temos o Plano Ceibal, que distribui as “ceibalitas” [pequenos computadores pessoais para atividades educacionais. O plano será melhor explicado na sequência da entrevista] para cada estudante e docente do ensino básico. São equipamentos que eles recebem de graça. Temos mais de meio milhão dessas máquinas e a foto que vocês estão tirando será curiosa porque o quadro que está por trás, o quadro de Simon Bolívar, foi um presente de Hugo Chávez para o Reitor anterior. Chávez morreu antes de eu assumir. Voltando a uma pergunta que fizeste anteriormente, aquela sobre a importância que o Reitor da Udelar tem neste pequeno país: desde agosto já recebi a presidente do Chile e o presidente da Bolívia. Muita coisa passa pela Universidade. Ontem, tive uma reunião para discutir o Plano Ceibal e outra com o presidente da Corte Eleitoral, a qual controla o sistema eleitoral uruguaio e o sistema eleitoral universitário, para decidir quem pode votar ou não, etc. E ainda tento desenvolver projetos na área da matemática.
Milton Ribeiro – Essa era a minha próxima pergunta: como é que consegues conciliar o matemático com o gestor?
Roberto Markarian – Terminei de revisar uma tese de mestrado. Sou orientador de um aluno da USP. Acho que em outubro ele vai defendê-la. Viajei há dois meses para participar da qualificação dele lá na USP e estou tentando terminar dois trabalhos que havia começado antes e que estão aí sobre a mesa. Isto é, faço pouco. Aqui no reitorado, sou obrigado a mudar constantemente de foco. Não há como me concentrar em apenas um tema. Tento ouvir música para auxiliar nas tarefas mais burocráticas. Ter sempre um Bach à mão é fundamental.
Milton Ribeiro – Os ideais de [José Pedro] Varela são de um ensino laico, obrigatório e gratuito. Isso permanece?
Roberto Markarian – Sim, o ensino público é gratuito, de livre ingresso e, para você fazer algumas carreiras, é necessário que tenha feito um determinado tipo de secundário. Se você quer engenharia, terá de fazer um preparatório científico no estudo secundário. Se você quer ir pra medicina, faz outro curso secundário. Minha filha, por exemplo, começou estudando o científico e, quando eu estava em Porto Alegre, passou para o humanístico. Foi uma briga familiar. Hoje é historiadora, doutora em História pela Universidade de Columbia, Nova York. O sistema é livre e universal e isso tem vantagens para os estudantes, mas às vezes gera problemas para a Universidade pela convivência de alunos muito heterogêneos. A diferença de conhecimento dentre eles é muito grande. Quando dei aulas para os primeiros anos de ensino universitário, notava que a diferença entre os estudantes, dependendo da escola onde estudaram, era imensa, mesmo dentro de Montevidéu. Havia gente que sabia tudo e gente de escassos conhecimentos, e todos eles estavam juntos na Engenharia… Você tem que fazer com que aprendam. O que sucede é que, fazendo um cálculo grosseiro, dois anos depois temos apenas a metade dos que iniciaram o curso de Engenharia e apenas 1/3 dos alunos se forma. Em outras carreiras este percentual não é muito diferente.
Milton Ribeiro – O que faz um aluno do científico que decide fazer História, por exemplo?
Roberto Markarian – Bom, agora temos um sistema bastante estranho. Se você faz uma certa quantidade de créditos de qualquer carreira, pode passar para outra. Isto é permitido. Não lembro dos números exatos, mas, por exemplo: se um aluno tiver 15% da Medicina feita, estará autorizado a passar para a Engenharia. Não tem que ir para trás e recomeçar tudo de novo.
Milton Ribeiro – E é possível fazer duas faculdades?
Roberto Markarian – Sim. Por exemplo: tem muita gente que entra na Engenharia e faz Física ou Matemática ao mesmo tempo. Tem gente que acaba uma faculdade e, depois de um período, retorna para outra, dependendo do interesse ou da vocação pessoal. Foi o meu caso. No início eu não fazia faculdade de Matemática, entrei pela Engenharia.
Milton Ribeiro – 20% dos alunos vão para as universidades privadas. Por quê? Se eles podem ter algo de graça, por que pagam?
Roberto Markarian – Temos três universidades privadas e alguns institutos, que se chamam institutos universitários, que têm mais ou menos 20% dos estudantes de nível superior. É um cálculo grosseiro, novamente. Eles vão para lá por razões particulares. Uns vão pela tranquilidade, por ser um lugar mais limpo ou porque fizeram o ensino secundário em escolas privadas. Isto certamente influencia. O dinheiro também. Uma parte dos filhos das pessoas mais ricas procuram as instituições privadas. Seguramente os alunos destas universidades provêm dos 2/5 mais ricos do país. São pessoas que podem pagar o curso que desejam para si ou para seus filhos. Porém, temos muitíssimos alunos dentre os 20% mais ricos.
Milton Ribeiro — A Universidade dá bolsas para os mais pobres?
Roberto Markarian – Sim. O sistema uruguaio pode dar pequenas bolsas para estudantes. Temos hoje 7.000 estudantes nesta situação. Os beneficiários deste programa, cinco anos depois de se graduarem, começam a pagar um imposto que vai direto financiar um fundo de solidariedade para estudantes pobres. Para seguir recebendo a bolsa, o beneficiado tem que ser um estudante razoável, mas o critério principal é o econômico. É realizada uma verificação da renda familiar e de outros fatores sociais. Muitas pessoas que não foram beneficiárias de bolsas colaboram para o fundo de solidariedade. Eu sou uma delas.
Milton Ribeiro – O imposto é mensal ou anual? Qual é o valor da bolsa?
Roberto Markarian – É um pequeno imposto anual. A universidade também tem um sistema de bolsas próprio, mas que só financia os restaurantes universitários e os alojamentos de alguns estudantes. Perguntaste sobre o valor das bolsas para os alunos carentes. É pequeno: é de aproximadamente 7 mil pesos, algo em torno de R$ 1.000. Eles só têm obrigação de passar em uma quantidade mínima de matérias. Não é um benefício dado aos melhores alunos, é para os pobres poderem estudar. Porém, se alguém ficar três anos sem passar em nenhuma disciplina, perderá a bolsa.
Milton Ribeiro – Raros estágios pagam isso no Brasil… Você disse que o Reitor não fala em política. Fale-me sobre a participação dos intelectuais na vida política do Uruguai. No Brasil, atualmente, poucos escritores opinam por receio de se comprometerem, por medo de perderem convites de prefeituras e governos para Feiras e eventos, etc. Como é aqui?
Roberto Markarian – Aqui é o inverso. Falam até demais! [risadas] A posição do Reitor é bem diversa. Ele e os membros do Conselho Universitário têm proibidas quaisquer atividades político-partidárias. Isso está na Constituição da República: os membros das direções e dos organismos autônomos não podem ter participação política. Mas a Universidade é normalmente acusada de ser um organismo de esquerda. Não é, a Universidade é do estado uruguaio, não é de esquerda nem de direita. É uma Universidade. Ontem mesmo me perguntaram porque os esquerdistas dominam a universidade e eu respondi que isto não é verdade. Você tem um Conselho e um Reitor, isso sim. Aqui, eu não sou de esquerda nem de direita. Sou Reitor. Dirijo uma instituição acadêmica e particularmente faço questão de não me posicionar. É muito importante, porque fui eleito por uma coalizão impossível de se explicar do ponto de vista político. Tinha gente da ultra esquerda e da direita. Se me posicionar, serei fatiado, tomografado.
Milton Ribeiro: Mas a Universidade participa intensamente das grandes discussões do país.
Roberto Markarian – Sim, claro! Agora mesmo nós estamos discutindo sobre a atualização do Plano Ceibal, que é o plano implantado no Uruguai em 2007 de “Um computador por aluno”. Todos os alunos de escolas públicas recebem computadores portáteis. A distribuição também chega aos professores e a iniciativa é bem-sucedida. O programa aumentou a frequência dos alunos nas escolas, diminuiu a exclusão digital dos adultos e tem contribuído para a melhoria da educação infanto-juvenil. É um sucesso, mas tem de ser monitorado. As tecnologias e os programas mudam e é importante manter esta ferramenta de ensino. Na Universidade, estamos na ponta superior, mas nossos estudantes vêm do ensino básico. Temos que dar nossa contribuição. Estamos também opinando sobre a Lei de Competitividade que está em discussão no parlamento. Encontramos problemas e alertamos o governo, que muitas vezes nos consulta. A Universidade não dá opiniões políticas, mas avaliações técnicas, gerais, abalizadas e abertas. Temos boa relação com os poderes políticos. Uma vez por semana, em média, recebo um ministro aqui. É verdade que muitas vezes acontece de gente sair de posições universitárias para posições políticas. Vários ministros da Cultura, por exemplo, saíram do sistema universitário. Há efetivamente um trânsito entre o sistema universitário e o sistema político, mas eu diria que nenhum dos reitores, dos que eu conheci em minha longa vida universitária, chegou ao reitorado pensando em ocupar posições políticas.
Milton Ribeiro – Te confundem muito ainda com o teu irmão Sérgio Markarian, o célebre técnico de futebol, ou não?
Roberto Markarian – Sim, sim. Tive que mandar uma declaração ao El Pais. Eles colocaram Sérgio Markarian como Reitor da Universidade do Uruguai. Recebi um pedido de desculpas. Mas nunca me colocaram como técnico de time de futebol. [risadas]
Milton Ribeiro – Onde está o Sérgio agora?
Roberto Markarian – Ele está voltando da Grécia, onde treinava a seleção.
Milton Ribeiro – Nós falávamos sobre como sobrevive o pesquisador e o reitor. E como é que sobrevive o Markarian que conheci, que estava sempre indo ao cinema e lendo livros?
Roberto Markarian – Ah, esse Markarian continua… Lendo poucos livros. A última coisa grande que eu li foi a trilogia americana de Philip Roth, além de literatura japonesa. Sou apaixonado pela literatura japonesa, em especial por Yasunari Kawabata, Nobel de 1968, cujas obras me impressionam pela sensibilidade com que falam do mundo oriental e pelo retrato das relações humanas dentro do cenário dos anos 60. Em agosto, em plena campanha para Reitor, viajei à Coréia e ao Japão para um Congresso Mundial de Matemáticos [ICM Seul 2014]. Minha única viagem extra foi para conhecer Kamakura, a antiga capital do Japão, onde se passam várias de suas obras.
Milton Ribeiro — Não conheço Kawabata…
Roberto Markarian – Problema teu! [risadas] Falando sério, tenho certeza de que tu gostarias muito dos livros dele.
Milton Ribeiro – Mas leste Padura agora também né?
Roberto Markarian – Não, na verdade El hombre que amaba los perros está ali sobre a mesa, mas ainda não o li.
Milton Ribeiro – Tu disseste em algum lugar que vais duas vezes por semana ao cinema…
Roberto Markarian – Sim, eu sou sócio da Cinemateca Uruguaia. Vejo dois filmes por semana, qualquer coisa que possa ser boa. Na semana passada vimos um filme de John Huston que se chama Paixões em fúria [no Brasil]. É um filme extraordinário do final dos anos 40. Também vimos Quando Voam As Cegonhas, de Mikhail Kalatozov, autor também de Soy Cuba. Quando Voam As Cegonhas é um filme primoroso sobre a ausência e a morte. Nossa Cinemateca é muito boa. Eu diria que vou ao cinema duas vezes a cada sete dias quando o negócio não está muito complicado aqui na Universidade. Mas eu tento. E tem que ser no cinema. Comprei uma TV enorme e todo o material para ver filmes em casa, mas não é a mesma coisa.
Como toda lista, esta é irresponsável ao escolher os melhores livros de um ano que não acabou ainda. E mesmo se tivesse acabado… Sem nenhum distanciamento histórico, vamos novamente correr o risco, deixando por escrito nossa opinião a respeito daquilo que lemos em 2014, ignorando, obviamente, aquilo que não passou sob nossos olhos. Porém, este ano, nossa lista foi criada sem grandes problemas, diferentemente de 2013.
No ano passado, deparamo-nos com um impasse. Cada votante fez sua escolha de forma distinta, não havia quase livros com mais de um voto. O mesmo fato não ocorreu este ano. A equipe do Sul21, mais os jornalistas convidados Luiz Gonzaga Lopes (Correio do Povo), Carlos André Moreira (Zero Hora) e o historiador Éder Silveira deixaram cinco livros com quatro votos e outros cinco com três, resolvendo o problema da escolha.
Assim, aconteceu um empate quíntuplo no primeiro lugar, pois O Capital no Século XXI, Dia de matar porco, O homem que amava os cachorros, Terra avulsa e Vida e destino, receberam quatro votos e outros cinco livros três.
Segue a lista, por ordem alfabética:
~ 1 ~
O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty
Nenhum livro de economia publicado nos últimos anos foi capaz de provocar o furor internacional causado por O Capital no Século XXI (Intrínseca, 672 páginas), do francês Thomas Piketty. Seu estudo sobre a concentração de riqueza e a evolução da desigualdade ganhou manchetes nos principais jornais do mundo, gerou discussões nas redes sociais, vídeos no Youtube e colheu comentários e elogios. Fruto de quinze anos de pesquisas, o livro se apoia em dados que remontam ao século XVIII, provenientes de mais de vinte países, para chegar a conclusões explosivas. O crescimento econômico e a difusão do conhecimento impediram que fosse concretizado o cenário apocalíptico previsto por Karl Marx no século XIX. Porém, os registros históricos demonstram que o capitalismo tende a criar um círculo vicioso de desigualdade, pois, a longo prazo, a taxa de retorno sobre os ativos é maior que o ritmo do crescimento econômico, o que se traduz numa concentração cada vez maior da riqueza. Uma situação de desigualdade extrema que leva ao descontentamento geral e até, por vezes, ameaça os valores democráticos. Mas Piketty lembra que a política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar a fazê-lo.
~ 2 ~
Dia de matar porco, de Charles Kiefer
Só o fato de Charles Kiefer ter retomado a narrativa longa após 12 anos já é digno de um olhar mais prescrutador. Outro aspecto importante é ele ter sido um dos únicos autores que lançou realmente seu livro na 60ª Feira do Livro de Porto Alegre, com sessões de autógrafos no supersticioso e excêntrico dia do aniversário, 5 de novembro. Duas festas numa só, autógrafos e 56 anos completados. Mas tudo isso não seria nada se abríssemos o livro e lá não estivesse a marca de Kiefer. Ela está lá. A aridez e o jogo metafórico com camadas quase imperceptíveis, a serem descortinadas da sua estrutura textual, revelam o autor maduro tratando de uma experiência vivida autobiograficamente, a de quase-morte, mas muito bem ficcionalizada por este professor doutor em Letras de Três de Maio. Em Dia de matar porco (Dublinense, 112 páginas), Kiefer nos oferece um personagem bem erigido, o advogado Ariosto Ducchese, que é natural da mítica Pau D´Arco, pelo menos na obra de Kiefer. Nesta experiência de quase-morte, ele vê a sua mãe morta e resolve voltar à cidade natal para desvendar um enigma do passado. Nesta volta, recorda de alguns fatos, como o ritual de iniciação do carnear o porco, que é um dia de contato com a dor e com a resistência à morte, mas também de festa. Esta volta ao passado desvela segredos e coloca Ariosto no coração dos erros cometidos dentro da família gerada por Dante e Beatriz. Kiefer acertou o tom, coloca camadas e referências que vão da Cabala à Ray Bradbury e Wittgenstein e é capaz de edifícações verbais como estas: “Escrever é como matar um porco. É preciso ferir o coração do real, submetê-lo a nossa vontade, dizer a ele o que ele foi, e depois esquartejá-lo, expor as suas vísceras, valorizar este ou aquele pedaço, transformar a pele e as mantas de gordura em torresmo, e os miúdos em salsichas e salames”. (Luiz Gonzaga Lopes)
~ 3 ~
Diário de Inverno, de Paul Auster
Ao entrar no inverno de sua vida, o maior escritor norte-americano vivo (que me desculpem os fãs de Philip Roth, Don de Lillo e outros), resolveu novamente se autobiografar. E fez o verão dos seus leitores com o inverno de sua vida, com mais um diário desregrado, coberto de pequenas tragédias e grandes lições familiares e da vida e mais uma vez desgraçadamente verdadeiro, como havia sido A Invenção da Solidão e o grande ensaio de per si Da Mão para a Boca. A frase do escritor francês Joseph Joubert, escrita em 1815, serve de baliza para uma das assertivas austerianas: Há que morrer adorável (se possível). Auster envelheceu junto com Quinn, Mr. Black, Hector Mann e outros personagens memoráveis da sua tessitura. Mas neste Diário de Inverno (Companhia das Letras, 216 páginas), livro que foi lançado em 2012 na Europa e Estados Unidos e no segundo semestre de 2014 no Brasil, Auster consegue novamente se colocar na segunda pessoa do singular e dissecar o seu mundo, a matéria tangível, vivenciada dos seus escritos. A autor metaficcional ou autoficcional indireto explica algumas histórias que surgiram ao acaso e que o impeliram a escrevê-las, como a ligação por engano para o escritório de detetives em sua casa, a gênese de Cidade de Vidro, onde Quinn recebe uma ligação de alguém que quer falar com Paul Auster, da Agência de Detetives Auster. (Luiz Gonzaga Lopes)
~ 4 ~
Dostoiévski-trip, de Vladímir Sorókin
Dostoiévski-trip (Editora 34, 104 páginas) é uma obra à beira da perfeição enquanto escolha narrativa. O vanguardista russo que teve seus textos banidos durante o regime soviético esteve na Flip e mostrou todo o seu medo de que Putin se revele mais perverso e ditador que Stalin. Fora isso, criou uma obra que brinca com a drogadição, comparando a literatura a drogas consolidadas e experimentais. Cinco homens e duas mulheres estão na fissura por mais drogas, que no caso são livros ou autores. Céline, Genet e Sartre são drogas que deixam os usuários tensos. Faulkner e Hemingway são consumidos por halterofilistas ou caras que cultuam o corpo. Mas eles vão se deparar com uma droga experimental e mais pesada: Dostoiévski. Após ingeri-la, eles acabam dentro de uma cena de O Idiota. Tudo anda conforme o script até que a droga começa a fazer efeito e eles tecem longos monólogos carregados de drama, sarcasmo e um niilismo. Um livro que aproxima o Dostoiévski do século 19 com o mundo veloz e junkie, mas que propõe que o autor russo pode ser uma leitura/droga demasiada pesado para este superficial e virtual mundo do século 21. (Luiz Gonzaga Lopes)
~ 5 ~
A festa da insignificância, de Milan Kundera
A festa da insignificância (Companhia das Letras, 136 páginas) foi aclamado pela crítica e despertou enorme interesse dos leitores na França e na Itália, onde logo figurava em todas as listas de best-sellers. Lembrando A Grande Beleza, filme de Paolo Sorrentino acolhido com entusiasmo pelo público brasileiro no mesmo ano, o romance de Milan Kundera coloca em cena quatro amigos parisienses que vivem numa deriva inócua, característica de uma existência contemporânea esvaziada de sentido. Eles passeiam pelos jardins de Luxemburgo, se encontram numa festa sinistra, constatam que as novas gerações já se esqueceram de quem era Stalin, perguntam-se o que está por trás de uma sociedade que, em vez dos seios ou das pernas, coloca o umbigo no centro do erotismo. Na forma de uma fuga com variações sobre um mesmo tema, Kundera transita com naturalidade entre a Paris de hoje em dia e a União Soviética de outrora, propondo um paralelo entre essas duas épocas. Assim, o romance tematiza o pior da civilização e lança luz sobre os problemas mais sérios com muito bom humor e ironia, abraçando a insignificância da existência humana.
~ 6 ~
O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura
Um grande e multipremiado romance baseado em fatos e personagens reais, onde o cubano Padura narra pormenorizadamente o assassinato de Trotsky a mando de Stalin — terceira vez que esta nome aparece nesta retrospectiva — a cargo de Ramón Mercader e do serviço secreto soviético. A pesquisa de Padura levou-o a todos os exílios de Trotsky: de Alma Ata (atual Cazaquistão) para a Turquia, dali para França e depois para a Noruega e o México, onde ele encontrará com seu algoz. O texto alterna capítulos dedicados a Trotsky, a Mercader e ao futuro autor do livro, perdido, sem temas e comida em Cuba. Padura inventa os diálogos, mas mantém rigorosamente os fatos históricos. Para melhorar ainda mais, o livro cresce de forma espetacular a cada página dentro do abandonado gênero do thriller policial. Graham Greene ficaria feliz de ler O Homem que Amava os Cachorros (Boitempo, 592 páginas). Obra indicada a todos que não tenham saudades de Stalin, pois seu autor diz claramente: “Trotski podia ser duro, mas era um político; Stalin era um psicopata”. (Milton Ribeiro)
~ 7 ~
O que amar quer dizer, de Mathieu Lindon
Ambientado na Paris do fim dos anos 1970 e início dos 80, O que amar quer dizer (Cosac Naify, 288 páginas) repassa os anos de convivência do jornalista cultural Mathieu Lindon com Michel Foucault (1926-1984) e a enorme influência que o filósofo teve sobre sua vida. Filho de Jérôme Lindon, fundador das Editions de Minuit e editor de Samuel Beckett e Marguerite Duras, o autor deste livro rememora as festas no apartamento de Foucault na Rue de Vaugirard em descrições bem-humoradas de sua vivência homossexual em meio a viagens de ácido e música clássica. Em seguida, trata da sombra que surgiu no meio gay quando a aids, que viria a vitimar o filósofo, entrou na pauta da época. A história se desenrola ao redor dessas duas figuras masculinas: de um lado, o pai de “sorriso tímido”, objeto de um amor que não encontra a forma de se expressar; de outro, o amigo de “sorriso escancarado” que lhe ensinou a ser feliz, vivo – e grato. O que amar quer dizer foi publicado na França em 2011, ano em que obteve o Prêmio Médicis.
~ 8 ~
Opisanie świata, de Veronica Stigger
Primeiro romance de Veronica Stigger, Opisanie świata (Cosac Naify, >160 páginas) significa “descrição do mundo” e é como se traduz Il Milione, o livro de viagens de Marco Polo para o polonês. É justamente como uma espécie de relato de viagens que essa novela se constitui. A história central do livro é a de Opalka, um polonês de cerca de sessenta anos que, em sua terra natal, recebe uma carta por meio da qual descobre que tem um filho no Brasil – mais especificamente, na Amazônia -, internado num hospital em estado grave. O pai decide viajar ao encontro do filho; no início do percurso, conhece Bopp, um turista brasileiro que, ao tomar conhecimento das razões da viagem de Opalka, resolve abandonar seu giro pela Europa para acompanhá-lo ao Brasil. O livro se compõe a partir de diversos registros, como o do relato em terceira pessoa, o da carta, o do diário etc., além de contar com inserções de imagens e fragmentos de textos sobre a ou da década de 1930 — época em que transcorre a ação.
~ 9 ~
Terra Avulsa, de Altair Martins
No seu mais recente romance, Terra Avulsa (Record, 312 páginas), o premiadíssimo Altair Martins fala de diversos temas – isolamento, relações familiares, amores nascentes, política latino-americana, tradução e fotografia – para, no final das contas, falar de literatura: para que ela serve? Como nasce o texto? Qual a distância que separa autor e leitor? E talvez a mais fundamental (e mais ousada e mais irrespondível) de todas as perguntas: o que é literatura? Logo no início do livro, o protagonista (um professor e tradutor que busca sua própria poesia ao mesmo tempo em que busca afastar-se do mundo) revela sua predileção pela hipálage, figura de linguagem que se caracteriza pelo desajustamento entre a função gramatical e a função lógica das palavras, o que ocorre, por exemplo, quando se atribui a um substantivo uma qualidade que pertence a outro. E assim, através de múltiplas transposições de sentidos entre as temáticas contidas no romance, sempre em linguagem exuberante e imagética (“porque a linguagem é a primeira que sangra”), o autor acaba por cunhar uma definição tão precisa quanto fluida: “literatura é procurar a mãe na casa dos outros”. (Rafael Bán Jacobsen, no Amálgama)
~ 10 ~
Vida e Destino, de Vassili Grossman
Vida e destino (Alfaguara, 920 páginas) é um épico moderno e uma análise profunda das forças que mergulharam o mundo na Segunda Guerra Mundial. Vassili Grossman, que esteve no campo de batalha e acompanhou os soldados russos em Stalingrado, compôs uma obra com a dimensão de Tolstói e de Dostoiévski, tocando, ao mesmo tempo, num dos momentos cruciais do século XX. A ação tem lugar durante a invasão da União Soviética pela Alemanha nazista, com foco na batalha de Stalingrado. O livro começa quando a Alemanha cerca a cidade, tentando conquistá-la. Ao longo do livro, são descritos os danos causados pelos bombardeios aéreos e pela artilharia localizada em torno da cidade. Com personagens que são uma combinação de figuras ficcionais e históricas, o romance não é apocalíptico nem crê que o ser humano esteja destinado à desgraça, mesmo em meio à destruição. Estão lá os campos de prisioneiros militares e os de concentração; os altos-comandos, com Hitler de um lado e Stalin de outro; a disputa insensata dos soldados por uma única casa na cidade em ruínas e os dramas familiares dos que ficam para trás e enfrentam o terror político e a incerteza. Um romance de grande força dramática. Finalizado em 1960, e a seguir confiscado pela KGB, o livro permaneceu inédito até a metade dos anos 1980. (Milton Ribeiro)
Valeu a pena esperar quase uma hora por Padura, que dava uma entrevista de última hora em seu quarto para a Folha de São Paulo. Fiquei muito feliz entrevistando o escritor cubano Leonardo Padura. O resultado físico do encontro é a dedicatória que ele escreveu no meu exemplar de O homem que amava os cachorros, mas o resultado intangível e pessoal foi maior.
Abaixo, a dedicatória:
Para o amigo Milton, com o desejo que a vida lhe sorria e que visite Havana.
Com o abraço cubano de Padura
2015
Por algum motivo incompreensível, eu sabia que nos entenderíamos perfeitamente e que meu roteiro de perguntas era bastante adequado a um autor que lera com boa dedicação. O resultado da entrevistafoi acima da média, porém o que mais gostei foi o que ficou, a pedido de Padura, off the record, confidencial. Fiz algumas perguntas sobre o mercado editorial que foram respondidas como se estivéssemos numa mesa de bar. Adentramos outros temas, como a cidade de Havana e a cultura em geral. Aludi ao fato de ter gostado muito de algumas partes de seu maior romance, deixando no ar certa contrariedade com certas proximidades. Ele entendeu e explicou tudo com lógica e sorrisos. Não faria sentido inserir minhas especificidades pessoais numa entrevista que já tinha cinco laudas, mas fiquei com a impressão de que poderíamos ter ficado horas conversando.
Saí de lá com a Fofonka, conversando sobre como a maioria das pessoas brilhantes não são arrogantes. E também sobre o fato de ele não ter perguntado sobre minha formação em literatura, como costumam fazer algumas sumidades da música porto-alegrense, que dizem que eu não entendo nada de sua arte, apesar do meu conhecimento do repertório. No caso de Padura, bastou lê-lo; no caso da música, não basta ouvir. Piada, né?
Acho vale a pena meus sete leitores darem uma olhada no link da entrevista. O Charlles Campos leu:
Rapaz, finalmente publicou a entrevista. Parabéns, Milton! (Pena que eu, claro, não tive meios de saber antecipadamente do evento, assim teria pedido a você o desconfortável favor de requisitar um exemplar do livro com o autógrafo do Padura, prontificando-me a pagar todas as despesas).
O homem que amava os cachorros, recomendação sua, foi um dos melhores romances latino-americanos que li nos últimos vinte anos. Creio que ele perde apenas para A festa do bode.
Note que Padura nunca externou a pretensão de pertencer ao primeiro time dos escritores cubanos. Ele não almeja nem a erudição de Carpentier, nem o esteticismo mirabolante de Cabrera Infante. Ele se contenta em ser um escritor de gênero_ a literatura cubana tem essa semelhança com a literatura norte-americana: se presta muito bem tanto ao alto cânone quanto a uma excelência de gênero. Há um artigo sobre Padura, publicado na revista Piauí, em que Padura diz que seu desejo é ser, apenas, o Paul Auster cubano. Ele conseguiu superar Paul Auster, que nunca escreveu um livro tão intenso e expressivo quanto O homem que amava os cachorros. O livro está sendo muito bem lido aqui no Brasil, e já se encontra em não sei qual reedição.
Leonardo Padura sabe que não é Tolstói, mas que seu tema podia ser tão imenso ou maior quanto o de Guerra e Paz. A história do exílio e assassinato de Trotski e a de seu algoz Ramón Mercader, se bem circunstanciada e contada, tinha o potencial de mostrar o que foi boa parte do século XX, com a história da perversão e morte (e das mortes de seres humanos) de sua maior utopia, indo desde a Revolução de 1917 até a Guerra Fria. Raras histórias são tão amplas temporal e fisicamente. Só para comprovar o caráter cosmopolita do livro, basta saber das andanças de Padura durante os cinco anos de pesquisas e de escritura do romance: Espanha, para saber da participação de Mercader na Guerra Civil Espanhola; Moscou, é claro, atrás da história de Trotski e de seus primeiro exílios no Cazaquistão e na Turquia; Paris e interior da França, em novo exílio. E também Dinamarca e Noruega, por onde o russo passou antes de chegar ao México, país onde o russo encontraria a morte através da picareta de Mercader.
Mas O homem que amava os cachorros (Boitempo, 592 páginas) não é um documento histórico e sim um romance, um romance que se atém com toda a fidelidade aos conhecidos episódios e à cronologia dos anos finais de Trotski. Nem tanta fidelidade foi possível com Mercader, o homem que trabalhou no Ocidente para os russos sob diversos nomes e disfarces e cuja história é tão fácil de reconstruir quanto adivinhar as feições daqueles homens que Stalin fazia sumir das fotografias históricas da Revolução Russa.
O livro de Padura é excelente. A escolha pelo ritmo de thriller foi acertada, assim como a alternância de capítulos dedicados a Trotski, Mercader e ao futuro autor do livro, perdido, sem temas, comida ou perspectivas em Cuba. É claro que os diálogos do romance são inventados, mas não são artificiais ou inverossímeis. Para melhorar ainda mais, o livro cresce de forma espetacular a cada página, dando dimensão humana a todos os personagens, fugindo inteiramente dos discursos e do jargão dogmático, até ridicularizado por Padura. Graham Greene ficaria feliz de ler O Homem que Amava os Cachorros.
A história é narrada no ano de 2004 pelo personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e que, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava seus cães numa praia de Havana, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Liev Trotski e de Mercader, voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo por Stalin. O dono dos cães, que Iván passa a denominar ‘o homem que amava os cachorros’, confia a ele histórias sobre Mercader, de quem conhece detalhes íntimos. Diante disso, o narrador reconstrói a trajetória de sua vítima Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido Comunista e da URSS. Ramón Mercader é um homem quase sem voz na história. Ele recebeu, como militante comunista, uma única tarefa — eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos anos, por inúmeras mistificações.
Note-se que Mercader, Trotski e Ivan, todos eles, são “homens que amavam cachorros”. E um detalhe: o caso amoroso de Frida Kahlo e Liev Trotski, ocorrido sob o olhar digno de Natália Sedova é tratado com discrição, sem lances espetaculares. Apenas aconteceu por iniciativa do casal e desaconteceu a partir da elegante reação de Sedova.
Obra indicada a todos que não tenham saudades de Stalin, pois seu autor diz claramente: “Trotski podia ser duro, mas era um político; Stalin era um psicopata”.
Alguma coisa em O homem que amava os cachorros me lembra Camus.
A morte de Camus, num medíocre acidente de automóvel, aos 46 anos, lembra Moscou. Só hoje descobri que não apenas eu faço a relação. O escritor e tradutor checo Jan Zabrana sugere a possibilidade de que Camus tenha sido assassinado por ordem do Ministro das Relações Exteriores da URSS, Dmitri Shepilov, em retaliação à oposição aberta que o escritor vinha fazendo ao país — particularmente no artigo publicado na revista Franc-Tireur de março de 1957, em que atacava pessoalmente o ministro, responsabilizando-o pelo que chamou de “massacre”, durante a repressão soviética à Revolução Húngara de 1956.
Em sua crítica, Camus citara o poeta americano Walt Whitman. Afirmara “sem liberdade, nada pode existir”. Ganhou assim, a inimizade de stalinistas e de simpatizantes da URSS. Olivier Todd, no livro Albert Camus — Uma Vida (Record, 877 páginas), relata o acidente:
A vinte e quatro quilômetros de Sens, na Rodovia 5, entre Champigny-sur-Yonne e Villeneuve-la-Guyard, o Facel-Véga, depois de uma guinada, sai da estrada em linha reta, se arrebenta contra um plátano, ricocheteia para cima de uma outra árvore, se desmantela. Michel Gallimard sai gravemente ferido — morreu cinco dias depois –, Janine ilesa, Anne também. O cachorro desaparece, Albert Camus morreu na hora. O relógio do painel é encontrado bloqueado às 13h55. A seus amigos, Camus dizia com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel.